2 de 14 a 20 de março de 2013 editorial Outros Chávez virão! Russa causou no sentido de colocar a revolução como uma possibilidade concreta para milhões em todo o mundo. Anos difíceis em que o nosso continente assiste a escalada de governos que seguem a mesma receita: privatizações, reduções de direitos, perda de soberania. É neste contexto em que emerge o papel deste indivíduo na história. Hugo Chávez Frias. O ano de 1989 produziu o chamado “Caracazo”, uma surpreendente explosão social espontânea contra o pacote de medidas neoliberais do presidente Carlos Andrés Perez. A rebelião, sufocada pela falta de organização funciona como um catalisador que acelera os planos do clandestino Movimento Bolivariano Revolucionário. Quando a ofensiva neoliberal mostrava toda a sua força em nosso continente no ano de 1992, o tenente coronel Hugo Chávez dirige um levante que coloca a questão da conquista do poder. Cercados e sem o respaldo popular que esperavam, Chávez propõe utilizar uma cadeia de TV e rádio para desmobilizar os que haviam aderido em regiões do interior. E nestes famosos um minuto e cinquenta e oitos segundos, assumindo a responsabilidade da ação e explicando ao povo seus motivos se converterá numa forte esperan- GUIORGUI PLEKHANOV (1856 – 1918) nos deixou a obra clássica O Papel do Indivíduo na História, onde enfrenta um dilema fundamental. Se para a concepção materialista da história “o modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual”, se não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas pelo contrário, o seu ser social é que determina a sua consciência, qual é, então, o papel do indivíduo na história? Em seu esforço de responder esta questão há uma passagem em que afirma que “o grande homem é grande não porque suas particularidades individuais imprimam uma fisionomia individual aos acontecimentos históricos, mas porque é dotado de particularidades que o tornam o indivíduo mais capaz de servir ás grandes necessidades sociais de sua época. É precisamente um iniciador, porque vê mais longe que os outros e deseja mais fortemente que os outros”. A década de 1990 inaugurou um período extremamente difícil para a classe trabalhadora em todo o mundo. As consequências do fim da União Soviética e das demais experiências de transição socialista no abalo do imaginário da transformação social somente são comparáveis com os impactos que a própria Revolução Seu exemplo e coerência seguirão animando os lutadores populares em todo o mundo e incomodando os nossos inimigos ça do imaginário coletivo, transformando uma derrota militar num exemplo pedagógico. E mais uma vez, a unidade, as massas e as armas são os ingredientes que se combinam para o avanço de um processo revolucionário. Desde a primeira vitória em 1999, ganhou 15 dos 16 embates eleitorais ocorridos na Venezuela. As sucessivas vitórias eleitorais e o enfrentamento do golpe em 2002 possibilitam o avanço de mudanças estruturais e a retomada de um horizonte socialista, confirmando, no século 21, o ensinamento de que em nosso continente não se pode atin- crônica Latuff opinião Marcelo Barros O novo Bolívar QUANDO OS MEIOS de comunicação noticiaram o falecimento do presidente Hugo Chávez, certamente muitos homens e mulheres, comprometidos com a transformação do mundo, em toda a América Latina, se recordaram de uma palavra do comandante sandinista Tomás Borge. Junto com muitos outros companheiros, ele estava preso e torturado em uma prisão nos subterrâneos da ditadura somozista em Nicarágua. Para quebrar a resistência dos prisioneiros, o carcereiro entrou na sala de interrogatório e com um sorriso nos lábios anunciou: - Trago uma notícia de última hora: o comandante Carlos Fonseca acabou de morrer. No meio do alarido que a notícia provocou entre os revolucionários, Tomás Borge levantou a voz e gritou: - Carlos Fonseca é dos homens que não morrem nunca. Mesmo se as tradições espirituais falam em ressurreição dos mortos ou em alguma forma de vida depois da morte, sem dúvida há pessoas cujo testemunho de vida vai além da sobrevivência física. Sem dúvida, todos os que amam a causa da transformação do mundo lamentaram a partida do presidente Chávez. Sua partida do nosso meio deixou um vazio imenso e é um grande golpe para todos os que aprenderam a estimá-lo e a considerá-lo como comandante do processo de mudanças sociais e políticas emergentes em nosso continente. Seu carisma único, sua inteligência brilhante, sua sensibilidade humana rara e, poderíamos dizer, sua mística revolucionária nos fará falta e é insubstituí- Quando em qualquer encontro ou evento social, alguém pronunciar o nome do presidente Hugo Chávez, haverá sempre um grupo imenso de pessoas, cidadãos dessa nova pátria grande, que responderão: Presente! vel. Entretanto, sua herança continuará viva e atuante. O ideal libertador de Simón Bolívar nunca ficou apagado ou esquecido em Venezuela e em vários países do continente. No entanto, a partir da década de 1970, um grupo de jovens militares, liderados por Hugo Chávez, propôs um novo bolivarianismo. Baseado na educação para todos, na valorização das culturas autóctones, na gir o socialismo senão pela via da revolução democrática anti-imperialista, mas tampouco se pode consumar a revolução democrática anti-imperialista sem atingir o socialismo. Os resultados são impressionantes e calam até mesmo os setores mais reacionários. A taxa de mortalidade infantil passou de 19,1 a cada mil, em 1999, para 10 a cada mil em 2012, ou seja, uma redução de 49%. Enquanto a expectativa de vida passou de 72,2 anos em 1999 para 74,3 anos em 2011. Em sua genialidade de dirigente político, sempre ligado ao povo, Chávez demonstrou compreender que a identidade é a energia estruturante fundamental de uma construção humana ao resgatar e assumir que o projeto popular que apresentou é a continuidade do libertador Simón Bolívar. Seguindo a inspiração de Bolívar, Hugo Chávez apresentou a Venezuela à América Latina. Liderou a vitoriosa luta contra a Alca, não por ser contra a integração, mas por ser contra a servidão. E com essa rebeldia, propôs uma Alternativa Bolivariana para as Américas. Não descansou enquanto nosso povo e suas lideranças progressistas oriundas da luta antineoliberal como ele se unissem, seja através da Unasul, da Celac fortalecendo o imenso sentimento de unidade dos igualdade entre homens e mulheres e no cuidado respeitoso com a natureza, assim como na radicalização da democracia, esse ideal bolivarianista ganhou uma dimensão revolucionária e socialista inédita na história do continente. Essa bandeira ninguém conseguirá roubar nem derrubar. De fato, sem mistificações nem endeusamentos inadequados, é verdade que o presidente Chávez assumiu nesses anos recentes a figura de um novo Bolívar, totalmente consagrado à libertação do seu povo e à integração do nosso continente como uma pátria grande e libertada. Sem dúvida, sobre ele, se poderia aplicar o que um biógrafo afirmou de Simon Bolívar: “Independentemente de religião, pelo fato de ter assumido no mundo um projeto de vida e de libertação motivado pelo amor solidário, ele era um santo secular”. Como toda pessoa humana e principalmente alguém muito visado pelos meios de comunicação, o presidente Chávez teve suas limitações e pode ser criticado por isso ou por aquilo. Entretanto, apesar de tudo, a partir de agora, em todo o continente latino-americano, quando em qualquer encontro ou evento social, alguém pronunciar o nome do presidente Hugo Chávez, haverá sempre um grupo imenso de pessoas, cidadãos dessa nova pátria grande, que responderão: Presente! Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 30 livros, entre os quais Dom Helder, profeta para os nossos dias, Goiás, Ed. Rede da Paz, 2006. povos que sua liderança irradiou a cada ponto de nosso hemisfério. Consciente do papel pedagógico de um dirigente revolucionário, em cada oportunidade ou aparição pública sabia aproveitar o momento para identificar os problemas, pautar os desafios e propagar ideias. Sempre como um incansável organizador, investindo energias na formação política da juventude, nas organizações populares e na construção do Partido Socialista Unificado da Venezuela (Psuv). Sabia, claramente, a importância da construção de organizações coletivas. E dedicou-se à tarefa da organização popular. Exatamente por tudo isso, a Revolução Bolivariana prosseguirá apesar de sua morte, para a frustração de seus inimigos. Seu exemplo e coerência seguirão animando os lutadores populares em todo o mundo e incomodando os nossos inimigos. Porque uma coisa é certa: da mesma forma que os rios, por mais tortuosos que sejam seus caminhos, correm sempre para uma determinada direção, os povos, por mais peculiar que seja o trajeto de seu desenvolvimento histórico, não se afastam de seu curso. E para o desespero dos privilegiados que se animam com a morte de Hugo Chávez, saibam que outros Chávez virão. E serão milhões. Luiz Ricardo Leitão Os “guardiões” da democracia A MORTE DE HUGO CHÁVEZ provocou múltiplas e impetuosas reações na Venezuela e no mundo. Cada uma dessas manifestações, por certo, diz muito da posição de classe e da perspectiva histórica de quem as expressa. As massas populares venezuelanas, por exemplo, que viviam há décadas excluídas da vida pública no país e agora voltam a assumir um papel decisivo na política nacional, já inscreveram o Comandante na galeria de heróis da pátria e se comprometem a levar adiante a Revolução Bolivariana. Os empresários e a chamada “imprensa livre”, porém, saúdam sem nenhum pudor sua passagem para o infinito – e cacarejam, aos quatro ventos, que é hora de ‘restaurar’ a democracia (?) na terra de Bolívar. Em meio ao seu funeral, esse desconforto da mídia e dos monopólios é a melhor homenagem que se poderia prestar ao presidente que mandou a Alca àquele lugar – e enterrou de vez a espúria “Aliança de Livre Comércio” (?) ianque na Cúpula de 2005. Basta ver as manchetes estampadas pelos veículos mais raivosos de Bruzundanga... Em tom de filme de vampiros, ao estilo adolescente playboy, a Veja, porta-voz da banca transnacional, amaldiçoa “a herança sombria” de Chávez; a Época, subnitrato de O Globo, da mui católica família Marinho, não fica atrás e, reeditando “O Exorcista”, conclama a legião dos democratas (?) a livrar a América Latina da influência maldita do chavismo e do bolivarianismo. Na TV, vi coisas ainda mais bizarras. Em um programa da Globo News, um suposto acadêmico alertava sobre o risco de um ataque da Venezuela aos EUA (!) e insistia em (des)qualificar Chávez de “ditador”, ainda que o dileto confrade Maringoni, também presente, lembrasse-o civicamente de que o Comandante fora eleito e reeleito pelo voto popular. O argumento de nada serviu: com o aval da entrevistadora, o papagaio da intelligentsia alegou que mais de uma década no poder era um sinal inequívoco de tirania. Uai, sô! E a poderosa Sinhá Margareth Tahtcher, a Dama de Ferro britânica que reinou entre 1979 e 1990, o ioiô professor ousaria tachar de “ditadora”? Gracias, Comandante, por desafinar o coro dos contentes. Seguimos em combate! Pois é, meu caro e fiel leitor, esses são os “guardiões” da democracia, sempre mui zelosos das regras do livre mercado, ou melhor, do mundo livre ocidental. Ouvindo-os discorrer com enorme pompa e circunstância sobre as mazelas alheias, eu até poderia crer que vivo no melhor regime do planeta... De fato, priva-se cá em Bruzundanga do festival da democracia! Ao contrário do que ocorre na Venezuela, onde o povo insiste em inundar as ruas para afirmar sua soberania, nossa Paideia midiática logrou feito bem maior, tornandonos o país que mais tempo navega na internet. Para tal proeza, em muito têm contribuído as aulas intensivas de educação política que seres iluminados como Faustão, Silvio Santos, Pedro Bial, Gugu e Ratinho nos brindam diuturnamente nas telas da TV. E o que dizer dos Poderes da República, a começar pelo excelso Congresso Nacional? Sinto-me mui orgulhoso, sem dúvida, ao ver o egrégio Renan Calheiros (PMDB), figura ilibada da política nacional, ser eleito o novo (?) presidente do Senado. E o que dizer do pastor-deputado Marco Feliciano (PSC), célebre por sua homofobia e racismo, indicado para presidir a Comissão de Direitos Humanos (!) da Câmara? Será que a bancada bolivariana do parlamento venezuelano igualaria tamanhos feitos? Não carece de gastar prosa com os próceres do Executivo, carece? Gente do quilate de Alckmin, Cabral, Wagner e outros governadores, sem falar nos maravilhosos alcaides que promovem a festa das empreiteiras e a limpeza étnica para a Copa de 2014, são a dádiva maior da democracia representativa tupiniquim. Basta ver o quanto se aprende nas escolas públicas ou como são bem atendidos os cidadãos nos hospitais para aquilatar o profundo compromisso social dos nossos síndicos. Diz a etimologia grega que democracia é o “poder do povo”, mas a leitura burguesa do termo me leva a crer que o povo, para as elites, é literalmente o “demo”... E, não por acaso, Chávez, um mestiço igual ao seu povo, por muito tempo ainda será pintado como um demônio que veio ameaçar a ordem e a paz nas Américas. Gracias, Comandante, por desafinar o coro dos contentes. Seguimos em combate! Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor associado da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa – Poeta da Vila, Cronista do Brasil e de Lima Barreto – o rebelde imprescindível. Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Aldo Gama, Renato Godoy de Toledo • Subeditor: Eduardo Sales de Lima • Repórteres: Aline Scarso, Michelle Amaral, Patricia Benvenuti • Correspondentes nacionais: Maíra Gomes (Belo Horizonte – MG), Pedro Carrano (Curitiba – PR), Pedro Rafael Ferreira (Brasília – DF) • Correspondentes internacionais: Achille Lollo (Roma – Itália), Baby Siqueira Abrão (Oriente Médio), Claudia Jardim (Caracas – Venezuela), Marcio Zonta (Peru) • Fotógrafos: Carlos Ruggi (Curitiba – PR), Douglas Mansur (São Paulo – SP), Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper (Rio de Janeiro – RJ), João Zinclar (in memoriam), Joka Madruga (Curitiba – PR), Leonardo Melgarejo (Porto Alegre – RS), Maurício Scerni (Rio de Janeiro – RJ) • Ilustradores: Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Jade Percassi • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfica: S.A. O Estado de S. Paulo • Conselho Editorial: Angélica Fernandes, Alipio Freire, Altamiro Borges, Aurelio Fernandes, Bernadete Monteiro, Beto Almeida, Camila Dinat, Cleyton W. Borges, Dora Martins, Frederico Santana Rick, Igor Fuser, José Antônio Moroni, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Marcelo Goulart, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Pinheiro, Neuri Rosseto, Paulo Roberto Fier, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Rosane Bertotti, Sávio Bones, Sergio Luiz Monteiro, Ulisses Kaniak, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] • Para anunciar: (11) 2131-0800 de 14 a 20 de março de 2013 3 Paulo Kliass instantâneo A urgência dos investimentos .ar om as.c sist ocla icon Igor Fuser Entre Chávez e Schumpeter SE ALGUÉM AINDA TINHA dúvida de que os oligopólios da mídia operam em bloco na defesa dos interesses do grande capital, sugiro que busque alguma diferença entre as capas de Veja e Época com a imagem de Hugo Chávez. As duas revistas estampam fotos idênticas, com o mesmo recurso de luz-e-sombra para dar às feições do herói bolivariano uma aparência sinistra (logo ele, famoso pela sua simpatia!). Quanto ao conteúdo, as mesmas mentiras sobre a Venezuela. Em todo o papo-furado da mídia direitista, o que mais chama atenção é a insistência em chamar de “tirano” um líder vitorioso em todas as eleições que participou, num país onde não existem presos políticos nem censura à imprensa. Lá os eleitores podem revogar o mandato dos governantes e o povo se organiza em conselhos comunitários para decidir sobre assuntos do interesse coletivo. Por trás do discurso obtuso dos inimigos da revolução bolivariana, nota-se algo mais do que a evidente intenção de manipular a opinião pública. Simplesmente, os burgueses adotam uma visão de democracia que contradiz o sentido literal da palavra (“o poder do povo”, em grego). Quem melhor definiu a democracia existente no capitalismo foi Joseph Schumpeter (1883-1950), um dos mais influentes pensadores liberais. Para ele, a democracia da teoria clássica não passava de uma utopia. Na prá- tica, deve ser apenas um método de escolha entre candidatos pertencentes às elites. Ao povo caberia apenas o papel de votar, de tempos em tempos, deixando aos figurões mais ilustrados das classes dominantes a participação política