Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora
ISBN: 978-972-99292-4-3
SLT 62 – Geografias poéticas: figurações do espaço na literatura lusófona.
AS CIDADES VISÍVEIS DE JOSÉ SARAMAGO
Sandra Aparecida FERREIRA1
RESUMO
Viagem a Portugal desconhece o esquematismo rígido do guia turístico e empreende a fusão
de ficção e história. Inspirado num declarado modelo: Viagens na Minha Terra, de Almeida
Garrett, Viagem a Portugal é conduzido pelo olhar do viajante, que contempla seu país
relatando especificidades dos lugares e dos seres figurados em seu trajeto, os quais ora
fascinam, ora inquietam, ora aborrecem. O relato acerca desses lugares e seres é norteado pela
proposição descritiva, à qual se sobrepõem continuamente digressões de ordem vária, que
remetem para a história, a arte, a literatura, a arquitetura etc. O relato, em razão disso, é
pontuado por desvios narrativos – líricos, filosóficos, irônicos. Tais desvios conferem à
descrição um ethos costumeiramente audível nos romances e crônicas de José Saramago.
O propósito deste artigo é sondar Viagem a Portugal a partir da bipolaridade complementar
entre descrição, narração e digressão. Para isso, analisará as intermitências descritivas,
desencadeadas por detalhes do trajeto que, dando margem a considerações derivadas por parte
do viajante, dialogarão com o erudito, o popular, o anedótico, o sublime, o grotesco, o
metalingüístico. O artigo, portanto, busca evidenciar como é tecido na obra um convite à
viagem em que as cidades e paisagens portuguesas evocam, pelo crivo do viajante, a memória,
o desejo, os símbolos, as trocas, os mortos, os nomes, de modo que cidades visíveis e
invisíveis surjam conciliadas na palavra saramaguiana.
PALAVRAS-CHAVE: Viagem a Portugal; José Saramago; narrativa; metaficção.
Viagem a Portugal [1981], de José Saramago, é um livro sobre cujo gênero algumas
palavras já foram ditas. Para Maria Alzira Seixo (1987), trata-se de “quase uma ficção”, em
que o autor surge como "o viajante", discorrendo sobre o que encontra em Portugal, ao modo
da literatura de viagem, porém valendo-se de saldos reflexivos, de desvios líricos e irônicos,
como na crônica; com destaque para "a componente mágica de sua seleção, o entretecer
1
Universidade Estadual Paulista (UNESP). Faculdade de Ciências e Letras de Assis. Departamento de
Lingüística. Avenida Dom Antônio, 2100, Parque Universitário, CEP 19806-900, Assis/SP, Brasil; e-mail:
[email protected].
A apresentação deste trabalho contou com auxílio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo (FAPESP).
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propositado ou casual de atitudes, a fulgurância dos encontros ou a lateralidade das emoções,
como faria nos seus romances" (p.19).
A seu turno, Tania Franco Carvalhal (1999) focaliza Viagem a Portugal em termos de
filiação romanesca: o viajante é descrito como protagonista do relato, uma personagem a
encobrir o narrador, de modo que a narração na terceira pessoa impede o predomínio do olhar
subjetivo e permite que os movimentos do viajante sejam reproduzidos diante do leitor,
"veiculando idéias e reflexões. A narrativa desdobra-se como um texto ficcional [...].
Verdadeira e real é a terra que se visita, pois o viajante assume integralmente o papel do
figurante que está a ensaiar passeios" (p.185).
A personagem da obra em foco mereceu de Maria Luísa Leal (1999) um excelente
ensaio no qual a incursão de José Saramago à literatura de viagem é apreciada como fruto de
uma "disciplina criadora bastante rígida, um compromisso entre a ficção, a crónica e o guia
turístico", com a ressalva, para o último traço genérico, de “guia do não turista” ou "guia
turístico a contrário" (p. 193). Para Leal, a escritura do texto o converte necessariamente em
um híbrido que participa da rubrica do guia turístico – de modo problemático, tanto pelos
"itinerários escolhidos como pela recusa de cedência aos estereótipos lingüísticos do gênero"
(p.194) – bem como da crônica e da autobiografia, que, assinala Leal, contêm já um princípio
ficcional.
Teresa Cristina Cerdeira da Silva (1999), aprofundando a percepção da filiação
garrettiana de Viagem a Portugal, assevera que essa obra é um falso guia de turismo, assim
como Viagens na minha terra (1846) era um falso diário de viagem. Para Silva, o de
Saramago não é um livro de turismo, porquanto "não quer impor roteiros [...], mais que
descritivo da paisagem é historiador da cultura" (p.05). A ensaísta enfatiza o percurso de
interiorização, contrário àquele das navegações pretéritas, sublinhando tratar-se de um "olhar
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de dentro e para dentro das tradições e da cultura" (id., ibid.), marcado pelo tom reflexivo da
escrita.
Uma vez que a fortuna crítica tem assinalado o caráter compósito da obra de José
Saramago em tela, o estudo ora apresentado focalizará os elementos estruturais e as relações
temáticas dessa obra, com vistas a uma análise centrada nos aspectos ficcionais da narrativa,
tendo por objetivo evidenciar a fatura literária de Viagem a Portugal.
