UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB
SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA
LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS
22 a 26 de Setembro de 2014
Salvador – BA
MIA COUTO E O EMBONDEIRO QUE SONHAVA PÁSSAROS
Ana B. M. Sousa1
RESUMO
Neste artigo, pretendemos analisar a narrativa do escritor moçambicano Mia Couto, a partir
do conto O embondeiro que sonhava pássaros, contido no livro Cada homem é uma raça (2013).
Mia Couto desenvolve um projeto literário voltado para as questões políticas e sociais de seu povo,
e ele o faz a partir da coleta de traços culturais, tais como lendas populares, provérbios e
pensamentos, tomando esses textos como base para a construção narrativa. É dentro do processo de
descoberta de uma identidade comum a todas as etnias que pertencem àquele espaço físico que o
autor trafega entre a língua portuguesa e as línguas maternas de Moçambique. A questão é
complexa, se pensarmos na existência de mais de 40 grupos étnicos. A literatura deste autor retrata
esta diversidade.
PALAVRAS-CHAVE: Mia Couto, diversidade, identidade
ABSTRACT
In this paper we analyze the narrative of the Mozambican writer Mia Couto, from the short
story The baobab who dreamed birds, contained in the book Every Man is a Race (2013). Mia
Couto develops a literary project focused on political and social issues of his people, and he does it
from the collection of cultural traits, such as folktales, sayings and thoughts, taking these texts as
the basis for narrative construction. It is within the discovery of a common identity to all ethnic
groups that belong to that physical space that the author moves between the Portuguese and the
mother tongues process. The issue is complex, if we think of the existence of more than 40 ethnic
groups. The author of this literature depicts this diversity.
KEYWORDS: Mia Couto, diversity, identity
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Insira aqui a titulação e instituição do/a autor/a. Se desejar, inclua e-mail para contato.
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INTRODUÇÃO
Moçambique se tornou independente no ano de 1975, quando 90% da população era de
analfabetos. A palavra oral invadia o papel, enchendo-o de encantamento. O escritor moçambicano
Mia Couto diz que ser escritor é ser livre como um astronauta. Em seus textos, ele vai recolher
dados históricos e culturais e transformá-los em contos que trabalham tipos do povo, pessoas que
podem ser encontradas nas ruas de Moçambique e que misturam a sua língua materna à língua
oficial, imposta naquele país pelo colonizador português. Esta escrita não deixa de ser engajada,
muito pelo contrário, estabelece uma resistência, ao resgatar esses traços culturais e trazê-los para a
modernidade, preservando essa oralidade, que se mantêm viva no interior de Moçambique.
A ideia de uma literatura engajada está diretamente associada à Sartre, pois, após o advento
da Primeira Guerra Mundial, os intelectuais sentiram a necessidade de uma literatura que
representasse aquele momento em especial, uma literatura que fosse passional e que tivesse como
objetivo relatar o período pós-revolução russa sob uma ótica social. O engajamento surge, deste
modo, a partir de autores como Voltaire, Victor Hugo e Émile Zola, que se preocupavam com a
organização da cidade e que se fizeram defensores de valores universais, tais como a justiça e a
liberdade.
Para Benoit Denis (2002), o escritor engajado deve participar plenamente e diretamente, por
meio de suas obras, do processo revolucionário, não mais simbolicamente, pela mediação. O
engajamento dos escritores do continente africano começa na revolução e nas lutas pela
independência de seus países, pois, em sua maioria, estes participaram efetivamente destas lutas. A
história da literatura dos países africanos nasce, pois, a partir das lutas pela independência e,
consequentemente, por melhores condições de vida.