efetiva. Nas palavras do próprio Schumpeter: “A democracia não significa e não pode significar que o povo realmente governa (...). A democracia significa apenas que o povo tem a oportunidade de aceitar ou recusar os homens que os governam”. Schumpeter via o cidadão comum com um fantoche nas mãos da imprensa e da máquina de propaganda dos partidos “razoáveis”, isto é, comprometidos com o capitalismo. A competição política, segundo ele, deve ocorrer dentro de um leque restrito de questões, de maneira a jamais colocar em jogo as estruturas da sociedade e os pontos de consenso entre as elites. Relendo Schumpeter, fica fácil entender o ponto de vista de quem afirma que Chávez “abusou da democracia” (como disse um professor da Faap, reduto universitário da elite paulistana, em debate na Globo News). Ao trazer para o primeiro plano da cena política a voz do povo venezuelano, silenciada em séculos de apartheid social, Chávez arrebentou os limites estreitos da “democracia” schumpeteriana e aproximou da realidade o ideal libertário do governo “do povo, para o povo e pelo povo”. João Brant Compromisso rompido NO FINAL DO MÊS PASSADO, o Ministério das Comunicações anunciou que este governo não vai tratar da reforma do marco regulatório. Na prática, a declaração oficializa o rompimento do governo com a sociedade no tema das comunicações. Em reação, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação publicou uma nota criticando a opção, que em uma semana foi subscrita por mais de 100 entidades. Entre os signatários estão Abong, Altercom, ANPG, Congresso Brasileiro de Cinema, MST, Marcha Mundial das Mulheres, Movimento Fora do Eixo, União Nacional dos Estudantes e Via Campesina Brasil. Como aponta o texto, “apesar dos insistentes esforços da sociedade civil por construir diálogos e formas de participação, o governo Dilma e o governo do ex-presidente Lula optaram deliberadamente por não encaminhar um projeto efetivo de atualização democratizante do marco regulatório. Mas o atual governo foi ainda mais omisso ao sequer considerar a proposta deixada no final do governo do seu antecessor e por não encaminhar quaisquer deliberações aprovadas na I Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), realizada em 2009. O que fica cla- ro é a ausência de vontade política e visão estratégica sobre a relevância do tema para o avanço de um projeto de desenvolvimento nacional e a consolidação da democracia brasileira. A opção do governo significa, na prática, o alinhamento aos setores mais conservadores e o apoio à manutenção do status quo da comunicação, nada plural, nada diverso e nada democrático. Enquanto países com marcos regulatórios consistentes discutem como atualizá-los frente ao cenário da convergência e países latino-americanos estabelecem novas leis para o setor, o Brasil opta por ficar com a sua, de 1962, ultrapassada e em total desrespeito à Constituição, para proteger os interesses comerciais das grandes empresas”. A partir deste fato, a opção da sociedade será ampliar a mobilização. A campanha “Para Expressar a Liberdade” prepara um Projeto de Lei de Iniciativa Popular para um novo marco regulatório das comunicações, com o objetivo de construir um instrumento que fortaleça a discussão pública. Quem está a favor da democracia não tem por que temer o debate. EM 2012, A ECONOMIA brasileira cresceu apenas 0,9%. Uma taxa muita baixa, que mal recompõe o crescimento da população. Ou seja, é como se o PIB per capita estivesse estacionado ao longo do no passado. Apesar de não se caracterizar como um quadro recessivo, evoluímos bem menos do que os vizinhos da América do Sul, do que a média da América Latina e do que os similares dos Brics. O modelo de nossa política econômica está baseado na dependência exagerada com relação ao consumo de empresas e de famílias. Desde o início do desmonte neoliberal do setor público, o Brasil tem perdido de forma sistemática sua capacidade de investimento. A privatização de empresas estatais ocorreu em setores estratégicos, como mineração, telecomunicações, energia elétrica e infraestrutura de uma forma geral. Os novos proprietários, seguindo a lógica da acumulação privada, reduziram os investimentos e têm sua preocupação voltada para gerar lucros aos acionistas. Assim, em razão da falta de controle do setor público, o excedente gerado não é dirigido a reinvestimento, mas para remessas dirigidas ao exterior. Por outro lado, a era hegemonizada pelas recomendações do Consenso de Washington ampliou a abertura comercial. A abertura generalizada de nosso país às importações, iniciada em 1990 com Collor, provocou uma reacomodação de nossa capacidade produtiva no setor industrial. A enxurrada estimulada pelo próprio governo de produtos manufaturados importados, em especial os asiáticos, inibiu a concorrência dos produtos industrializados aqui produzidos. A perpetuação desse cenário por mais de 2 décadas reduziu a capacidade de formação de base produtiva. As empresas não mais investem como antes, pois o cenário é marcado de incapacidade de produzir a preços e custos competitivos frente ao que vem do exterior. Frente a esse quadro, o desempenho da economia se assentou na chamada capacidade de consumo. As políticas de compensação de renda aumentaram o acesso a bens e serviços de parcelas importantes da população, em razão dos reajustes reais do salário mínimo, da manutenção do poder aquisitivo dos benefícios da previdência social, da ampliação de valores e abrangência de prestações do Bolsa Família e programas similares. No entanto, o consumo passou a se realizar por meio do acesso a bens importados, de menor preço e pior qualidade. As empresas, por seu turno, também adquirem matérias-primas e bens intermediários de menores custos, em geral comprados no exterior. Passamos a depender, cada vez mais, da importação de bens para consumo. Um país que assente seu modelo econômico no consumo de bens produzidos alhures não gera capacidade de sobrevivência autônoma no futuro Para romper esse ciclo de geração de renda e emprego lá fora é necessário um processo que combine coragem e vontade políticas para sair dessa dupla dependência: do consumismo sem base real e da importação desenfreada. O Brasil tem todas as condições (tamanho da população, escala econômica, dimensões continentais, diversificação das atividades em vários setores) para reduzir essa dependência aos produtos importados. Para tanto basta política industrial que estimule a produção de bens aqui internamente. Mas o mais urgente é ampliar a capacidade de investimento no conjunto do PIB. Atualmente a fração dos investimentos representa apenas 18% do total produzido. Estudos demonstram que seria necessário elevar essa participação para algo próximo a 25%, de modo a conferir um pouco de folga à nossa capacidade econômica e social. Afinal, um país que assente seu modelo econômico no consumo de bens produzidos alhures não gera capacidade de sobrevivência autônoma no futuro. O caminho alternativo passa pela redefinição dos gastos que a sociedade como um todo (famílias, empresas e governo) realiza com o consumo e os direcione para investimentos. Isso significa maior capacidade de infraestrutura, maior presença de máquinas e equipamentos, maior robustez dos setores produtores de bens de produção. Assim, parcela da renda nacional deixa de pagar produtos importados da China, e passa a construir capacidade produtiva interna no Brasil, com objetivo de gerar consumo lá na frente. É o que o economês chama de “capacidade de multiplicação dos investimentos”. Paulo Kliass é doutor em economia pela Universidade de Paris 10 (Nanterre) e integrante da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, do governo federal. Assine o Brasil de Fato fatos em foco da Redação MPF denuncia advogado por trabalho escravo em fazenda em MS A denúncia do Ministério Público Federal (MPF) contra Mauro Gattasss Pessoa, proprietário da Fazenda Paraíso, em Corumbá (MS), foi aceita pela Justiça Federal em 4 de março. O fazendeiro é acusado de reduzir trabalhador rural à condição análoga à de escravos, sujeitando-o a situações degradantes de trabalho. A vítima trabalhava há 17 anos na Fazenda Paraíso e chegou a ficar 4 anos sem salário, recebendo apenas alimentos. A pena para este crime é de reclusão de dois a oito anos e multa. Trabalhador e família eram mantidos em péssima condições O trabalhador, a mulher e oito filhos viviam em péssimas condições, sem água potável e moradia digna. O flagrante foi feito pela Polícia Militar Ambiental em novembro de 2011. Constatou-se que a família vivia em uma casa de pau-a-pique, revestida com barro, e chão de terra. Um banheiro rudimentar feito de madeira, com 2 metros de profundidade e a 4 metros da casa, servia à família. A única fonte de água era uma cacimba cavada a céu aberto contendo líquido esverdeado. Não havia energia elétrica e toda a família dividia o mesmo quarto mal ventilado. Comissão aprova projeto que quer instituir Dia Mães de Maio A Comissão de Educação e Cultura da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) aprovou, dia 6, projeto que inclui o “Dia Mães de Maio” no Calendário Oficial do Estado. A proposta, sugere que a data 12 de maio seja relembrada todos os anos nos 645 municípios de São Paulo. O objetivo do projeto, de autoria da deputada estadual Telma de Souza (PT-SP), é evitar que os crimes ocorridos em maio de 2006 sejam esquecidos e os responsáveis permaneçam impunes. A cada hora, dez mulheres sofrem maus tratos Os dados brasileiros são assustadores. O Brasil é o 7º país com a maior taxa de homicídio de mulheres, segundo o Mapa da Violência 2012 – Homicídio de Mulheres. São 4,4 assassinadas para um grupo de 100 mil. O mesmo mapa mostra que a cada cinco minutos, uma mulher é agredida. E a cada duas horas, uma é morta vítima de violência. A Central de Atendimento à Mulher, que disponibiliza o número de telefone 180 para denúncias, contabilizou de janeiro a dezembro de 2012, 732.468 registros, sendo 88.685 relatos de violência. Por esses dados, a cada hora, dez mulheres sofrem de maus tratos. A maior parte é vítima de violência física (56%), seguida de psicológica (28%), moral (12%) e sexual (2%). Em 70% dos casos, o agressor é o conjuge da vítima. Se considerados ex-marido, namorado e ex-namorado, o número chega a 89%. Desde a edição 444, o jornal Brasil de Fato passou a ter quatro páginas a mais. Ou seja, agora são 16 páginas de informação e formação. Com isso, podemos levar para você mais reportagens, jornalismo inteligente e comprometido com as lutas da classe trabalhadora. Assim, acreditamos contribuir ainda mais para elevar o nível de consciência do povo, para que lute por mudanças e por uma sociedade justa. Quem ganha com isso é você, leitor. Assinatura anual: R$ 150 Assinatura bianual: R$ 260 Aproveite, assine, divulgue! Informações: www.brasildefato.com.br correio eletrônico: [email protected] telefone: (11) 2131-0800 4 de 14 a 20 de março de 2013 brasil As faces de Kátia Abreu Marcelo Cruz CAMPO Ocupação de mulheres sem-terra na propriedade da senadora denuncia a relação da ruralista com trabalho escravo, crime ambiental e grilagem de terras Marcio Zonta enviado a Palmas (TO) AS MULHERES do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na fazenda Aliança, em Tocantins, de propriedade da família da senadora Kátia Abreu (PSD-TO), denuncia a relação da ruralista com trabalho escravo, crime ambiental e grilagem de terras. A manifestação ocorreu no dia 7 de março. Em nota divulgada sobre o acontecimento, Kátia Abreu chamou o MST de “movimento dos sem lei” e a Via Campesina, que representa um conglomerado de movimentos sociais do campo na América Latina, de “milícia”. As ofensas destinadas aos quilombolas, indígenas, ribeirinhos e camponeses contrários a seu projeto no campo tem sido constante desde que a figura da também presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) ganhou notoriedade na mídia. Para pesquisadores de Tocantins este comportamento seria temor da ruralista pelas várias denúncias que envolvem seu nome em crimes ambientais e favorecimentos políticos no estado. “São muitos hectares em seu poder em Tocantins e justamente para não expor isso, Kátia Abreu só tem registrado em seu nome uma pequena propriedade” “Kátia Abreu tem medo da exposição do seu nome atrelado a desmatamentos e grilagem de terras, justamente porque está envolvida nessas questões e por isso vive atacando os movimentos sociais e comunidades tradicionais da Amazônia”, alega o professor da Universidade Federal de Tocantins, Eliseu Ribeiro Lima. Os apelidos de “Miss Desmatamento” e “Rainha da Motosserra”, empregados à ruralista pelos movimentos ambientalistas expõem, ainda, uma trajetória política pautada pelos antigos preceitos da União Democrática Ruralista (UDR). “Essa defesa da propriedade acima de tudo vem com Kátia Abreu desde que Mulheres do MST ocupam a fazenda Aliança, em Tocatins (TO), de propriedade as senadora Kátia Abreu era presidente do sindicato rural do município de Gurupi, em Tocantins”, comenta Eliseu. Sem-terra Embora a história política de Kátia Abreu esteja ligada a cargos de direção em entidades de classe, a senadora não registra seus imóveis rurais em seu nome. A ruralista detém apenas um registro de propriedade no Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) de Tocantins. Um funcionário da instituição em Palmas, que prefere não se identificar, disse que a senadora coloca seus bens rurais em nome de “laranjas, geralmente familiares”. Para o professor Eliseu, que estuda a questão agrária na região, a senadora teria uma imensidão de terras. “São muitos hectares em seu poder em Tocantins e justamente para não expor isso, Kátia Abreu só tem registrado em seu nome uma pequena propriedade”, revela. Segundo Lima, os dados do Incra encobrem, por exemplo, o favorecimento do grupo político local dirigido pelo governador José Wilson Siqueira Campos (PSDB-TO), destinado à senadora. No município de Campos Lindos, ao norte do estado, o governador teria no final da década de 1990 “grilado terras e distribuído a preço simbólico entre seus amigos empresários e parte da família Abreu para beneficiamento de soja na região”, relata o professor. Siqueira Campos, governador do estado na época, emitiu um decreto jurando de utilidade pública uma área de 105 mil hectares de terra. Kátia Abreu e seu irmão, Luiz Alfredo Abreu, teriam pagado em lotes de 1,2 mil hectares de terra R$ 8 o hectare. Sem Lei Outro tema que envolve o nome da família Abreu é o trabalho escravo. A aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do Trabalho Escravo, que estabelece a desapropriação de imóveis rurais flagrados com funcionários em condições análogas de escravidão, já foi diversas vezes questionada pela senadora. Kátia Abreu defende que a expropriação da terra seja apenas depois do julgamento em última instância, sem a reversão imediata para a reforma agrária. Federal da Fazenda Água Amarela, de propriedade do irmão da ruralista, André Luis de Castro Abreu, em Araguatins, no Tocantins. Os trabalhadores, recrutados no Maranhão, viviam em alojamentos precários, sem água potável nem fossa sanitária. Eram transportados na carroceria de caminhão por motorista sem habilitação e cumpriam regime de trabalho de 10 a 11 horas diárias, com intervalo de apenas 15 minutos para almoço. Crime ambiental Ademais, a família Abreu também estaria envolvida em casos de crime ambiental em Tocantins. Conforme informações do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) de Palmas, a fazenda ocupada pelas mulheres sem-terra teria sido embargada em 2010 e os proprietários levados a julgamento em 2012 por “destruir, desmatar e danificar florestas”. A fazenda, em nome de Irajá, também dono de uma empresa de reflorestamento com eucalipto, ainda teria uma outra infração ambiental que a embargaria novamente em 2011. Os trabalhadores, recrutados no Maranhão, viviam em alojamentos precários, sem água potável nem fossa sanitária Parte do documento emitido pelo órgão especifica: “cortar árvores ou demais formas de vegetação natural em área considerada de preservação permanente”. A ruralista e seu filho, Irajá, seriam os principais opositores de projetos de preservação de biomas, como o cerrado tocantinense. Em meados de 2102 ambos pressionaram o governador de Tocantins para a não aprovação de um projeto que destinava à região R$ 9 milhões do Fundo Mundial para o Meio Ambiente. As regiões da Serra da Cangalha, com 16,8 mil hectares, Interflúvio TocantinsParanã, com 105,4 mil hectares, e Vale do Rio Palmeiras, de 20 mil hectares, estariam em risco e seriam beneficiados pelo projeto. Irajá tentou