O matiz autobiográfico parece responder pela zona indefinida em que se costuma
situar Viagem a Portugal. A Carlos Reis, José Saramago informou que o exercício de escrita
aparentemente distinto dos até então praticados resultou de uma solicitação do Círculo dos
Leitores para a produção de um guia. Saramago apresentou-lhe a contraproposta de um livro
que seria não um guia, mas a narrativa de uma viagem a Portugal: "Se vocês quiserem, se
tiverem interesse nisso, eu posso fazer uma viagem e depois conto" (REIS, 1998, p. 117).
A diversidade inscrita na obra – resultante de uma mistura de estilos e gêneros, em que
se destacam a vivacidade da linguagem e das imagens e o tom oralizante do narrador –
dificulta sobremaneira sua inscrição na bitola estreita do gênero uno. Essa diversidade,
contudo, deixa ver tratar-se de uma obra que, partindo de um referente externo, constrói sua
originalidade de estilo, mobiliza personagens, é animada por uma vontade mimética permeada
pelas divagações da subjetividade. Em conseqüência, o real objetivo não é mais importante
que as percepções e sensações por ele desencadeadas, de modo que as reminiscências
atribuídas pelo narrador ao viajante produzem um real mais fascinante, porque literário. As
instruções do narrador chamam a atenção para a fabricação do texto e para os mecanismos da
escritura, de modo a permitir que Viagem a Portugal seja recebida como narrativa ficcional.
O narrador da obra em foco existe em palavras no texto, constitui um enunciador
interno que se dirige a um narratário: "Tome o leitor as páginas seguintes como desafio e
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convite. Viaje segundo um seu projeto próprio" (SARAMAGO, 1997, p.14). Dada a gênese
autobiográfica da obra em foco, sempre se pode ser tentado a fundir autor, narrador e
personagem. A obra, porém, institui suas regras: embora o viajante compartilhe traços do
autor, a viagem relatada ganha contornos de ficção, ao compor um universo povoado de
personagens vislumbradas à volta do protagonista e ao se valer predominantemente de
escolhas técnicas e criativas típicas da narrativa ficcional.
O aprendiz de viajante
A história de uma viagem de origem referencial concreta é filtrada pela narração e pela
textualização. Sendo tênue a intriga: os prazeres e percalços de um viajante a atravessar
Portugal, a intensidade se fixa no modo de encenação da viagem, em que abundam recursos
estilísticos: "[...] e o viajante dá uma volta pela aldeia, mal chega a dá-la, porque de súbito
surge-lhe pela frente uma gigantesca tartaruga negra, é a igreja do lugar, de grossíssimas
paredes, uns enormes botaréus de reforço que são as patas do animal" (id., ibid., p. 19).
Esse narrar – pontuado por metáforas, metonímias, descrições expressivas, torneios
sintáticos e seleção lexical vivazes, ao modo de uma prosa saborosa e rara – vai atestando que
a viagem é geográfica e poética, constituída por uma narrativa a que várias narrativas mínimas
se juntam, conforme os lugares e os eventos são apreendidos pelo viajante. Na
"Apresentação" fica dito:
Essa viagem a Portugal é uma história. História de um viajante no interior da viagem que fez,
história de uma viagem que em si transportou um viajante, história de viagem e viajante
reunidos em uma procurada fusão daquele que vê e daquilo que é visto, encontro nem sempre
pacífico de subjetividades e objetividades. Logo: choque e adequação, reconhecimento e
descoberta, confirmação e surpresa. (id., ibid., p.13)
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História de um viajante em seu itinerário, de uma busca, durante a qual o protagonista,
o viajante, junta-se sucessivamente a outras personagens instantaneamente iluminadas pela
voz narrativa. Trata-se invariavelmente de personagens não nomeadas, delineadas por meio de
qualificações gerais, por enunciados de ser e de fazer, conforme uma prática recorrente nos
romances posteriores, em que as personagens são referidas por perífrases exclusivamente, a
exemplo de Ensaio sobre a cegueira [1995].
Um rol singular de personagens, exercendo diversos papéis sociais, desfila pela
narrativa. Tais personagens configuram interlocutores do viajante e exercem a função
precípiua de lhe fornecer informações, recepcioná-lo, facultar-lhe acesso, enfim, produzir
cenas enunciativas nas quais a cessão da voz por vezes é realizada mediante emprego de dois
pontos e aspas, sinalizadores do discurso direto, a exemplo da seqüência do coveiro, de
extração hamletiana, responsável pela narração do caso de José Jorge, soldado sentenciado à
morte em razão da fidelidade a nefasto amigo (cf. SARAMAGO, 1997, p. 35). O coveiro
detém um saber e o transmite com palavras precisas e sentenciosas, revelando-se agente de
dupla conservação: conserva a lápide e a memória de José Jorge, morto em 3 de abril de 1843.
O homem dos mais tristes olhos é encontrado perto de Padim da Graça, onde o
viajante detém-se à beira da estrada, aparentemente atraído por uma construção que:
[...] não é solar nem palácio, nem castelo nem igreja, nem torre nem alpendrada. É uma casa
comum, de porta e janela, parede de frente baixa, alta a de trás, telhado tosco de duas águas.