Dito isso, parece fácil concluir o motivo que fez desta literatura uma forma de luta. Mas, é
importante ressaltar que a noção de arte pura se perdeu no chamado Século das Luzes, e os escritos
de Voltaire são um exemplo desta perda. Voltaire é considerado um escritor engajado, além de um
dos grandes autores do século XVIII. Seu nome de autor (FOUCAULT, 1969), portanto, empresta
valor às lutas nas quais se engajou. “Engajar-se é, portanto, dar a sua pessoa ou a sua palavra em
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penhor, servir de canção e, por seguinte, ligar-se por uma promessa ou juramento constrangedor"
(DENIS, p.31)
O engajamento será, então, um contrato feito a partir de uma troca socialmente admitida e
fixada, entre as diversas instâncias em relação. O autor engajado é aquele que explicitamente abraça
uma causa coletiva e assume um compromisso com a sociedade, mesmo arriscando criação artística,
credibilidade e reputação. Dando este teor à literatura, o artista fará com que ela tenha, além do
valor literário, valor histórico, transcendendo o seu primeiro valor e colocando-a em penhor, pois
servirá a novo fim.
Sendo assim, engajar-se vai significar dar à vida nova direção, integrando-se a um projeto
coletivo que consiste em um trabalho voluntário e efetivo, que passa por uma postura política,
social, religiosa e, principalmente, intelectual. Postura esta que coloca o artista exposto à critica. Na
obra de Mia Couto, enxergamos a possibilidade de pensar uma Moçambique plural. O engajamento
o faz ser um escritor que, tomando consciência de seu papel dentro da sociedade, põe o pensamento
e a obra a serviço da comunidade.
A globalização, que retira de seu povo a tradição e coloca em evidência apenas o que
interessa ao poder hegemônico, que não agrega o continente – haja vista que os países menores não
progridem na mesma medidas que os maiores, permanecendo fornecedores de matéria–prima. A
obra de Mia parece surgir de uma reflexão sobre o modo de viver e de sentir a vida entre aqueles
povos. As dores, amores e, em particular, a maneira de lidar com a natureza e de ver a morte como
uma extensão da vida.
Em Mia Couto, magia e realidade se confundem, demonstrando o caráter especial que esse
hibridismo de culturas (CANCLINI, 1995) pode significar. Aos traços importantes desta escrita,
somam-se personagens que vão desenhar o rosto de um povo que sofre com o racismo e com a
miséria. O autor pretende, deste modo, que se faça, a partir de sua obra, um reconhecimento do
passado, para que se comece a pensar em como Moçambique pode se ajudar. Como o povo
moçambicano pode ajudar seu país a crescer? Como deixar de culpar os outros pela situação de
pobreza? Estas são apenas algumas das questões que o escritor, atento ao seu país, levanta.
Em sua obra, Mia Couto busca ainda fazer uma crítica ao governo e à pseudoindependência
instaurada em seu país e, dentro dessa perspectiva, cria personagens como Junhito, do romance
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Terra Sonâmbula, metáfora da perda da soberania e da crescente domesticação do povo, após
verificar que a independência não acabou com a injustiça e que, agora, o inimigo tinha deixado de
ser visível.
Nos contos de Cada homem é uma raça, Mia Couto retrata a discriminação, mostrando
como o povo foi empurrado para a periferia pelo colonizador, e discutir não apenas o preconceito
racial, mas o preconceito social. Em sua narrativa, cada homem é uma singularidade, um indivíduo,
uma identidade, e, ao mesmo tempo, parte de um todo. Neste livro, o autor também fala sobre
política, como em O embondeiro que sonhava pássaros, no qual usa a lenda do embondeiro para
abordar a luta de classes e o racismo.
Pássaros são elementos constantes na produção de Mia Couto. É comum encontrarmos as
aves mitológicas de Moçambique inseridas em suas narrativas, a exemplo do ndlati, “ave do
relâmpago”, ou do flamingo, “responsável pelo primeiro poente”. No conto, não há a descrição de
uma ave em particular, mas, sim, do deslumbrante bando. Em cada conto, o autor usa como epígrafe
um provérbio moçambicano. E, reafirmando a sua origem, dialoga com as várias línguas maternas
existentes naquele espaço físico.
Em seus textos, um outro traço que percebemos é a busca de identidade. Em sua narrativa,
Mia Couto mergulha no universo subjetivo, trabalhando com monólogos internos, numa linguagem
que não poderia ser expressa por meio de uma língua única, já que tem como primeira condição
retratar seu povo, que, como já dissemos, comunica-se por meio de diversas línguas maternas. Deste
modo, este autor afirma que a sua escrita não é de militância, mas que a literatura faz parte da
sociedade, assim como a política, e estas acabam inevitavelmente se encontrando.
