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de 14 a 20 de março de 2013
editorial
Outros Chávez virão!
Russa causou no sentido de colocar
a revolução como uma possibilidade concreta para milhões em todo o
mundo. Anos difíceis em que o nosso
continente assiste a escalada de governos que seguem a mesma receita:
privatizações, reduções de direitos,
perda de soberania.
É neste contexto em que emerge
o papel deste indivíduo na história.
Hugo Chávez Frias.
O ano de 1989 produziu o chamado “Caracazo”, uma surpreendente explosão social espontânea
contra o pacote de medidas neoliberais do presidente Carlos Andrés
Perez. A rebelião, sufocada pela falta de organização funciona como
um catalisador que acelera os planos do clandestino Movimento Bolivariano Revolucionário. Quando
a ofensiva neoliberal mostrava toda
a sua força em nosso continente no ano de 1992, o tenente coronel Hugo Chávez dirige um levante
que coloca a questão da conquista
do poder. Cercados e sem o respaldo popular que esperavam, Chávez
propõe utilizar uma cadeia de TV e
rádio para desmobilizar os que haviam aderido em regiões do interior. E nestes famosos um minuto
e cinquenta e oitos segundos, assumindo a responsabilidade da ação
e explicando ao povo seus motivos
se converterá numa forte esperan-
GUIORGUI PLEKHANOV (1856 –
1918) nos deixou a obra clássica O
Papel do Indivíduo na História, onde enfrenta um dilema fundamental.
Se para a concepção materialista da
história “o modo de produção da vida
material condiciona o processo da vida social, política e espiritual”, se não
é a consciência do homem que determina o seu ser, mas pelo contrário, o
seu ser social é que determina a sua
consciência, qual é, então, o papel do
indivíduo na história?
Em seu esforço de responder esta questão há uma passagem em
que afirma que “o grande homem é
grande não porque suas particularidades individuais imprimam uma
fisionomia individual aos acontecimentos históricos, mas porque é
dotado de particularidades que o
tornam o indivíduo mais capaz de
servir ás grandes necessidades sociais de sua época. É precisamente
um iniciador, porque vê mais longe
que os outros e deseja mais fortemente que os outros”.
A década de 1990 inaugurou um
período extremamente difícil para a classe trabalhadora em todo o
mundo. As consequências do fim da
União Soviética e das demais experiências de transição socialista no abalo do imaginário da transformação
social somente são comparáveis com
os impactos que a própria Revolução
Seu exemplo e
coerência seguirão
animando os
lutadores populares
em todo o mundo
e incomodando os
nossos inimigos
ça do imaginário coletivo, transformando uma derrota militar num
exemplo pedagógico.
E mais uma vez, a unidade, as massas e as armas são os ingredientes
que se combinam para o avanço de
um processo revolucionário.
Desde a primeira vitória em 1999,
ganhou 15 dos 16 embates eleitorais
ocorridos na Venezuela.
As sucessivas vitórias eleitorais e
o enfrentamento do golpe em 2002
possibilitam o avanço de mudanças
estruturais e a retomada de um horizonte socialista, confirmando, no
século 21, o ensinamento de que em
nosso continente não se pode atin-
crônica
Latuff
opinião Marcelo Barros
O novo Bolívar
QUANDO OS MEIOS de comunicação noticiaram o falecimento
do presidente Hugo Chávez, certamente muitos homens e mulheres,
comprometidos com a transformação do mundo, em toda a América Latina, se recordaram de uma
palavra do comandante sandinista
Tomás Borge. Junto com muitos
outros companheiros, ele estava
preso e torturado em uma prisão
nos subterrâneos da ditadura somozista em Nicarágua. Para quebrar a resistência dos prisioneiros,
o carcereiro entrou na sala de interrogatório e com um sorriso nos
lábios anunciou: - Trago uma notícia de última hora: o comandante Carlos Fonseca acabou de morrer. No meio do alarido que a notícia provocou entre os revolucionários, Tomás Borge levantou a voz e
gritou: - Carlos Fonseca é dos homens que não morrem nunca.
Mesmo se as tradições espirituais falam em ressurreição dos
mortos ou em alguma forma de vida depois da morte, sem dúvida há
pessoas cujo testemunho de vida
vai além da sobrevivência física.
Sem dúvida, todos os que amam a
causa da transformação do mundo lamentaram a partida do presidente Chávez. Sua partida do nosso meio deixou um vazio imenso e é um grande golpe para todos
os que aprenderam a estimá-lo e
a considerá-lo como comandante
do processo de mudanças sociais
e políticas emergentes em nosso continente. Seu carisma único,
sua inteligência brilhante, sua sensibilidade humana rara e, poderíamos dizer, sua mística revolucionária nos fará falta e é insubstituí-
Quando em
qualquer encontro
ou evento
social, alguém
pronunciar
o nome do
presidente Hugo
Chávez, haverá
sempre um
grupo imenso de
pessoas, cidadãos
dessa nova pátria
grande, que
responderão:
Presente!
vel. Entretanto, sua herança continuará viva e atuante.
O ideal libertador de Simón Bolívar nunca ficou apagado ou esquecido em Venezuela e em vários países do continente. No entanto, a partir da década de 1970,
um grupo de jovens militares, liderados por Hugo Chávez, propôs
um novo bolivarianismo. Baseado
na educação para todos, na valorização das culturas autóctones, na
gir o socialismo senão pela via da revolução democrática anti-imperialista, mas tampouco se pode consumar
a revolução democrática anti-imperialista sem atingir o socialismo.
Os resultados são impressionantes
e calam até mesmo os setores mais
reacionários. A taxa de mortalidade infantil passou de 19,1 a cada mil,
em 1999, para 10 a cada mil em 2012,
ou seja, uma redução de 49%. Enquanto a expectativa de vida passou
de 72,2 anos em 1999 para 74,3 anos
em 2011.
Em sua genialidade de dirigente político, sempre ligado ao povo,
Chávez demonstrou compreender
que a identidade é a energia estruturante fundamental de uma construção humana ao resgatar e assumir que o projeto popular que apresentou é a continuidade do libertador Simón Bolívar. Seguindo a inspiração de Bolívar, Hugo Chávez apresentou a Venezuela à América Latina. Liderou a vitoriosa luta contra a
Alca, não por ser contra a integração, mas por ser contra a servidão.
E com essa rebeldia, propôs uma Alternativa Bolivariana para as Américas. Não descansou enquanto nosso povo e suas lideranças progressistas oriundas da luta antineoliberal como ele se unissem, seja através da Unasul, da Celac fortalecendo
o imenso sentimento de unidade dos
igualdade entre homens e mulheres e no cuidado respeitoso com a
natureza, assim como na radicalização da democracia, esse ideal
bolivarianista ganhou uma dimensão revolucionária e socialista inédita na história do continente. Essa bandeira ninguém conseguirá
roubar nem derrubar. De fato, sem
mistificações nem endeusamentos inadequados, é verdade que o
presidente Chávez assumiu nesses
anos recentes a figura de um novo Bolívar, totalmente consagrado à libertação do seu povo e à integração do nosso continente como uma pátria grande e libertada.
Sem dúvida, sobre ele, se poderia
aplicar o que um biógrafo afirmou
de Simon Bolívar: “Independentemente de religião, pelo fato de
ter assumido no mundo um projeto de vida e de libertação motivado pelo amor solidário, ele era um
santo secular”.
Como toda pessoa humana e
principalmente alguém muito visado pelos meios de comunicação, o presidente Chávez teve suas limitações e pode ser criticado por isso ou por aquilo. Entretanto, apesar de tudo, a partir de
agora, em todo o continente latino-americano, quando em qualquer encontro ou evento social, alguém pronunciar o nome do presidente Hugo Chávez, haverá sempre um grupo imenso de pessoas,
cidadãos dessa nova pátria grande,
que responderão: Presente!
Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 30 livros, entre os quais
Dom Helder, profeta para os nossos
dias, Goiás, Ed. Rede da Paz, 2006.
povos que sua liderança irradiou a
cada ponto de nosso hemisfério.
Consciente do papel pedagógico
de um dirigente revolucionário, em
cada oportunidade ou aparição pública sabia aproveitar o momento
para identificar os problemas, pautar os desafios e propagar ideias.
Sempre como um incansável organizador, investindo energias na formação política da juventude, nas organizações populares e na construção
do Partido Socialista Unificado da
Venezuela (Psuv). Sabia, claramente, a importância da construção de
organizações coletivas. E dedicou-se
à tarefa da organização popular.
Exatamente por tudo isso, a Revolução Bolivariana prosseguirá apesar
de sua morte, para a frustração de
seus inimigos.
Seu exemplo e coerência seguirão animando os lutadores populares em todo o mundo e incomodando os nossos inimigos. Porque uma
coisa é certa: da mesma forma que
os rios, por mais tortuosos que sejam
seus caminhos, correm sempre para
uma determinada direção, os povos,
por mais peculiar que seja o trajeto de seu desenvolvimento histórico,
não se afastam de seu curso. E para
o desespero dos privilegiados que se
animam com a morte de Hugo Chávez, saibam que outros Chávez virão.
E serão milhões.
Luiz Ricardo Leitão
Os “guardiões” da democracia
A MORTE DE HUGO CHÁVEZ provocou múltiplas e impetuosas reações na
Venezuela e no mundo. Cada uma dessas manifestações, por certo, diz muito
da posição de classe e da perspectiva histórica de quem as expressa. As massas
populares venezuelanas, por exemplo, que viviam há décadas excluídas da vida pública no país e agora voltam a assumir um papel decisivo na política nacional, já inscreveram o Comandante na galeria de heróis da pátria e se comprometem a levar adiante a Revolução Bolivariana. Os empresários e a chamada “imprensa livre”, porém, saúdam sem nenhum pudor sua passagem para o
infinito – e cacarejam, aos quatro ventos, que é hora de ‘restaurar’ a democracia (?) na terra de Bolívar.
Em meio ao seu funeral, esse desconforto da mídia e dos monopólios é a melhor homenagem que se poderia prestar ao presidente que mandou a Alca
àquele lugar – e enterrou de vez a espúria “Aliança de Livre Comércio” (?) ianque na Cúpula de 2005. Basta ver as manchetes estampadas pelos veículos
mais raivosos de Bruzundanga... Em tom de filme de vampiros, ao estilo adolescente playboy, a Veja, porta-voz da banca transnacional, amaldiçoa “a herança sombria” de Chávez; a Época, subnitrato de O Globo, da mui católica família Marinho, não fica atrás e, reeditando “O Exorcista”, conclama a legião
dos democratas (?) a livrar a América Latina da influência maldita do chavismo
e do bolivarianismo.
Na TV, vi coisas ainda mais bizarras. Em um programa da Globo News, um
suposto acadêmico alertava sobre o risco de um ataque da Venezuela aos EUA
(!) e insistia em (des)qualificar Chávez de “ditador”, ainda que o dileto confrade Maringoni, também presente, lembrasse-o civicamente de que o Comandante fora eleito e reeleito pelo voto popular. O argumento de nada serviu: com
o aval da entrevistadora, o papagaio da intelligentsia alegou que mais de uma
década no poder era um sinal inequívoco de tirania. Uai, sô! E a poderosa Sinhá Margareth Tahtcher, a Dama de Ferro britânica que reinou entre 1979 e
1990, o ioiô professor ousaria tachar de “ditadora”?
Gracias, Comandante, por desafinar o coro
dos contentes. Seguimos em combate!
Pois é, meu caro e fiel leitor, esses são os “guardiões” da democracia, sempre mui zelosos das regras do livre mercado, ou melhor, do mundo livre ocidental. Ouvindo-os discorrer com enorme pompa e circunstância sobre as mazelas alheias, eu até poderia crer que vivo no melhor regime do planeta... De
fato, priva-se cá em Bruzundanga do festival da democracia! Ao contrário do
que ocorre na Venezuela, onde o povo insiste em inundar as ruas para afirmar sua soberania, nossa Paideia midiática logrou feito bem maior, tornandonos o país que mais tempo navega na internet. Para tal proeza, em muito têm
contribuído as aulas intensivas de educação política que seres iluminados como Faustão, Silvio Santos, Pedro Bial, Gugu e Ratinho nos brindam diuturnamente nas telas da TV. E o que dizer dos Poderes da República, a começar pelo excelso Congresso Nacional? Sinto-me mui orgulhoso, sem dúvida, ao ver o
egrégio Renan Calheiros (PMDB), figura ilibada da política nacional, ser eleito
o novo (?) presidente do Senado. E o que dizer do pastor-deputado Marco Feliciano (PSC), célebre por sua homofobia e racismo, indicado para presidir a Comissão de Direitos Humanos (!) da Câmara? Será que a bancada bolivariana do
parlamento venezuelano igualaria tamanhos feitos?
Não carece de gastar prosa com os próceres do Executivo, carece? Gente do
quilate de Alckmin, Cabral, Wagner e outros governadores, sem falar nos maravilhosos alcaides que promovem a festa das empreiteiras e a limpeza étnica para a Copa de 2014, são a dádiva maior da democracia representativa tupiniquim. Basta ver o quanto se aprende nas escolas públicas ou como são bem
atendidos os cidadãos nos hospitais para aquilatar o profundo compromisso
social dos nossos síndicos.
Diz a etimologia grega que democracia é o “poder do povo”, mas a leitura burguesa do termo me leva a crer que o povo, para as elites, é literalmente
o “demo”... E, não por acaso, Chávez, um mestiço igual ao seu povo, por muito
tempo ainda será pintado como um demônio que veio ameaçar a ordem e a paz
nas Américas. Gracias, Comandante, por desafinar o coro dos contentes. Seguimos em combate!
Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor associado da UERJ. Doutor em Estudos
Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa – Poeta da Vila,
Cronista do Brasil e de Lima Barreto – o rebelde imprescindível.
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Aldo Gama, Renato Godoy de Toledo • Subeditor: Eduardo Sales de Lima • Repórteres: Aline Scarso, Michelle Amaral, Patricia Benvenuti •
Correspondentes nacionais: Maíra Gomes (Belo Horizonte – MG), Pedro Carrano (Curitiba – PR), Pedro Rafael Ferreira (Brasília – DF) • Correspondentes internacionais: Achille Lollo
(Roma – Itália), Baby Siqueira Abrão (Oriente Médio), Claudia Jardim (Caracas – Venezuela), Marcio Zonta (Peru) • Fotógrafos: Carlos Ruggi (Curitiba – PR), Douglas Mansur (São Paulo – SP), Flávio Cannalonga (in memoriam),
João R. Ripper (Rio de Janeiro – RJ), João Zinclar (in memoriam), Joka Madruga (Curitiba – PR), Leonardo Melgarejo (Porto Alegre – RS), Maurício Scerni (Rio de Janeiro – RJ) • Ilustradores: Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni •
Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Jade Percassi • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas:
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de 14 a 20 de março de 2013
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Paulo Kliass
instantâneo
A urgência dos
investimentos
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Igor Fuser
Entre Chávez e Schumpeter
SE ALGUÉM AINDA TINHA dúvida de que os oligopólios da mídia operam em bloco na defesa dos interesses do
grande capital, sugiro que busque alguma diferença entre
as capas de Veja e Época com a imagem de Hugo Chávez.
As duas revistas estampam fotos idênticas, com o mesmo
recurso de luz-e-sombra para dar às feições do herói bolivariano uma aparência sinistra (logo ele, famoso pela sua
simpatia!). Quanto ao conteúdo, as mesmas mentiras sobre a Venezuela. Em todo o papo-furado da mídia direitista, o que mais chama atenção é a insistência em chamar de “tirano” um líder vitorioso em todas as eleições
que participou, num país onde não existem presos políticos nem censura à imprensa. Lá os eleitores podem revogar o mandato dos governantes e o povo se organiza em
conselhos comunitários para decidir sobre assuntos do
interesse coletivo.
Por trás do discurso obtuso dos inimigos da revolução
bolivariana, nota-se algo mais do que a evidente intenção
de manipular a opinião pública. Simplesmente, os burgueses adotam uma visão de democracia que contradiz
o sentido literal da palavra (“o poder do povo”, em grego). Quem melhor definiu a democracia existente no capitalismo foi Joseph Schumpeter (1883-1950), um dos
mais influentes pensadores liberais. Para ele, a democracia da teoria clássica não passava de uma utopia. Na prá-
tica, deve ser apenas um método de escolha entre candidatos pertencentes às elites. Ao povo caberia apenas o papel de votar, de tempos em tempos, deixando aos figurões
mais ilustrados das classes dominantes a participação política efetiva.
Nas palavras do próprio Schumpeter: “A democracia
não significa e não pode significar que o povo realmente
governa (...). A democracia significa apenas que o povo
tem a oportunidade de aceitar ou recusar os homens que
os governam”. Schumpeter via o cidadão comum com um
fantoche nas mãos da imprensa e da máquina de propaganda dos partidos “razoáveis”, isto é, comprometidos
com o capitalismo. A competição política, segundo ele,
deve ocorrer dentro de um leque restrito de questões, de
maneira a jamais colocar em jogo as estruturas da sociedade e os pontos de consenso entre as elites.
Relendo Schumpeter, fica fácil entender o ponto de vista de quem afirma que Chávez “abusou da democracia”
(como disse um professor da Faap, reduto universitário
da elite paulistana, em debate na Globo News). Ao trazer para o primeiro plano da cena política a voz do povo
venezuelano, silenciada em séculos de apartheid social,
Chávez arrebentou os limites estreitos da “democracia”
schumpeteriana e aproximou da realidade o ideal libertário do governo “do povo, para o povo e pelo povo”.
João Brant
Compromisso rompido
NO FINAL DO MÊS PASSADO, o Ministério das Comunicações anunciou que este governo não vai tratar da reforma do marco regulatório. Na prática, a declaração oficializa o rompimento do governo com a sociedade no tema das comunicações. Em reação, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação publicou uma nota
criticando a opção, que em uma semana foi subscrita por
mais de 100 entidades. Entre os signatários estão Abong,
Altercom, ANPG, Congresso Brasileiro de Cinema, MST,
Marcha Mundial das Mulheres, Movimento Fora do Eixo,
União Nacional dos Estudantes e Via Campesina Brasil.