Grandes placas de reboco desapareceram, a pedra está à vista. À janela há um homem de barba
crescida, chapéu velho e sujo na cabeça, e os olhos mais tristes que pode haver no mundo.
Foram estes olhos que fizeram parar o viajante” (id; ibid., p. 97)
A singeleza da casa é referida pela descrição de seu aspecto visual e, no correr dos
traços arquitetônicos, irrompe a figura humana trágica e desarticulada, habitante provável de
um "mundo de pavores" aflitivo, em cujo interior "nada mais há que negrume, mesmo estando
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aberta a janela onde o homem espairecia" (id., ibid.). Seqüência emblemática das dores do
mundo e da singularidade do viajante, que, atento ao esplendor e à miséria, conjuga
dialeticamente as percepções viageiras.
Com ironia articulará outras percepções, a exemplo do episódio ocorrido na Sé de
Viseu, em que irrompe a personagem de um estouvado guia, sobre quem o narrador declara:
[...] volúvel criatura que se agita, dá corridinhas, não permite dúvidas nas questões, e leva o
viajante a toque de caixa da igreja ao claustro, do claustro à sacristia, da sacristia ao tesouro, do
tesouro à igreja, da igreja à rua, e enquanto vai andando vai fazendo trocadilhos, abre uma
janela e diz Alfama, abre outra e diz sabe-se lá o que, e com isto pretende apontar semelhanças
com outros lugares portugueses e do resto do mundo, que guia vem a ser este, justos céus. (id.,
ibid., p. 183)
Caracterizado por desabonadores enunciados de fazer, o guia da Sé é uma provação
agônica para o viajante em busca de contemplação e conhecimento. Apressado e impreciso, o
guia não ajuda, antes atrapalha, convertendo-se em antagonista episódico, cuja função é
sinalizar nuances mal sucedidas de viagem, também referidas no comentário avaliativo que
encerra a seqüência narrativa:
O viajante saiu no dia seguinte de Viseu. Ia de mau humor. Dormiu mal porque a cama era má,
teve frio porque o aquecimento não funcionava, e pagou como se tudo isto fosse bom e
funcionasse. Ter nome de Grão Vasco só é bastante quando se sabe pintar”. (id., ibid.)
O guia, personagem nomeada estritamente por sua função, constitui um tipo, mas o
Hotel Grão Vasco sai chamuscado na comparação implícita entre os maus serviços prestados
e a maestria do pintor português quinhentista homônimo. Os desafetos e afetos do viajante se
vão somando, ativados por circunstâncias várias e personalíssimas, a exemplo do comovente
episódio de teor fetichista:
[...] em Ovar deixou uma parte do coração: só assim saberá dizer o que sentiu diante daquele
chapéu de mulher preto, de espesso feltro, grande aba redonda donde pendem seis borlas. Quem
não o viu nunca poderá imaginar a graça, o donaire, a feminilidade irresistível do que, pela
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descrição, se cuidará ser um desajeitado guarda-sol. Não faltam razões para ir a Ovar, mas o
viajante, quando lá voltar, será por causa deste chapéu. (id., ibid., p. 119)
A minuciosa descrição do acessório arrebatador parece não bastar e o narrador,
antecipando símiles desabonadores da parte do narratário, faz valer o afeto do viajante,
convertendo o chapéu feminino negro em ícone do Museu de Ovar.
Chama a atenção do viajante o homem de meia idade de Lamego: embriagado, solícito,
disposto a recebê-lo, a um desconhecido viajante, em sua casa. O episódio é narrado com a
requintada técnica saramaguiana para revelar o tateamento mútuo de personagens subitamente
reveladas umas às outras em um encontro casual, convertido em inesquecível. O homem de
meia idade personifica a hospitalidade e a tolerância, graças ao seu gesto desprendido e à sua
reflexão conciliadora sobre os que crêem e os que não crêem em Deus. Esse episódio tem
como contrapartida aquele em que os pólos do delicado tema religioso retornam sem equação
segura: uma senhora, tomando o viajante por testemunha de Jeová, recusa-lhe a chave de uma
igreja, por suspeitá-lo capaz de atentados semelhantes aos já cometidos por indivíduos
daquela filiação. Após muito pasmo e expectativa frustrada, produzidos pelos maus modos da
senhora e pelo pouco mérito da igreja, o narrador sumaria:
O melhor do caso, porém, foi ter-se revelado a velhinha grande viajante européia [...], o viajante
está pasmado, no Turcifal uma mulherzinha de xale e lenço, morando numa pobre casa de uma
rua escondida, e tão viajante, benza Deus. Ficaram as pazes feitas, mas o viajante ainda hoje
está convencido de que, para a mulherzinha do Turcifal, é mesmo testemunha de Jeová,
trabalhando na clandestinidade. (id., ibid., p. 260)
Contraponto óbvio do ébrio e lúcido homem de meia idade de Lamego, a mulher
cautelosa do Turcifal parece pronta a soprar as brasas da intolerância, a despeito de sua
bagagem de viajante.