Para este escritor, a necessidade de comunicar o que pensa e de retratar a sua gente é
relevante não apenas na literatura, tanto que, em princípio, desejava ser médico. Em seguida,
dedicou-se à biologia e, posteriormente, ao jornalismo, ajudando o seu partido, o FRELIMO, na luta
pela independência. Contudo, decepcionou-se com rumo que a independência de Moçambique
tomou, pois percebeu que aqueles que, antes faziam parte da resistência política, agora estavam
aliados aos que invadiram e exploraram o povo. Diante do quadro político que se formou, Mia
Couto deixa a FRELIMO e resolve seguir do seu modo, por meio da literatura, a luta por uma
identidade moçambicana.
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A identidade é um processo de descoberta diária que só pode se dar a partir do momento em
que a pessoa se desloca, para observar de fora. Este é o projeto de Mia Couto. Ele quer mostrar a
identidade dos diversos grupos étnicos, tornar seus costumes, tradições e religiões visíveis. Assim,
os jovens poderão se reconhecer e identificar. O país terá a sua cara revelada à medida em que seu
povo possa nela se reconhecer. A literatura, assim, terá o papel de forjar, ou contribuir para forjar,
uma identidade nacional.
Em O homem que sonhava pássaros, Mia Couto narra a história de um homem que vendia
pássaros e habitava o tronco de um embondeiro, árvore de folhas esparsas, copa abastada e que
possui poderes mágicos, segundo os povos africanos. Esta é uma árvore que, em Moçambique,
possui várias simbologias, sendo sagrada para alguns povos do interior daquele país. Árvore
centenária, ela também é conhecida como baobá. O autor vai ambientando o conto e, já no
comecinho, revela quem é este vendedor.
Esse homem sempre vai ficar de sombra: nenhuma memória será bastante para lhe salvar
do escuro. Em verdade, seu astro não era o Sol. Nem seu país não era a vida. Talvez, por
razão disso, ele habitasse com cautela de um estranho. O vendedor de pássaros não tinha
sequer o abrigo de um nome. Chamavam-lhe o passarinheiro. Todas manhãs ele passava
nos bairros dos brancos carregando suas enormes gaiolas.
Deste modo, este conto nos fala sobre a dicotomia colonizador versus colonizado,
desenhando, por meio de seus personagens, o relacionamento acirrado pelo preconceito em
Moçambique. O protagonista é um homem velho, preto e pobre e a ilha de Moçambique, um espaço
dividido entre a cidade de cimento e a cidade de caniço. Desde a ocupação, para a exploração
daquela região, o colonizador português desrespeitou o povo e suas tradições, impondo a sua língua,
os seus costumes e a sua religião. O passarinheiro, deste modo, não era bem-vindo pelos pais dos
meninos do bairro.
Ensinavam suspeitas aos seus pequenos filhos – aquele preto quem era? Alguém conhecia
recomendações dele? Quem autorizara aqueles pés descalços a sujarem o bairro? Não, não
e não. O negro que voltasse ao seu devido lugar. Contudo, os pássaros tão encantantes que
são – insistiam os meninos. Os pais se agravavam: estava dito. Mas aquela ordem pouco
seria desempenhada.
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O povo moçambicano, após a colonização, foi sendo afastado do centro, passando a ocupar a
periferia do país, ficando, assim, espacialmente, à margem da sociedade. O autor nos coloca diante
de um homem simples que vende pássaros e acredita na sua tradição e nas suas raízes culturais e
que reafirma esta crença, ao confrontar-se com o inimigo, sem medo, pois reproduzia “para os
miúdos”, as histórias de seus antepassados. E, do outro lado, vemos o bairro classe média e de
população branca, católica e intolerante. No entanto, as crianças do bairro acreditavam nas histórias
que o vendeiro contava, sobretudo, Tiago, garoto que esperava ansiosamente a chegada do homem,
encantado pela magia que trazia:
(...) Tiago, criança sonhadeíra, sem outra habilidade senão perseguir fantasias. Despertava
cedo, colava-se aos vidros, aguardando a chegada do vendedor. O homem despontava e
Tiago descia a escada, trinta degraus em cinco saltos. Descalço, atravessava o bairro,
desaparecendo junto com a mancha da passarada. O sol findava e o menino sem regressar.