Como aponta o texto, “apesar dos insistentes esforços
da sociedade civil por construir diálogos e formas de participação, o governo Dilma e o governo do ex-presidente
Lula optaram deliberadamente por não encaminhar um
projeto efetivo de atualização democratizante do marco
regulatório. Mas o atual governo foi ainda mais omisso ao
sequer considerar a proposta deixada no final do governo
do seu antecessor e por não encaminhar quaisquer deliberações aprovadas na I Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), realizada em 2009. O que fica cla-
ro é a ausência de vontade política e visão estratégica sobre a relevância do tema para o avanço de um projeto de
desenvolvimento nacional e a consolidação da democracia brasileira.
A opção do governo significa, na prática, o alinhamento aos setores mais conservadores e o apoio à manutenção
do status quo da comunicação, nada plural, nada diverso e nada democrático. Enquanto países com marcos regulatórios consistentes discutem como atualizá-los frente
ao cenário da convergência e países latino-americanos estabelecem novas leis para o setor, o Brasil opta por ficar
com a sua, de 1962, ultrapassada e em total desrespeito à
Constituição, para proteger os interesses comerciais das
grandes empresas”.
A partir deste fato, a opção da sociedade será ampliar a
mobilização. A campanha “Para Expressar a Liberdade”
prepara um Projeto de Lei de Iniciativa Popular para um
novo marco regulatório das comunicações, com o objetivo de construir um instrumento que fortaleça a discussão
pública. Quem está a favor da democracia não tem por
que temer o debate.
EM 2012, A ECONOMIA brasileira cresceu apenas 0,9%.
Uma taxa muita baixa, que mal recompõe o crescimento da
população. Ou seja, é como se o PIB per capita estivesse estacionado ao longo do no passado. Apesar de não se caracterizar como um quadro recessivo, evoluímos bem menos do
que os vizinhos da América do Sul, do que a média da América Latina e do que os similares dos Brics.
O modelo de nossa política econômica está baseado na
dependência exagerada com relação ao consumo de empresas e de famílias. Desde o início do desmonte neoliberal do setor público, o Brasil tem perdido de forma sistemática sua capacidade de investimento. A privatização de empresas estatais ocorreu em setores estratégicos, como mineração, telecomunicações, energia elétrica e infraestrutura
de uma forma geral. Os novos proprietários, seguindo a lógica da acumulação privada, reduziram os investimentos e
têm sua preocupação voltada para gerar lucros aos acionistas. Assim, em razão da falta de controle do setor público, o
excedente gerado não é dirigido a reinvestimento, mas para
remessas dirigidas ao exterior.
Por outro lado, a era hegemonizada pelas recomendações
do Consenso de Washington ampliou a abertura comercial.
A abertura generalizada de nosso país às importações, iniciada em 1990 com Collor, provocou uma reacomodação de
nossa capacidade produtiva no setor industrial. A enxurrada estimulada pelo próprio governo de produtos manufaturados importados, em especial os asiáticos, inibiu a concorrência dos produtos industrializados aqui produzidos.
A perpetuação desse cenário por mais de 2 décadas reduziu a capacidade de formação de base produtiva. As empresas não mais investem como antes, pois o cenário é marcado de incapacidade de produzir a preços e custos competitivos frente ao que vem do exterior.
Frente a esse quadro, o desempenho da economia se assentou na chamada capacidade de consumo. As políticas de
compensação de renda aumentaram o acesso a bens e serviços de parcelas importantes da população, em razão dos
reajustes reais do salário mínimo, da manutenção do poder aquisitivo dos benefícios da previdência social, da ampliação de valores e abrangência de prestações do Bolsa Família e programas similares. No entanto, o consumo passou a se realizar por meio do acesso a bens importados, de
menor preço e pior qualidade. As empresas, por seu turno,
também adquirem matérias-primas e bens intermediários
de menores custos, em geral comprados no exterior. Passamos a depender, cada vez mais, da importação de bens para consumo.
Um país que assente seu modelo
econômico no consumo de bens
produzidos alhures não gera
capacidade de sobrevivência
autônoma no futuro
Para romper esse ciclo de geração de renda e emprego lá
fora é necessário um processo que combine coragem e vontade políticas para sair dessa dupla dependência: do consumismo sem base real e da importação desenfreada. O Brasil tem todas as condições (tamanho da população, escala
econômica, dimensões continentais, diversificação das atividades em vários setores) para reduzir essa dependência
aos produtos importados. Para tanto basta política industrial que estimule a produção de bens aqui internamente.
Mas o mais urgente é ampliar a capacidade de investimento no conjunto do PIB. Atualmente a fração dos investimentos representa apenas 18% do total produzido. Estudos demonstram que seria necessário elevar essa participação para algo próximo a 25%, de modo a conferir um pouco de folga à nossa capacidade econômica e social.
Afinal, um país que assente seu modelo econômico no
consumo de bens produzidos alhures não gera capacidade
de sobrevivência autônoma no futuro. O caminho alternativo passa pela redefinição dos gastos que a sociedade como um todo (famílias, empresas e governo) realiza com
o consumo e os direcione para investimentos. Isso significa maior capacidade de infraestrutura, maior presença
de máquinas e equipamentos, maior robustez dos setores
produtores de bens de produção. Assim, parcela da renda
nacional deixa de pagar produtos importados da China,
e passa a construir capacidade produtiva interna no Brasil, com objetivo de gerar consumo lá na frente. É o que o
economês chama de “capacidade de multiplicação dos investimentos”.
Paulo Kliass é doutor em economia pela Universidade de
Paris 10 (Nanterre) e integrante da carreira de Especialistas em
Políticas Públicas e Gestão Governamental, do governo federal.
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fatos em foco
da Redação
MPF denuncia advogado por trabalho escravo em fazenda em MS
A denúncia do Ministério Público Federal
(MPF) contra Mauro Gattasss Pessoa, proprietário da Fazenda Paraíso, em Corumbá
(MS), foi aceita pela Justiça Federal em 4 de
março. O fazendeiro é acusado de reduzir
trabalhador rural à condição análoga à de escravos, sujeitando-o a situações degradantes
de trabalho. A vítima trabalhava há 17 anos
na Fazenda Paraíso e chegou a ficar 4 anos
sem salário, recebendo apenas alimentos. A
pena para este crime é de reclusão de dois a
oito anos e multa.
Trabalhador e família eram mantidos em péssima condições
O trabalhador, a mulher e oito filhos
viviam em péssimas condições, sem água
potável e moradia digna. O flagrante foi feito
pela Polícia Militar Ambiental em novembro
de 2011. Constatou-se que a família vivia em
uma casa de pau-a-pique, revestida com barro, e chão de terra. Um banheiro rudimentar
feito de madeira, com 2 metros de profundidade e a 4 metros da casa, servia à família. A
única fonte de água era uma cacimba cavada
a céu aberto contendo líquido esverdeado.
Não havia energia elétrica e toda a família
dividia o mesmo quarto mal ventilado.
Comissão aprova projeto que quer
instituir Dia Mães de Maio
A Comissão de Educação e Cultura da
Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp)
aprovou, dia 6, projeto que inclui o “Dia
Mães de Maio” no Calendário Oficial do
Estado. A proposta, sugere que a data 12 de
maio seja relembrada todos os anos nos 645
municípios de São Paulo. O objetivo do projeto, de autoria da deputada estadual Telma
de Souza (PT-SP), é evitar que os crimes
ocorridos em maio de 2006 sejam esquecidos e os responsáveis permaneçam impunes.
A cada hora, dez mulheres
sofrem maus tratos
Os dados brasileiros são assustadores. O
Brasil é o 7º país com a maior taxa de homicídio de mulheres, segundo o Mapa da
Violência 2012 – Homicídio de Mulheres.
São 4,4 assassinadas para um grupo de 100
mil. O mesmo mapa mostra que a cada cinco
minutos, uma mulher é agredida. E a cada
duas horas, uma é morta vítima de violência.
A Central de Atendimento à Mulher, que disponibiliza o número de telefone 180 para denúncias, contabilizou de janeiro a dezembro
de 2012, 732.468 registros, sendo 88.685
relatos de violência. Por esses dados, a cada
hora, dez mulheres sofrem de maus tratos.
A maior parte é vítima de violência física
(56%), seguida de psicológica (28%), moral
(12%) e sexual (2%). Em 70% dos casos, o
agressor é o conjuge da vítima. Se considerados ex-marido, namorado e ex-namorado, o
número chega a 89%.
Desde a edição 444, o jornal Brasil de Fato
passou a ter quatro páginas a mais. Ou seja, agora são 16 páginas de informação e formação. Com
isso, podemos levar para você mais reportagens,
jornalismo inteligente e comprometido com as
lutas da classe trabalhadora. Assim, acreditamos contribuir ainda mais para elevar o nível de
consciência do povo, para que lute por mudanças e por uma sociedade justa. Quem ganha com
isso é você, leitor.
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de 14 a 20 de março de 2013
brasil
As faces de Kátia Abreu
Marcelo Cruz
CAMPO Ocupação de
mulheres sem-terra na
propriedade da senadora
denuncia a relação da
ruralista com trabalho
escravo, crime ambiental e
grilagem de terras
Marcio Zonta
enviado a Palmas (TO)
AS MULHERES do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na
fazenda Aliança, em Tocantins, de propriedade da família da senadora Kátia
Abreu (PSD-TO), denuncia a relação da
ruralista com trabalho escravo, crime
ambiental e grilagem de terras. A manifestação ocorreu no dia 7 de março.
Em nota divulgada sobre o acontecimento, Kátia Abreu chamou o MST de
“movimento dos sem lei” e a Via Campesina, que representa um conglomerado de movimentos sociais do campo na
América Latina, de “milícia”.
As ofensas destinadas aos quilombolas, indígenas, ribeirinhos e camponeses contrários a seu projeto no campo
tem sido constante desde que a figura da
também presidente da Confederação da
Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA)
ganhou notoriedade na mídia.
Para pesquisadores de Tocantins este
comportamento seria temor da ruralista
pelas várias denúncias que envolvem seu
nome em crimes ambientais e favorecimentos políticos no estado.
“São muitos hectares em
seu poder em Tocantins
e justamente para não
expor isso, Kátia Abreu
só tem registrado em
seu nome uma pequena
propriedade”
“Kátia Abreu tem medo da exposição
do seu nome atrelado a desmatamentos
e grilagem de terras, justamente porque
está envolvida nessas questões e por isso vive atacando os movimentos sociais e
comunidades tradicionais da Amazônia”,
alega o professor da Universidade Federal de Tocantins, Eliseu Ribeiro Lima.
Os apelidos de “Miss Desmatamento”
e “Rainha da Motosserra”, empregados
à ruralista pelos movimentos ambientalistas expõem, ainda, uma trajetória política pautada pelos antigos preceitos da
União Democrática Ruralista (UDR).
“Essa defesa da propriedade acima de
tudo vem com Kátia Abreu desde que
Mulheres do MST ocupam a fazenda Aliança, em Tocatins (TO), de propriedade as senadora Kátia Abreu
era presidente do sindicato rural do município de Gurupi, em Tocantins”, comenta Eliseu.
Sem-terra
Embora a história política de Kátia
Abreu esteja ligada a cargos de direção
em entidades de classe, a senadora não
registra seus imóveis rurais em seu nome. A ruralista detém apenas um registro de propriedade no Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) de Tocantins.
Um funcionário da instituição em Palmas, que prefere não se identificar, disse que a senadora coloca seus bens rurais
em nome de “laranjas, geralmente familiares”.
Para o professor Eliseu, que estuda a
questão agrária na região, a senadora teria uma imensidão de terras. “São muitos hectares em seu poder em Tocantins
e justamente para não expor isso, Kátia
Abreu só tem registrado em seu nome
uma pequena propriedade”, revela.
Segundo Lima, os dados do Incra encobrem, por exemplo, o favorecimento do
grupo político local dirigido pelo governador José Wilson Siqueira Campos (PSDB-TO), destinado à senadora.
No município de Campos Lindos, ao
norte do estado, o governador teria no final da década de 1990 “grilado terras e
distribuído a preço simbólico entre seus
amigos empresários e parte da família
Abreu para beneficiamento de soja na região”, relata o professor.
Siqueira Campos, governador do estado na época, emitiu um decreto jurando
de utilidade pública uma área de 105 mil
hectares de terra.
Kátia Abreu e seu irmão, Luiz Alfredo
Abreu, teriam pagado em lotes de 1,2 mil
hectares de terra R$ 8 o hectare.
Sem Lei
Outro tema que envolve o nome da família Abreu é o trabalho escravo. A aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do Trabalho Escravo, que
estabelece a desapropriação de imóveis
rurais flagrados com funcionários em
condições análogas de escravidão, já foi
diversas vezes questionada pela senadora.
Kátia Abreu defende que a expropriação da terra seja apenas depois do julgamento em última instância, sem a reversão imediata para a reforma agrária.
Federal da Fazenda Água Amarela, de
propriedade do irmão da ruralista, André Luis de Castro Abreu, em Araguatins, no Tocantins.
Os trabalhadores, recrutados no Maranhão, viviam em alojamentos precários, sem água potável nem fossa sanitária. Eram transportados na carroceria de
caminhão por motorista sem habilitação
e cumpriam regime de trabalho de 10 a 11
horas diárias, com intervalo de apenas 15
minutos para almoço.
Crime ambiental
Ademais, a família Abreu também estaria envolvida em casos de crime ambiental em Tocantins. Conforme informações do Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) de Palmas, a fazenda
ocupada pelas mulheres sem-terra teria
sido embargada em 2010 e os proprietários levados a julgamento em 2012
por “destruir, desmatar e danificar florestas”.
A fazenda, em nome de Irajá, também
dono de uma empresa de reflorestamento com eucalipto, ainda teria uma outra
infração ambiental que a embargaria novamente em 2011.
Os trabalhadores, recrutados
no Maranhão, viviam em
alojamentos precários, sem água
potável nem fossa sanitária
Parte do documento emitido pelo órgão especifica: “cortar árvores ou demais formas de vegetação natural em
área considerada de preservação permanente”. A ruralista e seu filho, Irajá, seriam os principais opositores de projetos
de preservação de biomas, como o cerrado tocantinense.
Em meados de 2102 ambos pressionaram o governador de Tocantins para
a não aprovação de um projeto que destinava à região R$ 9 milhões do Fundo
Mundial para o Meio Ambiente.
As regiões da Serra da Cangalha, com
16,8 mil hectares, Interflúvio TocantinsParanã, com 105,4 mil hectares, e Vale do Rio Palmeiras, de 20 mil hectares,
estariam em risco e seriam beneficiados
pelo projeto.
Irajá tentou persuadir os diversos órgãos competentes ao assunto alegando
já existir no estado de Tocantins 50% de
áreas protegidas, citando Reserva Legal
e Áreas de Preservação Permanente. No
entanto, ele não mencionou a diferenciação das Unidades de Conservação de
proteção integral em relação a essas áreas, cuja exigência é mais severa.
Por sua vez, Kátia Abreu argumentou
junto ao Ministério de Meio Ambiente
que as unidades de proteção permanente
prejudicariam o agronegócio na região,
já que parte das terras produtivas de Tocantins seriam atingidas.
“Kátia Abreu tem medo da
exposição do seu nome atrelado a
desmatamentos, grilagem de terra,
justamente porque está envolvida
nessas questões”
“Negar ao proprietário do imóvel o direito de defesa em juízo, especialmente
no caso da exploração do trabalho escravo, determinando a imediata expropriação do bem, dará ensejo a incontáveis injustiças, em decorrência, sobretudo, de
defecções na correta elucidação dos fatos”, alega a ruralista.
Quando a PEC do Trabalho escravo foi
votada em meados de 2012 pela Câmara dos Deputados, o deputado federal
Irajá Abreu (PSD-TO), filho da senadora, foi um dos 57 parlamentares que votou contra.
Em agosto do ano passado, 56 trabalhadores em condições análogas à de escravidão foram libertados pela Policia
Aliança entre capital internacional e elite nacional
Marcelo Cruz
Submisso aos interesses
internacionais,
representantes do
agronegócio de Tocantins
trabalharam como
intermediários dos
grandes projetos na região
enviado a Palmas (TO)
Especialistas no assunto têm apontado
a ruralista Kátia Abreu como um exemplo da burguesia nacional agrária que
trabalha como intermediária dos grandes projetos do capital internacional, incentivando seu avanço sobre o campo
brasileiro.
Para o historiador e pesquisador do
agronegócio na região de Araguaia (TO)
Paulo Henrique Costa Mattos, da Universidade Federal de Tocantins, “o apoio
das burguesias rurais ou industriais advém da incapacidade de fazer frente à
avassaladora onda de capitais, tecnologias e financeirização que chega ao campo dos países subdesenvolvidos”.
A trama envolvente entre elite agrária nacional e as empresas transnacionais evidencia esse processo. “Quando
os grandes ruralistas vão plantar e colher, geralmente têm que usar máquinas
e equipamentos da New Holland, Massey Fergusson, Caterpillar, John Deer,
Valmet, Estil, Husqvarna e etc. Nenhuma dessas empresas é nacional”, apresenta o professor.
Além disso, existe uma relação contínua na colheita e no armazenamen-
Camponesas na luta contra o avanço do capital internacional sobre o campo brasileiro
Outro monocultivo que vem sendo
gradativamente implantado, sobretudo
nas propriedades rurais da senadora
Kátia Abreu, é o eucalipto
to. “Os grãos são protegidos sob lonas
da japonesa Sansuy. Em seguida, vêm
o transporte em caminhões da estadunidense Ford, as alemãs Volkswagen e
Mercedes, a italiana Fiat, as suecas Volvo e Scania”.
O estreitamento com a China também
vem sendo trabalhado pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Bra-
sil (CNA) desde a abertura do escritório
da entidade ruralista em Pequim, no fim
de 2012.
Os objetivos propostos pela entidade
presidida por senadora Kátia Abreu são
atrair investimentos públicos e privados
da China para a infraestrutura do país,
em especial para logística de transporte
e armazenagem da produção.
No Tocantins, Siqueira Campos tem
conversado com o Banco de Desenvolvimento da China (BDC) na tentativa de fazer cooperação entre o empresariado local, o governo e o capital chinês.
“Os chineses demonstram interesse em
fazer cooperação com empresários e com
o governo do Tocantins que, por sua logística, permite baratear o custo das ex-
portações brasileiras, com o corredor de
exportação Norte-Sul”, declarou recentemente Siqueira.