Em Caldas da Rainha, entre cerâmicas, o narrador declara ter o viajante "sério amor
por estes barros", em razão do qual acrescenta: "Se o viajante começa a falar de louças das
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Caldas há risco de levar o dia todo: cale-se, pois, e siga viagem" (id. ibid., p. 268). Esse
profundo amor, que é do viajante e é do autor, será depois desvelado em A Caverna [2000],
por meio da família de oleiros despojada dos meios de sua sobrivência. Ainda em Caldas da
Rainha, à galeria de guias, inaugurada pelo estouvado da Sé de Viseu, vem juntar-se o
autômato da Igreja de Nossa Senhora do Pópulo, numa seqüência em que viajante e guia
parecem irmanados pelo amor à arte, quando o primiro faz uma qualquer consideração que
desnorteia o segundo:
Oh, que tal disseste. O homem atrapalha-se, hesita uma vez e duas, e depois retoma a melopéia
explicativa no ponto em que fora interrompido. Compreende o viajante que o guia só assim
sabe o recado, e não abre mais a boca. (SARAMAGO, 1997, p. 268)
O saber superficial das palavras do guia é um desconsolo para o viajante solitário,
privado de um interlocutor com quem partilhar a fruição de magnificentes obras de arte ou
meramente do prazer simples da pergunta e da resposta. As mal sucedidas experiências com
guias faz o narrador elencar as características necessárias a um guia à altura da Igreja de São
Quintino, descrita como "uma jóia preciosa quase ignorada", merecedora de "guia sabedor,
tão capaz de falar de azulejos como de arquitetura, de manuelino como de renascença, do
espaço de fora como da harmonia de dentro" (id., ibid., p. 254.).
Ao guia idealizado pelo narrador, marcado pelo saber, deveria juntar-se o
complemento da mulher que representa "a voz do sincero amor das coisas, a que não sabe de
erudições, tantas vezes simples rótulos colados na face da beleza" (id., ibid.), mulher que
acompanha o viajante na visita à igreja e se enternece com os objetos vistos. O guia ideal
segundo o viajante é, portanto, aquele que alia conhecimento e afeto, tão importante um
quanto outro.
O Convento de Mafra compõe uma cena de visitação paradoxal, que subjuga o
viajante ao mesmo tempo em que o deixa indiferente. Subjuga-o a grandeza desse lugar, sobre
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o qual Saramago em seguida publicará a consagrada metaficção historiográfica que é
Memorial do Convento [1982]. A colossal magnitude arquitetônica, porém, não encontra
ressonância afetiva no viajante:
[...] viu o viajante a galilé com as estátuas que vieram de Itália: talvez sejam obras-primas,
quem é ele para pôr em dúvida, mas deixam-no frio, frio. E a igreja, vasta, mas
desproporcionada, não consegue aquecê-lo. (id., ibid., p.279)
As personagens integram-se à narrativa de forma elementar: são mostradas a ser e agir,
como mediadoras de saberes sobre o entorno, mormente no caso do protagonista, cuja história
de viagem é tecida pelo narrador. O viajante, personagem focalizadora, é quem, graças à
mediação do narrador heterodiegético, faculta o ver na narrativa. O espaço em que se move
essa personagem é vasto: da fronteira com a Espanha para o interior de Portugal, das terras do
Norte para a Finisterra do Sul. Não há indicações cronológicas referentes ao deslocamento do
viajante. O narrador, por sua vez, não dissimula as marcas de sua presença e as falas das
personagens são mediadas por seu discurso, ocorrendo o predomínio de falas transpostas no
estilo indireto. Na narrativa em análise Saramago exerce parcimoniosamente a peculiaríssima
narrativização que abole as marcas ortodoxas das falas das personagens e da pontuação.
A modalidade de transcrição de falas predominantemente utilizada é a do discurso
resumido e das falas relatadas, com ocorrências ocasionais de discurso direto e indireto livre.
Assim, no caso das personagens incidentais, o modo da presença do discurso é por vezes
exterior, pronunciado, e, no caso do protagonista, impõe-se sobretudo o discurso interior, que
desvela a intimidade da personagem.
O narrador, sendo assim, exerce uma função de organizador do discurso em que se
evidenciam as peripécias e reflexões do viajante. Exerce ainda uma função comunicativa, ao
se dirigir ao narratário para agir sobre ele ou manter contato, e uma função explicativa, ao
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oferecer informações consideradas necessárias para a compreensão de aspectos vários das
contingências da viagem:
Da janela grande já tudo foi dito: provavelmente está tudo por dizer. Não se esperem do
viajante adiantamentos. Apenas a convicção firme de que o estilo manuelino não seria o que é
se os templos da Índia não fossem o que são [...]: um estilo de ornamentação tão denso como é
o manuelino não podeia ter nascido, armado e equipado, à sombra das oliveiras lusitanas: é um
todo cultural colhido em terra alheia e depois aqui reelaborado. Perdoai ao viajante as ousadias.