persuadir os diversos órgãos competentes ao assunto alegando já existir no estado de Tocantins 50% de áreas protegidas, citando Reserva Legal e Áreas de Preservação Permanente. No entanto, ele não mencionou a diferenciação das Unidades de Conservação de proteção integral em relação a essas áreas, cuja exigência é mais severa. Por sua vez, Kátia Abreu argumentou junto ao Ministério de Meio Ambiente que as unidades de proteção permanente prejudicariam o agronegócio na região, já que parte das terras produtivas de Tocantins seriam atingidas. “Kátia Abreu tem medo da exposição do seu nome atrelado a desmatamentos, grilagem de terra, justamente porque está envolvida nessas questões” “Negar ao proprietário do imóvel o direito de defesa em juízo, especialmente no caso da exploração do trabalho escravo, determinando a imediata expropriação do bem, dará ensejo a incontáveis injustiças, em decorrência, sobretudo, de defecções na correta elucidação dos fatos”, alega a ruralista. Quando a PEC do Trabalho escravo foi votada em meados de 2012 pela Câmara dos Deputados, o deputado federal Irajá Abreu (PSD-TO), filho da senadora, foi um dos 57 parlamentares que votou contra. Em agosto do ano passado, 56 trabalhadores em condições análogas à de escravidão foram libertados pela Policia Aliança entre capital internacional e elite nacional Marcelo Cruz Submisso aos interesses internacionais, representantes do agronegócio de Tocantins trabalharam como intermediários dos grandes projetos na região enviado a Palmas (TO) Especialistas no assunto têm apontado a ruralista Kátia Abreu como um exemplo da burguesia nacional agrária que trabalha como intermediária dos grandes projetos do capital internacional, incentivando seu avanço sobre o campo brasileiro. Para o historiador e pesquisador do agronegócio na região de Araguaia (TO) Paulo Henrique Costa Mattos, da Universidade Federal de Tocantins, “o apoio das burguesias rurais ou industriais advém da incapacidade de fazer frente à avassaladora onda de capitais, tecnologias e financeirização que chega ao campo dos países subdesenvolvidos”. A trama envolvente entre elite agrária nacional e as empresas transnacionais evidencia esse processo. “Quando os grandes ruralistas vão plantar e colher, geralmente têm que usar máquinas e equipamentos da New Holland, Massey Fergusson, Caterpillar, John Deer, Valmet, Estil, Husqvarna e etc. Nenhuma dessas empresas é nacional”, apresenta o professor. Além disso, existe uma relação contínua na colheita e no armazenamen- Camponesas na luta contra o avanço do capital internacional sobre o campo brasileiro Outro monocultivo que vem sendo gradativamente implantado, sobretudo nas propriedades rurais da senadora Kátia Abreu, é o eucalipto to. “Os grãos são protegidos sob lonas da japonesa Sansuy. Em seguida, vêm o transporte em caminhões da estadunidense Ford, as alemãs Volkswagen e Mercedes, a italiana Fiat, as suecas Volvo e Scania”. O estreitamento com a China também vem sendo trabalhado pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Bra- sil (CNA) desde a abertura do escritório da entidade ruralista em Pequim, no fim de 2012. Os objetivos propostos pela entidade presidida por senadora Kátia Abreu são atrair investimentos públicos e privados da China para a infraestrutura do país, em especial para logística de transporte e armazenagem da produção. No Tocantins, Siqueira Campos tem conversado com o Banco de Desenvolvimento da China (BDC) na tentativa de fazer cooperação entre o empresariado local, o governo e o capital chinês. “Os chineses demonstram interesse em fazer cooperação com empresários e com o governo do Tocantins que, por sua logística, permite baratear o custo das ex- portações brasileiras, com o corredor de exportação Norte-Sul”, declarou recentemente Siqueira. “Aí está o sinal de que, em breve, também os chineses virão se servir desse mercado rodoviário, já que é através dele que se escoa a produção dos commodities agrícolas”, conclui o historiador. Além de toda essa orquestração, é de autoria do Partido Social Democrático (PSD), de Kátia Abreu, um projeto de decreto legislativo que objetiva acabar com a rotulagem de transgênicos. “No Brasil, o agronegócio conta com uma poderosa bancada ruralista no Congresso Nacional para assegurar projetos de leis com seus interesses e barrar tudo aquilo que possa contrariar o avanço do capitalismo no campo”, acusa Mattos. Monocultivos Aproximadamente 72,3% da exportação de Tocantins é soja em grão e cerca de 24, 4% de carne bovina desossada, fresca e congelada. Conforme estimativa da Secretaria de Agricultura de Tocantins, a produção de soja na safra 2010/ 2011 superou a faixa de 1,2 milhões de toneladas. Para 2102/2103 é esperado um crescimento superior a 10%, colocando o estado como um dos grandes produtores do agronegócio brasileiro. Outro monocultivo que vem sendo gradativamente implantado, sobretudo nas propriedades rurais da senadora Kátia Abreu, é o eucalipto. Segundo dados da Secretaria de Agricultura do estado, o ano de 2012 contabilizou 197,4 mil hectares de plantio da espécie. Se persistir o ritmo de crescimento da plantação de eucalipto no estado, há projeções para 2016 de uma área de 530 mil hectares utilizados para a produção. (MZ) brasil de 14 a 20 de março de 2013 5 A atualidade de Florestan Fernandes Arquivo Brasil de Fato ENTREVISTA Para professor da UFRJ, interpretação do pensador sobre o país resultou numa teoria do Brasil Vou me ater à universidade pública brasileira, cujo quadro é diferente da universidade privada. Acho que este tipo de experiência ainda é residual porque a nossa Universidade permanece excludente, apesar dos processos de massificação que tenham ocorrido dentro dela. Eu não diria democratização, mas massificação. É um espaço com uma tara elitista, e isso é um viés negativo na nossa história acadêmica. A Universidade foi pensada para formar e servir as elites, mas numa sociedade de convivência democrática que temos hoje, do ponto de vista das liberdades políticas, a universidade também reflete as contradições que estão fora dela. Existe aí um enorme conservadorismo, mas há segmentos abertos a mudanças, progressistas, segmentos de esquerda. A universidade pública brasileira está cheia de problemas, mas ruim com ela, pior sem ela. Há que ter claro as limitações e as mazelas e defender o patrimônio que representa a universidade pública. Isso porque, se nesta universidade são residuais as experiências como esta, se nós abrirmos mão da defesa do caráter público, aí é que essas experiências não existirão. Pedro Carrano de Vitória (ES) A CONTRIBUIÇÃO de Florestan Fernandes para o desenvolvimento de um olhar sobre o Brasil permanecem na ordem do dia para o debate da esquerda brasileira. Essa é a compreensão de José Paulo Netto, professor da Escola de Serviço Social da UFRJ e integrante do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Em debate organizado pela Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em parceria com a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), ele falou sobre o legado do pensador brasileiro ao Brasil de Fato. Além disso, Netto problematizou a relação entre os movimentos sociais e a sua incidência na universidade pública. Brasil de Fato – Você está participando de uma mesa sobre o pensamento de Florestan Fernandes. Qual a atualidade do pensamento de Florestan hoje? José Paulo Netto – A meu juízo, Florestan foi o maior cientista social brasileiro. E se a gente olhar com cuidado, o conjunto da sua obra, que é muito diferenciada, você percebe sua evolução, levando em conta os trabalhos dele do final dos anos 1940 até, por exemplo, a sua intervenção pública, na primeira metade dos anos 1990 – porque na obra dele não há como separar o cientista do homem público que ele foi. Eu diria que o Florestan tem uma obra diferenciada, com momentos distintos, mas ele deixa uma teoria do Brasil. Meu amigo Carlos Nelson [Coutinho] (falecido em 2012), falava em imagem do Brasil. Eu acho que é mais que isso, é uma teoria do Brasil que ele formula. Eu diria que é uma interpretação do Brasil. Quando o Florestan, ainda fortemente funcionalista, está pensando na função da guerra entre os tupinambás, ele não está estudando um objeto arqueológico, ele está querendo entender o Brasil. “Eu não creio que as dificuldades da esquerda derivem da falta de um conhecimento substantivo da realidade brasileira” Eu estou convencido que essa experiência do MST (na UFES), e de outros movimentos, não só aqui nessa universidade, mas em outros pontos, mostram que há que há audiência, ressonância e condições de se contribuir para romper essa tara elitista. O êxito dessas experiências pode reduzir resistências porque nem todas são conservadorismo político, muitas das quais são corporativas. Alguns defendem que nesses programas não há excelência e qualidade. Se nós trabalharmos visando a excelência e a qualidade, vamos desarmar essas críticas e parte desses setores vão colaborar. Ele traz um aporte a partir da caracterização de nossa economia como dependente. E qual a definição que ele dá ao caráter da elite brasileira? O capitalismo periférico, dependente, a percepção que ele tem das nossas classes dominantes, isso é um momento da obra do Florestan. Esse é o momento culminante da obra do Florestan, eu diria que pós-golpe de 1964. O Florestan que foi, arbitrária e brutalmente, impedido de exercer seu magistério, pelo AI5. Esse é o momento alto da obra de Florestan. Mas não é o único dessa obra. Eu lembraria a você o trabalho sobre os negros, publicado na primeira metade dos anos 1960, a integração do negro na sociedade de classes, um contributo ao que eu chamo de teoria do Brasil. A concepção de dependência do Florestan não era weberiana, como foi de alguns teóricos da dependência que foram discípulos dele, o caso típico de Fernando Henrique Cardoso. Ele tem uma compreensão, a meu juízo, rigorosamente marxista. Os duros juízos dele sobre as classes dominantes brasileiras me parecem absolutamente corretos e verazes. Falecido há 18 anos, Florestan é um absoluto contemporâneo nosso, um companheiro de jornada. É bastante provável que num juízo futuro os novos problemas da realidade brasileira exijam respostas que talvez não encontremos na obra de Florestan, mas as questões centrais foram as colocadas por ele. “Ele tem uma compreensão, a meu juízo, rigorosamente marxista” O sociólogo Florestan fernandes sil. O professor Octavio Ianni costumava dizer que havia uma família de pensadores, uma linhagem que começa a rigor com Euclides da Cunha, que vai envolver personagens extremamente conservadores, como por exemplo, Oliveira Viana, um pensador no limite do conservadorismo. Florestan se beneficiou do diálogo com todos esses autores. Agora, atenção: foi um diálogo extremamente crítico. Isso permitiu a Florestan, face a vários pensadores, elaborar uma síntese superadora e criativa. “Os duros juízos dele sobre as classes dominantes brasileiras me parecem absolutamente corretos e verazes” Saindo um pouco do contexto da conversa, há um texto recente em que você analisa que não há um problema de falta de teoria na esquerda; que o problema, hoje, é organizativo. É um artigo pequeno, “O déficit da esquerda é organizacional”, mas que causou polêmica. Mas continuo sustentando aquilo. Eu não acho que nós já conhece- mos o Brasil. Nós temos uma produção sobre o Brasil, e atenção: de pensadores marxistas e não marxistas. O que nos dá um estoque crítico para enfrentar a particularidade brasileira. Eu não penso que os problemas da esquerda brasileira, hoje, estão num conhecimento deficitário da realidade brasileira. E da inserção do Brasil no mundo contemporâneo. Eu insisto, nós ainda não deciframos completamente esse enigma que é o Brasil. E aí a contribuição dos marxistas me parece importante, mas é preciso levar em conta que a constituição desse estoque de conhecimentos envolveu e envolve protagonistas, pesquisadores e estudiosos, que não são necessariamente marxistas e de esquerda. Mas a esquerda tem que se beneficiar e tem sido beneficiária disso. Eu não creio que as dificuldades da esquerda derivem da falta de um conhecimento substantivo da realidade brasileira. Eu penso que não tem sido possível conjugar esse conhecimento, sua implementação, no sentido de transformações revolucionárias e socialistas, da sociedade brasileira. Não tem sido possível articular isso com movimentos sociais de envergadura, e sobretudo organizações político-partidárias, significativas e expressivas, com ponderação forte na vida brasileira. Pedro Carrano Essas questões também ocorreram em um contexto de produção e busca de compreensão sobre o Brasil, que envolveu outros pensadores? No que estou chamando de teoria do Brasil de Florestan há um contributo de originalidade intelectual que é indiscutível. Mas Florestan é impensável, por exemplo, sem Caio Prado Júnior. Aquela obra-prima que é o livro A Revolução Burguesa no Brasil – com o que muita gente discorda – é uma reflexão originalíssima. Há um diálogo contínuo com Caio Prado, para dar um exemplo. Na verdade, temos grandes pensadores, que não são necessariamente pensadores progressistas ou de esquerda, mas que contribuem para a construção disso que eu chamo de teoria do Bra- Cursos como o de especialização em Economia e Desenvolvimento Agrário, uma parceria entre a ENFF e uma universidade pública (Ufes), apontam para a a necessidade de os movimentos sociais ocuparem o espaço da universidade, ainda pouco acessível à maioria? Como você analisa a realidade brasileira a partir de recentes movimentações de trabalhadores no campo econômico? Isso pode gerar condições para o debate da esquerda voltar a ganhar força? Olha, eu sou otimista, mas como o meu velho mestre, Lukács, eu não sou otimista a curto prazo. Eu penso que os trabalhadores sofreram no mundo inteiro nos últimos 25 anos derrotas profundas que conduziram as classes trabalhadoras a uma posição defensiva, ou seja uma conjuntura – para usar uma linguagem cara ao professor Florestan – claramente contra-revolucionária. Mas isso não apagou as lutas de classe. Tem gente que pensa que as lutas estavam velhas e voltaram com a crise do Euro. Eu não penso isso não, as lutas sociais prosseguiram, moleculares, nem sempre com visibilidade, mas os trabalhadores não foram conduzidos a essa condição bovinamente. Resistiram e não há dúvida de que no mundo essas lutas defensivas estão ganhando maior força e, no Brasil, também há uma reanimação do movimento dos trabalhadores. Se essas mobilizações não deixarem nenhum saldo organizativo, gerando novas direções de vanguardas, que se refletiriam em partidos e movimentos sociais, terão impacto, mas não será potencializado. “Há que ter claro as limitações e as mazelas e defender o patrimônio que representa a universidade pública” Qual a importância da formação em um momento de descenso da luta de massas? O professor da UFRJ José Paulo Netto Acho que a coisa mais viva neste país se manifesta em duas dimensões, a primeira dimensão é a relação e a prática internacionalistas que eu vejo efetivamente no MST. A segunda, que para mim é da maior importância para a esquerda brasileira, se desenvolve em diferentes universidades, é a ênfase na formação política das novas gerações. (Colaboraram Alcione Nunes Farias, Adelson Lima, Sidevaldo Miranda Costa) 6 de 14 a 20 de março de 2013 brasil Trabalho doméstico ainda é tarefa feminina LUTA DA MULHER A quantidade de horas dedicadas pelo gênero feminino às atividades, por vezes ingratas, de manutenção do lar chega a ser 2,5 vezes maior que a do gênero masculino Aline Scarso da Redação Cultura machista A ideia de que os homens são os provedores financeiros da família e que as mulheres são as mantenedoras do bemestar do lar persiste há séculos na sociedade brasileira e a nível mundial. Esse Mais metalúrgicas, menos salário O número de mulheres na categoria metalúrgica dobrou nos últimos 11 anos. A participação feminina representava cerca de 197 mil trabalhadoras em 2002 e chegou a 445 mil em 2012, um crescimento de 26,6%. A informação é da Subseção do Dieese da Confederação Nacional dos Metalúrgicos da CUT (CNM/CUT) e consta de um estudo inédito sobre o perfil da mulher metalúrgica brasileira. Entretanto, há ainda uma grande diferença entre o que é pago aos homens e às mulheres no ramo metalúrgico. Entre 2010 e 2011 (último dado disponível), a remuneração média das mulheres era 27,9% menor do que a dos homens. Em 2011, a distância entre as remunerações apresentou pequeno aumento, atingindo 28,3%. Temporários serão efetivados na Mercedes de São Bernardo No próximo dia 1º de abril, 484 trabalhadores que tinham contrato