Em casa de Tiago se poliam as lástimas: – Descalço, como eles. O pai ambicionava o
castigo. Só a brandura materna aliviava a chegada do miúdo, em plena noite. O pai
reclamava nem que fosse esboço de explicação: – Foste a casa dele? Mas esse vagabundo
tem casa? A residência dele era um embondeiro, o vago buraco do tronco. Tiago contava:
aquela era uma árvore muito sagrada, Deus a plantara de cabeça para baixo. – Vejam só o
que o preto anda a meter na cabeça desta criança. O pai se dirigia à esposa, encomendandolhe as culpas.
O caráter revolucionário do vendedor é descoberto pouco a pouco, quando este resiste à
expulsão do bairro classe média no qual tentava vender seus pássaros. A atitude do vendedor nos
remete ao texto de Amílcar Cabral sobre a ausência de ideologia em A Arma da Teoria (1976). “Só
poderemos transformar verdadeiramente a nossa própria realidade com base no seu conhecimento
concreto e nos nossos esforços e sacrifícios próprios” (Cabral, p.201). Deste modo, parece coerente
a atitude do passarinheiro diante da expulsão. A animosidade dos homens do bairro tornara-se
descontrolada, assim como a inveja, por não conseguirem pássaros de igual beleza.
Os portugueses se interrogavam: onde desencantava ele tão maravilhosas criaturas? Onde,
se eles tinham já desbravado os mais extensos matos? O vendedor se segredava,
respondendo um riso. Os senhores receavam as suas próprias suspeições – teria aquele
negro direito a ingressar num mundo onde eles careciam de acesso? Mas logo se
aprontavam a diminuir-lhe os méritos: o tipo dormia nas árvores, em plena passarada. Eles
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se igualam aos bichos silvestres, concluíam. Fosse por desdenho dos grandes ou por glória
dos pequenos, a verdade é que, aos pouco-poucos, o passarinheiro foi virando assunto no
bairro do cimento. Sua presença foi enchendo durações, insuspeitos vazios. Conforme dele
se comprava, as casas mais se repletavam de doces cantos. Aquela música se estranhava
nos moradores, mostrando que aquele bairro não pertencia àquela terra. Afinal, os pássaros
desautenticavam os residentes, estrangeirando-lhes? Ou culpado seria aquele negro, sacana,
que se arrogava a existir, ignorante dos seus deveres de raça? O comerciante devia saber
que seus passos descalços não cabiam naquelas ruas. Os brancos se inquietavam com
aquela desobediência, acusando o tempo. Sentiam ciúmes do passado, a arrumação das
criaturas pela sua aparência.
O homem que vendia pássaros sabia da sua realidade e resistia, pois havia nele esse
propósito, dentro do embondeiro com sua muska (gaita). Aquele era um homem mágico e morava
dentro de uma árvore. Árvore que possui, para aquele povo, igual valor. O velho do embondeiro é,
assim, a metáfora da resistência de uma identidade que resiste a ser apagada pelos costumes
europeus. Dito isso, estamos no terreno do maravilhoso, segundo Tzvetan Todorov. Para este
teórico, o maravilhoso extrapola os limites do estranho. O que vemos aqui, após terem prendido o
vendedor, é que seus pássaros saem das gaiolas.
Libertos, os pássaros agem como um exército em defesa do velho. A morte do menino
português acaba por instaurar uma reflexão sobre os valores desses homens que são, ou que julgam
se, civilizados. Para calar o vendeiro, no entanto, precisam matá-lo. Pensando que estavam matando
o vendedor, tocam fogo no embondeiro. Contudo, o destino é cruel e a maldade daqueles homens
recai sobre suas próprias cabeças. Para surpresa de todos, quem estava dentro do embondeiro era o
menino português, à espera do amigo.