“Aí está o sinal de que, em breve, também os chineses virão se servir desse
mercado rodoviário, já que é através dele que se escoa a produção dos commodities agrícolas”, conclui o historiador.
Além de toda essa orquestração, é de
autoria do Partido Social Democrático
(PSD), de Kátia Abreu, um projeto de decreto legislativo que objetiva acabar com
a rotulagem de transgênicos. “No Brasil,
o agronegócio conta com uma poderosa
bancada ruralista no Congresso Nacional
para assegurar projetos de leis com seus
interesses e barrar tudo aquilo que possa contrariar o avanço do capitalismo no
campo”, acusa Mattos.
Monocultivos
Aproximadamente 72,3% da exportação de Tocantins é soja em grão e cerca de 24, 4% de carne bovina desossada,
fresca e congelada. Conforme estimativa
da Secretaria de Agricultura de Tocantins, a produção de soja na safra 2010/
2011 superou a faixa de 1,2 milhões de toneladas. Para 2102/2103 é esperado um
crescimento superior a 10%, colocando o
estado como um dos grandes produtores
do agronegócio brasileiro.
Outro monocultivo que vem sendo gradativamente implantado, sobretudo nas
propriedades rurais da senadora Kátia
Abreu, é o eucalipto. Segundo dados da
Secretaria de Agricultura do estado, o
ano de 2012 contabilizou 197,4 mil hectares de plantio da espécie.
Se persistir o ritmo de crescimento
da plantação de eucalipto no estado,
há projeções para 2016 de uma área de
530 mil hectares utilizados para a produção. (MZ)
brasil
de 14 a 20 de março de 2013
5
A atualidade de Florestan Fernandes
Arquivo Brasil de Fato
ENTREVISTA
Para professor da UFRJ,
interpretação do pensador
sobre o país resultou
numa teoria do Brasil
Vou me ater à universidade pública brasileira, cujo quadro é diferente da
universidade privada. Acho que este tipo de experiência ainda é residual porque a nossa Universidade permanece excludente, apesar dos processos de massificação que tenham ocorrido dentro dela.
Eu não diria democratização, mas massificação.
É um espaço com uma tara elitista, e
isso é um viés negativo na nossa história acadêmica. A Universidade foi pensada para formar e servir as elites, mas numa sociedade de convivência democrática que temos hoje, do ponto de vista das
liberdades políticas, a universidade também reflete as contradições que estão fora dela. Existe aí um enorme conservadorismo, mas há segmentos abertos a mudanças, progressistas, segmentos de esquerda. A universidade pública brasileira está cheia de problemas, mas ruim
com ela, pior sem ela. Há que ter claro as
limitações e as mazelas e defender o patrimônio que representa a universidade
pública. Isso porque, se nesta universidade são residuais as experiências como
esta, se nós abrirmos mão da defesa do
caráter público, aí é que essas experiências não existirão.
Pedro Carrano
de Vitória (ES)
A CONTRIBUIÇÃO de Florestan Fernandes para o desenvolvimento de um
olhar sobre o Brasil permanecem na ordem do dia para o debate da esquerda
brasileira. Essa é a compreensão de José
Paulo Netto, professor da Escola de Serviço Social da UFRJ e integrante do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Em debate organizado pela Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em
parceria com a Universidade Federal do
Espírito Santo (Ufes), ele falou sobre o
legado do pensador brasileiro ao Brasil
de Fato. Além disso, Netto problematizou a relação entre os movimentos sociais e a sua incidência na universidade
pública.
Brasil de Fato – Você está
participando de uma mesa sobre
o pensamento de Florestan
Fernandes. Qual a atualidade do
pensamento de Florestan hoje?
José Paulo Netto – A meu juízo, Florestan foi o maior cientista social brasileiro. E se a gente olhar com cuidado, o
conjunto da sua obra, que é muito diferenciada, você percebe sua evolução, levando em conta os trabalhos dele do final dos anos 1940 até, por exemplo, a sua
intervenção pública, na primeira metade
dos anos 1990 – porque na obra dele não
há como separar o cientista do homem
público que ele foi.
Eu diria que o Florestan tem uma obra
diferenciada, com momentos distintos,
mas ele deixa uma teoria do Brasil. Meu
amigo Carlos Nelson [Coutinho] (falecido em 2012), falava em imagem do Brasil. Eu acho que é mais que isso, é uma
teoria do Brasil que ele formula. Eu diria
que é uma interpretação do Brasil. Quando o Florestan, ainda fortemente funcionalista, está pensando na função da guerra entre os tupinambás, ele não está estudando um objeto arqueológico, ele está
querendo entender o Brasil.
“Eu não creio que as
dificuldades da esquerda
derivem da falta de um
conhecimento substantivo
da realidade brasileira”
Eu estou convencido que essa experiência do MST (na UFES), e de outros
movimentos, não só aqui nessa universidade, mas em outros pontos, mostram que há que há audiência, ressonância e condições de se contribuir
para romper essa tara elitista. O êxito
dessas experiências pode reduzir resistências porque nem todas são conservadorismo político, muitas das quais
são corporativas. Alguns defendem que
nesses programas não há excelência e
qualidade. Se nós trabalharmos visando a excelência e a qualidade, vamos
desarmar essas críticas e parte desses
setores vão colaborar.
Ele traz um aporte a partir da
caracterização de nossa economia
como dependente. E qual a
definição que ele dá ao caráter da
elite brasileira?
O capitalismo periférico, dependente, a percepção que ele tem das nossas
classes dominantes, isso é um momento
da obra do Florestan. Esse é o momento
culminante da obra do Florestan, eu diria que pós-golpe de 1964. O Florestan
que foi, arbitrária e brutalmente, impedido de exercer seu magistério, pelo AI5. Esse é o momento alto da obra de Florestan. Mas não é o único dessa obra. Eu
lembraria a você o trabalho sobre os negros, publicado na primeira metade dos
anos 1960, a integração do negro na sociedade de classes, um contributo ao
que eu chamo de teoria do Brasil.
A concepção de dependência do Florestan não era weberiana, como foi de
alguns teóricos da dependência que foram discípulos dele, o caso típico de Fernando Henrique Cardoso. Ele tem uma
compreensão, a meu juízo, rigorosamente marxista.
Os duros juízos dele sobre as classes
dominantes brasileiras me parecem absolutamente corretos e verazes. Falecido há 18 anos, Florestan é um absoluto
contemporâneo nosso, um companheiro
de jornada. É bastante provável que num
juízo futuro os novos problemas da realidade brasileira exijam respostas que talvez não encontremos na obra de Florestan, mas as questões centrais foram as
colocadas por ele.
“Ele tem uma compreensão, a meu
juízo, rigorosamente marxista”
O sociólogo Florestan fernandes
sil. O professor Octavio Ianni costumava dizer que havia uma família de pensadores, uma linhagem que começa a rigor com Euclides da Cunha, que vai envolver personagens extremamente conservadores, como por exemplo, Oliveira Viana, um pensador no limite do
conservadorismo. Florestan se beneficiou do diálogo com todos esses autores.
Agora, atenção: foi um diálogo extremamente crítico. Isso permitiu a Florestan,
face a vários pensadores, elaborar uma
síntese superadora e criativa.
“Os duros juízos dele sobre as
classes dominantes brasileiras
me parecem absolutamente
corretos e verazes”
Saindo um pouco do contexto da
conversa, há um texto recente em
que você analisa que não há um
problema de falta de teoria na
esquerda; que o problema, hoje, é
organizativo.
É um artigo pequeno, “O déficit da esquerda é organizacional”, mas que causou polêmica. Mas continuo sustentando
aquilo. Eu não acho que nós já conhece-
mos o Brasil. Nós temos uma produção
sobre o Brasil, e atenção: de pensadores
marxistas e não marxistas. O que nos dá
um estoque crítico para enfrentar a particularidade brasileira.
Eu não penso que os problemas da
esquerda brasileira, hoje, estão num
conhecimento deficitário da realidade
brasileira. E da inserção do Brasil no
mundo contemporâneo. Eu insisto, nós
ainda não deciframos completamente
esse enigma que é o Brasil. E aí a contribuição dos marxistas me parece importante, mas é preciso levar em conta que a constituição desse estoque de
conhecimentos envolveu e envolve protagonistas, pesquisadores e estudiosos,
que não são necessariamente marxistas e de esquerda. Mas a esquerda tem
que se beneficiar e tem sido beneficiária disso. Eu não creio que as dificuldades da esquerda derivem da falta de
um conhecimento substantivo da realidade brasileira. Eu penso que não tem
sido possível conjugar esse conhecimento, sua implementação, no sentido de transformações revolucionárias e socialistas, da sociedade brasileira. Não tem sido possível articular isso com movimentos sociais de envergadura, e sobretudo organizações político-partidárias, significativas e expressivas, com ponderação forte na vida brasileira.
Pedro Carrano
Essas questões também ocorreram
em um contexto de produção
e busca de compreensão sobre
o Brasil, que envolveu outros
pensadores?
No que estou chamando de teoria do
Brasil de Florestan há um contributo de
originalidade intelectual que é indiscutível. Mas Florestan é impensável, por
exemplo, sem Caio Prado Júnior. Aquela obra-prima que é o livro A Revolução
Burguesa no Brasil – com o que muita
gente discorda – é uma reflexão originalíssima. Há um diálogo contínuo com
Caio Prado, para dar um exemplo.
Na verdade, temos grandes pensadores, que não são necessariamente pensadores progressistas ou de esquerda,
mas que contribuem para a construção
disso que eu chamo de teoria do Bra-
Cursos como o de especialização
em Economia e Desenvolvimento
Agrário, uma parceria entre a ENFF
e uma universidade pública (Ufes),
apontam para a a necessidade de
os movimentos sociais ocuparem
o espaço da universidade, ainda
pouco acessível à maioria?
Como você analisa a realidade
brasileira a partir de recentes
movimentações de trabalhadores
no campo econômico? Isso pode
gerar condições para o debate da
esquerda voltar a ganhar força?
Olha, eu sou otimista, mas como o
meu velho mestre, Lukács, eu não sou
otimista a curto prazo. Eu penso que os
trabalhadores sofreram no mundo inteiro nos últimos 25 anos derrotas profundas que conduziram as classes trabalhadoras a uma posição defensiva, ou seja
uma conjuntura – para usar uma linguagem cara ao professor Florestan –
claramente contra-revolucionária. Mas
isso não apagou as lutas de classe. Tem
gente que pensa que as lutas estavam
velhas e voltaram com a crise do Euro.
Eu não penso isso não, as lutas sociais
prosseguiram, moleculares, nem sempre com visibilidade, mas os trabalhadores não foram conduzidos a essa condição bovinamente. Resistiram e não há
dúvida de que no mundo essas lutas defensivas estão ganhando maior força e,
no Brasil, também há uma reanimação
do movimento dos trabalhadores. Se essas mobilizações não deixarem nenhum
saldo organizativo, gerando novas direções de vanguardas, que se refletiriam
em partidos e movimentos sociais, terão
impacto, mas não será potencializado.
“Há que ter claro as
limitações e as mazelas
e defender o patrimônio
que representa a
universidade pública”
Qual a importância da formação em
um momento de descenso da luta
de massas?
O professor da UFRJ José Paulo Netto
Acho que a coisa mais viva neste país
se manifesta em duas dimensões, a primeira dimensão é a relação e a prática internacionalistas que eu vejo efetivamente no MST. A segunda, que para mim é da
maior importância para a esquerda brasileira, se desenvolve em diferentes universidades, é a ênfase na formação política das novas gerações. (Colaboraram Alcione Nunes Farias, Adelson Lima, Sidevaldo Miranda Costa)
6
de 14 a 20 de março de 2013
brasil
Trabalho doméstico
ainda é tarefa feminina
LUTA DA MULHER
A quantidade de horas
dedicadas pelo gênero
feminino às atividades,
por vezes ingratas, de
manutenção do lar chega
a ser 2,5 vezes maior que a
do gênero masculino
Aline Scarso
da Redação
Cultura machista
A ideia de que os homens são os provedores financeiros da família e que as
mulheres são as mantenedoras do bemestar do lar persiste há séculos na sociedade brasileira e a nível mundial. Esse
Mais metalúrgicas,
menos salário
O número de mulheres na categoria
metalúrgica dobrou nos últimos 11
anos. A participação feminina representava cerca de 197 mil trabalhadoras
em 2002 e chegou a 445 mil em 2012,
um crescimento de 26,6%. A informação é da Subseção do Dieese da Confederação Nacional dos Metalúrgicos
da CUT (CNM/CUT) e consta de um
estudo inédito sobre o perfil da mulher
metalúrgica brasileira. Entretanto, há
ainda uma grande diferença entre o
que é pago aos homens e às mulheres
no ramo metalúrgico. Entre 2010 e
2011 (último dado disponível), a remuneração média das mulheres era 27,9%
menor do que a dos homens. Em 2011,
a distância entre as remunerações
apresentou pequeno aumento, atingindo 28,3%.
Temporários serão efetivados na
Mercedes de São Bernardo
No próximo dia 1º de abril, 484 trabalhadores que tinham contrato por prazo
determinado na Mercedes de São Bernardo do Campo serão efetivados. Os
trabalhadores beneficiados estavam no
grupo de 1.500 que tiveram os contratos
suspensos no ano passado (lay-off), durante o auge da crise no setor de caminhões. No dia 7 de novembro de 2012,
a Mercedes havia enviado telegrama de
demissão para os 484 trabalhadores que
tinham contratos por prazo determinado. “Nunca abrimos mão do retorno
desses trabalhadores para a produção,
pois nossa prioridade nos últimos meses foi garantir o emprego de cada um
dos 12.800 companheiros da planta”,
afirmou Aroaldo Oliveira, coordenador
do Comite Sindical de Empresa.
O Nordeste foi a região do
país que registrou a maior
diferença na divisão de
trabalho entre gêneros
“Hoje na minha casa
vivemos de forma
cooperativa. Todo mundo faz
alguma atividade doméstica”
da Redação
Contag elege diretoria e
aprova paridade de gênero
A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) elegeu
sua nova diretoria no dia 8, último dia
do 11º congresso que reuniu, em Brasília, mais de 2.500 trabalhadores rurais
de todas as regiões do Brasil. A eleição
reconduziu ao cargo o atual presidente
Alberto Broch para um novo mandato
de quatro anos à frente da entidade, que
congrega 27 Federações e mais de 4 mil
sindicatos rurais. O evento, cujo tema
foi Fortalecendo o Movimento Sindical
para Melhorar a Qualidade de Vida no
Campo, comemorou os 50 anos da Contag e teve a participação da presidenta
Dilma Rousseff.
AFAZERES DOMÉSTICOS ainda são
uma tarefa predominantemente feminina? A pesquisa Uma análise das condições de vida da população brasileira de 2012, com dados relativos à Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2011, mostra que sim. As mulheres dedicam, em média, 27,7 horas por
semana para afazeres domésticos, enquanto os homens dedicam 11,2 horas
semanais. A quantidade de horas dedicadas pelo gênero feminino às atividades, muitas vezes ingratas, de manutenção do lar chega a ser 2,5 vezes maior
que a do gênero masculino.
Entre homens e mulheres que trabalham fora, a divisão do trabalho em casa também permanece desigual. Entre
a população ocupada com mais de 16
anos, mulheres dedicam 22,3 horas para as jornadas domésticas, enquanto os
homens gastam 10,2 horas, o que mostra que ainda persiste na sociedade brasileira uma maior parte da responsabilidade pela manutenção do lar à mulher,
apesar do acesso dos dois gêneros ao
mercado de trabalho.
O Nordeste foi a região do país que registrou a maior diferença na divisão de
trabalho entre gêneros. Além do trabalho fora de casa, as nordestinas gastam
13,7 horas semanais a mais que os homens nordestinos com trabalhos domésticos. No índice geral que conta a população ocupada e desocupada, as mulheres
chegam a trabalhar 17,8 horas a mais que
os homens na região. Mas por que isso
acontece? As mulheres contribuem para
esse tipo de relação?
A artesã Wilma Ribeiro de Souza (45),
casada há 23 anos com Adolfo da Silveira Dias (45) e mãe de Vinícius (21),
Ana Carolina (18) e Jonatha (15), conta que ela e a filha eram as responsáveis por toda a atividade doméstica – lavavam, passavam, limpavam, alimentavam. “Era aquela coisa: se você era mulher, tinha que fazer. E eu achava que era
normal, que era meu papel de mãe e mulher”, afirma.
Há quatro anos a divisão de tarefas
vem mudando na casa dela. “Hoje na minha casa vivemos de forma cooperativa.
Todo mundo faz alguma atividade doméstica. A roupa, por exemplo, é meu
marido quem passa”, explica. A mudança aconteceu depois que Wilma começou
a participar do movimento feminista e levou a discussão da divisão de tarefas para
dentro de casa.
No início, segundo ela, foi difícil os homens aceitarem a divisão. “Eles achavam
ruim. Na mentalidade deles esse tipo de
serviço era coisa de mulher. O meu marido falava: ‘mas eu trabalho o dia inteiro e
tenho que chegar em casa e trabalhar?’. E
eu dizia: mas eu também trabalho”, diz.
Aos poucos, Adolfo foi percebendo que a
divisão era justa e deu razão a ela. A pressão dos irmãos contra a irmã Ana Carolina para que ela realizasse as tarefas domésticas também cessou. “Ela sempre
lutou contra isso”, conta a mãe. Hoje, assim como Wilma, Ana Carolina é militante feminista.
espaço sindical
tipo cultura social faz com que recaia
sobre as mulheres o chamado trabalho
de cuidados. Na família, é comum que
a mulher seja a responsável pelo cuidado das crianças, dos idosos e de um ente
doente. Muitas deixam de trabalhar fora de casa para assumirem essa função,
não remunerada e não reconhecida pela sociedade.
“Existe uma construção social de relações de gênero que reafirma que a tarefa
natural das mulheres é prover esses cuidados. E isso é reforçado o tempo todo
pelos meios de comunicação, de que as
mulheres nascem para cuidar, que têm
mais jeito com os filhos”, explica Maria
Fernanda Marcelino, integrante da Sempreviva Organização Feminista (SOF),
entidade que faz parte da Secretaria Executiva da Marcha Mundial das Mulheres (MMM). “Mas isso é uma construção social, pois as mulheres e os homens
são educados de formas diferentes e vão,
ao longo de suas vidas, sendo direcionados para cumprir papéis diferenciados”,
complementa.