por prazo determinado na Mercedes de São Bernardo do Campo serão efetivados. Os trabalhadores beneficiados estavam no grupo de 1.500 que tiveram os contratos suspensos no ano passado (lay-off), durante o auge da crise no setor de caminhões. No dia 7 de novembro de 2012, a Mercedes havia enviado telegrama de demissão para os 484 trabalhadores que tinham contratos por prazo determinado. “Nunca abrimos mão do retorno desses trabalhadores para a produção, pois nossa prioridade nos últimos meses foi garantir o emprego de cada um dos 12.800 companheiros da planta”, afirmou Aroaldo Oliveira, coordenador do Comite Sindical de Empresa. O Nordeste foi a região do país que registrou a maior diferença na divisão de trabalho entre gêneros “Hoje na minha casa vivemos de forma cooperativa. Todo mundo faz alguma atividade doméstica” da Redação Contag elege diretoria e aprova paridade de gênero A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) elegeu sua nova diretoria no dia 8, último dia do 11º congresso que reuniu, em Brasília, mais de 2.500 trabalhadores rurais de todas as regiões do Brasil. A eleição reconduziu ao cargo o atual presidente Alberto Broch para um novo mandato de quatro anos à frente da entidade, que congrega 27 Federações e mais de 4 mil sindicatos rurais. O evento, cujo tema foi Fortalecendo o Movimento Sindical para Melhorar a Qualidade de Vida no Campo, comemorou os 50 anos da Contag e teve a participação da presidenta Dilma Rousseff. AFAZERES DOMÉSTICOS ainda são uma tarefa predominantemente feminina? A pesquisa Uma análise das condições de vida da população brasileira de 2012, com dados relativos à Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2011, mostra que sim. As mulheres dedicam, em média, 27,7 horas por semana para afazeres domésticos, enquanto os homens dedicam 11,2 horas semanais. A quantidade de horas dedicadas pelo gênero feminino às atividades, muitas vezes ingratas, de manutenção do lar chega a ser 2,5 vezes maior que a do gênero masculino. Entre homens e mulheres que trabalham fora, a divisão do trabalho em casa também permanece desigual. Entre a população ocupada com mais de 16 anos, mulheres dedicam 22,3 horas para as jornadas domésticas, enquanto os homens gastam 10,2 horas, o que mostra que ainda persiste na sociedade brasileira uma maior parte da responsabilidade pela manutenção do lar à mulher, apesar do acesso dos dois gêneros ao mercado de trabalho. O Nordeste foi a região do país que registrou a maior diferença na divisão de trabalho entre gêneros. Além do trabalho fora de casa, as nordestinas gastam 13,7 horas semanais a mais que os homens nordestinos com trabalhos domésticos. No índice geral que conta a população ocupada e desocupada, as mulheres chegam a trabalhar 17,8 horas a mais que os homens na região. Mas por que isso acontece? As mulheres contribuem para esse tipo de relação? A artesã Wilma Ribeiro de Souza (45), casada há 23 anos com Adolfo da Silveira Dias (45) e mãe de Vinícius (21), Ana Carolina (18) e Jonatha (15), conta que ela e a filha eram as responsáveis por toda a atividade doméstica – lavavam, passavam, limpavam, alimentavam. “Era aquela coisa: se você era mulher, tinha que fazer. E eu achava que era normal, que era meu papel de mãe e mulher”, afirma. Há quatro anos a divisão de tarefas vem mudando na casa dela. “Hoje na minha casa vivemos de forma cooperativa. Todo mundo faz alguma atividade doméstica. A roupa, por exemplo, é meu marido quem passa”, explica. A mudança aconteceu depois que Wilma começou a participar do movimento feminista e levou a discussão da divisão de tarefas para dentro de casa. No início, segundo ela, foi difícil os homens aceitarem a divisão. “Eles achavam ruim. Na mentalidade deles esse tipo de serviço era coisa de mulher. O meu marido falava: ‘mas eu trabalho o dia inteiro e tenho que chegar em casa e trabalhar?’. E eu dizia: mas eu também trabalho”, diz. Aos poucos, Adolfo foi percebendo que a divisão era justa e deu razão a ela. A pressão dos irmãos contra a irmã Ana Carolina para que ela realizasse as tarefas domésticas também cessou. “Ela sempre lutou contra isso”, conta a mãe. Hoje, assim como Wilma, Ana Carolina é militante feminista. espaço sindical tipo cultura social faz com que recaia sobre as mulheres o chamado trabalho de cuidados. Na família, é comum que a mulher seja a responsável pelo cuidado das crianças, dos idosos e de um ente doente. Muitas deixam de trabalhar fora de casa para assumirem essa função, não remunerada e não reconhecida pela sociedade. “Existe uma construção social de relações de gênero que reafirma que a tarefa natural das mulheres é prover esses cuidados. E isso é reforçado o tempo todo pelos meios de comunicação, de que as mulheres nascem para cuidar, que têm mais jeito com os filhos”, explica Maria Fernanda Marcelino, integrante da Sempreviva Organização Feminista (SOF), entidade que faz parte da Secretaria Executiva da Marcha Mundial das Mulheres (MMM). “Mas isso é uma construção social, pois as mulheres e os homens são educados de formas diferentes e vão, ao longo de suas vidas, sendo direcionados para cumprir papéis diferenciados”, complementa. É fácil observar a propagação do modelo. Nas propagandas de produtos de limpeza, por exemplo, quem são as protagonistas se não as mulheres? “Não existe propaganda de sabão em pó direcionada aos homens. E o modelo sempre é uma família heterossexual”, analisa Maria Fernanda. A artesã Wilma Ribeiro de Souza diz ter tido dificuldade para reivindicar a ajuda do marido e dos filhos nas atividades domésticas. Ela aprendeu com a mãe que era a mulher a responsável pelo serviço doméstico e conta que se sentia mal de cobrar a ajuda dos homens. “Já com a minha filha não vai acontecer isso, ela não vai permitir”, acredita. Hoje, Wilma defende que as mulheres se apoderem da igualdade de direitos e reivindiquem, sem medo, a divisão igualitária dos serviços. “Falta discussão sobre isso dentro da casa. É preciso ter esse tipo de conversa”, ressalta. Mulheres querem direitos iguais A divisão igualitária do trabalho doméstico é uma das bandeiras de luta não só de brasileiras, como de mulheres de todo o mundo. “Não existe coisa de homem ou de mulher. O que existe são crianças para serem cuidadas e tarefas para serem feitas”, afirma a integrante da Sempreviva Organização Feminista (SOF), Maria Fernanda Marcelino, Segundo ela, o Estado precisa fornecer equipamentos que diminuam o trabalho no seio da família como, por exemplo, creches públicas para as crianças e lavanderias e restaurantes a preços acessíveis. A divisão igualitária do trabalho doméstico é uma das bandeiras de luta não só de brasileiras, como de mulheres de todo o mundo Na tarde do dia 8, mulheres de dezenas organizações feministas ligadas a movimentos sociais, sindicatos, partidos, coletivos e entidades saíram às ruas de várias cidades para cobrar esses e outros direitos. Em São Paulo, por exemplo, a concentração ocorreu na Praça da Sé. “A esquerda tem tido bastante dificuldade de fazer momentos de luta unitários. Mas esse é um esforço das mulheres porque a opressão machista atinge a todas elas”, explica Maria Fernanda. O dia de 8 de março é historicamente um dia de luta feminista. Neste dia, em 1857, mulheres de uma fábrica de tecidos de Nova Iorque, nos Estados Unidos, fizeram uma greve para cobrar equiparação de salários com o dos homens, tratamento digno e redução da carga de trabalho. A manifestação foi brutalmente reprimida. As mulheres foram trancadas na fábrica, que foi incendiada, e cerca de 130 tecelãs morreram carbonizadas. Peões reivindicam 5% de aumento real A campanha salarial dos trabalhadores da construção civil de São Paulo, que têm data-base em 1º de maio, já começou. O Sindicato da categoria (Sintracon-SP) entregou à entidade patronal uma pauta de reivindicações, que prevê aumento real de 5%, cartão magnético de R$ 220,00 para compras no supermercado e seguro de vida no valor de R$ 75 mil, entre outros itens. O presidente do Sindicato, Antonio de Sousa Ramalho, diz que a entidade quer pautar a negociação pelo diálogo, mas já está mobilizando os trabalhadores para enfrentar qualquer impasse. Tribunal Superior do Trabalho tem novo presidente O Tribunal Superior do Trabalho (TST) tem novo presidente para o próximo biênio. O ministro Carlos Alberto Reis de Paula, que é o primeiro negro a comandar a Corte, assumiu o cargo dia 5 de março. Mineiro de Pedro Leopoldo, Carlos Alberto Reis de Paula é juiz de carreira desde 1979 e foi o primeiro negro a integrar uma corte superior, quando chegou ao TST em 1998. Segundo informações do tribunal, o novo presidente é defensor da conciliação para solução dos conflitos trabalhistas e dará prioridade à consolidação do Processo Judicial Eletrônico – sistema informatizado que permite rapidez na tramitação dos processos. Ex-trabalhadores aceitam acordo com Shell e Basf Os ex-trabalhadores da fábrica da Shell de Paulínia (SP), posteriormente comprada pela Basf, aceitaram no dia 8 o acordo proposto pela Justiça, que garante tratamento médico e indenização por danos morais e materiais decorrentes de contaminação com substâncias químicas. A antiga fábrica, produtora de agrotóxicos, ficou em atividade entre 1974 e 2002, contaminando o solo e as águas com produtos químicos compostos por substâncias cancerígenas. No total, 1.068 pessoas, entre ex-trabalhadores e seus dependentes, processam as empresas por terem ficado expostas aos componentes. Os afetados receberão auxílio para saúde e, como indenização por danos morais e materiais individuais, cada trabalhador receberá 70% do valor estipulado em sentença judicial, acrescidos de juros e correção monetária, podendo chegar a R$ 180 mil. Por danos morais e coletivos, as empresas deverão pagar indenização de R$ 200 milhões. brasil de 14 a 20 de março de 2013 7 Nova prática, velha política José Cruz/ABr DEMOCRACIA REPRESENTATIVA Rede Sustentabilidade, partido liderado por Marina Silva, tenta superar vícios políticos, mas pairam dúvidas sobre como vai lidar com a realidade do sistema partidário Pedro Rafael de Brasília (DF) FUNDADO HÁ QUASE um mês, a Rede Sustentabilidade deve se tornar o 31º partido político do Brasil. Liderada pela ex-ministra e ex-senadora, Marina Silva, a nova organização corre contra o relógio para oficializar sua legenda a tempo de pensar em lançar candidatos para as eleições de 2014. Para isso, depende da anuência de aproximadamente 500 mil assinaturas, em pelo menos nove estados, com prazo suficiente para que os Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) se manifestem, no máximo até outubro. No ato de lançamento do partido, ocorrido em 16 de fevereiro, na capital federal, Marina Silva deixou claro que “não se trata de um esforço pensando apenas em eleição”. Mesmo assim, a prioridade do momento parece ser o recolhimento das assinaturas. No site da Rede, por exemplo, apoiadores podem se cadastrar como coletores de adesões. O mesmo empenho tem se repetido nas redes sociais. “A pauta socioambiental é marginal em todos os partidos” Esquerda-direita O tema do desenvolvimento sustentável foi adotado como eixo central na disputa ideológica que o partido quer levar para dentro do sistema político. A escolha tem a ver com a declaração de Marina Silva, de que não é “um partido de esquerda, nem de direita, mas a frente”. Para os fundadores da Rede, nenhuma agremiação partidária do país deu a devida dimensão para esse tema até agora. “A política socioambiental do governo Dilma é um desastre, e de todos os outros governos sempre foi ruim. Nenhum partido, nem de esquerda, nem de direita, tem uma visão profunda no sentido de questionar o desenvolvimento que está aí. A esquerda tem uma visão mais social, que é importante, mas o centro do desenvolvimento é o neodesenvolvimentismo predatório. A direita tem um foco na economia liberal, mas o centro do desenvolvimento também é predatório. A pauta socioambiental é marginal em todos os partidos”, avalia Pedro Ivo Batista, membro da Comissão Nacional Provisória da Rede. Militante histórico do movimento ambientalista, Ivo foi assessor muito próximo de Marina Silva na gestão à frente do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e é uma das lideranças mais engajadas na construção do novo partido. “Não considero um projeto político, nem partidário, e sim uma arregimentação fundamentalista” A ex-senadora Marina Silva fala no lançamento de seu novo partido, Rede Sustentabilidade ra, não haveria necessidade de criação de mais um partido com esse propósito, com o compromisso com o meio ambiente. A Marina quis um partido para chamar de seu, porque ela não tem sido muito fiel aos partidos a que pertenceu”, critica. Pedro Ivo rebate esse tipo de análise exemplificando a própria história. Ex-bancário e sindicalista, foi um dos fundadores do PT e militou na executiva da Central Única dos Trabalhadores (CUT). “Fui secretário nacional de meio ambiente do PT, mas o que levou um cara de esquerda e ecossocialista, como eu, a entrar na Rede, foi perceber que a sustentabilidade é o eixo central, algo que não havia ocorrido antes”. No plano nacional, a surpreendente votação de Marina Silva, que chegou a quase 20 milhões de votos nas eleições presidenciais de 2010, desencadeou um processo de debate entre seus apoiadores sobre as forças partidárias capazes de abrigar esse “capital político”. No Partido Verde (PV), legenda pela qual concorreu, Marina não obteve as mudanças desejadas e saiu em meados de 2011. “Como o PV negou-se a se democratizar, constituímos o movimento ‘nova política’. A ideia era ser um movimento supra e transpartidário e aglutinou jovens sem experiência em organização política e que se articulavam em redes sociais, além de pessoas ligadas a partidos. Marina sempre foi contrária a constituir um partido sem um amálgama social que pudesse conformar um projeto político”, acrescenta Pedro Ivo. “A Marina quis um partido para chamar de seu, porque ela não tem sido muito fiel aos partidos a que pertenceu” Entrando no jogo O professor de Ciência Política da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em São Paulo, Francisco Fonseca, pondera a capacidade do partido de lidar no sistema partidário tal como está constituído. “A Rede não será um partido inteiramente dentro do jogo político, nem fora. Na verdade, sinaliza uma dupla perspectiva: de um lado, uma organização programática, mais ideológica, mas também composto por forças políticas e parlamentares, inclusive empresários, que tendem mais a jogar a regra do jogo. A questão é saber se tem espaço para sobreviver no atual sistema político, até onde isso vai. Vejo mais perguntas do que respostas”, opina. “A questão é saber se tem espaço para sobreviver no atual sistema político, até onde isso vai” “A Rede está concordando com as regras do jogo atual, isso é um risco para qualquer partido. Se observar o que o PT defendia em 1980, não tem mais nada. Então, é mesmo um risco, mas estamos com disposição para enfrentá-lo, construir algo que seja diferente. Mais de 80% da população eleitoral brasileira não é filiada a partido político. E outros 30% simplesmente se abstiveram de votar nas últimas eleições, mesmo o voto sendo obrigatório. Então, penso que a Rede tenta inovar. Trata-se de uma disputa pela própria democracia”, aponta. Propostas fazem diferença? Futura legenda aposta em plataforma para questionar monopólio dos partidos e o financiamento de campanhas eleitorais de Brasília (DF) O vice-presidente nacional do PSB, Roberto Amaral, é um crítico atroz do novo partido. Para ele, a Rede tenta negar a disputa direita-esquerda. “Não considero um projeto político, nem partidário, e sim uma arregimentação fundamentalista. [O partido] não se define diante dos projetos da esquerda brasileira, não diz uma palavra sobre a reforma agrária. Todo mundo é a favor da sustentabilidade. A meu ver, o fato novo que temos que discutir é o que fazer para aliar desenvolvimento e sustentabilidade. Como deixar de fazer hidrelétrica e obter energia? Esse milagre nós estamos aguardando. Com esse tipo de dogma, é um projeto que não inova”, afirma. Segundo o analista político do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), Antônio Augusto Queiroz, o partido acerta ao eleger a sustentabilidade como elemento central, mas aponta dúvidas para essa ser a principal justificativa de conformação da Rede. “Claro que é um tema que permeia todas as áreas da convivência humana, é a novidade da atualidade. Ago- O deputado Domingos Dutra (PT-MA) é um dos políticos que estão apoiando a construção da Rede. Sem influência no PT de seu estado, Dutra viu seu partido emprestar apoio a “uma das