(id., ibid., p. 231)
O vocábulo viagem, do provençal viatge, é derivado do latim viatcum, "da viagem",
referindo-se à comida levada, ao farnel, e, por relação metonímica, à jornada. O périplo torna
o viajante um agente, aquele que passa e se alimenta do que vê, um centro em contínuo
deslocamento. Em Cidades invisíveis, o grande Khan pergunta: "Para que serve, então, viajar
tanto?" e Marco Polo assevera em discurso indireto:
[...] quanto mais se perdia em bairros distantes, melhor compreendia as outras cidades que havia
atravessado para chegar lá, e reconstituía as estapas de suas viagens e aprendia a conhecer o
porto de onde havia zarpado, e os lugares familiares de sua juventude, e os arredores de casa, e
uma pracinha de Veneza em que havia corrido quando criança. (CALVINO, 2003, p.30)
Kublai Khan entende que Polo viaja para encontrar o passado e Polo pressente que
todas as cidades são, de algum modo, Veneza, referência primeira. Nas imaginárias cidades
femininas arquitetadas por Ítalo Calvino, o mercador veneziano, prototípico viajante, surge a
filosofar sobre a essência da viagem, o que se perde e o que se encontra, as transformações e
as permanências, o esquecimento e a memória. O viajante saramaguiano assemelha-se ao
Marco Polo de Calvino: enquanto este percorre o mundo para encontrar sempre Veneza,
aquele atravessa Portugal para encontrar sua terra, ambos os viajantes, cada um a seu modo,
em busca de quem são e de quais são suas histórias, em perpétuo movimento. O viajante
português também é assombrado pelas reverberações do passado que o cruzam para repercutir
no futuro e mostra-se:
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[...] capaz de captar e reter esta presença do passado, da história dos homens e das mulheres que
neste castelo viveram, amaram, trabalharam, sofreram, morreram. O viajante sente no Castelo de
Marialva uma grande responsabilidade. Por um minuto, e tão intensamente que chegou a tornarse insuportável, viu-se como ponto mediano entre o que passou e o que virá. (SARAMAGO,
1997, p.172)
O narrador revela um viajante que é observador crítico do ser humano em seu meio,
nesse domínio em que o indivíduo anônimo é visto no papel que representa, submetido aos
costumes e ao ciclo da vida, percebido no nível das relações humanas em suas contingências
amplas. O viajante é dado a movimentos subjetivos que sinalizam a importância de viver sem
desperdiçar a vida, denunciando a pobreza e expondo os pequenos demônios atormentadores
da existência em aldeias miseráveis (cf. id., ibid., p. 32), bem como a falta de recursos e ou de
cuidados que põe em risco a sobrevivência de preciosidades arquitetônicas, a exemplo da
basílica paleolítica em Idanha-a-Velha:
O viajante sente-se amarrotado como um jornal velho que tivesse servido de reforço a biqueira
de sapatos. A comparação é complicada, sem dúvida, mas complicado é também o estado de
espírito do viajante diante deste crime de abandono, de absurdo desleixo: indigna-se, entristecese, envergonha-se, não quer acreditar no que seus olhos vêem. Esta barraca de obras, que não
serviria para guardar ferramentas ou sacos de cimento, resguarda, tão mal como acaba de ser
explicado, um precioso vestígio de catorze ou quinze séculos. Assim cuida Portugal do que é
seu. (id., ibid., p. 205)
Para que não fique apenas o espírito de incúria, segue-se o exemplo da ponte romana,
paradoxalmente bem constituída e preservada. Na narrativa em foco, o viajante realiza o
movimento notável de se voltar para si mesmo e para o que o cerca – no passado e no presente
– com consciência problematizadora. É movido por uma perspectiva antropológica que não
simplifica ou hipostasia o entorno e a si mesmo, antes coloca tudo em questão. Desse viajante
pode-se dizer que é construído a partir de um duelo de contrastes entre a esperança e o
desespero, a admiração e o horror. Na deambulação estético-cultural empreendida, o viajante
assume contornos do que Terry Eagleton (1993) denominou "sujeito ativo, com toda a energia
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produtiva de um empresário epistemológico", cuja atividade “assegura a objetividade ao invés
de miná-la" (p. 56).
Na narrativa, o estatuto do viajante e da viagem está assertivamente posto:
Nenhuma viagem é definitiva (SARAMAGO, 1997, p. 14);
Seu mal (do viajante) nasce de duas opostas vontades: a de ficar em todos os lugares, a de
chegar a todos os lugares (id., ibid., p. 105);
Procura a arte onde ela está [...] e em todos os lugares faz as mesmas perguntas: que é isto?
quem fez? que quis dizer? que medo foi o seu ou que coragem? que sonho para realizar amanhã?
(id., ibid., p. 126);
É um viajante, um sujeito que passa, um homem que, passando, olha, e nesse rápido passar e
olhar, que é superfície apenas, tem de encontrar depois lembranças das correntes profundas (id.,
ibid., p. 137);
É isto que o viajante tem andado a tentar: aprender a ver, aprender a ouvir, aprender a dizer (id.,
ibid., p. 152);
Eis a boa filosofia: tudo é viagem. É viagem o que está à vista e o que se esconde, é viagem o
que se toca e o que se adivinha (id. ibid., p. 199);
O viajante tem essa boa qualidade: admira tudo quanto não é capaz de fazer (id., ibid., p. 226);
Viajar deveria ser ficar (id., ibid., p. 201);
Viajar não pode ser senão confrontação entre isto e aquilo (id., ibid., p. 231);
O viajante não é turista, é viajante. Há grande diferença. Viajar é descobrir, o resto é encontrar
(id., ibid., p. 287);
A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em
memória, em lembrança, em narrativa [...];
O fim de uma viagem é apenas o começo doutra [...]. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O
viajante volta já. (id., ibid, p.387)
Nos enunciados desse percurso citacional é delineada uma epistemologia da viagem e
do viajante, em que se instituem definições, impasses, indagações, finalidades, especificidades,
oposições e um comovente perpetuum mobile. A narração heterodiegética, centrada no
viajante, configura essa personagem como emblemática para compor asserções preliminares
que, somadas, instituem a viagem e o conhecimento por ela engendrado como vir a ser, passar
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de um conhecimento menor para um estado mais completo e eficaz, evidenciando, assim, que
a noção de viagem, elementar na aparência, supõe longa elaboração.