É fácil observar a propagação do modelo. Nas propagandas de produtos de limpeza, por exemplo, quem são as protagonistas se não as mulheres? “Não existe propaganda de sabão em pó direcionada aos homens. E o modelo sempre é
uma família heterossexual”, analisa Maria Fernanda.
A artesã Wilma Ribeiro de Souza diz
ter tido dificuldade para reivindicar a
ajuda do marido e dos filhos nas atividades domésticas. Ela aprendeu com a mãe
que era a mulher a responsável pelo serviço doméstico e conta que se sentia mal
de cobrar a ajuda dos homens. “Já com
a minha filha não vai acontecer isso, ela
não vai permitir”, acredita. Hoje, Wilma
defende que as mulheres se apoderem
da igualdade de direitos e reivindiquem,
sem medo, a divisão igualitária dos serviços. “Falta discussão sobre isso dentro
da casa. É preciso ter esse tipo de conversa”, ressalta.
Mulheres querem direitos iguais
A divisão igualitária do trabalho doméstico é uma das bandeiras de luta não
só de brasileiras, como de mulheres de todo o mundo. “Não existe coisa de homem
ou de mulher. O que existe são crianças
para serem cuidadas e tarefas para serem
feitas”, afirma a integrante da Sempreviva Organização Feminista (SOF), Maria
Fernanda Marcelino, Segundo ela, o Estado precisa fornecer equipamentos que
diminuam o trabalho no seio da família
como, por exemplo, creches públicas para as crianças e lavanderias e restaurantes a preços acessíveis.
A divisão igualitária do trabalho
doméstico é uma das bandeiras de
luta não só de brasileiras, como
de mulheres de todo o mundo
Na tarde do dia 8, mulheres de dezenas
organizações feministas ligadas a movimentos sociais, sindicatos, partidos, coletivos e entidades saíram às ruas de várias cidades para cobrar esses e outros
direitos. Em São Paulo, por exemplo, a
concentração ocorreu na Praça da Sé.
“A esquerda tem tido bastante dificuldade de fazer momentos de luta unitários.
Mas esse é um esforço das mulheres porque a opressão machista atinge a todas
elas”, explica Maria Fernanda.
O dia de 8 de março é historicamente
um dia de luta feminista. Neste dia, em
1857, mulheres de uma fábrica de tecidos
de Nova Iorque, nos Estados Unidos, fizeram uma greve para cobrar equiparação de salários com o dos homens, tratamento digno e redução da carga de trabalho. A manifestação foi brutalmente reprimida. As mulheres foram trancadas
na fábrica, que foi incendiada, e cerca de
130 tecelãs morreram carbonizadas.
Peões reivindicam 5%
de aumento real
A campanha salarial dos trabalhadores da construção civil de São Paulo,
que têm data-base em 1º de maio, já
começou. O Sindicato da categoria
(Sintracon-SP) entregou à entidade
patronal uma pauta de reivindicações,
que prevê aumento real de 5%, cartão
magnético de R$ 220,00 para compras
no supermercado e seguro de vida no
valor de R$ 75 mil, entre outros itens.
O presidente do Sindicato, Antonio de
Sousa Ramalho, diz que a entidade quer
pautar a negociação pelo diálogo, mas já
está mobilizando os trabalhadores para
enfrentar qualquer impasse.
Tribunal Superior do Trabalho
tem novo presidente
O Tribunal Superior do Trabalho
(TST) tem novo presidente para o próximo biênio. O ministro Carlos Alberto
Reis de Paula, que é o primeiro negro a
comandar a Corte, assumiu o cargo dia
5 de março. Mineiro de Pedro Leopoldo, Carlos Alberto Reis de Paula é juiz
de carreira desde 1979 e foi o primeiro
negro a integrar uma corte superior,
quando chegou ao TST em 1998. Segundo informações do tribunal, o novo presidente é defensor da conciliação para
solução dos conflitos trabalhistas e dará
prioridade à consolidação do Processo
Judicial Eletrônico – sistema informatizado que permite rapidez na tramitação
dos processos.
Ex-trabalhadores aceitam acordo com Shell e Basf
Os ex-trabalhadores da fábrica da
Shell de Paulínia (SP), posteriormente
comprada pela Basf, aceitaram no dia 8
o acordo proposto pela Justiça, que garante tratamento médico e indenização
por danos morais e materiais decorrentes de contaminação com substâncias
químicas. A antiga fábrica, produtora
de agrotóxicos, ficou em atividade
entre 1974 e 2002, contaminando o
solo e as águas com produtos químicos
compostos por substâncias cancerígenas. No total, 1.068 pessoas, entre
ex-trabalhadores e seus dependentes,
processam as empresas por terem ficado expostas aos componentes. Os afetados receberão auxílio para saúde e,
como indenização por danos morais e
materiais individuais, cada trabalhador
receberá 70% do valor estipulado em
sentença judicial, acrescidos de juros e
correção monetária, podendo chegar a
R$ 180 mil. Por danos morais e coletivos, as empresas deverão pagar indenização de R$ 200 milhões.
brasil
de 14 a 20 de março de 2013
7
Nova prática, velha política
José Cruz/ABr
DEMOCRACIA
REPRESENTATIVA
Rede Sustentabilidade,
partido liderado por
Marina Silva, tenta superar
vícios políticos, mas pairam
dúvidas sobre como vai
lidar com a realidade do
sistema partidário
Pedro Rafael
de Brasília (DF)
FUNDADO HÁ QUASE um mês, a Rede Sustentabilidade deve se tornar o
31º partido político do Brasil. Liderada
pela ex-ministra e ex-senadora, Marina
Silva, a nova organização corre contra
o relógio para oficializar sua legenda a
tempo de pensar em lançar candidatos
para as eleições de 2014. Para isso, depende da anuência de aproximadamente 500 mil assinaturas, em pelo menos
nove estados, com prazo suficiente para que os Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) se manifestem, no máximo
até outubro.
No ato de lançamento do partido,
ocorrido em 16 de fevereiro, na capital
federal, Marina Silva deixou claro que
“não se trata de um esforço pensando
apenas em eleição”. Mesmo assim, a
prioridade do momento parece ser o recolhimento das assinaturas. No site da
Rede, por exemplo, apoiadores podem
se cadastrar como coletores de adesões.
O mesmo empenho tem se repetido nas
redes sociais.
“A pauta socioambiental
é marginal em todos os
partidos”
Esquerda-direita
O tema do desenvolvimento sustentável foi adotado como eixo central na
disputa ideológica que o partido quer
levar para dentro do sistema político.
A escolha tem a ver com a declaração
de Marina Silva, de que não é “um partido de esquerda, nem de direita, mas
a frente”. Para os fundadores da Rede,
nenhuma agremiação partidária do país
deu a devida dimensão para esse tema
até agora.
“A política socioambiental do governo Dilma é um desastre, e de todos os
outros governos sempre foi ruim. Nenhum partido, nem de esquerda, nem
de direita, tem uma visão profunda no
sentido de questionar o desenvolvimento que está aí. A esquerda tem uma visão mais social, que é importante, mas
o centro do desenvolvimento é o neodesenvolvimentismo predatório. A direita
tem um foco na economia liberal, mas
o centro do desenvolvimento também
é predatório. A pauta socioambiental é
marginal em todos os partidos”, avalia
Pedro Ivo Batista, membro da Comissão Nacional Provisória da Rede. Militante histórico do movimento ambientalista, Ivo foi assessor muito próximo
de Marina Silva na gestão à frente do
Ministério do Meio Ambiente (MMA) e
é uma das lideranças mais engajadas na
construção do novo partido.
“Não considero um projeto
político, nem partidário, e
sim uma arregimentação
fundamentalista”
A ex-senadora Marina Silva fala no lançamento de seu novo partido, Rede Sustentabilidade
ra, não haveria necessidade de criação
de mais um partido com esse propósito, com o compromisso com o meio ambiente. A Marina quis um partido para
chamar de seu, porque ela não tem sido muito fiel aos partidos a que pertenceu”, critica.
Pedro Ivo rebate esse tipo de análise exemplificando a própria história.
Ex-bancário e sindicalista, foi um dos
fundadores do PT e militou na executiva da Central Única dos Trabalhadores (CUT). “Fui secretário nacional de
meio ambiente do PT, mas o que levou um cara de esquerda e ecossocialista, como eu, a entrar na Rede, foi perceber que a sustentabilidade é o eixo central, algo que não havia ocorrido antes”.
No plano nacional, a surpreendente votação de Marina Silva, que chegou a
quase 20 milhões de votos nas eleições
presidenciais de 2010, desencadeou um
processo de debate entre seus apoiadores sobre as forças partidárias capazes
de abrigar esse “capital político”.
No Partido Verde (PV), legenda pela
qual concorreu, Marina não obteve as
mudanças desejadas e saiu em meados
de 2011. “Como o PV negou-se a se democratizar, constituímos o movimento
‘nova política’. A ideia era ser um movimento supra e transpartidário e aglutinou jovens sem experiência em organização política e que se articulavam em
redes sociais, além de pessoas ligadas a
partidos. Marina sempre foi contrária a
constituir um partido sem um amálgama social que pudesse conformar um
projeto político”, acrescenta Pedro Ivo.
“A Marina quis um partido para
chamar de seu, porque ela não
tem sido muito fiel aos partidos
a que pertenceu”
Entrando no jogo
O professor de Ciência Política da
Fundação Getúlio Vargas (FGV), em
São Paulo, Francisco Fonseca, pondera a capacidade do partido de lidar no
sistema partidário tal como está constituído. “A Rede não será um partido inteiramente dentro do jogo político, nem
fora. Na verdade, sinaliza uma dupla
perspectiva: de um lado, uma organização programática, mais ideológica, mas
também composto por forças políticas
e parlamentares, inclusive empresários,
que tendem mais a jogar a regra do jogo. A questão é saber se tem espaço para sobreviver no atual sistema político,
até onde isso vai. Vejo mais perguntas
do que respostas”, opina.
“A questão é saber se tem
espaço para sobreviver no
atual sistema político, até
onde isso vai”
“A Rede está concordando com as regras do jogo atual, isso é um risco para qualquer partido. Se observar o que o
PT defendia em 1980, não tem mais nada. Então, é mesmo um risco, mas estamos com disposição para enfrentá-lo,
construir algo que seja diferente. Mais de
80% da população eleitoral brasileira não
é filiada a partido político. E outros 30%
simplesmente se abstiveram de votar
nas últimas eleições, mesmo o voto sendo obrigatório. Então, penso que a Rede
tenta inovar. Trata-se de uma disputa pela própria democracia”, aponta.
Propostas fazem diferença?
Futura legenda aposta
em plataforma para
questionar monopólio
dos partidos e o
financiamento de
campanhas eleitorais
de Brasília (DF)
O vice-presidente nacional do PSB,
Roberto Amaral, é um crítico atroz do
novo partido. Para ele, a Rede tenta negar a disputa direita-esquerda. “Não
considero um projeto político, nem partidário, e sim uma arregimentação fundamentalista. [O partido] não se define diante dos projetos da esquerda brasileira, não diz uma palavra sobre a reforma agrária. Todo mundo é a favor da
sustentabilidade. A meu ver, o fato novo
que temos que discutir é o que fazer para aliar desenvolvimento e sustentabilidade. Como deixar de fazer hidrelétrica e
obter energia? Esse milagre nós estamos
aguardando. Com esse tipo de dogma, é
um projeto que não inova”, afirma.
Segundo o analista político do Departamento Intersindical de Assessoria
Parlamentar (Diap), Antônio Augusto Queiroz, o partido acerta ao eleger
a sustentabilidade como elemento central, mas aponta dúvidas para essa ser
a principal justificativa de conformação
da Rede. “Claro que é um tema que permeia todas as áreas da convivência humana, é a novidade da atualidade. Ago-
O deputado Domingos Dutra (PT-MA)
é um dos políticos que estão apoiando a
construção da Rede. Sem influência no
PT de seu estado, Dutra viu seu partido
emprestar apoio a “uma das últimas oligarquias do país”, comandada pela família Sarney, sem poder reverter a situação.
O parlamentar ressalta a dificuldade para lidar no sistema político-partidário.
A Rede Sustentabilidade foi lançada
com intenção de antecipar, na prática, o
desejo de mudança no sistema político.
O estatuto do partido prevê, por exemplo, um percentual de até 30% das vagas para candidatos não militantes. É a
chamada lista cívica ou independente.
“São candidatos que não terão as obrigações de um filiado. Será uma filiação
democrática, mas as pessoas serão consideradas totalmente independentes. Eles
se ligarão ao partido pelos valores”, detalha Pedro Ivo, membro da Comissão Nacional Provisória do novo partido.
Para Antônio Augusto Queiroz, analista político do Diap, trata-se de um tipo de “terceirização” que compromete a
própria institucionalidade representativa. “Se há a identidade, porque a pessoa
não se filia? Se a regra é concorrer via
partido e ele resolve emprestar a legenda, é uma terceirização. Como é que um
partido vai governar sem ter uma doutrina, diretriz que enquadre seus quadros? Seria mais coerente o partido
defender a implantação do sistema de
candidatura avulsa. Imagina se a legen-
da é dada a uma pessoa do perfil desse
pastor Feliciano [deputado do PSC que
passou a presidir, sob protesto dos movimentos sociais, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara]?”, questiona.
Para o deputado Domingos Dutra
(PT-MA), o mecanismo é um avanço democrático. “Não se trata de um partido
de aluguel. Criar espaços como esse ajuda a melhorar a democracia brasileira e
ajuda a quebrar o monopólio para sair
dessa polaridade que é esquerda e direita no Brasil. Aliás, qual é o partido no
Brasil que bota a luta pelo socialismo?
O PT é de esquerda, mas está administrando o capitalismo da melhor forma
possível”, critica.
“Como é que um partido
vai governar sem ter uma
doutrina, diretriz que
enquadre seus quadros?”
Segundo Pedro Ivo, a lista cívica terá um tipo de rigor com a identidade do
partido. “Nenhum nazista, nenhum homofóbico, nenhum defensor de guerra
terá o direito de estar nesse processo,
mas a plataforma dele será totalmente independente. Se alguém de um movimento social quiser a legenda, terá”,
observa.
Ivo menciona a intenção de criar o
Comitê da Sociedade Civil, com pessoas indicadas pelo próprio partido e por
entidades da sociedade, inclusive movimentos sociais. É uma espécie de om-
budsman coletivo, com poder de pressão, de analisar as ações do partido, se
elas estão de acordo com o programa e
com os princípios”, aponta. Outra “inovação” do partido é estabelecer um plebiscito, daqui a 10 anos, para consultar
os filiados se o partido continua ou não.
“Prevemos a possibilidade de auto-extinção porque acreditamos que o mais
mais importante é a causa”, justifica.
Financiamento
A Rede Sustentabilidade também
quer sair na frente no campo do financiamento de campanhas eleitorais. O
modelo ainda não está definido, mas a
ideia é criar limites de contribuição tanto para pessoa física ou jurídica. A proposta, no entanto, não tem impressionado. “A legislação eleitoral já limita um
máximo de 2% do faturamento das empresas nas contribuições para campanhas. É um discurso enviesado”, afirma
Antônio Augusto Queiroz, do Diap.
Segundo Pedro Ivo, também serão rejeitadas as contribuições de empresas
do ramo de tabaco, agrotóxicos e armas. “Quando a gente pensa em empresa, só pensa em empresa grande, mas se
esquece que a grande maioria é de pequenos e médios empresários que podem e querem contribuir. O PT recebe
de empresário. O [Marcelo] Freixo [deputado estadual pelo PSOL/RJ] recebeu
do Guilherme Leal [empresário dono da
Natura]. Isso é legítimo, mas a gente
quer mudar a lei. Um cara que dá R$ 5
milhões para uma campanha é diferente do que alguém que dá R$ 100 mil. As
campanhas tem que ser limitadas para
não estabelecer zonas de desconforto”,
argumenta. (PR)
8
de 14 a 20 de março de 2013
brasil
Mais expansão de planos privados,
menos fortalecimento do SUS
Jadson Marque/Folhapress
SAÚDE PÚBLICA
Diferentes movimentos,
pesquisadores e
associações se manifestam
contra a possível medida
do governo federal de
apoio à expansão dos
planos de saúde privados
para as classes C e D
Viviane Tavares
do Rio de Janeiro (RJ)
A AGENDA da presidenta Dilma Rousseff no dia 26 de fevereiro não anunciava uma reunião com empresários do setor de saúde, mas a matéria do jornal Folha de S.Paulo apurou que ela se reuniu
com cinco ministros de Estado, integrantes da área econômica e representantes
do Bradesco, Qualicorp e Amil. A reportagem entrou em contato com a assessoria de imprensa da presidenta, que negou
o compromisso, mas, mesmo com a reação provocada por diversas frentes, não
se pronunciou publicamente para desmentir o encontro. O mistério sobre a
reunião ainda será desvendado, mas o
assunto ajudou a trazer à tona mais uma
vez o crescimento do setor privado na
saúde brasileira.
De acordo com a matéria, a suposta reunião seria para a análise por parte
do Executivo para a ‘redução de impostos, maior financiamento para melhoria
da infraestrutura hospitalar e a solução
da dívida das Santas Casas’. Em troca, o
governo exigiria ‘uma série de garantias
para o usuário’, com o objetivo de ‘facilitar o acesso de pessoas a planos de saúde
privados, com uma eventual redução de
preços, além da ampliação da rede credenciada’, além de ‘forçar o setor a elevar
o padrão de atendimento’, como diz a Folha de S. Paulo.
Para o professor do Departamento de
Medicina Preventiva da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo (USP) Mário Scheffer este fato não
se mostrou inusitado, mas a novidade
que é apresentada são os protagonistas.
“Um deles é a Qualicorp – que é uma intermediadora de planos de saúdes, que
cresceu muito nos últimos tempos e tem
um histórico agressivo de financiamento de campanhas políticas, – na última
eleição apostou para todos os lados financiando tanto a campanha da Dilma
quanto do Serra e de alguns governadores. Além disso, conseguiu emplacar o
presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) [ex-diretor presidente Maurício Ceschin que foi superintendente da Medial Saúde e da Qualicorp]. Outra novidade que faz a diferença é a entrada do capital estrangeiro.