Ao ver a árvore incendiar-se, o garoto pensa que se tornou concreta a lenda. A morte da
criança enseja uma leitura da punição daqueles que humilharam o vendeiro que é, desta forma, e
também, uma punição ao engano da escravidão e ao engano da covardia exercidas sem critérios
contra a África. À atitude do menino, correndo até o embondeiro, a fim de contar ao vendedor que
iriam matá-lo, podemos atribuir a crença naquilo que é puro. Ir até o embondeiro, denunciar o que
planejavam, é um ato de coragem e amizade.
O racismo é outro dado neste conto, pois está presente na fala dos homens brancos do bairro de
classe média. A maldade destes homens, afastando seus filhos do vendedor apenas por este ser
negro, e afirmações como “aquele homem que sujava o chão com seus pés negros”, denotam a
discriminação racial. O outro tipo de discriminação que aparece no conto é a religiosa, quando a
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mãe do menino escuta a história sobre o embondeiro e diz que tudo é bobagem. A discriminação
passa pela ideia da não-aceitação do outro e da intolerância religiosa, que tem relação com a nãoaceitação da cultura do outro e, em última instância, da identidade do outro. Nesse sentido, este
conto traz também uma discussão sobre o etnocentrismo.
Por conseguinte, para os homens daquele bairro, apenas sua etnia merece lugar no mundo,
pois consideram que, com eles, é que nasce o conhecimento na África. Podemos perceber, ainda,
aspectos que denotam a luta entre classes, pois o vendedor confronta-se com pessoas de uma classe
“superior” à sua. A luta de classes é, assim, o eixo que desencadeia a história. Segundo Amílcar
Cabral, “a força motora da história é a luta de classes”, pois é o que gera e fomenta todo ideal
revolucionário, fazendo com que a história evolua. O contexto histórico em que se desenvolvem
essas lutas é que proporciona a possibilidade concreta de passarem de uma situação de dominação,
exploração e subdesenvolvimento a uma situação mais bem estruturada.
O que o conto de Mia Couto ressalta é a conservação aparente do que seria a confinação da
sociedade autóctone em áreas próprias, desprovidas de possibilidades de melhoria de vida. A
sociedade nativa de Moçambique, após a segunda colonização. O enredo nos revela um homem
negro e sem nome, portanto um homem que pode ser qualquer um, cuja função não é apenas vender
pássaros, mas espalhar alegria e histórias (de uma cultura que fora negada propositadamente pelo
colonizador) entre “os miúdos” daquele bairro.
Os adultos, julgando estarem sendo afrontados pelo vendedor, resolvem afastar as crianças, com um
discurso impregnado pelo orgulho racista e, após os pássaros terem feito uma algazarra pelos
escritórios, decidem se unir e espancar o homem. O vendedor é preso e, na manhã seguinte, some
magicamente. Os colonos resolvem, então, acabar de uma vez por todas com o velho, ateando fogo
ao embondeiro. Tragicamente, quem morre é o menino português, que tinha ido até lá avisar ao
vendedor.
Resta ao leitor questionar-se: este vendedor, que não tinha um nome, portanto, não podia ser
considerado indivíduo? É relevante ainda observarmos a maneira como o narrador trata o seu
personagem, “o vendedor de pássaros”, e, em contraste, a forma jocosa como este é chamado pelos
colonizadores, “passarinheiro”. O discurso racista, tecendo comentários sobre o homem, faz pensar
sobre como o comportamento, aqui retratado, atravessou 470 anos e que, depois deste período, veio
a guerra civil, que durou 17 anos e tornou Moçambique, um país ainda mais empobrecido e
enlutado.
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REFERÊNCIAS
CABRAL, Amílcar. A arma da teoria: unidade e luta. Seara Nova, 1976.
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da
Modernidade. São Paulo: Ed.USP, 2007
COUTO, Mia. O Embondeiro que sonhava pássaros in Cada homem é uma raça. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1999.
DENIS, Benoit. Literatura e engajamento: de Pascal a Sartre. São Paulo:
EDUSC, 2002.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Tradução António F. Cascais e Edundo
Cordeiro. Lisboa: Vega, 1992.
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