últimas oligarquias do país”, comandada pela família Sarney, sem poder reverter a situação. O parlamentar ressalta a dificuldade para lidar no sistema político-partidário. A Rede Sustentabilidade foi lançada com intenção de antecipar, na prática, o desejo de mudança no sistema político. O estatuto do partido prevê, por exemplo, um percentual de até 30% das vagas para candidatos não militantes. É a chamada lista cívica ou independente. “São candidatos que não terão as obrigações de um filiado. Será uma filiação democrática, mas as pessoas serão consideradas totalmente independentes. Eles se ligarão ao partido pelos valores”, detalha Pedro Ivo, membro da Comissão Nacional Provisória do novo partido. Para Antônio Augusto Queiroz, analista político do Diap, trata-se de um tipo de “terceirização” que compromete a própria institucionalidade representativa. “Se há a identidade, porque a pessoa não se filia? Se a regra é concorrer via partido e ele resolve emprestar a legenda, é uma terceirização. Como é que um partido vai governar sem ter uma doutrina, diretriz que enquadre seus quadros? Seria mais coerente o partido defender a implantação do sistema de candidatura avulsa. Imagina se a legen- da é dada a uma pessoa do perfil desse pastor Feliciano [deputado do PSC que passou a presidir, sob protesto dos movimentos sociais, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara]?”, questiona. Para o deputado Domingos Dutra (PT-MA), o mecanismo é um avanço democrático. “Não se trata de um partido de aluguel. Criar espaços como esse ajuda a melhorar a democracia brasileira e ajuda a quebrar o monopólio para sair dessa polaridade que é esquerda e direita no Brasil. Aliás, qual é o partido no Brasil que bota a luta pelo socialismo? O PT é de esquerda, mas está administrando o capitalismo da melhor forma possível”, critica. “Como é que um partido vai governar sem ter uma doutrina, diretriz que enquadre seus quadros?” Segundo Pedro Ivo, a lista cívica terá um tipo de rigor com a identidade do partido. “Nenhum nazista, nenhum homofóbico, nenhum defensor de guerra terá o direito de estar nesse processo, mas a plataforma dele será totalmente independente. Se alguém de um movimento social quiser a legenda, terá”, observa. Ivo menciona a intenção de criar o Comitê da Sociedade Civil, com pessoas indicadas pelo próprio partido e por entidades da sociedade, inclusive movimentos sociais. É uma espécie de om- budsman coletivo, com poder de pressão, de analisar as ações do partido, se elas estão de acordo com o programa e com os princípios”, aponta. Outra “inovação” do partido é estabelecer um plebiscito, daqui a 10 anos, para consultar os filiados se o partido continua ou não. “Prevemos a possibilidade de auto-extinção porque acreditamos que o mais mais importante é a causa”, justifica. Financiamento A Rede Sustentabilidade também quer sair na frente no campo do financiamento de campanhas eleitorais. O modelo ainda não está definido, mas a ideia é criar limites de contribuição tanto para pessoa física ou jurídica. A proposta, no entanto, não tem impressionado. “A legislação eleitoral já limita um máximo de 2% do faturamento das empresas nas contribuições para campanhas. É um discurso enviesado”, afirma Antônio Augusto Queiroz, do Diap. Segundo Pedro Ivo, também serão rejeitadas as contribuições de empresas do ramo de tabaco, agrotóxicos e armas. “Quando a gente pensa em empresa, só pensa em empresa grande, mas se esquece que a grande maioria é de pequenos e médios empresários que podem e querem contribuir. O PT recebe de empresário. O [Marcelo] Freixo [deputado estadual pelo PSOL/RJ] recebeu do Guilherme Leal [empresário dono da Natura]. Isso é legítimo, mas a gente quer mudar a lei. Um cara que dá R$ 5 milhões para uma campanha é diferente do que alguém que dá R$ 100 mil. As campanhas tem que ser limitadas para não estabelecer zonas de desconforto”, argumenta. (PR) 8 de 14 a 20 de março de 2013 brasil Mais expansão de planos privados, menos fortalecimento do SUS Jadson Marque/Folhapress SAÚDE PÚBLICA Diferentes movimentos, pesquisadores e associações se manifestam contra a possível medida do governo federal de apoio à expansão dos planos de saúde privados para as classes C e D Viviane Tavares do Rio de Janeiro (RJ) A AGENDA da presidenta Dilma Rousseff no dia 26 de fevereiro não anunciava uma reunião com empresários do setor de saúde, mas a matéria do jornal Folha de S.Paulo apurou que ela se reuniu com cinco ministros de Estado, integrantes da área econômica e representantes do Bradesco, Qualicorp e Amil. A reportagem entrou em contato com a assessoria de imprensa da presidenta, que negou o compromisso, mas, mesmo com a reação provocada por diversas frentes, não se pronunciou publicamente para desmentir o encontro. O mistério sobre a reunião ainda será desvendado, mas o assunto ajudou a trazer à tona mais uma vez o crescimento do setor privado na saúde brasileira. De acordo com a matéria, a suposta reunião seria para a análise por parte do Executivo para a ‘redução de impostos, maior financiamento para melhoria da infraestrutura hospitalar e a solução da dívida das Santas Casas’. Em troca, o governo exigiria ‘uma série de garantias para o usuário’, com o objetivo de ‘facilitar o acesso de pessoas a planos de saúde privados, com uma eventual redução de preços, além da ampliação da rede credenciada’, além de ‘forçar o setor a elevar o padrão de atendimento’, como diz a Folha de S. Paulo. Para o professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) Mário Scheffer este fato não se mostrou inusitado, mas a novidade que é apresentada são os protagonistas. “Um deles é a Qualicorp – que é uma intermediadora de planos de saúdes, que cresceu muito nos últimos tempos e tem um histórico agressivo de financiamento de campanhas políticas, – na última eleição apostou para todos os lados financiando tanto a campanha da Dilma quanto do Serra e de alguns governadores. Além disso, conseguiu emplacar o presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) [ex-diretor presidente Maurício Ceschin que foi superintendente da Medial Saúde e da Qualicorp]. Outra novidade que faz a diferença é a entrada do capital estrangeiro. Até então, o setor suplementar só existia com o nacional, mas vimos recentemente o maior negócio da saúde brasileira que foi a compra da Amil”, aponta Mario, completando: “Estes segmentos estão fazendo prospecção de outros mercados desde a reforma do Obama. E estas ações estão sendo anunciadas há algum tempo. Basta acompanhar o Valor Econômico, a revista Exame, a entrevista que o dono da Amil deu para as páginas amarelas da Veja. A intenção deste capital é ampliar massivamente o acesso a planos de baixo preço. O que vem à tona são esses dois protagonistas tentando materializar esta intenção”. Por outro lado, o pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Geandro Pinheiro analisa a postura da presidenta Dilma Rousseff neste episódio, que, segundo ele, tem o propósito de dar resposta à demanda da população por saúde, além de fortalecer um modelo de desenvolvimento pautado pelo consumo. “A saúde como um todo está sendo questionada de todos os lados, e isso foi colocado para a presidenta como uma das áreas mais críticas, portanto, ela tem que dar uma resposta para as pessoas. E ela está dando e tem um apelo popular muito forte. A reforma sanitária não é algo que esteja na mente das pessoas, se dentro da própria reforma não há univocidade, imagina para a grande população? As pessoas querem saúde. Isso é dar uma resposta com um apelo popular fortíssimo e de uma marca de governo que será marcado por ampliar acesso da população, não se importando de que forma se dá este acesso. Além disso, podemos fazer uma ligação com a estratégia de consumo para o modelo de desenvolvimento, como em qualquer outra política do governo atual, mais forte ainda nestes dois últimos anos. Podemos ver, por exemplo, o Vale Cultura, que financia revista, TV a cabo...Ou seja, está vinculando aquilo que sai co- Pacientes são atendidos em macas no corredor do Hospital Estadual Rocha Faria, no Rio de Janeiro mo preceito de direito para uma questão vinculada ao consumo. Se analisarmos, todas as políticas estão tendo este norte: de ampliar o acesso ampliando o consumo”, analisa. Crescimento do setor privado Vale lembrar que os incentivos e parcerias previstos são para um setor que já está dando certo há algum tempo. Baseado em dados do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (Iess), o ano de 2012 foi mais do que satisfatório para o setor, já que a variação dos custos médico-hospitalares, ou seja, os valores pagos pelos serviços e procedimentos realizados, foi de 16,4%, quase três vezes maior do que a variação da inflação geral (IPCA) que foi de 6,1%. “A tendência de crescimento observada durante o ano de 2011 continuou no primeiro semestre de 2012, de forma que o índice atingiu o maior valor já observado desde o início da série histórica. O maior valor registrado anteriormente foi em 2009 (14,2%), logo após a crise de 2008”, aponta o estudo. No entanto, o crescimento dos serviços ofertados deste setor não tem acompanhado a mesma escalada dos lucros. A cobertura dos planos de saúde é cada vez mais criticada pelos usuários. Como resultado disso, no dia 6 de março foi publicada no Diário Oficial uma nova medida por parte da ANS. A partir de 7 de maio, quando a norma entrou em vigor, todas as negativas a beneficiários para a realização de procedimentos médicos deverão fazer a comunicação por escrito, sempre que o beneficiário solicitar. De acordo com a assessoria de imprensa da ANS, durante o ano de 2012, a agência recebeu 75.916 reclamações de consumidores de planos de saúde. Destas, 75,7% (57.509) foram referentes a negativas de cobertura. vatização do SUS, como as Organizações Sociais (OS), as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips), as Fundações Públicas, a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) e Parcerias Público-Privadas (PPP) como prejudicais ao sistema de saúde pública. “Contra fatos não há argumentos: o crescimento se deu de 34,5 milhões, em 2000, para 47,8 milhões, em 2011, tendo o Brasil se tornado o 2º mercado mundial de seguros privados, perdendo apenas para os Estados Unidos da América”, lembra. E completa: Há uma entrega acelerada para a gestão do setor privado, através da expansão dos chamados novos modelos de gestão, que têm sido denunciados como formas de intensa corrupção. Através destas organizações, o fundo público se torna mais facilmente transferido para o grande capital internacional e seus sócios internos, como os grandes O crescimento dos serviços ofertados deste setor não tem acompanhado a mesma escalada dos lucros. A cobertura dos planos de saúde é cada vez mais criticada pelos usuários “Em São Paulo, por exemplo, 60% da população tem planos de saúde, mas, para os usuários, eles estão virando um tormento. Estamos dando subsídio público com a promessa de que o serviço de saúde vai melhorar, mas com a estrutura atual, eles não conseguem suportar a quantidade de pessoas que vem crescendo. A conta não está batendo e já chegamos a um colapso. Mas isso é resultado da permissividade e conivência da ANS que deixou que a expansão artificial deste mercado acontecesse. A solução apresentada agora para resolver isso é construir rede, puxadinho dos hospitais próprios, mas, para isso, as operadoras querem dinheiro do BNDES, vários tipos de isenção ...É quase um Programa de Universidade para Todos (Prouni) da saúde ou um Programa de Aceleramento do Crescimento (PAC) das operadoras”, analisa Mario. A professora da Faculdade de Serviço Social da Uerj Maria Inês Bravo concorda que há um crescimento progressivo do número de usuários de planos de saúde e aponta outros modelos de pri- laboratórios de análises clínicas e clínicas de imagem privadas, a maioria parte dos grandes conglomerados financeiros”, denuncia Maria Inês. Mário acredita que este crescimento dos planos de saúde é ainda mais grave do que os modelos de gestão mostrados até agora. “Este movimento interfere totalmente no sistema de saúde que queremos. A ampliação dos usuários de planos de saúde para ¼ da população é uma fatia imensa se comparados a outros sistemas universais, de atendimento integral. Nestes outros países que oferecem sistemas de saúde semelhantes ao SUS, o plano de saúde faz um papel suplementar de 10 a 15% no máximo. Agora aqueles onde a participação dos planos de saúde se amplia, se transformam em sistemas duplicativos, e isso resulta nos piores sistemas, nos mais caros, nos mais ineficientes e que mais se afastam da equidade e integralidade”, aponta. Manifestações contra o desmonte do SUS Entidades alertam que o resultado é a falta de profissionais, a ineficiência da rede básica de serviços e o atendimento de baixa qualidade à população do Rio de Janeiro (RJ) Em menos de uma semana, diversos segmentos da saúde se manifestaram contra as medidas citadas pela reportagem da Folha de S.Paulo. Em nota, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) pronunciou sua posição contrária a este movimento de ampliação do sistema particular de saúde: “É uma proposta inconstitucional que significaria mais um golpe contra o sistema público brasileiro. E o pior: feita por quem deveria defender a Constituição e, por conseguinte, o acesso universal de todos os brasileiros a um sistema de saúde público igualitário. “Sistemas de saúde controlados pelo mercado são caros, deixam de fora idosos, pobres e doentes, são burocratizados e desumanizados, pois as pessoas são tratadas como mercadorias” Além de inconstitucional, a proposta discutida é uma extorsão. Na prática, é uma escandalosa transferência de recursos públicos para o setor privado. Aliás, recursos que já faltam, e muito, ao SUS. O SUS é um sistema não consolidado, pois o gasto público com saúde é muito baixo para um sistema de cobertura universal e atendimento integral. O resultado é a falta de profissionais, a ineficiência da rede básica de serviços e o atendimento de baixa qualidade à população”. A Frente Nacional contra a Privatização da Saúde também se pronunciou na tarde de ontem em relação ao ocorrido com um manifesto publicado em seu site. “Tal política não responde aos interesses da maioria da nação: sistemas de saúde controlados pelo mercado são caros, deixam de fora idosos, pobres e doentes, são burocratizados e desumanizados, pois as pessoas são tratadas como mercadorias. Se o SUS hoje não responde aos anseios populares por uma saúde universal de qualidade de acordo com a Constituição de 1988 não é pelas deficiências do modelo – há modelos de sistemas universais como Reino Unido e Cuba, amplamente bem considerados pela população e com indicadores de saúde melhores dos que o sistema de mercado da nação mais rica do planeta, os EUA – mas porque os governos não alocam recursos suficientes, não cumprem a legislação e porque a democracia, expressa no controle da sociedade sobre o sistema de saúde, não é respeitada”, diz o manifesto. Outros pesquisadores como Ligia Bahia, Luis Eugenio Portela e Mário Scheffer expuseram sua opinião em relação ao caso com a publicação do artigo ‘Dilma vai acabar com o SUS’ publicado no dia 5 de março, também na Folha de S.Paulo. No artigo, estes pesquisadores relembram que, além de contribuir com impostos, os cidadãos e empregadores “serão convocados a pagar novamente por um serviço ruim, que julgam melhor que o oferecido pela rede pública, a que todos têm direito. Em nome da limitada capacidade do SUS, o que se propõe é transferir recursos públicos para fundos de investimentos privados”. (VT – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio /Fiocruz) cultura de 14 a 20 de março de 2013 9 Bola de sebo e a diligência Reprodução CULTURA O que une Maupassant a John Ford e Ettore Scola? Maria do Rosário Caetano de São Paulo (SP) O QUE UNE o escritor Guy de Maupassant aos cineastas John Ford e Ettore Scola? Para responder a esta pergunta, faz-se necessário recuar a 1880, ano em que Bola de Sebo, um conto longo de Guy de Maupassant, foi publicado numa antologia que tematizava a guerra. O conto causou sensação imediata e somado a outros, muito disputados pelos jornais da época, transformaria Maupassant em um dos mais respeitados ficcionistas franceses de todos os tempos. Ao morrer, sifilítico e louco, em 1893, três meses antes de completar 43 anos, Maupassant desfrutava de tamanha fama e glória, que Paris inteira o pranteou. Dezenas dos maiores escritores do século 19 foram homenageá-lo. Émile Zola (1840-1902), autor de Germinal e organizador da antologia de contos que revelou Maupassant ao grande