Até então, o setor suplementar só existia
com o nacional, mas vimos recentemente o maior negócio da saúde brasileira
que foi a compra da Amil”, aponta Mario, completando: “Estes segmentos estão fazendo prospecção de outros mercados desde a reforma do Obama. E estas ações estão sendo anunciadas há algum tempo. Basta acompanhar o Valor
Econômico, a revista Exame, a entrevista que o dono da Amil deu para as páginas amarelas da Veja. A intenção deste
capital é ampliar massivamente o acesso
a planos de baixo preço. O que vem à tona são esses dois protagonistas tentando materializar esta intenção”.
Por outro lado, o pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Geandro Pinheiro analisa a postura da presidenta Dilma Rousseff neste episódio, que, segundo ele, tem o propósito de dar resposta à
demanda da população por saúde, além
de fortalecer um modelo de desenvolvimento pautado pelo consumo. “A saúde como um todo está sendo questionada de todos os lados, e isso foi colocado
para a presidenta como uma das áreas
mais críticas, portanto, ela tem que dar
uma resposta para as pessoas. E ela está dando e tem um apelo popular muito forte. A reforma sanitária não é algo que esteja na mente das pessoas, se
dentro da própria reforma não há univocidade, imagina para a grande população? As pessoas querem saúde. Isso é
dar uma resposta com um apelo popular fortíssimo e de uma marca de governo que será marcado por ampliar acesso da população, não se importando de
que forma se dá este acesso. Além disso,
podemos fazer uma ligação com a estratégia de consumo para o modelo de desenvolvimento, como em qualquer outra política do governo atual, mais forte ainda nestes dois últimos anos. Podemos ver, por exemplo, o Vale Cultura, que financia revista, TV a cabo...Ou
seja, está vinculando aquilo que sai co-
Pacientes são atendidos em macas no corredor do Hospital Estadual Rocha Faria, no Rio de Janeiro
mo preceito de direito para uma questão vinculada ao consumo. Se analisarmos, todas as políticas estão tendo este
norte: de ampliar o acesso ampliando o
consumo”, analisa.
Crescimento do setor privado
Vale lembrar que os incentivos e parcerias previstos são para um setor que já
está dando certo há algum tempo. Baseado em dados do Instituto de Estudos de
Saúde Suplementar (Iess), o ano de 2012
foi mais do que satisfatório para o setor,
já que a variação dos custos médico-hospitalares, ou seja, os valores pagos pelos
serviços e procedimentos realizados, foi
de 16,4%, quase três vezes maior do que a
variação da inflação geral (IPCA) que foi
de 6,1%. “A tendência de crescimento observada durante o ano de 2011 continuou
no primeiro semestre de 2012, de forma
que o índice atingiu o maior valor já observado desde o início da série histórica.
O maior valor registrado anteriormente
foi em 2009 (14,2%), logo após a crise de
2008”, aponta o estudo.
No entanto, o crescimento dos serviços ofertados deste setor não tem acompanhado a mesma escalada dos lucros.
A cobertura dos planos de saúde é cada vez mais criticada pelos usuários. Como resultado disso, no dia 6 de março
foi publicada no Diário Oficial uma nova medida por parte da ANS. A partir de
7 de maio, quando a norma entrou em
vigor, todas as negativas a beneficiários
para a realização de procedimentos médicos deverão fazer a comunicação por
escrito, sempre que o beneficiário solicitar. De acordo com a assessoria de imprensa da ANS, durante o ano de 2012, a
agência recebeu 75.916 reclamações de
consumidores de planos de saúde. Destas, 75,7% (57.509) foram referentes a
negativas de cobertura.
vatização do SUS, como as Organizações
Sociais (OS), as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips),
as Fundações Públicas, a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) e Parcerias Público-Privadas
(PPP) como prejudicais ao sistema de
saúde pública. “Contra fatos não há argumentos: o crescimento se deu de 34,5
milhões, em 2000, para 47,8 milhões,
em 2011, tendo o Brasil se tornado o 2º
mercado mundial de seguros privados,
perdendo apenas para os Estados Unidos da América”, lembra. E completa:
Há uma entrega acelerada para a gestão do setor privado, através da expansão dos chamados novos modelos de
gestão, que têm sido denunciados como formas de intensa corrupção. Através destas organizações, o fundo público se torna mais facilmente transferido para o grande capital internacional
e seus sócios internos, como os grandes
O crescimento dos serviços ofertados
deste setor não tem acompanhado
a mesma escalada dos lucros. A
cobertura dos planos de saúde é cada
vez mais criticada pelos usuários
“Em São Paulo, por exemplo, 60% da
população tem planos de saúde, mas, para os usuários, eles estão virando um tormento. Estamos dando subsídio público com a promessa de que o serviço de
saúde vai melhorar, mas com a estrutura atual, eles não conseguem suportar a
quantidade de pessoas que vem crescendo. A conta não está batendo e já chegamos a um colapso. Mas isso é resultado
da permissividade e conivência da ANS
que deixou que a expansão artificial deste mercado acontecesse. A solução apresentada agora para resolver isso é construir rede, puxadinho dos hospitais próprios, mas, para isso, as operadoras querem dinheiro do BNDES, vários tipos de
isenção ...É quase um Programa de Universidade para Todos (Prouni) da saúde ou um Programa de Aceleramento
do Crescimento (PAC) das operadoras”,
analisa Mario.
A professora da Faculdade de Serviço Social da Uerj Maria Inês Bravo concorda que há um crescimento progressivo do número de usuários de planos de
saúde e aponta outros modelos de pri-
laboratórios de análises clínicas e clínicas de imagem privadas, a maioria parte dos grandes conglomerados financeiros”, denuncia Maria Inês.
Mário acredita que este crescimento
dos planos de saúde é ainda mais grave
do que os modelos de gestão mostrados
até agora. “Este movimento interfere totalmente no sistema de saúde que queremos. A ampliação dos usuários de planos
de saúde para ¼ da população é uma fatia imensa se comparados a outros sistemas universais, de atendimento integral.
Nestes outros países que oferecem sistemas de saúde semelhantes ao SUS, o plano de saúde faz um papel suplementar de
10 a 15% no máximo. Agora aqueles onde a participação dos planos de saúde se
amplia, se transformam em sistemas duplicativos, e isso resulta nos piores sistemas, nos mais caros, nos mais ineficientes e que mais se afastam da equidade e
integralidade”, aponta.
Manifestações contra o
desmonte do SUS
Entidades alertam que
o resultado é a falta de
profissionais, a ineficiência
da rede básica de serviços
e o atendimento de baixa
qualidade à população
do Rio de Janeiro (RJ)
Em menos de uma semana, diversos
segmentos da saúde se manifestaram
contra as medidas citadas pela reportagem da Folha de S.Paulo. Em nota, a
Associação Brasileira de Saúde Coletiva
(Abrasco) pronunciou sua posição contrária a este movimento de ampliação do
sistema particular de saúde: “É uma proposta inconstitucional que significaria
mais um golpe contra o sistema público
brasileiro. E o pior: feita por quem deveria defender a Constituição e, por conseguinte, o acesso universal de todos os
brasileiros a um sistema de saúde público igualitário.
“Sistemas de saúde controlados
pelo mercado são caros,
deixam de fora idosos, pobres
e doentes, são burocratizados e
desumanizados, pois as pessoas
são tratadas como mercadorias”
Além de inconstitucional, a proposta
discutida é uma extorsão. Na prática, é
uma escandalosa transferência de recursos públicos para o setor privado. Aliás,
recursos que já faltam, e muito, ao SUS.
O SUS é um sistema não consolidado,
pois o gasto público com saúde é muito
baixo para um sistema de cobertura universal e atendimento integral. O resultado é a falta de profissionais, a ineficiência
da rede básica de serviços e o atendimento de baixa qualidade à população”.
A Frente Nacional contra a Privatização da Saúde também se pronunciou na
tarde de ontem em relação ao ocorrido
com um manifesto publicado em seu site.
“Tal política não responde aos interesses
da maioria da nação: sistemas de saúde
controlados pelo mercado são caros, deixam de fora idosos, pobres e doentes, são
burocratizados e desumanizados, pois as
pessoas são tratadas como mercadorias.
Se o SUS hoje não responde aos anseios
populares por uma saúde universal de
qualidade de acordo com a Constituição
de 1988 não é pelas deficiências do modelo – há modelos de sistemas universais
como Reino Unido e Cuba, amplamente
bem considerados pela população e com
indicadores de saúde melhores dos que o
sistema de mercado da nação mais rica
do planeta, os EUA – mas porque os governos não alocam recursos suficientes,
não cumprem a legislação e porque a democracia, expressa no controle da sociedade sobre o sistema de saúde, não é respeitada”, diz o manifesto.
Outros pesquisadores como Ligia Bahia,
Luis Eugenio Portela e Mário Scheffer
expuseram sua opinião em relação ao
caso com a publicação do artigo ‘Dilma vai acabar com o SUS’ publicado
no dia 5 de março, também na Folha de
S.Paulo. No artigo, estes pesquisadores relembram que, além de contribuir
com impostos, os cidadãos e empregadores “serão convocados a pagar novamente por um serviço ruim, que julgam
melhor que o oferecido pela rede pública, a que todos têm direito. Em nome
da limitada capacidade do SUS, o que
se propõe é transferir recursos públicos
para fundos de investimentos privados”. (VT – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio /Fiocruz)
cultura
de 14 a 20 de março de 2013
9
Bola de sebo e a
diligência
Reprodução
CULTURA O que une
Maupassant a John Ford
e Ettore Scola?
Maria do Rosário Caetano
de São Paulo (SP)
O QUE UNE o escritor Guy de Maupassant aos cineastas John Ford e Ettore Scola? Para responder a esta pergunta, faz-se necessário recuar a 1880,
ano em que Bola de Sebo, um conto longo de Guy de Maupassant, foi publicado
numa antologia que tematizava a guerra. O conto causou sensação imediata e
somado a outros, muito disputados pelos jornais da época, transformaria Maupassant em um dos mais respeitados ficcionistas franceses de todos os tempos.
Ao morrer, sifilítico e louco, em 1893,
três meses antes de completar 43 anos,
Maupassant desfrutava de tamanha fama e glória, que Paris inteira o pranteou.
Dezenas dos maiores escritores do século 19 foram homenageá-lo.
Émile Zola (1840-1902), autor de Germinal e organizador da antologia de contos que revelou Maupassant ao grande público, dedicou ao amigo comovida
saudação: “Não conheci outro escritor
que tenha vivido estreia tão feliz, de sucesso mais rápido e mais unânime. Aceitávamos tudo dele; aquilo que teria chocado na pluma de outro, era dele recebido com um sorriso. Ele satisfazia todas as
inteligências, tocava todas as sensibilidades. Seu extraordinário talento, robusto
e franco, sem concessão a coisa alguma,
impunha-se de golpe à admiração e ao
afeto tanto do público letrado como dos
leitores comuns que permitiram carinhosamente a este artista original o direito
de crescer à parte”. Para arrematar: “Ele
pertencia à grande linhagem dos escritores franceses. Teve como predecessores
Rabelais, Montaigne, Molière, La Fontaine, os fortes e os lúcidos, aqueles que são
a razão e a luz de nossa literatura”.
“Não conheci outro escritor
que tenha vivido estreia tão
feliz, de sucesso mais rápido
e mais unânime”
Bola de Sebo, o conto (quase novela)
que projetou Maupassant do dia para a
noite, buscou seu título no apelido de
bela e roliça prostituta, Élisabeth Rousset, personagem que ocupa papel central
na narrativa. A moça de contornos avantajados viaja, entre nobres e burgueses,
numa diligência, que sai de Rouen rumo
ao Havre (na Normandia). A viagem será difícil, pois a Guerra Franco-Prussiana vive seus momentos finais e o Exército vitorioso, o da Prússia, ocupa a região
e humilha os franceses. Embarcam na
diligência dez passageiros: um vendedor
atacadista de vinhos (de reputação duvidosa), um rico empresário do ramo
da tecelagem e um conde, todos acompanhados de suas esposas, mais duas
freiras, um “democrata” (que aguarda a
queda de Napoleão III) e a roliça Bola de
Sebo. Os conflitos vividos pelos personagens dentro da diligência (e em seu entorno) servirão a Maupassant para que
construa esta obra-prima da ficção.
Outra data importante para que se estabeleçam as relações entre o ficcionista francês, o cineasta norte-americano
e o diretor e roteirista italiano é o ano
de 1939. Pródiga em grandes títulos cinematográficos, esta data faria história.
John Ford, ainda um irlandês em busca de fama na América, lança um western chamado No Tempo das Diligências
(Stagecoach). O fez depois que uma série de fracassos comerciais, no terreno do
bangue-bangue, desanimaram os grandes produtores de Hollywood. Era notável o desinteresse pelo gênero. Afinal, as
fitas que antagonizavam mocinhos e bandidos só vinham atraindo público masculino e pouco exigente. Ford, que mais tarde seria reconhecido como “o Homero
das pradarias”, insistiu no projeto e pediu
a seu roteirista (Dudley Nicols) que fizesse acréscimos românticos e humorísticos
à estória. Nicols ampliou a relação amorosa entre Stella Dallas, uma prostituta
(Claire Trevor), e o vaqueiro Ringo Kid
(John Wayne), ampliou tiradas cômicas
e acrescentou uma mulher grávida entre
os passageiros da diligência cujo destino
era Lordsburg. O grupo enfrentaria viagem difícil, pois ataques de índios eram
esperados a qualquer instante.
Cartaz de adaptação cinematográfica francesa de Bola de Sebo, de 1945
Nem o recurso do par romântico,
acrescentado ao roteiro, convenceu os
grandes estúdios. O filme foi feito sem
a chancela de uma grande empresa produtora e com orçamento dos mais modestos. Lançado, arrebatou o público,
conheceu sucesso imenso, reabilitou o
western e transformou Ford num dos
mais respeitados diretores de cinema do
mundo. Nos créditos de No Tempo das
Diligências, uma referência literária:
baseado no conto Stage to Lorsburg, de
Ernest Haycox.
Em 1982, o cineasta Ettore Scola realizou Casanova e a Revolução (La Nuit
de Varennes), drama histórico de imenso fôlego, protagonizado por elenco estelar: os italianos Marcello Mastroianni e Laura Betti, a alemã Hanna Schygulla, o norte-americano Harvey Keitel
e os franceses Jean-Pierre Barrault, Jean-Claude Brialy e Jean-Louis Trintignant. Uma diligência atravessa a França, rumo a Varennes, numa bela noite de
junho de 1791. Nela estão, disfarçados, o
Rei Luiz XVI, a rainha Maria Antonieta
e filhos. Rei e rainha, depostos pela Revolução Francesa de 1789, estão fugindo
(com apoio de financistas que bancam a
empreitada) ao encontro de tropas leais
à monarquia. Mas Ettore Scola e seu coroteirista Sérgio Amidei não estão interessados na realeza. O que lhes interessa é outra diligência, que parte de Paris,
poucas horas depois da que primeiro tomou o rumo de Verdun.
“Ele pertencia à grande linhagem
dos escritores franceses. Teve
como predecessores Rabelais,
Montaigne, Molière, La Fontaine”
Na segunda diligência, a que prenderá nossa atenção por 2 horas e meia, estão uma condessa (Hanna Schygulla)
e seu cabeleireiro maneirista (Brialy),
uma burguesa que fabrica champagne (Andrea Ferreol), uma cantora lírica de comportamento airoso (Laura Betti), dois intelectuais, Restif de la Bretonne (Barrault) e Tom Payne (Keitel), entre outros personagens. No início da jornada, encontrarão Giácomo Casanova,
já sexagenário, que viaja num cabriolé.
Um acidente na estrada deixará o “don
juan” veneziano à beira do caminho,
aguardando socorro. Os passageiros da
diligência farão questão de tê-lo a bordo.
Em seu lugar, vigiando seus pertences,
ficará o ajudante da condessa. O grupo
partirá, rumo a Verdun.
Maupassant-Ford-Scola – O que têm,
em comum, o conto Bola de Sebo e os filmes No Tempo das Diligências e Casanova e a Revolução?
Quem ler a obra-prima de Guy de
Maupassant (a Companhia das Letras
lançou, recentemente, magnífica edição
intitulada 125 Contos de Maupassant Escolhidos por Noemi Mortiz Kon) e,
depois, assistir, em DVD, aos filmes de
John Ford (Continental) e Ettore Scola (Versátil) verá que eles têm muito em
comum. Maupassant fertilizou No Tempo das Diligências. Fertilizou, também
(e junto com o filme norte-americano)
Casanova e a Revolução.
Quem consultar apenas a ensaística
anglo-saxã, nada encontrará sobre o assunto. Centenas de estudos foram dedicados a John Ford, a seus filmes e, em especial, a No Tempo das Diligências. Há
quem (caso do britânico Edward Buscombe) dê ao roteirista Dudley Nicols
papel central na história do filme. Seu
roteiro, escrito a partir da obra de Ernest Haycox, seria importantíssimo para o êxito do projeto. A competência de
Ford, ao transformar o roteiro em imagens, completava o filme que hoje tem
status de obra-prima do western.
Quem faz justiça a Guy de Maupassant são os franceses. André Bazin
(1918- 1958), no livro O Cinema – Ensaios (Brasiliense, 1991) analisa o western de Ford com sua acuidade costumeira: “Nota-se, com efeito, que a divisão dos bons e dos maus só existe para
os homens. As mulheres de alto a baixo
da escala social, são, de qualquer modo,
dignas de amor, pelo menos de estima e
piedade. A menor meretriz é ainda redimida pelo amor ou pela morte – esta última, aliás, lhe é poupada em No Tempo das Diligências, cujas analogias com
Bola de Sebo, de Maupassant, são bem
conhecidas”.
Jean Tulard, em seu Dicionário de Cinema – Os Diretores (L&PM, 1996), registra: “Esse grande clássico – No Tempo das Diligências – transpunha Bola
de Sebo, de Maupassant, para o faroeste: o retrato dos passageiros da diligência explorado de maneira pouco habitual
e o ataque dos índios (um brusco movimento de câmera) os revelava atrás dos
rochedos”.