Convite à viagem
A progressão narrativa alia considerações sobre os lugares vistos pelo viajante, de
modo que a viagem a Portugal é o tema constante, secundado por temas derivados, ou seja, há
um hipertema decomposto em subtemas (cidades, arquitetura, obras de arte, belezas naturais
etc.), desencadeadores de um fluxo crítico-filosófico conduzido pelo narrador em termos de
síntese dos pensamentos que afloram à mente do viajante, de modo que a personagem,
nomeada pelo substantivo comum, realiza-se sobretudo por meio dos predicadores múltiplos a
ela referidos (vide rol de citações anterior).
O campo lexical da narrativa é vasto – compreende topografia, toponímia, artes
plásticas, literatura, arquitetura, vegetaçao, culinária, costumes, engenharia, dentre outros – e
fundamenta reflexões por meio da sucessão dos elementos constitutivos da teia semântica
articuladora da progressão narrativa. Esses elementos ajudam a compor as seqüências
estruturadoras da obra e explicitadoras das tensões do viajante, perceptíveis, por exemplo, na
seqüência referente ao Museu de Arqueologia e Etnologia de Lisboa:
Há uma palavra para designar cada objeto, e o viajante descobre, estupefacto, que a
história dos homens é afinal a história desses objetos e das palavras que os nomeiam, e dos
nexos existentes entre eles e elas, mais os usos e desusos, o como, para quê, onde e quem
produziu. A história assim contada não se atravanca de nomes, é a história dos atos materiais,
do pensamento que os determina, dos atos que determinam o pensamento”. (id., ibid., p. 290)
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Nesse projeto historiográfico, ecoam diretrizes voltairianas da necessidade de se
conhecer a história por meio de objetos concretos, como as coletâneas de observações
astronômicas da Babilônia ou os cálculos precisos do ecplipse do sol pelos chineses 2111
anos antes de nossa era. O enciclopedista Voltaire (2008), em suas reflexões filosóficas, já se
ressentia da profusão de nomes e feitos que inflacionam as linhas da história: "Como já temos
mais de vinte mil obras, a maioria delas em vários volumes, somente sobre a história da
França, se um homem estudioso vivesse cem anos não teria tempo de lê-las, por isso julgo que
é necessário saber selecionar" (p. 294).
Viagem a Portugal, portanto, discorre sobre saberes e valores geradores de
investimentos e interesses que lhe conferem uma aura de literatura de idéias, de matiz
ensaístico-filosófico. Os saberes são convocados para gerir os implícitos da narrativa e para
evidenciar conhecimentos gerais que constituem freqüentemente o interesse da intriga mínima
e determinam seu desenvolvimento: passar de uma cidade a outra, comover-se com a beleza,
lastimar a ausência dela, celebrar o cuidado, condenar o descuido, dar a conhecer bons e maus
hábitos antigos e atuais.
Os valores revelam-se fundamentalmente nos objetos de busca, naquilo que é alvo das
provas e conflitos do viajante: o conhecimento e o gozo estético; o encontro com sua terra e
consigo mesmo. Tal motivação psicológica atribuída pelo narrador ao viajante justifica a
trama ficcional, garantindo um sistema de causa-conseqüência ao encadeamento das ações. A
personagem do viajante surge como fonte dos saberes, não ao modo do especialista, mas em
cenas ou descrições nas quais sutilmente comparece um considerável vocabulário
especializado.
Viagem a Portugal engendra muitos lances de dados literários. De saída, como já
apontado por Silva (1999), impõe-se a referência a Almeida Garrett, evocado em múltiplas
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instâncias. Juntam-se a ele Teixeira de Pascoais (SARAMAGO, 1997, p.52), Camilo Castelo
Branco (p.64), Antonio Nobre (p. 64), José Régio (p. 66), Afonso Duarte (p. 130), Dante e
Virgílio (p. 140, 209), Hamlet (p. 145), Carlos Drummond de Andrade (p. 207), Camões (p.
224), Alexandre Herculano (p. 239), Carlos Queirós (p. 292), entre outros. Tais referências
nominais se integram à narrativa evocando locais de nascimento, méritos, opiniões, no caso
dos escritores portugueses, e, nos demais casos, indiciando relações essenciais com marcas
legadas pela tradição, sempre abrindo-se ao diálogo.