público, dedicou ao amigo comovida saudação: “Não conheci outro escritor que tenha vivido estreia tão feliz, de sucesso mais rápido e mais unânime. Aceitávamos tudo dele; aquilo que teria chocado na pluma de outro, era dele recebido com um sorriso. Ele satisfazia todas as inteligências, tocava todas as sensibilidades. Seu extraordinário talento, robusto e franco, sem concessão a coisa alguma, impunha-se de golpe à admiração e ao afeto tanto do público letrado como dos leitores comuns que permitiram carinhosamente a este artista original o direito de crescer à parte”. Para arrematar: “Ele pertencia à grande linhagem dos escritores franceses. Teve como predecessores Rabelais, Montaigne, Molière, La Fontaine, os fortes e os lúcidos, aqueles que são a razão e a luz de nossa literatura”. “Não conheci outro escritor que tenha vivido estreia tão feliz, de sucesso mais rápido e mais unânime” Bola de Sebo, o conto (quase novela) que projetou Maupassant do dia para a noite, buscou seu título no apelido de bela e roliça prostituta, Élisabeth Rousset, personagem que ocupa papel central na narrativa. A moça de contornos avantajados viaja, entre nobres e burgueses, numa diligência, que sai de Rouen rumo ao Havre (na Normandia). A viagem será difícil, pois a Guerra Franco-Prussiana vive seus momentos finais e o Exército vitorioso, o da Prússia, ocupa a região e humilha os franceses. Embarcam na diligência dez passageiros: um vendedor atacadista de vinhos (de reputação duvidosa), um rico empresário do ramo da tecelagem e um conde, todos acompanhados de suas esposas, mais duas freiras, um “democrata” (que aguarda a queda de Napoleão III) e a roliça Bola de Sebo. Os conflitos vividos pelos personagens dentro da diligência (e em seu entorno) servirão a Maupassant para que construa esta obra-prima da ficção. Outra data importante para que se estabeleçam as relações entre o ficcionista francês, o cineasta norte-americano e o diretor e roteirista italiano é o ano de 1939. Pródiga em grandes títulos cinematográficos, esta data faria história. John Ford, ainda um irlandês em busca de fama na América, lança um western chamado No Tempo das Diligências (Stagecoach). O fez depois que uma série de fracassos comerciais, no terreno do bangue-bangue, desanimaram os grandes produtores de Hollywood. Era notável o desinteresse pelo gênero. Afinal, as fitas que antagonizavam mocinhos e bandidos só vinham atraindo público masculino e pouco exigente. Ford, que mais tarde seria reconhecido como “o Homero das pradarias”, insistiu no projeto e pediu a seu roteirista (Dudley Nicols) que fizesse acréscimos românticos e humorísticos à estória. Nicols ampliou a relação amorosa entre Stella Dallas, uma prostituta (Claire Trevor), e o vaqueiro Ringo Kid (John Wayne), ampliou tiradas cômicas e acrescentou uma mulher grávida entre os passageiros da diligência cujo destino era Lordsburg. O grupo enfrentaria viagem difícil, pois ataques de índios eram esperados a qualquer instante. Cartaz de adaptação cinematográfica francesa de Bola de Sebo, de 1945 Nem o recurso do par romântico, acrescentado ao roteiro, convenceu os grandes estúdios. O filme foi feito sem a chancela de uma grande empresa produtora e com orçamento dos mais modestos. Lançado, arrebatou o público, conheceu sucesso imenso, reabilitou o western e transformou Ford num dos mais respeitados diretores de cinema do mundo. Nos créditos de No Tempo das Diligências, uma referência literária: baseado no conto Stage to Lorsburg, de Ernest Haycox. Em 1982, o cineasta Ettore Scola realizou Casanova e a Revolução (La Nuit de Varennes), drama histórico de imenso fôlego, protagonizado por elenco estelar: os italianos Marcello Mastroianni e Laura Betti, a alemã Hanna Schygulla, o norte-americano Harvey Keitel e os franceses Jean-Pierre Barrault, Jean-Claude Brialy e Jean-Louis Trintignant. Uma diligência atravessa a França, rumo a Varennes, numa bela noite de junho de 1791. Nela estão, disfarçados, o Rei Luiz XVI, a rainha Maria Antonieta e filhos. Rei e rainha, depostos pela Revolução Francesa de 1789, estão fugindo (com apoio de financistas que bancam a empreitada) ao encontro de tropas leais à monarquia. Mas Ettore Scola e seu coroteirista Sérgio Amidei não estão interessados na realeza. O que lhes interessa é outra diligência, que parte de Paris, poucas horas depois da que primeiro tomou o rumo de Verdun. “Ele pertencia à grande linhagem dos escritores franceses. Teve como predecessores Rabelais, Montaigne, Molière, La Fontaine” Na segunda diligência, a que prenderá nossa atenção por 2 horas e meia, estão uma condessa (Hanna Schygulla) e seu cabeleireiro maneirista (Brialy), uma burguesa que fabrica champagne (Andrea Ferreol), uma cantora lírica de comportamento airoso (Laura Betti), dois intelectuais, Restif de la Bretonne (Barrault) e Tom Payne (Keitel), entre outros personagens. No início da jornada, encontrarão Giácomo Casanova, já sexagenário, que viaja num cabriolé. Um acidente na estrada deixará o “don juan” veneziano à beira do caminho, aguardando socorro. Os passageiros da diligência farão questão de tê-lo a bordo. Em seu lugar, vigiando seus pertences, ficará o ajudante da condessa. O grupo partirá, rumo a Verdun. Maupassant-Ford-Scola – O que têm, em comum, o conto Bola de Sebo e os filmes No Tempo das Diligências e Casanova e a Revolução? Quem ler a obra-prima de Guy de Maupassant (a Companhia das Letras lançou, recentemente, magnífica edição intitulada 125 Contos de Maupassant Escolhidos por Noemi Mortiz Kon) e, depois, assistir, em DVD, aos filmes de John Ford (Continental) e Ettore Scola (Versátil) verá que eles têm muito em comum. Maupassant fertilizou No Tempo das Diligências. Fertilizou, também (e junto com o filme norte-americano) Casanova e a Revolução. Quem consultar apenas a ensaística anglo-saxã, nada encontrará sobre o assunto. Centenas de estudos foram dedicados a John Ford, a seus filmes e, em especial, a No Tempo das Diligências. Há quem (caso do britânico Edward Buscombe) dê ao roteirista Dudley Nicols papel central na história do filme. Seu roteiro, escrito a partir da obra de Ernest Haycox, seria importantíssimo para o êxito do projeto. A competência de Ford, ao transformar o roteiro em imagens, completava o filme que hoje tem status de obra-prima do western. Quem faz justiça a Guy de Maupassant são os franceses. André Bazin (1918- 1958), no livro O Cinema – Ensaios (Brasiliense, 1991) analisa o western de Ford com sua acuidade costumeira: “Nota-se, com efeito, que a divisão dos bons e dos maus só existe para os homens. As mulheres de alto a baixo da escala social, são, de qualquer modo, dignas de amor, pelo menos de estima e piedade. A menor meretriz é ainda redimida pelo amor ou pela morte – esta última, aliás, lhe é poupada em No Tempo das Diligências, cujas analogias com Bola de Sebo, de Maupassant, são bem conhecidas”. Jean Tulard, em seu Dicionário de Cinema – Os Diretores (L&PM, 1996), registra: “Esse grande clássico – No Tempo das Diligências – transpunha Bola de Sebo, de Maupassant, para o faroeste: o retrato dos passageiros da diligência explorado de maneira pouco habitual e o ataque dos índios (um brusco movimento de câmera) os revelava atrás dos rochedos”. Em dezembro de 1998, Ettore Scola recebeu homenagem do Festival do Novo Cinema Latino-Americano, em Havana. Perguntei a ele se Casanova e a Revolução tomara No Tempo das Diligências como uma de suas fontes de inspiração. O diretor italiano respondeu: “Pode ser. Mas não passaria, neste caso, de um ponto de partida, já que o filme de Ford é muito emocionante, cheio de perseguições e mortes. O meu, ao contrário, tem pouca ação. O que me interessava era ter um grupo de pessoas conversando dentro de um espaço fechado. Usei a diligência porque este era o meio de transporte da época, e porque gosto de ambientar meus filmes em espaços reduzidos, fechados. Acho bem mais fácil mergulhar fundo nos personagens, se por trás deles não há uma natureza aberta. Já encerrei meus personagens em um apartamento (Um Dia Muito Especial), em um terraço (La Terazza), em um salão de baile (O Baile), em um restaurante (O Jantar). Em La Nuit de Varennes encerrei meus personagens numa diligência. Sabe-se que lá fora o povo comemora seu triunfo revolucionário e os reis estão em fuga. Mas não me interessava falar de reis depostos. Por isto, como meu interesse maior era a conversa de meus personag ens, reuni dentro da diligência, um Casanova (1725-1798) já decrépito, um escritor, Restif de la Bretonne, um revolucionário americano, Tom Payne (17371809), uma mulher elegante, Sofie de la Borde, uma rica produtora de champagne, um proprietário de terras, etc. Tomei a liberdade de colocá-los juntos e a somar a eles personagens fictícios”. Nobres e empresários desprezam Bola de Sebo, mas não deixarão de implorar a ajuda dela quando, espremidos pelos tempos de guerra, sentirem fome Ettore Scola, que situou sua narrativa em junho de 1791, 23 meses depois da Revolução Francesa, detalhou sua opção pelo embarque de dois personagens estrangeiros (o inglês Tom Payne e o grande amante veneziano, Casanova) na diligência rumo a Varennes: “Payne, que nasceu na Inglaterra, foi para os EUA e tomou o partido dos revoltosos da Guerra da Independência. E apaixonou-se pela Revolução Francesa, escrevendo muitos textos sobre ela. Já Casanova não estava no caminho da Revolução Francesa. Mas escreveu páginas de ódio contra ela. Creio que fez isso porque a Revolução aconteceu à revelia dele, que então já estava velho e abandonado pelas mulheres”. Reinvenção e não plágio Ford e Scola são, não há como negar, tributários de Maupassant. Mas não plagiaram o magistral conto francês. O reinventaram. Cada um a seu modo. A densa narrativa de Maupassant nos fornece magnífico e cáustico retrato da França de seu tempo. O oportunismo dos poderosos é desenhado com a mais fina ironia. Nobres e empresários desprezam Bola de Sebo, mas não deixarão de implorar a ajuda dela quando, espremidos pelos tempos de guerra, sentirem fome. Afinal só ela cuidou de encher um cesto com saborosos víveres. E a endeusarão, relativizando suas posturas morais, quando um militar prussiano exigir da roliça prostituta ato vil. Afinal, este ato, se consumado, poupará a vida de todos os passageiros da diligência. Com o intento alcançado, voltarão a desprezá-la como reles meretriz. 125 Contos de Guy de Maupassant (Escolhidos por Noemi Mortiz Kon) – (Companhia das Letras, 822 páginas, São Paulo, 2009) No Tempo das Diligências (Stagecoach) - De John Ford (EUA, 1939). Disponível em DVD pela Continental (97 minutos). Casanova e a Revolução (La Nuit de Varennes) – De Ettore Scola (França-Itália/1982) – Disponível em DVD pela Versátil (126 minutos) 10 de 14 a 20 de março de 2013 cultura O feitiço da vila CONTO Naquela noite, cuidou bem de escolher as palavras; sabia que a partir daquele momento cada música seria uma parte importante da conversa com Gil, sua avó e o povo de lá sol ameaçava se esconder. A bruxa ruiva desceu as escadas correndo e quase tropeçou nele. – Ainda por aqui? Menino, sua família já deve estar preocupada! Sobe no carro que eu te levo... mas vem rápido, que estou atrasada. Gil gelou por alguns segundos. Andar por aí com a bruxa, imagine só! E se ela desviasse do caminho? Se resolvesse transformá-lo num sapo, num rato... estava perdido. De toda forma, era melhor aceitar a carona do que ter que passar pelas sentinelas militares na saída da cidade. Entrou, mudo. Depois de algum tempo rodando, criou coragem sabe lá de onde e perguntou de uma vez: – O que a senhora tanto carrega dentro dessa mala preta? – Essa aqui, perto do seu pé? Tem discos. – Como? – Discos, de vinil, sabe? Pra tocar música. – A senhora leva música pra tocar na festa das bruxas? A mulher teve de parar para se recompor. Quase perdera o fôlego de tanto rir. – Que festa, que bruxa, menino! Eu levo pra tocar na rádio, onde eu trabalho. Vocês não ouvem rádio lá no morro? Gil ouvia, e como. A avó, liderança da comunidade, trazia em si toda a sabedoria dos primeiros habitantes dali. Povos nativos e os que foram trazidos escravizados, como ela dizia. Ela mesma, meio negra meio índia, agregava famílias, resolvia contendas, aconselhava os mais jovens e era muito respeitada. Falava palavrão, e falava mal do governo e dos soldados armados. Entre outras coisas, saía chamando a todos nos fins de tarde para juntos escutarem a rádio local na calçada em frente a sua casinha. – Sabe, dona; a minha avó gosta muito do seu programa. Faz toda a gente ouvir, precisa de ver. Ela diz que a gente tem que escutar as coisas que a senhora toca, que isso é que é música boa, música de preto, de trabalhador... Que o lixo que ficam passando serve pra emburrecer o povo, abaixar a cabeça, sabe? Pra esses milicos tudo que agora tem andado por aqui. Eu vou contar pra ela que a senhora é uma bruxa boa, vai ficar bem orgulhosa de eu ter descoberto o segredo da sua maleta! A bruxa chorou, discretamente. Deixou Gil na esquina e voou para o estúdio. Naquela noite, cuidou bem de escolher as palavras; sabia que a partir daquele momento cada música seria uma parte importante da conversa com Gil, sua avó e o povo de lá. Jade Percassi IMAGINE O QUE seria crescer no início dos anos de 1970, numa vizinhança em que diferentes países, povos e culturas estão presentes. Para Gil, acompanhar o pai no trabalho de jardinagem das casas daquele bairro era a chance de experimentar um pouquinho de outros mundos, escutar conversas ininteligíveis e ficar imaginando de onde vinha aquela gente – e por que tinham vindo parar ali. Era uma pacata vila de pescadores, que por causa do porto e do petróleo inchara rapidamente, sem muito planejamento e com segurança ostensiva – exército, marinha e aeronáutica se orgulhavam de patrulhar a “área de segurança nacional”. Para os caiçaras, como Gil, as mudanças vinham cheias de contradições; a urbanização e o chamado desenvolvimento traziam gente, dinheiro e tecnologia, mas também a destruição da natureza e de muitos de seus hábitos e relações sociais. Menino que era, não fazia muito conta de onde aquilo tudo ia dar; bastava-lhe no contraturno da escola poder entrar com o pai nas casas dos japoneses, turcos, belgas, armênios, gregos, coreanos, italianos que se estendiam pela orla. De cada uma, guardava um gosto, um cheiro, uma sonoridade. Mas tinha uma, no pé do morro da praia deserta, que lhe dava calafrios. Era uma casa feita para gigantes, pensava. Um chalé de madeira, tipo suíço, em plenos trópicos; pé direito altíssimo e piso de azulejos descombinados. A família que o habitava era a mais esquisita: não usavam lenços, nem tinham o corpo coberto por tatuagens, nem tinham altares para seus deuses (tudo isso e muito mais Gil conhecera com os estrangeiros) – mas eram todos brancos como vampiros. Os adultos, de cabelos ruivos e olhos claros, conversavam falando em línguas diferentes entre si; as crianças, muito loiras, pareciam viver num mundo à parte. Era lá que morava a bruxa. Ela não era feia, ao contrário; tratava-se de uma bela mulher; mas trocava o dia pela noite e tinha aquela mania de chamar todos os que estivessem por ali ao cair do sol para sentar à mesa e comer. Gil mal conseguia levantar os olhos, restringia a comunicação em voz baixa, quase inaudível, com as crianças Alba-CC ao seu lado. Cada dia tinha uma surpresa – o avô da casa demonstrava igual entusiasmo se a refeição consistisse em canapés e champanhe ou refresco e pão com mortadela. “Temos que celebrar porque estamos comendo!” dizia, alto, cheio de sotaque. Todo mundo se servia do que quisesse, o quanto quisesse; só havia uma regra: não podia sobrar. Certa vez, Gil acompanhou o sermão dado pela avó ao menor dos meninos. “Este país não passou por uma guerra, vocês não podem se dar ao luxo de desperdiçar; tudo o que está nessa mesa é comida!” repetia, consternada. Mas voltando à bruxa, que mais intrigava Gil, esta tinha entre suas esquisitices uma mala preta. Quando porventura calhava de ir no sábado naquela casa, bem na hora em que saía com seu pai (perto do por do sol) lá vinha ela, de óculos escuros e maleta na mão. Será que havia outras bruxas na vila, Gil se perguntava, e elas se encontram para trocar e experimentar receitas de feitiços e bruxarias? Não demorou muito a descobrir. “Este país não passou por uma guerra, vocês não podem se dar ao luxo de desperdiçar; tudo o que está nessa mesa é comida!” Naquele sábado, veio sem o pai. Gastou horas recolhendo as flores do ipê amarelo e cuidando das mudinhas miúdas no jardim. Quando deu por si, já o Jade Percassi é educadora popular e militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). www.malvados.com. br dahmer PALAVRAS CRUZADAS Horizontais: 1.Maior ave brasileira – Medida de controle dos meios de comunicação que a presidenta Dilma ainda não teve coragem de implementar. 