Em dezembro de 1998, Ettore Scola
recebeu homenagem do Festival do Novo Cinema Latino-Americano, em Havana. Perguntei a ele se Casanova e a Revolução tomara No Tempo das Diligências como uma de suas fontes de inspiração. O diretor italiano respondeu: “Pode
ser. Mas não passaria, neste caso, de um
ponto de partida, já que o filme de Ford
é muito emocionante, cheio de perseguições e mortes. O meu, ao contrário, tem
pouca ação. O que me interessava era ter
um grupo de pessoas conversando dentro de um espaço fechado. Usei a diligência porque este era o meio de transporte da época, e porque gosto de ambientar
meus filmes em espaços reduzidos, fechados. Acho bem mais fácil mergulhar
fundo nos personagens, se por trás deles
não há uma natureza aberta. Já encerrei
meus personagens em um apartamento (Um Dia Muito Especial), em um terraço (La Terazza), em um salão de baile (O Baile), em um restaurante (O Jantar). Em La Nuit de Varennes encerrei
meus personagens numa diligência. Sabe-se que lá fora o povo comemora seu
triunfo revolucionário e os reis estão em
fuga. Mas não me interessava falar de
reis depostos. Por isto, como meu interesse maior era a conversa de meus personag ens, reuni dentro da diligência, um
Casanova (1725-1798) já decrépito, um
escritor, Restif de la Bretonne, um revolucionário americano, Tom Payne (17371809), uma mulher elegante, Sofie de la
Borde, uma rica produtora de champagne, um proprietário de terras, etc. Tomei
a liberdade de colocá-los juntos e a somar a eles personagens fictícios”.
Nobres e empresários
desprezam Bola de Sebo,
mas não deixarão de
implorar a ajuda dela
quando, espremidos
pelos tempos de guerra,
sentirem fome
Ettore Scola, que situou sua narrativa em junho de 1791, 23 meses depois
da Revolução Francesa, detalhou sua
opção pelo embarque de dois personagens estrangeiros (o inglês Tom Payne e
o grande amante veneziano, Casanova)
na diligência rumo a Varennes: “Payne, que nasceu na Inglaterra, foi para os
EUA e tomou o partido dos revoltosos
da Guerra da Independência. E apaixonou-se pela Revolução Francesa, escrevendo muitos textos sobre ela. Já Casanova não estava no caminho da Revolução Francesa. Mas escreveu páginas de
ódio contra ela. Creio que fez isso porque a Revolução aconteceu à revelia dele, que então já estava velho e abandonado pelas mulheres”.
Reinvenção e não plágio
Ford e Scola são, não há como negar,
tributários de Maupassant. Mas não
plagiaram o magistral conto francês. O
reinventaram. Cada um a seu modo.
A densa narrativa de Maupassant nos
fornece magnífico e cáustico retrato da
França de seu tempo. O oportunismo
dos poderosos é desenhado com a mais
fina ironia. Nobres e empresários desprezam Bola de Sebo, mas não deixarão
de implorar a ajuda dela quando, espremidos pelos tempos de guerra, sentirem
fome. Afinal só ela cuidou de encher um
cesto com saborosos víveres. E a endeusarão, relativizando suas posturas morais, quando um militar prussiano exigir da roliça prostituta ato vil. Afinal, este ato, se consumado, poupará a vida de
todos os passageiros da diligência. Com
o intento alcançado, voltarão a desprezá-la como reles meretriz.
125 Contos de Guy de Maupassant
(Escolhidos por Noemi Mortiz Kon) – (Companhia
das Letras, 822 páginas, São Paulo, 2009)
No Tempo das Diligências (Stagecoach) - De
John Ford (EUA, 1939). Disponível em DVD pela
Continental (97 minutos).
Casanova e a Revolução (La Nuit de
Varennes) – De Ettore Scola (França-Itália/1982)
– Disponível em DVD pela Versátil (126 minutos)
10
de 14 a 20 de março de 2013
cultura
O feitiço da vila
CONTO Naquela noite, cuidou bem de
escolher as palavras; sabia que a partir
daquele momento cada música seria
uma parte importante da conversa
com Gil, sua avó e o povo de lá
sol ameaçava se esconder. A bruxa ruiva desceu as escadas correndo e quase
tropeçou nele.
– Ainda por aqui? Menino, sua família já deve estar preocupada! Sobe no
carro que eu te levo... mas vem rápido,
que estou atrasada.
Gil gelou por alguns segundos. Andar por aí com a bruxa, imagine só! E se
ela desviasse do caminho? Se resolvesse transformá-lo num sapo, num rato...
estava perdido. De toda forma, era melhor aceitar a carona do que ter que passar pelas sentinelas militares na saída
da cidade. Entrou, mudo. Depois de algum tempo rodando, criou coragem sabe lá de onde e perguntou de uma vez:
– O que a senhora tanto carrega dentro dessa mala preta?
– Essa aqui, perto do seu pé? Tem
discos.
– Como?
– Discos, de vinil, sabe? Pra tocar música.
– A senhora leva música pra tocar na
festa das bruxas?
A mulher teve de parar para se recompor. Quase perdera o fôlego de tanto rir.
– Que festa, que bruxa, menino! Eu
levo pra tocar na rádio, onde eu trabalho. Vocês não ouvem rádio lá no morro?
Gil ouvia, e como. A avó, liderança da
comunidade, trazia em si toda a sabedoria dos primeiros habitantes dali. Povos
nativos e os que foram trazidos escravizados, como ela dizia. Ela mesma, meio
negra meio índia, agregava famílias, resolvia contendas, aconselhava os mais
jovens e era muito respeitada. Falava
palavrão, e falava mal do governo e dos
soldados armados. Entre outras coisas,
saía chamando a todos nos fins de tarde
para juntos escutarem a rádio local na
calçada em frente a sua casinha.
– Sabe, dona; a minha avó gosta muito do seu programa. Faz toda a gente
ouvir, precisa de ver. Ela diz que a gente
tem que escutar as coisas que a senhora
toca, que isso é que é música boa, música de preto, de trabalhador... Que o lixo
que ficam passando serve pra emburrecer o povo, abaixar a cabeça, sabe? Pra
esses milicos tudo que agora tem andado por aqui. Eu vou contar pra ela que a
senhora é uma bruxa boa, vai ficar bem
orgulhosa de eu ter descoberto o segredo da sua maleta!
A bruxa chorou, discretamente. Deixou Gil na esquina e voou para o estúdio. Naquela noite, cuidou bem de escolher as palavras; sabia que a partir daquele momento cada música seria uma
parte importante da conversa com Gil,
sua avó e o povo de lá.
Jade Percassi
IMAGINE O QUE seria crescer no início dos anos de 1970, numa vizinhança
em que diferentes países, povos e culturas estão presentes. Para Gil, acompanhar o pai no trabalho de jardinagem
das casas daquele bairro era a chance
de experimentar um pouquinho de outros mundos, escutar conversas ininteligíveis e ficar imaginando de onde vinha
aquela gente – e por que tinham vindo
parar ali. Era uma pacata vila de pescadores, que por causa do porto e do petróleo inchara rapidamente, sem muito
planejamento e com segurança ostensiva – exército, marinha e aeronáutica se
orgulhavam de patrulhar a “área de segurança nacional”.
Para os caiçaras, como Gil, as mudanças vinham cheias de contradições; a
urbanização e o chamado desenvolvimento traziam gente, dinheiro e tecnologia, mas também a destruição da natureza e de muitos de seus hábitos e relações sociais. Menino que era, não fazia muito conta de onde aquilo tudo ia
dar; bastava-lhe no contraturno da escola poder entrar com o pai nas casas
dos japoneses, turcos, belgas, armênios,
gregos, coreanos, italianos que se estendiam pela orla. De cada uma, guardava
um gosto, um cheiro, uma sonoridade.
Mas tinha uma, no pé do morro da praia
deserta, que lhe dava calafrios.
Era uma casa feita para gigantes, pensava. Um chalé de madeira, tipo suíço,
em plenos trópicos; pé direito altíssimo
e piso de azulejos descombinados. A família que o habitava era a mais esquisita: não usavam lenços, nem tinham
o corpo coberto por tatuagens, nem tinham altares para seus deuses (tudo isso e muito mais Gil conhecera com os
estrangeiros) – mas eram todos brancos como vampiros. Os adultos, de cabelos ruivos e olhos claros, conversavam falando em línguas diferentes entre si; as crianças, muito loiras, pareciam viver num mundo à parte. Era lá
que morava a bruxa.
Ela não era feia, ao contrário; tratava-se de uma bela mulher; mas trocava o dia pela noite e tinha aquela mania de chamar todos os que estivessem
por ali ao cair do sol para sentar à mesa
e comer. Gil mal conseguia levantar os
olhos, restringia a comunicação em voz
baixa, quase inaudível, com as crianças
Alba-CC
ao seu lado. Cada dia tinha uma surpresa – o avô da casa demonstrava igual
entusiasmo se a refeição consistisse em
canapés e champanhe ou refresco e pão
com mortadela. “Temos que celebrar
porque estamos comendo!” dizia, alto,
cheio de sotaque. Todo mundo se servia
do que quisesse, o quanto quisesse; só
havia uma regra: não podia sobrar. Certa vez, Gil acompanhou o sermão dado
pela avó ao menor dos meninos. “Este
país não passou por uma guerra, vocês
não podem se dar ao luxo de desperdiçar; tudo o que está nessa mesa é comida!” repetia, consternada.
Mas voltando à bruxa, que mais intrigava Gil, esta tinha entre suas esquisitices uma mala preta. Quando porventura calhava de ir no sábado naquela casa, bem na hora em que saía com seu
pai (perto do por do sol) lá vinha ela,
de óculos escuros e maleta na mão. Será que havia outras bruxas na vila, Gil
se perguntava, e elas se encontram para trocar e experimentar receitas de feitiços e bruxarias? Não demorou muito a
descobrir.
“Este país não passou por uma
guerra, vocês não podem se dar
ao luxo de desperdiçar; tudo o que
está nessa mesa é comida!”
Naquele sábado, veio sem o pai. Gastou horas recolhendo as flores do ipê
amarelo e cuidando das mudinhas miúdas no jardim. Quando deu por si, já o
Jade Percassi é educadora popular e
militante do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST).
www.malvados.com. br
dahmer
PALAVRAS CRUZADAS
Horizontais: 1.Maior ave brasileira – Medida de controle dos meios de comunicação que
a presidenta Dilma ainda não teve coragem de implementar. 2.Sexta nota musical – Veículo de duas rodas – Agência Nacional de Águas. 3.Parcela em um conjunto de valores – Instituto responsável pelas necrópsias e laudos cadavéricos para Polícias Científicas. 4.“Arte”,
em inglês. 5.Reunião de cardeais para a eleição de um papa – Desmoronar. 6.Rumo
– Travessura. 7.Monarcas. 8.“Casa”, em tupi – Presidente venezuelano que acaba de falecer
de câncer, apesar das suspeitas de que possa ter sido alvo de um atentado assim como
aconteceu com Arafat. 9.Interjeição de aborrecimento – Os barracos de um acampamento
sem-terra são feitos desse material. 10. O oposto de “noite” - Maneira sulista de dizer “menino” - Um espécie de canário que se encontra na Venezuela. 11.Como ficou conhecida a
série de manifestações que tomaram as ruas de países como Egito e Tunísia.
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Horizontais: 1.Ema – Regulamentação. 2.Lá – Moto – ANA. 3.Cota – IML. 4.Art. 5.Conclave
– Ruir. 6.Rota – Arte. 7.Reis. 8.Oca – Hugo Chávez. 9.Pô – Lona. 10.Dia – Piá – Tarin. 11.Primavera árabe.
Verticais: 1.Elenco – DP. 2.MA – Rir. 3. Ai. 4.Mó – Crack. 5.Rótulo. 6.ETA – Ata. 7.GO – Vá – Hoje. 9.LA – Lugo. 10.Ant – Pá. 11.Má – RO – Cair. 12.Mau – AA. 13.Ritual. 14.ITR – Vote. 15.ACM
– Arena. 16.Rezar. 17.Ti. 18.Palestina.
Verticais: 1.Lista de pessoal de uma companhia teatral – Delegacia de Polícia (sigla).
2.Estado (sigla) comandado pela oligarquia Sarney – Dar risada. 3.Interjeição de dor.
4.Forma coloquial de falar “muito” - Droga que tem esse nome em inglês porque ao usála escuta-se o estourar de “estalos”. 5.Etiqueta. 6.Movimento separatista do País Basco que
anunciou o seu fim em 2011 – Registro de uma reunião. 7.Dom Tomás Balduíno nasceu
neste estado (sigla) – Exclamação de encorajamento – Diz- se “oggi”, em italiano. 9.Sigla
para Los Angeles, nos Estados Unidos – Presidente paraguaio que em 2012 sofreu um
golpe de Estado. 10.“Formiga”, em inglês – Parte mais larga do remo. 11.Malvada – Sigla
do estado de Rondônia – Tombar. 12.Movimento que contou com a participação de Gonzaguinha e Ivan Lins - Grupo de apoio no combate ao alcoolismo. 13.Conjunto de regras,
cerimônia. 14.Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural – Eleja. 15.Iniciais de político
baiano falecido - Aliança Renovadora Nacional. 16.Orar. 17.Pronome pessoal. 18.Estado
ocupado por Israel.
internacional
de 14 a 20 de março de 2013
11
Uma Igreja sem Papa?
Valter Campanato/ABr
OPINIÃO Cedo ou tarde a
Igreja terá de democratizar
sua estrutura de poder.
Torná-la mais colegiada
Frei Betto
MEU MESTRE em história da Igreja,
Eduardo Hoornaert, de quem fui aluno
no curso de teologia, faz uma proposta
ousada, mas não descabida: uma Igreja
Católica sem papa!
À primeira vista, soa como uma heresia. Tão assustadora como se propor, no
século 19, um Brasil sem imperador, uma
Rússia sem czar, uma Áustria sem rei.
O papado não é uma instituição de origem cristã. A palavra “papa” não figura
no Novo Testamento. Derivar o papado
do versículo de Mateus 16, 18 – “Tu és
Pedro e sobre esta pedra construirei minha igreja” – é isolar o texto do contexto. Nada indica nos evangelhos que Jesus pensou em instituir uma dinastia
apostólica.
Foi o bispo Eusébio de Cesareia, mentor da política “globalizada” do imperador Constantino, que no século IV teve a iniciativa de redigir listas de sucessivos bispos para as principais cidades
do Império Romano, de modo a adaptar
a estrutura da Igreja ao modelo imperial
de sucessão de poderes. Eusébio criou a
imagem de Pedro-papa.
A palavra papa (pope), do grego popular do século III, deriva de “pater” (pai)
e expressa a estima dos cristãos por determinados bispos e sacerdotes. Chamar
o sacerdote de padre (pai) e o chefe religioso de pope (papa) tornou-se costume
nas Igrejas católica e ortodoxa. Ainda hoje, na Rússia, o pastor da comunidade é
chamado de pope.
Cipriano, bispo de Cartago (248-258),
foi o primeiro a ser chamado de papa. Em
Roma, o termo só passou a ser aplicado a
seu bispo a partir do século 6, com o papa
João I. Já o colégio de bispos, o episcopado ou conferência episcopal, tem raiz
cristã. Bispo significa “supervisor” e é citado diversas vezes no Novo Testamento
(1 Tm 3,2; Tito 1,7; 1 Pd 2, 25; At 20, 29).
Assim como o substantivo “episcopado”
(1 Tm 3, 1).
O Papa Bento XVI em visita ao Brasil em 2007
Todo poder centralizado gera rivalidades. A partir do século III teve início uma
acirrada disputa entre as quatro principais metrópoles do Império Romano –
Constantinopla (atual Istambul), Roma,
Antioquia e Alexandria. Os bispos dessas cidades eram conhecidos como “patriarcas”.
Cipriano não admitiu que o bispo de
Roma exercesse autoridade sobre ele,
bispo de Cartago. Insistiu que entre bispos deveria vigorar “completa igualdade
de funções e poder”.
O papado, herdeiro do legado imperial
de Constantino, tornou-se uma monarquia
absoluta (ainda hoje), com poderes sobre
reis e imperadores (não mais)
Porém Roma conseguiu se impor, sobretudo a partir de sua aliança com o imperador germânico Carlos Magno, em
800. Isso tensionou suas relações com
os patriarcas do Oriente e tornou inevitável o primeiro grande cisma da Igreja,
ocorrido em 1052, que marca o início do
que hoje se conhece por Igreja Católica
(romana), de um lado, e Igreja Ortodoxa, de outro.
O papado, herdeiro do legado imperial
de Constantino, tornou-se uma monarquia absoluta (ainda hoje), com poderes
sobre reis e imperadores (não mais). Essa estrutura piramidal de poder passou a
não diferir de todas as outras análogas na
esfera civil, marcadas por intrigas, traições, subornos, negociatas, nepotismo
etc., utilizando uma linguagem inacessível aos fieis (o latim) e trocando a arte de
convencer (e converter) pela força da coerção (aterrorizar): culpa, inquisição, inferno, medo, venda de indulgências etc.
Dizem que Stalin teria perguntado de
quantas divisões de exército dispunha o
papa. De fato, Roma, por sua habilidade diplomática, saiu vitoriosa em inúmeros embates com os principais poderes do Ocidente. Toynbee chegou a afirmar que a Igreja ficou afetada pela “embriaguez da vitória”.
Trancado no Vaticano, o papa passou
a viver numa esfera irreal, refém de uma
cúria mais interessada no apego ao poder
que na missão evangélica de levar aos povos a palavra de Jesus.
A modernidade balançou os alicerces
da Igreja. A liberdade de consciência,
o avanço das ciências, as novas tecnologias, o pluralismo ideológico, tudo is-
so desmistificou o papado. Pio IX, num
gesto de desespero, chegou a promulgar
o controvertido dogma da infalibilidade
papal, como se a história não registrasse
tanta falibilidade em papas que aprovaram torturas, sentenças de morte, assassinatos, simonia, adultério etc.
Leão XIII mudou a estratégia da Igreja e aliou-a aos mais fortes, ao lado dos
quais Bento XV comemorou o fim da Primeira Guerra Mundial. Pio XI apoiou
Mussolini, Hitler e Franco. Pio XII se
omitiu frente aos crimes de lesa-humanidade do nazifascismo.