Amplamente visível no texto é a rede de comentários acerca das insuficiências da
palavra para a representação. Essa rede metalingüística parece evidenciar limites precisos da
percepção do viajante:
As palavras não podem exprimir a indefinível cor de barro que tudo cobre ou de que tudo é
feito (SARAMAGO, 1997, p. 51);
Mesmo agora sentiu o cheiro das folhas molhadas e não sabe onde está a palavra que devia
exprimir esse cheiro, essa folha e essa água. Uma só palavra para dizer tudo isso já que muitas
não conseguem (id., ibid., p. 56);
O viajante autodefine-se como "o mais imperfeito dos observadores" ou "um simples
curioso" (id., ibid., p. 238), valendo-se da tópica da falsa modéstia, já que evidencia
conhecimento sólido do que vê e, ainda, das questões da representação artística, perceptíveis,
por exemplo, no movimento metacrítico sobre as dificuldades e os limites dessa representação:
"É bem possível que certas regressões formais não sejam, afinal, mais do que o resultado
dessa verificação desconcertante de que a perfeição esvaziaria o significado" (id., ibid., p.
238).
Evidencia-se, assim, a razão objetiva das propaladas insuficiências vocabulares do
viajante, para que, a despeito das soluções várias e felizes alcançadas ao longo das páginas,
reste sempre um movimento de êxtase estático, uma margem de silêncio reverente às belezas
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arquitetônicas, plásticas e naturais fruídas. O recurso à não suficiência das palavras é, então,
exaltação da vitória da arte sobre sua própria matéria ou o avizinhar-se da perfeição.
Também cidades e bairros são alvo da dificuldade de apreensão. O lisboeta Alfama,
por exemplo, fascina e desconcerta o viajante – "Este viajante deve ser honesto. Foi a Alfama,
mas não sabe o que Alfama é" – e acende nele o desejo de "ficar por lá enquanto não aprender
ao menos as primeiras palavras deste discurso imenso de casas, de pessoas, de histórias, de
risos e inevitáveis choros" (id., ibid., p. 299). Mais uma vez, a insuficiência da representação
exalta a singularidade obsedante. Insuficiente para a exaltação estética, implacável para o
desgosto, por exemplo, ante as águas invasoras da Igreja da Misericórdia em Montemor-oVelho (p.133) ou o abandono do Convento de Nossa Senhora dos Anjos (p. 134).
As complexidades da representação convocadas consideram inclusive a recepção da
obra, sinalizando a complementaridade necessária entre as palavras e a leitura que delas se faz.
Assim, o narrador insta o leitor: "Se o viajante não for claro no que escreve, aclare quem o ler,
que também é sua obrigação" (id., ibid., p. 171), sublinhando que escritura e leitura são lados
da mesma moeda, em linha de raciocínio equivalente à empreendida por outro viajante: "Eu
falo, falo – diz Marco –, mas quem me ouve retém somente as palavras que deseja. Quem
comanda a narrativa não é a voz: é o ouvido" (CALVINO, 2003, p. 130).
O enunciado do narrador saramaguiano está ainda em consonância com o que
Wolfgang Iser (1996) pondera sobre o ato de leitura do texto literário como produtor de uma
relação dialética entre o mundo do leitor e o mundo da obra, capaz de transformar um e outro.
A instância receptiva aciona a questão hermenêutica, instituída, conforme Paul Ricoeur
(1987), a partir do diálogo entre compreensão e explicação, num percurso em que o mundo do
texto, ao ser interpretado, é elucidado pelo novo discurso sobre ele, que o torna novamente
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acontecimento. O narrador enuncia, então, o que Ricoeur, recorrendo a Hans-Georg Gadamer,
denominou "fusão de horizontes" do mundo do texto e do mundo da ação do leitor.
Em Viagem a Portugal, a mimesis situa a ação em um cenário real e reconhecível fora
das páginas, mas que é sobretudo parte da composição de um enredo. O texto nasce do mundo
pré-figurado referencialmente, porém configura um mundo próprio enquanto composição
literária destinada ao mundo da ação e da vida dos leitores, cumprindo-se a totalidade do
círculo hermenêutico.
Uma viagem metaficcional
A narrativa de Viagem a Portugal convoca ainda a intensidade do imperativo ético e
político da memória:
Às portas estão sentados velhos e velhas, o costume português. Estas velhas e estes velhos são
partes do sentido. Junta-se um homem, junta-se uma pedra, homem, pedra, pedra, homem, se
houvesse tempo para juntar e contar, contar e ouvir, para ouvir e dizer, depois de primeiramente
ter aprendido a linguagem comum, o eu essencial, o essencial tu, debaixo de toneladas de
história, de cultura, enfim, como no castelo os ossos aparecendo, até a formação do inteiro
corpo português. Ah, o viajante sonha, sonha, mas não passa de sonhos. (SARAMAGO, 1997,
p. 204)
A exigência do lembrar, referida em termos de sonhos, fica indelével na página. Não
por acaso essa exigência vem associada aos "velhos e velhas" às portas, pois remete à
predominância ontológica e antropológica da memória em relação a todas as elaborações
históricas, como se o narrador, ao assinalar a importância de estabelecer a ligação com o
passado, reabilitasse a memória viva. É com a anamnesis platônica, portanto, que o viajante
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sonha: com o recolher ativo das lembranças, com o ato de recordar e lembrar, contíguo aos de
nomear e ordenar.