2.Sexta nota musical – Veículo de duas rodas – Agência Nacional de Águas. 3.Parcela em um conjunto de valores – Instituto responsável pelas necrópsias e laudos cadavéricos para Polícias Científicas. 4.“Arte”, em inglês. 5.Reunião de cardeais para a eleição de um papa – Desmoronar. 6.Rumo – Travessura. 7.Monarcas. 8.“Casa”, em tupi – Presidente venezuelano que acaba de falecer de câncer, apesar das suspeitas de que possa ter sido alvo de um atentado assim como aconteceu com Arafat. 9.Interjeição de aborrecimento – Os barracos de um acampamento sem-terra são feitos desse material. 10. O oposto de “noite” - Maneira sulista de dizer “menino” - Um espécie de canário que se encontra na Venezuela. 11.Como ficou conhecida a série de manifestações que tomaram as ruas de países como Egito e Tunísia. 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 Horizontais: 1.Ema – Regulamentação. 2.Lá – Moto – ANA. 3.Cota – IML. 4.Art. 5.Conclave – Ruir. 6.Rota – Arte. 7.Reis. 8.Oca – Hugo Chávez. 9.Pô – Lona. 10.Dia – Piá – Tarin. 11.Primavera árabe. Verticais: 1.Elenco – DP. 2.MA – Rir. 3. Ai. 4.Mó – Crack. 5.Rótulo. 6.ETA – Ata. 7.GO – Vá – Hoje. 9.LA – Lugo. 10.Ant – Pá. 11.Má – RO – Cair. 12.Mau – AA. 13.Ritual. 14.ITR – Vote. 15.ACM – Arena. 16.Rezar. 17.Ti. 18.Palestina. Verticais: 1.Lista de pessoal de uma companhia teatral – Delegacia de Polícia (sigla). 2.Estado (sigla) comandado pela oligarquia Sarney – Dar risada. 3.Interjeição de dor. 4.Forma coloquial de falar “muito” - Droga que tem esse nome em inglês porque ao usála escuta-se o estourar de “estalos”. 5.Etiqueta. 6.Movimento separatista do País Basco que anunciou o seu fim em 2011 – Registro de uma reunião. 7.Dom Tomás Balduíno nasceu neste estado (sigla) – Exclamação de encorajamento – Diz- se “oggi”, em italiano. 9.Sigla para Los Angeles, nos Estados Unidos – Presidente paraguaio que em 2012 sofreu um golpe de Estado. 10.“Formiga”, em inglês – Parte mais larga do remo. 11.Malvada – Sigla do estado de Rondônia – Tombar. 12.Movimento que contou com a participação de Gonzaguinha e Ivan Lins - Grupo de apoio no combate ao alcoolismo. 13.Conjunto de regras, cerimônia. 14.Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural – Eleja. 15.Iniciais de político baiano falecido - Aliança Renovadora Nacional. 16.Orar. 17.Pronome pessoal. 18.Estado ocupado por Israel. internacional de 14 a 20 de março de 2013 11 Uma Igreja sem Papa? Valter Campanato/ABr OPINIÃO Cedo ou tarde a Igreja terá de democratizar sua estrutura de poder. Torná-la mais colegiada Frei Betto MEU MESTRE em história da Igreja, Eduardo Hoornaert, de quem fui aluno no curso de teologia, faz uma proposta ousada, mas não descabida: uma Igreja Católica sem papa! À primeira vista, soa como uma heresia. Tão assustadora como se propor, no século 19, um Brasil sem imperador, uma Rússia sem czar, uma Áustria sem rei. O papado não é uma instituição de origem cristã. A palavra “papa” não figura no Novo Testamento. Derivar o papado do versículo de Mateus 16, 18 – “Tu és Pedro e sobre esta pedra construirei minha igreja” – é isolar o texto do contexto. Nada indica nos evangelhos que Jesus pensou em instituir uma dinastia apostólica. Foi o bispo Eusébio de Cesareia, mentor da política “globalizada” do imperador Constantino, que no século IV teve a iniciativa de redigir listas de sucessivos bispos para as principais cidades do Império Romano, de modo a adaptar a estrutura da Igreja ao modelo imperial de sucessão de poderes. Eusébio criou a imagem de Pedro-papa. A palavra papa (pope), do grego popular do século III, deriva de “pater” (pai) e expressa a estima dos cristãos por determinados bispos e sacerdotes. Chamar o sacerdote de padre (pai) e o chefe religioso de pope (papa) tornou-se costume nas Igrejas católica e ortodoxa. Ainda hoje, na Rússia, o pastor da comunidade é chamado de pope. Cipriano, bispo de Cartago (248-258), foi o primeiro a ser chamado de papa. Em Roma, o termo só passou a ser aplicado a seu bispo a partir do século 6, com o papa João I. Já o colégio de bispos, o episcopado ou conferência episcopal, tem raiz cristã. Bispo significa “supervisor” e é citado diversas vezes no Novo Testamento (1 Tm 3,2; Tito 1,7; 1 Pd 2, 25; At 20, 29). Assim como o substantivo “episcopado” (1 Tm 3, 1). O Papa Bento XVI em visita ao Brasil em 2007 Todo poder centralizado gera rivalidades. A partir do século III teve início uma acirrada disputa entre as quatro principais metrópoles do Império Romano – Constantinopla (atual Istambul), Roma, Antioquia e Alexandria. Os bispos dessas cidades eram conhecidos como “patriarcas”. Cipriano não admitiu que o bispo de Roma exercesse autoridade sobre ele, bispo de Cartago. Insistiu que entre bispos deveria vigorar “completa igualdade de funções e poder”. O papado, herdeiro do legado imperial de Constantino, tornou-se uma monarquia absoluta (ainda hoje), com poderes sobre reis e imperadores (não mais) Porém Roma conseguiu se impor, sobretudo a partir de sua aliança com o imperador germânico Carlos Magno, em 800. Isso tensionou suas relações com os patriarcas do Oriente e tornou inevitável o primeiro grande cisma da Igreja, ocorrido em 1052, que marca o início do que hoje se conhece por Igreja Católica (romana), de um lado, e Igreja Ortodoxa, de outro. O papado, herdeiro do legado imperial de Constantino, tornou-se uma monarquia absoluta (ainda hoje), com poderes sobre reis e imperadores (não mais). Essa estrutura piramidal de poder passou a não diferir de todas as outras análogas na esfera civil, marcadas por intrigas, traições, subornos, negociatas, nepotismo etc., utilizando uma linguagem inacessível aos fieis (o latim) e trocando a arte de convencer (e converter) pela força da coerção (aterrorizar): culpa, inquisição, inferno, medo, venda de indulgências etc. Dizem que Stalin teria perguntado de quantas divisões de exército dispunha o papa. De fato, Roma, por sua habilidade diplomática, saiu vitoriosa em inúmeros embates com os principais poderes do Ocidente. Toynbee chegou a afirmar que a Igreja ficou afetada pela “embriaguez da vitória”. Trancado no Vaticano, o papa passou a viver numa esfera irreal, refém de uma cúria mais interessada no apego ao poder que na missão evangélica de levar aos povos a palavra de Jesus. A modernidade balançou os alicerces da Igreja. A liberdade de consciência, o avanço das ciências, as novas tecnologias, o pluralismo ideológico, tudo is- so desmistificou o papado. Pio IX, num gesto de desespero, chegou a promulgar o controvertido dogma da infalibilidade papal, como se a história não registrasse tanta falibilidade em papas que aprovaram torturas, sentenças de morte, assassinatos, simonia, adultério etc. Leão XIII mudou a estratégia da Igreja e aliou-a aos mais fortes, ao lado dos quais Bento XV comemorou o fim da Primeira Guerra Mundial. Pio XI apoiou Mussolini, Hitler e Franco. Pio XII se omitiu frente aos crimes de lesa-humanidade do nazifascismo. O ciclo mereceu uma pausa com João XXIII e, de certo modo, com Paulo VI, que condenou a guerra do Vietnã e a ditadura militar brasileira. Mas prosseguiu com o apoio de João Paulo II à ditadura Pinochet no Chile e à política agressiva de Reagan contra a Nicarágua sandinista. Bento XVI se omitiu frente aos recentes golpes de Estado em Honduras e Paraguai. Ao contrário da instituição do papado, a do episcopado merece aplausos, sobretudo na América Latina entre 1960-1990, com bispos mártires (Angelelli e Romero) e confessores (Helder Camara, Casaldáliga, Proaño, Evaristo Arns, Padim, Mendez Arceo, Samuel Ruiz etc.). O Concílio Vaticano II pretendeu valorizar os poderes dos bispos e reduzir o do papa. Hoornaert pergunta: “Pode a França subsistir sem rei, a Inglaterra sem rainha, a Rússia sem czar, o Irã sem aiatolá? A própria história se encarrega de dar a resposta”, diz ele. Cedo ou tarde a Igreja terá de democratizar sua estrutura de poder. Torná-la mais colegiada. O que se discute não é a figura do papa, é a estrutura do papado. Em suas cartas escritas durante o Vaticano II, e hoje publicadas, Dom Helder diz ter sonhado que o papa enlouqueceu, jogou sua tiara no rio Tibre e ateou fogo no Vaticano. Na opinião do ex-arcebispo de Olinda e Recife, o papa deveria doar o Vaticano à Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade, e passar a residir em lugar mais condizente com a sua condição de sucessor de um pescador da Galileia e representante na Terra daquele que não tinha uma pedra onde recostar a cabeça. Frei Betto é escritor, autor de Cartas da Prisão (Agir), entre outros livros. 12 de 14 a 20 de março de 2013 internacional O último Pedro. Um brasileiro? Elza Fiúza/Abr CRISE NA IGREJA A profecia feita em 1139 por um homem que viria a ser canonizado como São Malaquias prevê que o papa a ser escolhido para substituir Bento XVI terá o mesmo nome daquele escolhido por Jesus Marcelo Netto Rodrigues de São Paulo (SP) NEM TANTO POR uma profecia feita por um bispo irlandês há 874 anos que dom Odilo Pedro Scherer, 63 anos, aparece como um dos favoritos a ser o próximo papa. De acordo com vaticanistas, ele é o “candidato perfeito” dos “poderosos da Cúria” por ser “dócil e insípido”. Mais do que isso, tem chances de ser escolhido por possuir outras quatro características desejáveis para quem quer chegar ao trono de São Pedro: o trânsito com integrantes influentes do conclave, a idade, a experiência em funções no Vaticano e a liderança de uma das principais dioceses da Igreja (a arquidiocese de São Paulo é a terceira maior do mundo). Pelo sim, pelo não, a profecia feita em 1139 por um homem que viria a ser canonizado como São Malaquias, por um lado, também joga a seu favor. Ela prevê que o papa a ser escolhido para substituir Bento XVI terá o nome de Pedro (ou no seu nome de batismo ou naquele a que vier escolher). Por outro, joga contra, já que, se estiver correta, dom Odilo, sendo o Pedro em questão, será o primeiro papa brasileiro, mas também o último da história da Igreja Católica. O seu principal adversário, de acordo com alguns, seria uma alternativa mais “progressista” do que ele, vinda da América do Norte, possivelmente o cardeal canadense Marc Ouellet. Já que pesa contra o italiano Angelo Scola, o cardeal favorito, um ditado popular italiano que diz que “quem entra papa no conclave, sai cardeal”. A recente morte de Hugo Chávez também deve lhe dar pontos para que a eleição se encaminhe em direção à escolha de um papa latino-americano. O cenário atual torna-se ideal para um “plano Wojtila” no continente, ou seja, um papa que venha promover um freio no chamado “socialismo do século XXI” que se espalha pela região, num movimento semelhante ao que ocorreu com a opção pelo polonês Karol Wojtila para conter a influência do comunismo soviético no Leste Europeu. O Vaticano parece ter encontrado um rival à altura. Chávez foi o primeiro líder mundial leigo de esquerda que ousou associar diretamente a imagem de Jesus e de seu projeto no combate ao capitalismo. Nem Marx, nem Engels, Lênin, Che ou Fidel o fizeram. Aos jovens do Bronx, em setembro de 2005, Chávez disse: “No começo, pensava que o capitalismo podia se humanizar, mas o capitalismo é o demônio. É Judas que vendeu Cristo por umas moedas. O socialista é Cristo, que dá a vida pelos demais, que nos chama a amar a todos, esse é o socialismo”. Já em 2006, durante sessão nas Nações Unidas (ONU), chegou até mesmo a chamar Bush de “demônio”, dizendo que o cheiro de enxofre deixado pelo então presidente dos Estados Unidos ainda pairava no ar, mesmo um dia após ele ter estado lá fazendo uso da mesma tribuna. Em resumo, para Chávez, em suas próprias palavras: “O socialismo é liberdade, amor e Cristo”. A recente morte de Hugo Chávez também deve lhe dar pontos para que a eleição se encaminhe em direção à escolha de um papa latino-americano Pedros Além da conjuntura favorável que se apresenta, o gaúcho dom Odilo também é o preferido do “carmelengo” Tarcisio Bertone, maior autoridade no Vaticano enquanto a sede estiver vacante. Bertone, durante o pontificado de Bento XVI, encabeçou a disputa pelo poder no polo oposto ao do cardeal Angelo Sodano, na queda de braço na qual Ratzinger se viu passado para trás. A propósito, o próprio Bertone também é um “Pedro”, Pietro Evasio Bertone. Mais do que isso: nasceu numa cidade chamada “Romano Canavese”, o que completaria quase que inteiramente a O arcebispo de São, Paulo, Dom Odilo Pedro Scherer profecia de Malaquias, que diz que o último papa da história se chamará “Pedro Romano” ou “Pedro II”. Mas contra ele pesa a idade, 79 anos – já que após um papa de transição, como Bento XVI, escolhido quando já era idoso, tradicionalmente opta-se por um papa jovem para que tenha um pontificado longo. Além de dom Odilo, apenas outros dois cardeais trazem Pedro em seu nome entre os 115 com direito a voto: o cardel de Gana, Peter Turkson, 65 anos, e o cardeal da Hungria, Péter Erdo, 60 anos. Além da idade ideal, 63 anos, e de uma vasta experiência na Cúria, a origem de dom Odilo também lhe favorece na disputa por votos tanto entre cardeais europeus quanto entre outros do “Sul”. De maneira que teríamos, assim, um “papa brasileiro”, mas descendente de alemães. Fora isso, um dos seus irmãos o descreve como “vidrado” em fotografia e diz que o religioso foi o primeiro da família a usar a internet para se comunicar. “Ele comenta que o futuro da igreja depende bastante desses meios de comunicação” - algo que o Vaticano também sabe e tem insistido como característica imprescindível do próximo papa. “Ele comenta que o futuro da igreja depende bastante desses meios de comunicação” E talvez tenha o ponto mais providencial de todos: dom Odilo é membro da Congregação para o Clero da Comissão Cardinalícia de Vigilância do Instituto para as Obras de Religiões (IOR), instituto mais conhecido como Banco do Vaticano – um dos pontos centrais da renúncia de Ratzinger, por este estar envolvido em escândalos de corrupção e por suas ligações com a máfia italiana. Malaquias Por sua vez, a profecia de Malaquias não é a única que cita a existência de um Pedro em um cenário em que o fim da Igreja Católica é aventado. Há uma expressão corrente que diz que assim como a Igreja começou com um Pedro, ela também terminaria com um. Daí a possibilidade, a despeito da profecia, de um próximo papa escolher o nome para si de “Pedro II”, mesmo que ele não carregue Pedro em seu nome, numa alusão a uma urgente refundação da Igreja Católica. Malaquias escreveu 112 sentenças curtas fornecendo as características dos papas católicos, desde Celestino II, em 1143, até o último pontífice que ocuparia o trono do Vaticano no meio de extremos sofrimentos mundiais. Em sua última missa pré-conclave, já em Roma, dom Odilo Pedro falou do “momento difícil” por que passa a Igreja. De acordo com a profecia de 1139, que só foi publicada em 1595, o último papa da história, o de número 112 (Ratzinger era o de número 111) enfrentaria muitas turbulências “na perseguição final à Igreja Romana”, antes do seu fim. A previsão sobre o último papa, o de número 112, é uma das únicas feitas por Malaquias que vão além de uma frase. Escreveu ele: “Na perseguição final à sagrada Igreja Romana reinará Pedro Romano, que alimentará o seu rebanho entre muitas turbulências, sendo que então, a cidade das sete colinas [Roma] será destruída e o formidável juiz julgará o seu povo”. No texto fala-se também de um falso Santo Padre que teria o olhar do demônio, os olhos do mal, que se refugia numa fortaleza de cimento Terceiro segredo de Fátima Coincidências ou não, fato é que a profecia do bispo Malaquias parece também encontrar ressonância no terceiro segredo de Fátima, que apesar de supostamente revelado por João Paulo II durante visita a Portugal, no dia 13 de maio de 2000, ainda levanta suspeitas sobre o seu verdadeiro conteúdo. À época, João Paulo II disse que o segredo tinha a ver com o atentado que sofrera em 1982. Mas os críticos contestam que não, já que ele foi baleado e sobreviveu, enquanto o segredo fala de um bispo vestido de branco que morre assassinado em meio a uma cidade destruída ao lado de outros cardeais. Numa passagem supostamente redigida em 1944, pela irmã Lúcia – uma das três crianças que afirmaram terem recebido mensagens de Nossa Senhora em Fátima, Portugal, em 1917 – a destruição de Roma aparece explícita. Mais do que isso. O terceiro segredo é identificado com um nome: a “apostasia” na Igreja. Ou seja, um afastamento definitivo e deliberado dos valores que a originaram. No texto