O ciclo mereceu uma pausa com João
XXIII e, de certo modo, com Paulo VI,
que condenou a guerra do Vietnã e a ditadura militar brasileira. Mas prosseguiu
com o apoio de João Paulo II à ditadura Pinochet no Chile e à política agressiva de Reagan contra a Nicarágua sandinista. Bento XVI se omitiu frente aos recentes golpes de Estado em Honduras e
Paraguai.
Ao contrário da instituição do papado,
a do episcopado merece aplausos, sobretudo na América Latina entre 1960-1990,
com bispos mártires (Angelelli e Romero) e confessores (Helder Camara, Casaldáliga, Proaño, Evaristo Arns, Padim,
Mendez Arceo, Samuel Ruiz etc.).
O Concílio Vaticano II pretendeu valorizar os poderes dos bispos e reduzir o do
papa. Hoornaert pergunta: “Pode a França subsistir sem rei, a Inglaterra sem rainha, a Rússia sem czar, o Irã sem aiatolá? A própria história se encarrega de dar
a resposta”, diz ele.
Cedo ou tarde a Igreja terá de democratizar sua estrutura de poder. Torná-la
mais colegiada. O que se discute não é a
figura do papa, é a estrutura do papado.
Em suas cartas escritas durante o Vaticano II, e hoje publicadas, Dom Helder
diz ter sonhado que o papa enlouqueceu,
jogou sua tiara no rio Tibre e ateou fogo
no Vaticano.
Na opinião do ex-arcebispo de Olinda
e Recife, o papa deveria doar o Vaticano
à Unesco como Patrimônio Cultural da
Humanidade, e passar a residir em lugar
mais condizente com a sua condição de
sucessor de um pescador da Galileia e representante na Terra daquele que não tinha uma pedra onde recostar a cabeça.
Frei Betto é escritor, autor de Cartas da
Prisão (Agir), entre outros livros.
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de 14 a 20 de março de 2013
internacional
O último Pedro. Um brasileiro?
Elza Fiúza/Abr
CRISE NA IGREJA
A profecia feita em 1139
por um homem que
viria a ser canonizado
como São Malaquias
prevê que o papa a
ser escolhido para
substituir Bento XVI terá
o mesmo nome daquele
escolhido por Jesus
Marcelo Netto Rodrigues
de São Paulo (SP)
NEM TANTO POR uma profecia feita
por um bispo irlandês há 874 anos que
dom Odilo Pedro Scherer, 63 anos, aparece como um dos favoritos a ser o próximo papa. De acordo com vaticanistas, ele
é o “candidato perfeito” dos “poderosos
da Cúria” por ser “dócil e insípido”. Mais
do que isso, tem chances de ser escolhido por possuir outras quatro características desejáveis para quem quer chegar ao
trono de São Pedro: o trânsito com integrantes influentes do conclave, a idade, a
experiência em funções no Vaticano e a
liderança de uma das principais dioceses
da Igreja (a arquidiocese de São Paulo é a
terceira maior do mundo).
Pelo sim, pelo não, a profecia feita em
1139 por um homem que viria a ser canonizado como São Malaquias, por um
lado, também joga a seu favor. Ela prevê que o papa a ser escolhido para substituir Bento XVI terá o nome de Pedro
(ou no seu nome de batismo ou naquele a que vier escolher). Por outro, joga
contra, já que, se estiver correta, dom
Odilo, sendo o Pedro em questão, será o
primeiro papa brasileiro, mas também
o último da história da Igreja Católica.
O seu principal adversário, de acordo com alguns, seria uma alternativa
mais “progressista” do que ele, vinda
da América do Norte, possivelmente o
cardeal canadense Marc Ouellet. Já que
pesa contra o italiano Angelo Scola, o
cardeal favorito, um ditado popular italiano que diz que “quem entra papa no
conclave, sai cardeal”.
A recente morte de Hugo Chávez
também deve lhe dar pontos para que a
eleição se encaminhe em direção à escolha de um papa latino-americano. O cenário atual torna-se ideal para um “plano Wojtila” no continente, ou seja, um
papa que venha promover um freio no
chamado “socialismo do século XXI”
que se espalha pela região, num movimento semelhante ao que ocorreu com
a opção pelo polonês Karol Wojtila para
conter a influência do comunismo soviético no Leste Europeu.
O Vaticano parece ter encontrado um
rival à altura. Chávez foi o primeiro líder
mundial leigo de esquerda que ousou associar diretamente a imagem de Jesus e
de seu projeto no combate ao capitalismo. Nem Marx, nem Engels, Lênin, Che
ou Fidel o fizeram. Aos jovens do Bronx,
em setembro de 2005, Chávez disse: “No
começo, pensava que o capitalismo podia se humanizar, mas o capitalismo é o
demônio. É Judas que vendeu Cristo por
umas moedas. O socialista é Cristo, que
dá a vida pelos demais, que nos chama a
amar a todos, esse é o socialismo”.
Já em 2006, durante sessão nas Nações Unidas (ONU), chegou até mesmo a chamar Bush de “demônio”, dizendo que o cheiro de enxofre deixado
pelo então presidente dos Estados Unidos ainda pairava no ar, mesmo um dia
após ele ter estado lá fazendo uso da
mesma tribuna. Em resumo, para Chávez, em suas próprias palavras: “O socialismo é liberdade, amor e Cristo”.
A recente morte de Hugo
Chávez também deve lhe
dar pontos para que a
eleição se encaminhe em
direção à escolha de um
papa latino-americano
Pedros
Além da conjuntura favorável que se
apresenta, o gaúcho dom Odilo também
é o preferido do “carmelengo” Tarcisio
Bertone, maior autoridade no Vaticano
enquanto a sede estiver vacante. Bertone, durante o pontificado de Bento XVI,
encabeçou a disputa pelo poder no polo
oposto ao do cardeal Angelo Sodano, na
queda de braço na qual Ratzinger se viu
passado para trás.
A propósito, o próprio Bertone também é um “Pedro”, Pietro Evasio Bertone. Mais do que isso: nasceu numa cidade chamada “Romano Canavese”, o que
completaria quase que inteiramente a
O arcebispo de São, Paulo, Dom Odilo Pedro Scherer
profecia de Malaquias, que diz que o último papa da história se chamará “Pedro Romano” ou “Pedro II”. Mas contra
ele pesa a idade, 79 anos – já que após
um papa de transição, como Bento XVI,
escolhido quando já era idoso, tradicionalmente opta-se por um papa jovem
para que tenha um pontificado longo.
Além de dom Odilo, apenas outros dois
cardeais trazem Pedro em seu nome entre os 115 com direito a voto: o cardel de
Gana, Peter Turkson, 65 anos, e o cardeal da Hungria, Péter Erdo, 60 anos. Além
da idade ideal, 63 anos, e de uma vasta
experiência na Cúria, a origem de dom
Odilo também lhe favorece na disputa
por votos tanto entre cardeais europeus
quanto entre outros do “Sul”. De maneira que teríamos, assim, um “papa brasileiro”, mas descendente de alemães.
Fora isso, um dos seus irmãos o descreve como “vidrado” em fotografia e diz
que o religioso foi o primeiro da família
a usar a internet para se comunicar. “Ele
comenta que o futuro da igreja depende bastante desses meios de comunicação” - algo que o Vaticano também sabe
e tem insistido como característica imprescindível do próximo papa.
“Ele comenta que o
futuro da igreja depende
bastante desses meios de
comunicação”
E talvez tenha o ponto mais providencial de todos: dom Odilo é membro da
Congregação para o Clero da Comissão
Cardinalícia de Vigilância do Instituto
para as Obras de Religiões (IOR), instituto mais conhecido como Banco do Vaticano – um dos pontos centrais da renúncia de Ratzinger, por este estar envolvido em escândalos de corrupção e
por suas ligações com a máfia italiana.
Malaquias
Por sua vez, a profecia de Malaquias
não é a única que cita a existência de
um Pedro em um cenário em que o fim
da Igreja Católica é aventado. Há uma
expressão corrente que diz que assim
como a Igreja começou com um Pedro,
ela também terminaria com um. Daí a
possibilidade, a despeito da profecia, de
um próximo papa escolher o nome para
si de “Pedro II”, mesmo que ele não carregue Pedro em seu nome, numa alusão a uma urgente refundação da Igreja Católica.
Malaquias escreveu 112 sentenças
curtas fornecendo as características dos
papas católicos, desde Celestino II, em
1143, até o último pontífice que ocuparia o trono do Vaticano no meio de extremos sofrimentos mundiais. Em sua
última missa pré-conclave, já em Roma, dom Odilo Pedro falou do “momento difícil” por que passa a Igreja.
De acordo com a profecia de 1139, que
só foi publicada em 1595, o último papa
da história, o de número 112 (Ratzinger
era o de número 111) enfrentaria muitas
turbulências “na perseguição final à Igreja Romana”, antes do seu fim. A previsão
sobre o último papa, o de número 112, é
uma das únicas feitas por Malaquias que
vão além de uma frase. Escreveu ele: “Na
perseguição final à sagrada Igreja Romana reinará Pedro Romano, que alimentará o seu rebanho entre muitas turbulências, sendo que então, a cidade das sete
colinas [Roma] será destruída e o formidável juiz julgará o seu povo”.
No texto fala-se também de um
falso Santo Padre que teria o olhar
do demônio, os olhos do mal, que se
refugia numa fortaleza de cimento
Terceiro segredo de Fátima
Coincidências ou não, fato é que a
profecia do bispo Malaquias parece
também encontrar ressonância no terceiro segredo de Fátima, que apesar de
supostamente revelado por João Paulo
II durante visita a Portugal, no dia 13
de maio de 2000, ainda levanta suspeitas sobre o seu verdadeiro conteúdo. À
época, João Paulo II disse que o segredo
tinha a ver com o atentado que sofrera
em 1982. Mas os críticos contestam que
não, já que ele foi baleado e sobreviveu,
enquanto o segredo fala de um bispo
vestido de branco que morre assassinado em meio a uma cidade destruída ao
lado de outros cardeais.
Numa passagem supostamente redigida em 1944, pela irmã Lúcia – uma
das três crianças que afirmaram terem
recebido mensagens de Nossa Senhora
em Fátima, Portugal, em 1917 – a destruição de Roma aparece explícita. Mais
do que isso. O terceiro segredo é identificado com um nome: a “apostasia” na
Igreja. Ou seja, um afastamento definitivo e deliberado dos valores que a originaram. No texto fala-se também de
um falso Santo Padre que teria o olhar
do demônio, os olhos do mal, que se refugia numa fortaleza de cimento, com
ângulos quebrados e janelas semelhantes a olhos, com um bico no telhado do
edifício.
Impossível não associar “o olhar do
demônio” ao olhar que vemos nas sátiras a Ratzinger. Assim como a “fortaleza cinzenta, com ângulos quebrados e janelas semelhantes a olhos, [que]
tinha um bico no telhado do edifício”
à residência de verão dos papas onde
Ratzinger vai morar a partir de agora,
o Castel Gandolfo – que também é a sede do observatório astronômico do Vaticano, com suas duas respectivas cúpulas, que mais parecem dois olhos, que se
abrem para o passar de telescópios, como “um bico no telhado do edifício”.
Teoria da conspiração
Entre muitos daqueles que acreditam
nesses profecias apocalípticas, o início
do fim do Vaticano começaria a acontecer assim que uma grande liderança
mundial, defensora dos originais valores cristãos em contraponto aos valores
corrompidos, fosse assassinada. Seria
Chávez este líder? Já que apesar de ter
morrido de câncer, muitos acreditam
que não tenha morrido “de morte morrida”, mas sim de “morte matada”...
Até mesmo uma centúria de Nostradamus foi resgatada após a renúncia
de Ratzinger ter acontecido justamente
quando um meteoro do tamanho de um
ônibus se despedaçou em meteoritos
sobre o território russo. “O Homem de
Roma deixará seu posto; a fé humana
cobrirá com um véu; a morte, então, revelará seu rosto; enviando rochas e fogo do céu; o Reino do Czar sentirá o primeiro corte; e no mundo todo imperará
a morte; o morto abandonará o caixão,
para devorar a carne do irmão.”
Além disso, desde 2012, um planeta conhecido como Hercólubus, 66 vezes maior do que a Terra, já começa a
ser visto a olho nu. Acredita-se que ao
entrar na órbita da Terra, ou ao colidir com ela (já que alguns funcionários da Nasa falam de uma probabilidade de 30%) o eixo da Terra seria alterado drasticamente. Nesse sentido,
Hercólubus está sendo identificado por
muitos com a estrela Absinto, citada em
Apocalipse 8: 7-11.
Já a grande “meretriz” que aparece em Apocalipse, 17: 1-11, seria para
muitos, o próprio Vaticano corrompido, devido a sua apostasia, envolvendo sua rede de prostituição, pedofilia e
corrupção. E os sete reis que aparecem
na mesma passagem seriam os últimos
papas. “São também sete reis: cinco já
caíram, um subsiste, o outro ainda não
veio; e quando vier, deve permanecer
pouco tempo. Quanto à Fera que era e
já não é, ela mesma é um oitavo (rei).
Todavia, é um dos sete e caminha para
a perdição.” Isso porque, na prática, todos os papas que governaram o Vaticano após a sua criação em 1929 (após um
tratado assinado entre Benito Mussolini e o papa Pio XI) são reis.
Já a grande “meretriz” que aparece
em Apocalipse, 17: 1-11, seria
para muitos, o próprio Vaticano
corrompido, devido a sua apostasia
De maneira que, de lá para cá, existiram exatamente cinco papas antes de
Bento XVI. Ratzinger “subsiste” e o sétimo “ainda não veio”. “Quanto à Fera
que era e já não é” (seria a sombra de
Ratzinger que vai continuar a governar?), “ela mesma é um oitavo (rei)”.
“Todavia, é um dos sete e caminha para a perdição.”
Enfim, se as profecias tiverem algum
sentido, parece não restar mais dúvidas
de que aos olhos de Deus a verdadeira
igreja não está no Vaticano. Encontrase em quem sempre denunciou a apostasia na instituição. Entre aqueles que
lutam por justiça a partir da opção preferencial pelos pobres. Entre os que foram perseguidos por ela justamente por
apontarem seus descaminhos irreversíveis. Pessoas como Leonardo Boff, dom
Hélder Câmara, dom Pedro Casaldáliga,
dom Oscar Romero, Dorothy Stang, Ivone Gebara, dom Tomás Balduíno, Frei
Betto, dom Paulo Evaristo Arns, Irmã
Alberta, padre Giampetro Baresi, dom
José Gomes, Gustavo Gutiérrez, Camilo
Torres, Josimo Tavares e por aí vai.
Se o próximo papa for, de fato, um Pedro, de sobrenome Scherer, Turkson ou
Edro; ou se o cardeal eleito escolher para si o nome de papa “Pedro II”, aquela
expressão “o mundo está perdido” ganhará uma nova dimensão, deixando de
ser apenas simbólica.
américa latina
de 14 a 20 de março de 2013
13
O último adeus
VTV
MEMÓRIA
Venezuelanos enfrentam
filas quilométricas
para despedir-se de
Chávez e prometem dar
continuidade à revolução
bolivariana
Marina Terra
de Caracas (Venezuela)
MARIAM LÓPEZ, de 23 anos, é a última
na fila para ver o corpo de Hugo Chávez,
falecido em 5 de março. À frente estão
milhares de pessoas que, como ela, irão
esperar por mais de 10 horas para dar o
último adeus ao presidente venezuelano,
que repousa na Academia Militar, no Paseo de Los Próceres, Caracas.
No entanto, curiosamente, Mariam
não simpatizava com o líder venezuelano. “Mas sempre apoiei a revolução. Ainda não consigo acreditar que ele morreu”, diz, com lágrimas nos olhos. A motivação para enfrentar a via crúcis à qual
a multidão vermelha se submete desde a
morte de Chávez é seu “legado”, segundo ela. “Aqueles que antes não eram reconhecidos pela sociedade foram abraçados por esse governo.”
Se há uma unanimidade sobre Chávez
é que o filho de Sabaneta, estado de Barinas, transformou a Venezuela ao longo dos 14 anos em que esteve no comando. Após uma longa batalha contra
um câncer na região pélvica, o “comandante” deixou para os venezuelanos um
país menos desigual, soberano e, acima de tudo, orgulhoso, conforme afirmou o ex-presidente Luiz Inácio Lula
da Silva em sua homenagem ao amigo.
Assim como Lula, dezenas de outros líderes mundiais não economizaram elogios aos avanços promovidos por Chávez, indiscutivelmente uma das figuras
mais complexas e interessantes das últimas décadas.
E, em meio à comoção mundial pelo
desaparecimento físico do presidente,
venezuelanos e o mundo discutem suas
conquistas, seus erros e, de forma mais
urgente, se o processo revolucionário levado a cabo desde 1999 sobreviverá sem
sua presença. Além disso, em 14 de abril
a Venezuela realiza nova eleição presidencial, com um sabor de déja vu. O candidato oficialista Nicolás Maduro – indicado pelo próprio Chávez antes de partir
para Havana, em dezembro, para a última cirurgia – irá enfrentar Henrique Capriles, ex-rival do presidente no pleito de
7 de outubro de 2012.
Mesmo na morte, Chávez mais uma
vez irá orientar as linhas do próximo capítulo da história venezuelana. Na quilométrica fila que leva ao caixão do presidente, estão os personagens. “Chávez
pariu outra pátria”, define Miguel Rodríguez, de 26 anos, professor do ensino primário. Enquanto espera debaixo
do sol inclemente da capital venezuelana, ele garante que a Revolução Bolivariana seguirá em marcha. “Vim dar meu
adeus, mas também jurar ao presidente
que seguirei semeando o que ele plantou
na Venezuela”, diz.
O “mar vermelho” se despede de Chávez: reconhecimento da sociedade pelas transformações promovidas em seu governo
gonista de sua história. Hoje, na Venezuela, tanto apoiadores como opositores têm as ferramentas democráticas necessárias para alçarem sua voz, seja por
meio de eleições e plebiscitos, seja pela
introdução do conceito de poder comunal, ainda em desenvolvimento.