O viajante sonha e o narrador aciona o tema da memória como mediação privilegiada
da representação desse episódio paradigmático no que toca à organização das ações e
reflexões implicadas no percurso do viajante e na construção estável do caráter dessa
personagem. Expedientes tais asseguram que Viagem a Portugal é mais que mero relato de
fatos de viagem, porque configura uma forma, uma intriga que se desenvolve no tempo em
consonância com os procedimentos narrativos ficcionais. Ocorre, porém, que seu texto
celebra o parentesco entre narrativa ficcional e histórica. A distinção entre uma e outra está
atrelada à maneira como fazem referência à realidade, e o ponto comum, conforme Hayden
White (1995), reside na narrativização, já que também a história apresenta uma organização
dos fatos estruturados em termos de intriga. A seu turno, a ficção não é exclusivamente
fabulação irreal; a ficção refigura o real e, como a história, refere-se a ele, peculiarmente.
Ocorre, assim, o cruzamento entre a narrativa de ficção e a história, convertido em um dos
avatares da chamada literatura pós-moderna.
A obra de Saramago em análise, assim sendo, pode ser pensada a partir do conceito de
metaficção historiográfica, o qual, conforme Linda Hutcheon (1998), designa obras de ficção
que refletem conscientemente sobre sua própria condição de ficção, acentuando a figura do
autor e o ato de escrever, interrompendo inclusive as convenções do romance, mas sem recair
na mera observação técnica. As obras analisadas por Hutcheon, como Mumbo Jumbo, de
Ishmael Reed; The Public Burning, de Robert Coover; The Book of Daniel, de E. L. Doctorow,
apresentam em comum o fato de adotarem como tema ostensivo personagens e eventos da
história conhecida, submetendo-os à ficcionalização.
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O fluxo narativo de Viagem a Potugal pauta-se pela celebração da capacidade de
lembrar e contar; o narrador, ao relatar a viagem repleta de descobertas e provações do
viajante, efetua um percurso rico em experiências e histórias, filiado tanto à tradição erudita
quanto à oral e popular, no qual são visíveis nuances romanescas. Ao cabo, constrói-se uma
obra mantenedora de uma relação privilegiada com a memória, as imagens e a imaginação,
sempre atenta às ressonâncias produzidas entre passado e presente, não para construir uma
imagem eterna do passado, mas uma imagem flexível, no sentido de desenterrar elementos
soterrados, esquecidos ou negligenciados. Sendo assim, Viagem a Portugal instaura o desejo e
a possibilidade de um outro tempo e de um outro lembrar:
A igreja da Golegã tem muito que a distinga, mas para o viajante nada que valha a declaração,
tão orgulhosa, tão humilde, que à entrada uns anjos exibem em cartelas e que, em linguagem
corrente de hoje, está explicando: “Memória sou de quem me fabricou”. Foi Diogo Boitaca
quem o mandou escrever, foi o canteiro à revelia do mestre de obras, não se sabe. Ficaram ali
estas magníficas palavras, dístico que poderia estar em todas as obras do homem, que nelas está
invisível, mas que o bom viajante deve ler, como prova de que anda com atenção ao mundo e a
quem nele por enquanto vive. (SARAMAGO, 1997, p. 248)
As piscadelas de olho do texto para o leitor são muitas: o viajante, como o autor,
nasceu na Azinhaga. Da Azinhaga o viajante pouquíssimo diz e o autor tecerá outro texto que
a toma mais detidamente por cenário, As pequenas memórias [2006]. Comporá também outra
viagem, A viagem do elefante [2008]. Autobiografia o primeiro, conto o segundo, literários
ambos.
Viagem a Portugal, negando a distinção clara entre história e ficção e embaralhando
claramente os gêneros, é enfeixada por uma prodigiosa imaginação, entendida como o poder
de representar as coisas sensíveis: cidades, aldeias, personagens, edifícios, esculturas etc., que,
registradas pela memória, foram compostas pela imaginação, que operou aproximação de
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objetos distantes, separou os próximos, enfim, simultaneamente arranjou e criou,
aprofundando os objetos, envolvendo-os em circunstâncias marcartes:
O viajante gosta dos seus vinte sentidos, e a todos acha poucos, embora seja capaz, por exemplo,
e por isso se contenta com os cinco que trouxe ao nascer, de ouvir o que vê, de ver o que ouve,
de cheirar o que sente na ponta dos dedos, de saborear na língua o sal que neste momento exato
está ouvindo e vendo na onda que vem do largo [...]. Do alto da Rocha do Conde de Óbidos, o
viajante bate palmas à vida. (SARAMAGO, 1997, p. 294)
As cidades de Saramago são históricas, mas poéticas, como o Polo e o Khan de
Cidades invisíveis; o viajante de Saramago é como as cidades de Calvino: requintada
arquitetura verbal cuja sombra evoca o contorno de referentes transfigurados. Variações de
um mesmo e velho tema, a viagem. Das cidades de Saramago também se pode dizer o que o
imperador mongol disse sobre as do mercador veneziano: "As descrições das cidades visitadas
[...] tinham esse dom: era possível percorrê-las com o pensamento, era possível se perder,
parar para tomar ar fresco ou ir embora rapidamente" (CALVINO, 2003, p. 43).
Ao cabo, trata-se de cidades saramaguianas que, inscritas no mapa de Portugal, são
visíveis apenas no trajeto da leitura de Viagem a Portugal.
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HUTCHEON, Linda. A poetics of postmodernism. History, theory, fiction. London:
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