Conforme afirmou em artigo o jornalista Breno Altman, Chávez “não compreendia o papel do chefe de Estado como um árbitro acima das classes ou um
gestor de interesses supostamente comuns a todos, mas como um líder escolhido pela maioria do povo para representar determinado projeto de nação e
forjar a mobilização necessária para vencer seus adversários”.
Vem daí a forte identificação do povo
com o presidente. Muitos consideravam
Chávez um avô, pai, irmão, que, nesse
âmbito familiar, ajudou a guiar os venezuelanos por caminhos melhores. O presidente “é fruto do descontentamento, da
insatisfação, da raiva e do inconformismo popular. São sentimentos profundos,
assim como é a legitimidade por ele adquirida ao longo dos anos”, escreveu o
cientista político Gilberto Maringoni. Para ele, Chávez “será um mito excepcional, um mito concreto e palpável, muito diverso das criações da metafísica, por
sua influência decisiva e possivelmente
longa no futuro venezuelano.”
Frases como “Chávez somos todos”, ou
“Eu sou Chávez”, estampam adesivos, camisetas e a mente de milhões na Venezuela. Para eles, o presidente não vive-
“Vim dar meu adeus, mas
também jurar ao presidente que
seguirei semeando o que ele
plantou na Venezuela”
“É bonito ver como as pessoas respondem a um homem que desapareceu. Há
uma herança muito bela”, comenta Alipio Paredes, de 86 anos, militar aposentado. “Se estou cansada? Muito pelo contrário. Sinto-me viva, com alegria.
Não temos mais o presidente fisicamente, mas sim sua força, sua luta, sua história. Mesmo se eu passar um mês nessa fila, o sacrifício não chegará nem perto do dele por nós. Chávez é um sentimento”, afirma a aposentada Maria Flores, de 56 anos.
O que explica tamanha devoção? Talvez a erradicação do analfabetismo, a expressiva diminuição da desigualdade social – a Venezuela apresenta a sociedade com melhor repartição de renda da
América do Sul –, ou o mais acelerado
padrão de crescimento do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do subcontinente.
Também a impressionante diminuição da pobreza. De acordo com a Comissão Econômica para a América Latina da
ONU (Cepal), em 1999 — ano em que
Chávez assumiu o país — 49,4% da população venezuelana se encontrava abaixo da linha da pobreza, enquanto que em
2012 o número foi reduzido para 29,5%.
No entanto, mais além das transformações sociais e econômicas, Chávez foi
o responsável por um despertar nacional
e permitiu que a população fosse prota-
rá somente como um mito, mas também
como uma nova forma de viver.
Compromisso histórico
Assim como ela, Hernando Hernández Tapasco, congressista dos povos
indígenas da Colômbia e integrante do
Movimento Político e Social Marcha Patriótica, opinou que “temos um grande
compromisso histórico de seguir lutando pela segunda e definitiva independência e pela união de todos os países
latino-americanos e caribenhos.”
Chávez colocou em prática desde o início de sua gestão uma política externa caracterizada pela aproximação aos países
vizinhos e na integração regional, além de
uma forte rejeição ao imperialismo norteamericano. Dele partiu o incentivo para a
criação de novos mecanismos de integração e pela eliminação da Área de Livre
Comércio das Américas (Alca), proposta
feita pelos Estados Unidos em 1994.
Durante os 14 anos de governo, Chávez esforçou para fortalecer a União de
Nações Sul-Americanas (Unasul), Comunidade de Estados Latino-Americanos e Carirbenhos (Celac) e Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (Alba), sendo o último grupo uma
de suas mais audaciosas investidas.
Já no ano passado a Venezuela foi integrada ao Mercosul, aumentando a população do Mercosul para 270 milhões
de habitantes, cerca de 70% da população da América do Sul e o Produto Interno Bruto (PIB), que passou a ser de 3,3
trilhões de dólares, aproximadamente
83,2% do PIB sul-americano.
Movimentos sociais
Eles vieram dos mais diversos países,
percorreram quilômetros e quilômetros,
de avião, carro, ônibus, somente para
homenagear o presidente venezuelano
Hugo Chávez. Representantes de movimentos sociais de toda a América Latina compareceram à Academia Militar,
no Paseo de Los Próceres, Caracas, cantando, dançando e balançando bandeiras nacionais. Por meio deles, o ideal de
integração da “pátria grande” de Chávez
foi personalizado.
“Viemos à Venezuela homenagear o
presidente que tanto fez pela integração
dos povos latino-americanos, especialmente os originários”, afirmou Segundina Orellana, de 30 anos, coordenadora
de mulheres do Trópico de Cochabamba,
Bolívia. Enquanto segura um cartaz com
os dizeres “Chávez vive. Bolívia está contigo”, ela complementa: “costumamos
dizer em meu país que Chávez também é
nosso pai. Essa é a nossa homenagem.”
Ao também visitar a Academia Militar, Messilene Silva, do Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra (MST) e parte da Brigada internacionalista do MST
na Venezuela, lembrou que “Chávez foi o
exemplo e a possibilidade da construção
da unidade latino-americana a partir dos
povos e não somente a partir do Estado.
Foi a possibilidade de uma revolução na
América desde abaixo e desde cima”.
“Elite não voltará ao poder”
VTV
Capriles eleva o tom
e acusa governo de
mentir sobre data da
morte de Chávez
de Caracas (Venezuela)
Enquanto Hugo Chávez foi velado, o
cenário político aqueceu na Venezuela.
Com o decreto da falta absoluta do presidente, o Conselho Nacional Eleitoral
(CNE) convocou para 14 de abril desse ano nova eleição presidencial. No páreo estarão Nicolás Maduro, atualmente
presidente interino, e o governador do
Estado de Miranda, Henrique Capriles,
derrotado por Chávez em outubro do
ano passado.
No anúncio da candidatura, feito 30
horas após receber o convite da aliança opositora Mesa de Unidade Democrática (MUD), Capriles apontou contra Maduro e o governo, os acusando
de usar a morte do presidente para fins
eleitorais. “Quem sabe quando morreu
Chávez?”, perguntou, insinuando que o
presidente já havia falecido antes de 5
de março. “Vocês utilizam o corpo do
presidente para fazer campanha política. Tinham tudo friamente calculado”, disse.
A resposta de Maduro foi imediata.
“[Capriles] quer manchar com violência, sangue e morte uma vitória cantada”, afirmou, emendando: “Juramos por
Chávez e pelo nosso povo que jamais voltarão”, em referência à elite política venezuelana. Maduro disse que a população venezuelana “não pode deixar que a
alma seja envenenada”, complementando que, “se não puderam com o comandante, nem o mundo, nem aqui, não poderão com a revolução.”
Maduro (ao centro, olhando para o alto) durante o cortejo
“Com Chávez e Maduro, o
povo está seguro”, é uma das
consignas mais escutadas na
quilométrica fila para ver o
corpo do presidente
O discurso de Capriles contrasta com
o adotado na campanha do ano passado.
Naquela ocasião, o político do partido
Primeiro Justiça se apresentou como um
candidato com viés progressista, que supostamente copiaria elementos da política do ex-presidente Luiz Inácio Lula da
Silva para a Venezuela. Além disso, Capriles evitou embates diretos com Chávez e aceitou prontamente a derrota para o falecido presidente, que conquistou
54,84% dos votos, contra 44,55%.
Ele concorreu às eleições regionais de
dezembro do ano passado, ganhando do
candidato oficialista, o atual chanceler
Elías Jaua, e sendo um dos únicos três
governadores eleitos pela Mesa de Unidade Democrática (MUD). Com o retorno da doença de Chávez, Capriles ampliou a estratégia de se colocar como o
líder da oposição. Ele adotou um discurso mais suave que o resto da aliança opositora sobre a postergação do juramento do presidente – marcado para
10 de janeiro – e o prolongado tratamento ao qual o presidente foi submetido. Isso agora parece ter mudado.
Maduro, por sua vez, tem em seu favor
o apoio dos simpatizantes de Chávez, que
prometeram cumprir com a última vontade do presidente. Em 8 de dezembro de
2012, antes de viajar para Havana, o líder venezuelano pediu que votem no então vice-presidente caso uma nova eleição fosse necessária. “Com Chávez e Maduro, o povo está seguro”, é uma das consignas mais escutadas na quilométrica fila para ver o corpo do presidente em Los
Próceres. De acordo com pesquisas, Maduro deve receber ainda mais votos que o
comandante. (MT)
16
de 14 a 20 de março de 2013
américa latina
O desafio da Revolução Bolivariana
Rafael Stedile
OPINIÃO A definição
do caráter do processo
conduzido por Chávez
tardou a vir à tona
Miguel Urbano Rodrigues
POUCAS VEZES na América Latina a
morte de um governante carismático
terá comovido tão profundamente o seu
povo como a de Hugo Chávez.
Amado pelos oprimidos de todo o
mundo, combatido e caluniado pelas classes dominantes, o seu funeral,
acompanhado por milhões de venezuelanos, confirmou que fez história profunda. Significativamente, nele participaram dezenas de chefes de Estado e de
governo vindos da América Latina, da
Europa, da Ásia e da Africa.
Era um obscuro oficial quando surgiu em l992 como líder de uma rebelião
militar contra o governo de Carlos Andrés Pérez. A tentativa de golpe foi esmagada e cumpriu dois anos de prisão.
A sua admiração por Bolívar foi então
fonte de um projeto ambicioso: libertar o país da dominação imperialista e
levar adiante uma revolução que, pela
via institucional, fizesse do povo sujeito da história. O sonho parecia utópico
porque a Venezuela era uma semicolônia dos EUA. Mas ocorreu o que os partidos da burguesia tinham por impossível. O jovem oficial mestiço, desprezado pela oligarquia, apresentou-se como
candidato por um Movimento por ele
criado, o V República, e venceu. O seu
discurso, diferente de tudo o que se conhecia, empolgou as massas.
Eleito Presidente da República em
dezembro de 1998, tomou consciência
de uma realidade: a conquista da presidência fora uma tarefa muito mais
fácil do que aquela que se propunha
a empreender: a transição do capitalismo dependente, hegemonizado pelos EUA, para uma Venezuela soberana, rumo a uma Revolução de contornos ainda por definir.
Era um obscuro oficial
quando surgiu em l992
como líder de uma rebelião
militar contra o governo de
Carlos Andrés Pérez
Dois golpes de Estado, montados e
financiados pelos EUA, confrontaram
Chávez com crises inesperadas. O primeiro, em 2002, foi um golpe militar
que contou com a participação de altas patentes das Forças Armadas. Salvo pela mobilização popular, o presidente compreendeu que, afinal, o corpo de oficiais era permeável à ofensiva
ideológica do imperialismo e da grande burguesia.
Uma segunda intentona quase paralisou o país e demonstrou que a PDVSA,
a gigantesca empresa petrolífera, somente era nacional nominalmente, pois
os dirigentes estavam identificados com
o capital financeiro internacional.
Em ambos os golpes estiveram envolvidos militares e civis nos quais Chávez
tinha confiança.
Sucessivas deserções – as mais chocantes terão sido a de Miquelena, ex
ministro do Interior, e a do general Baduel – demonstraram posteriormente
que muitos dos antigos companheiros
não se sentiam identificados com o projeto revolucionário do presidente.
Durante largo tempo uma questão
sem resposta comprometeu o avanço
do processo. Qual o rumo da Revolução
Bolivariana? A definição tardou. No terreno da ideologia era uma revolução democrática e nacional, anti-imperialista.
Chávez apercebeu-se de uma evidência: sem organização revolucionária que
lhe assuma os objetivos, não há revolução que possa atingir as metas propostas. Creio que foi em 2004, dirigindo-se
a um Encontro de Intelectuais em Defesa
da Humanidade, que deixou pela primeira vez implícita a opção pelo socialismo.
A criação de um Partido da Revolução tornou-se então uma necessidade: o
Partido Socialista Unido da Venezuela.
O Psuv nasceu porém numa atmosfera polêmica porque no chavismo cabiam muitas tendências, algumas incompatíveis. Criado de cima para baixo, o número de filiados atingiu rapidamente um total impressionante. O êxito gerou ilusões; muitos aderentes não
eram revolucionários.
O presidente exigiu que todos os partidos que apoiavam a Revolução se dissolvessem, integrando-se no Psuv.
O Partido Comunista da Venezuela,
reiterando a sua solidariedade irrestrita com a revolução e o seu líder, recusou. No momento em que muitos intelectuais do Psuv criticavam o marxismo- leninismo, considerando-o obsole-
Venezuelanos se reúnem em ato de apoio à candidatura de Nicolás Maduro à presidência
to, o PCV esclareceu que não faria sentido integrar-se num partido no qual influentes quadros atacavam princípios e
valores inseparáveis do seu combate como comunistas.
Não cabe neste artigo comentar os debates então travados em torno do chamado socialismo do século XXI, a ideologia que, em alternativa ao socialismo científico, estava a tomar forma na
Venezuela e na América Latina. Limitome a citar o que escrevi em odiário.info
no regresso de Caracas: “A fórmula do
Socialismo no século XXI é equívoca
e enganadora. Lembra um balão vazio. O núcleo de teórico e programático não existe praticamente. O mal está no ataque aos clássicos do marxismo,
desencadeado sobretudo por alguns intelectuais latino americanos. Para eles,
o pensamento de Marx, Engels e Lenin,
toda a obra teórica sobre o socialismo
científico tornou-se uma velharia cuja
superação se apresentaria como exigência da história”.
Era inevitável que a decisão
de romper gradualmente
com o capitalismo seria
fonte de grandes problemas
Política externa
Com exceção dos efeitos da complexa relação com a Colômbia e os elogios
a governantes liberais europeus, a política exterior de Chávez foi desde o início progressista pela firmeza e coragem
que caracterizaram o choque com o imperialismo estadunidense.
No tocante à América Latina, empenhou-se na solidariedade entre países
irmãos. Foi decisiva a sua intervenção
no debate que liquidou o projeto recolonizador da Alca. A Alternativa Boliva-
riana para as Américas, Alba, bem como
a criação da Unasul, do Banco do Sul, da
Petrocaribe, da Celac assinalaram avanços anti-imperialistas. Transparente foi
a sua atitude internacionalista, a solidariedade permanente com governos como o do Irã que não se submetem à dominação imperial dos EUA.
Desafios
Não obstante a ofensiva contrarrevolucionária da oposição, agora liderada
pelo milionário Henrique Capriles, a situação financeira do país está controlada. As reservas de hidrocarbonetos são
das maiores do mundo.
Mas a insistência de alguns ministros
e dirigentes do Psuv em apresentar a
Venezuela como país em transição acelerada para o socialismo, deturpa a realidade. Com exceção do petróleo, a contribuição do setor privado para o PIB
é maioritária. É ele que controla quatro quintos das importações. O Banco
Central é autónomo. O sistema midiático é hegemonicamente controlado pela oposição.
A transição para o socialismo é, portanto, ainda incipiente num contexto
em que o modo de produção, as relações de produção e as estruturas económicas continuam a ser fundamentalmente capitalistas.
A transição difícil
Era inevitável que a decisão de romper gradualmente com o capitalismo seria fonte de grandes problemas.
Mas distorce a realidade a mídia que
insiste em apresentar um panorama
alarmante da economia do país.
Num contexto histórico muito desfavorável, hostilizada pelos governos de
Bush e Obama, a Revolução Bolivariana realizou, sob uma ofensiva permanente da oligarquia crioula, conquistas muito importantes. O que surpreende não é aquilo que não foi possível realizar; mas sim o terem conseguido tanto numa atmosfera de guerra não declarada, no contexto de uma luta de classes que somente terá precedente no
Chile de Allende.
O analfabetismo, antes elevadíssimo,
foi praticamente erradicado. Nas escolas públicas o ensino é gratuito. Num
país onde o setor editorial era quase
inexistente, o Estado distribuiu gratuitamente desde o início da Revolução
dezenas de milhões de livros de autores nacionais e estrangeiros. Novas universidades foram criadas. A assistência
médica é hoje gratuita.
Nessa política, as Misiones, programas sociais, desempenham um papel
fundamental. A Mision Mercal atende
a preços subsidiados 10 milhões de pobres em 1500 lojas do Estado. A Mision
Barrio Adentro desenvolve um trabalho insubstituível no campo da saúde.
Mais de vinte cinco mil médicos e enfermeiros cubanos levaram Saúde a milhões de trabalhadores que a ela não tinham acesso.
O analfabetismo,
antes elevadíssimo, foi
praticamente erradicado.
Nas escolas públicas o
ensino é gratuito
Wilson Dias/ABr
Os presidentes Chávez, Dilma, Mujica e Cristina em ato que simbolizou a entrada da Venezuela no Mercosul, em julho de 2012
Conclusão
Como definir e situar o revolucionário
Hugo Chávez? Não é fácil a resposta.
Optou pelo socialismo, imprimindo à
Revolução um rumo que poucos esperavam. Não foi um marxista, nem um
socialista utópico. Nunca escondeu a
força do seu sentimento cristão católico. Se ele apresenta afinidades idiossincráticas na sua trajetória de revolucionário carismático e humanista, com
grandes personagens da história da
América Latina, não creio que seja com
Bolivar, o seu génio tutelar. Como líder
de massas que fascinou os oprimidos
do seu povo e por eles foi amado e compreendido, ele me faz pensar em grandes caudilhos como o uruguaio Artigas
e os mexicanos Pancho Villa e Emiliano Zapata.
É imprevisível o amanhã da Venezuela Bolivariana. Mas tomam o desejo por
realidade os que anunciam que a Revolução está condenada.
Como afirma o ex-ministério da Industria, Victor Alvarez, num artigo publicado em Portugal (Público,
10.03.2013), Hugo Chávez deixou como legado uma carta de navegação e
um painel de instrumentos para que seja mantido o rumo.
Confrontam-se duas opções. Uma desenvolvimentista, inseparável de um
modelo rentista. A outra, social, que
privilegia o direito ao trabalho, a educação, a habitação, a saúde, a alimentação, a cultura.
Hugo Chávez restituiu a esperança
aos seus compatriotas e aos povos da
América Latina. Desaparecido fisicamente, já deu entrada no panteão dos
heróis do Continente.
Miguel Urbano Rodrigues é jornalista
português e membro do
Partido Comunista de Portugal.
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edição 524 do Brasil de Fato