fala-se também de um falso Santo Padre que teria o olhar do demônio, os olhos do mal, que se refugia numa fortaleza de cimento, com ângulos quebrados e janelas semelhantes a olhos, com um bico no telhado do edifício. Impossível não associar “o olhar do demônio” ao olhar que vemos nas sátiras a Ratzinger. Assim como a “fortaleza cinzenta, com ângulos quebrados e janelas semelhantes a olhos, [que] tinha um bico no telhado do edifício” à residência de verão dos papas onde Ratzinger vai morar a partir de agora, o Castel Gandolfo – que também é a sede do observatório astronômico do Vaticano, com suas duas respectivas cúpulas, que mais parecem dois olhos, que se abrem para o passar de telescópios, como “um bico no telhado do edifício”. Teoria da conspiração Entre muitos daqueles que acreditam nesses profecias apocalípticas, o início do fim do Vaticano começaria a acontecer assim que uma grande liderança mundial, defensora dos originais valores cristãos em contraponto aos valores corrompidos, fosse assassinada. Seria Chávez este líder? Já que apesar de ter morrido de câncer, muitos acreditam que não tenha morrido “de morte morrida”, mas sim de “morte matada”... Até mesmo uma centúria de Nostradamus foi resgatada após a renúncia de Ratzinger ter acontecido justamente quando um meteoro do tamanho de um ônibus se despedaçou em meteoritos sobre o território russo. “O Homem de Roma deixará seu posto; a fé humana cobrirá com um véu; a morte, então, revelará seu rosto; enviando rochas e fogo do céu; o Reino do Czar sentirá o primeiro corte; e no mundo todo imperará a morte; o morto abandonará o caixão, para devorar a carne do irmão.” Além disso, desde 2012, um planeta conhecido como Hercólubus, 66 vezes maior do que a Terra, já começa a ser visto a olho nu. Acredita-se que ao entrar na órbita da Terra, ou ao colidir com ela (já que alguns funcionários da Nasa falam de uma probabilidade de 30%) o eixo da Terra seria alterado drasticamente. Nesse sentido, Hercólubus está sendo identificado por muitos com a estrela Absinto, citada em Apocalipse 8: 7-11. Já a grande “meretriz” que aparece em Apocalipse, 17: 1-11, seria para muitos, o próprio Vaticano corrompido, devido a sua apostasia, envolvendo sua rede de prostituição, pedofilia e corrupção. E os sete reis que aparecem na mesma passagem seriam os últimos papas. “São também sete reis: cinco já caíram, um subsiste, o outro ainda não veio; e quando vier, deve permanecer pouco tempo. Quanto à Fera que era e já não é, ela mesma é um oitavo (rei). Todavia, é um dos sete e caminha para a perdição.” Isso porque, na prática, todos os papas que governaram o Vaticano após a sua criação em 1929 (após um tratado assinado entre Benito Mussolini e o papa Pio XI) são reis. Já a grande “meretriz” que aparece em Apocalipse, 17: 1-11, seria para muitos, o próprio Vaticano corrompido, devido a sua apostasia De maneira que, de lá para cá, existiram exatamente cinco papas antes de Bento XVI. Ratzinger “subsiste” e o sétimo “ainda não veio”. “Quanto à Fera que era e já não é” (seria a sombra de Ratzinger que vai continuar a governar?), “ela mesma é um oitavo (rei)”. “Todavia, é um dos sete e caminha para a perdição.” Enfim, se as profecias tiverem algum sentido, parece não restar mais dúvidas de que aos olhos de Deus a verdadeira igreja não está no Vaticano. Encontrase em quem sempre denunciou a apostasia na instituição. Entre aqueles que lutam por justiça a partir da opção preferencial pelos pobres. Entre os que foram perseguidos por ela justamente por apontarem seus descaminhos irreversíveis. Pessoas como Leonardo Boff, dom Hélder Câmara, dom Pedro Casaldáliga, dom Oscar Romero, Dorothy Stang, Ivone Gebara, dom Tomás Balduíno, Frei Betto, dom Paulo Evaristo Arns, Irmã Alberta, padre Giampetro Baresi, dom José Gomes, Gustavo Gutiérrez, Camilo Torres, Josimo Tavares e por aí vai. Se o próximo papa for, de fato, um Pedro, de sobrenome Scherer, Turkson ou Edro; ou se o cardeal eleito escolher para si o nome de papa “Pedro II”, aquela expressão “o mundo está perdido” ganhará uma nova dimensão, deixando de ser apenas simbólica. américa latina de 14 a 20 de março de 2013 13 O último adeus VTV MEMÓRIA Venezuelanos enfrentam filas quilométricas para despedir-se de Chávez e prometem dar continuidade à revolução bolivariana Marina Terra de Caracas (Venezuela) MARIAM LÓPEZ, de 23 anos, é a última na fila para ver o corpo de Hugo Chávez, falecido em 5 de março. À frente estão milhares de pessoas que, como ela, irão esperar por mais de 10 horas para dar o último adeus ao presidente venezuelano, que repousa na Academia Militar, no Paseo de Los Próceres, Caracas. No entanto, curiosamente, Mariam não simpatizava com o líder venezuelano. “Mas sempre apoiei a revolução. Ainda não consigo acreditar que ele morreu”, diz, com lágrimas nos olhos. A motivação para enfrentar a via crúcis à qual a multidão vermelha se submete desde a morte de Chávez é seu “legado”, segundo ela. “Aqueles que antes não eram reconhecidos pela sociedade foram abraçados por esse governo.” Se há uma unanimidade sobre Chávez é que o filho de Sabaneta, estado de Barinas, transformou a Venezuela ao longo dos 14 anos em que esteve no comando. Após uma longa batalha contra um câncer na região pélvica, o “comandante” deixou para os venezuelanos um país menos desigual, soberano e, acima de tudo, orgulhoso, conforme afirmou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em sua homenagem ao amigo. Assim como Lula, dezenas de outros líderes mundiais não economizaram elogios aos avanços promovidos por Chávez, indiscutivelmente uma das figuras mais complexas e interessantes das últimas décadas. E, em meio à comoção mundial pelo desaparecimento físico do presidente, venezuelanos e o mundo discutem suas conquistas, seus erros e, de forma mais urgente, se o processo revolucionário levado a cabo desde 1999 sobreviverá sem sua presença. Além disso, em 14 de abril a Venezuela realiza nova eleição presidencial, com um sabor de déja vu. O candidato oficialista Nicolás Maduro – indicado pelo próprio Chávez antes de partir para Havana, em dezembro, para a última cirurgia – irá enfrentar Henrique Capriles, ex-rival do presidente no pleito de 7 de outubro de 2012. Mesmo na morte, Chávez mais uma vez irá orientar as linhas do próximo capítulo da história venezuelana. Na quilométrica fila que leva ao caixão do presidente, estão os personagens. “Chávez pariu outra pátria”, define Miguel Rodríguez, de 26 anos, professor do ensino primário. Enquanto espera debaixo do sol inclemente da capital venezuelana, ele garante que a Revolução Bolivariana seguirá em marcha. “Vim dar meu adeus, mas também jurar ao presidente que seguirei semeando o que ele plantou na Venezuela”, diz. O “mar vermelho” se despede de Chávez: reconhecimento da sociedade pelas transformações promovidas em seu governo gonista de sua história. Hoje, na Venezuela, tanto apoiadores como opositores têm as ferramentas democráticas necessárias para alçarem sua voz, seja por meio de eleições e plebiscitos, seja pela introdução do conceito de poder comunal, ainda em desenvolvimento. Conforme afirmou em artigo o jornalista Breno Altman, Chávez “não compreendia o papel do chefe de Estado como um árbitro acima das classes ou um gestor de interesses supostamente comuns a todos, mas como um líder escolhido pela maioria do povo para representar determinado projeto de nação e forjar a mobilização necessária para vencer seus adversários”. Vem daí a forte identificação do povo com o presidente. Muitos consideravam Chávez um avô, pai, irmão, que, nesse âmbito familiar, ajudou a guiar os venezuelanos por caminhos melhores. O presidente “é fruto do descontentamento, da insatisfação, da raiva e do inconformismo popular. São sentimentos profundos, assim como é a legitimidade por ele adquirida ao longo dos anos”, escreveu o cientista político Gilberto Maringoni. Para ele, Chávez “será um mito excepcional, um mito concreto e palpável, muito diverso das criações da metafísica, por sua influência decisiva e possivelmente longa no futuro venezuelano.” Frases como “Chávez somos todos”, ou “Eu sou Chávez”, estampam adesivos, camisetas e a mente de milhões na Venezuela. Para eles, o presidente não vive- “Vim dar meu adeus, mas também jurar ao presidente que seguirei semeando o que ele plantou na Venezuela” “É bonito ver como as pessoas respondem a um homem que desapareceu. Há uma herança muito bela”, comenta Alipio Paredes, de 86 anos, militar aposentado. “Se estou cansada? Muito pelo contrário. Sinto-me viva, com alegria. Não temos mais o presidente fisicamente, mas sim sua força, sua luta, sua história. Mesmo se eu passar um mês nessa fila, o sacrifício não chegará nem perto do dele por nós. Chávez é um sentimento”, afirma a aposentada Maria Flores, de 56 anos. O que explica tamanha devoção? Talvez a erradicação do analfabetismo, a expressiva diminuição da desigualdade social – a Venezuela apresenta a sociedade com melhor repartição de renda da América do Sul –, ou o mais acelerado padrão de crescimento do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do subcontinente. Também a impressionante diminuição da pobreza. De acordo com a Comissão Econômica para a América Latina da ONU (Cepal), em 1999 — ano em que Chávez assumiu o país — 49,4% da população venezuelana se encontrava abaixo da linha da pobreza, enquanto que em 2012 o número foi reduzido para 29,5%. No entanto, mais além das transformações sociais e econômicas, Chávez foi o responsável por um despertar nacional e permitiu que a população fosse prota- rá somente como um mito, mas também como uma nova forma de viver. Compromisso histórico Assim como ela, Hernando Hernández Tapasco, congressista dos povos indígenas da Colômbia e integrante do Movimento Político e Social Marcha Patriótica, opinou que “temos um grande compromisso histórico de seguir lutando pela segunda e definitiva independência e pela união de todos os países latino-americanos e caribenhos.” Chávez colocou em prática desde o início de sua gestão uma política externa caracterizada pela aproximação aos países vizinhos e na integração regional, além de uma forte rejeição ao imperialismo norteamericano. Dele partiu o incentivo para a criação de novos mecanismos de integração e pela eliminação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), proposta feita pelos Estados Unidos em 1994. Durante os 14 anos de governo, Chávez esforçou para fortalecer a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), Comunidade de Estados Latino-Americanos e Carirbenhos (Celac) e Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (Alba), sendo o último grupo uma de suas mais audaciosas investidas. Já no ano passado a Venezuela foi integrada ao Mercosul, aumentando a população do Mercosul para 270 milhões de habitantes, cerca de 70% da população da América do Sul e o Produto Interno Bruto (PIB), que passou a ser de 3,3 trilhões de dólares, aproximadamente 83,2% do PIB sul-americano. Movimentos sociais Eles vieram dos mais diversos países, percorreram quilômetros e quilômetros, de avião, carro, ônibus, somente para homenagear o presidente venezuelano Hugo Chávez. Representantes de movimentos sociais de toda a América Latina compareceram à Academia Militar, no Paseo de Los Próceres, Caracas, cantando, dançando e balançando bandeiras nacionais. Por meio deles, o ideal de integração da “pátria grande” de Chávez foi personalizado. “Viemos à Venezuela homenagear o presidente que tanto fez pela integração dos povos latino-americanos, especialmente os originários”, afirmou Segundina Orellana, de 30 anos, coordenadora de mulheres do Trópico de Cochabamba, Bolívia. Enquanto segura um cartaz com os dizeres “Chávez vive. Bolívia está contigo”, ela complementa: “costumamos dizer em meu país que Chávez também é nosso pai. Essa é a nossa homenagem.” Ao também visitar a Academia Militar, Messilene Silva, do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e parte da Brigada internacionalista do MST na Venezuela, lembrou que “Chávez foi o exemplo e a possibilidade da construção da unidade latino-americana a partir dos povos e não somente a partir do Estado. Foi a possibilidade de uma revolução na América desde abaixo e desde cima”. “Elite não voltará ao poder” VTV Capriles eleva o tom e acusa governo de mentir sobre data da morte de Chávez de Caracas (Venezuela) Enquanto Hugo Chávez foi velado, o cenário político aqueceu na Venezuela. Com o decreto da falta absoluta do presidente, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) convocou para 14 de abril desse ano nova eleição presidencial. No páreo estarão Nicolás Maduro, atualmente presidente interino, e o governador do Estado de Miranda, Henrique Capriles, derrotado por Chávez em outubro do ano passado. No anúncio da candidatura, feito 30 horas após receber o convite da aliança opositora Mesa de Unidade Democrática (MUD), Capriles apontou contra Maduro e o governo, os acusando de usar a morte do presidente para fins eleitorais. “Quem sabe quando morreu Chávez?”, perguntou, insinuando que o presidente já havia falecido antes de 5 de março. “Vocês utilizam o corpo do presidente para fazer campanha política. Tinham tudo friamente calculado”, disse. A resposta de Maduro foi imediata. “[Capriles] quer manchar com violência, sangue e morte uma vitória cantada”, afirmou, emendando: “Juramos por Chávez e pelo nosso povo que jamais voltarão”, em referência à elite política venezuelana. Maduro disse que a população venezuelana “não pode deixar que a alma seja envenenada”, complementando que, “se não puderam com o comandante, nem o mundo, nem aqui, não poderão com a revolução.” Maduro (ao centro, olhando para o alto) durante o cortejo “Com Chávez e Maduro, o povo está seguro”, é uma das consignas mais escutadas na quilométrica fila para ver o corpo do presidente O discurso de Capriles contrasta com o adotado na campanha do ano passado. Naquela ocasião, o político do partido Primeiro Justiça se apresentou como um candidato com viés progressista, que supostamente copiaria elementos da política do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para a Venezuela. Além disso, Capriles evitou embates diretos com Chávez e aceitou prontamente a derrota para o falecido presidente, que conquistou 54,84% dos votos, contra 44,55%. Ele concorreu às eleições regionais de dezembro do ano passado, ganhando do candidato oficialista, o atual chanceler Elías Jaua, e sendo um dos únicos três governadores eleitos pela Mesa de Unidade Democrática (MUD). Com o retorno da doença de Chávez, Capriles ampliou a estratégia de se colocar como o líder da oposição. Ele adotou um discurso mais suave que o resto da aliança opositora sobre a postergação do juramento do presidente – marcado para 10 de janeiro – e o prolongado tratamento ao qual o presidente foi submetido. Isso agora parece ter mudado. Maduro, por sua vez, tem em seu favor o apoio dos simpatizantes de Chávez, que prometeram cumprir com a última vontade do presidente. Em 8 de dezembro de 2012, antes de viajar para Havana, o líder venezuelano pediu que votem no então vice-presidente caso uma nova eleição fosse necessária. “Com Chávez e Maduro, o povo está seguro”, é uma das consignas mais escutadas na quilométrica fila para ver o corpo do presidente em Los Próceres. De acordo com pesquisas, Maduro deve receber ainda mais votos que o comandante. (MT) 16 de 14 a 20 de março de 2013 américa latina O desafio da Revolução Bolivariana Rafael Stedile OPINIÃO A definição do caráter do processo conduzido por Chávez tardou a vir à tona Miguel Urbano Rodrigues POUCAS VEZES na América Latina a morte de um governante carismático terá comovido tão profundamente o seu povo como a de Hugo Chávez. Amado pelos oprimidos de todo o mundo, combatido e caluniado pelas classes dominantes, o seu funeral, acompanhado por milhões de venezuelanos, confirmou que fez história profunda. Significativamente, nele participaram dezenas de chefes de Estado e de governo vindos da América Latina, da Europa, da Ásia e da Africa. Era um obscuro oficial quando surgiu em l992 como líder de uma rebelião militar contra o governo de Carlos Andrés Pérez. A tentativa de golpe foi esmagada e cumpriu dois anos de prisão. A sua admiração por Bolívar foi então fonte de um projeto ambicioso: libertar o país da dominação imperialista e levar adiante uma revolução que, pela via institucional, fizesse do povo sujeito da história. O sonho parecia utópico porque a Venezuela era uma semicolônia dos EUA. Mas ocorreu o que os partidos da burguesia tinham por impossível. O jovem oficial mestiço, desprezado pela oligarquia, apresentou-se como candidato por um Movimento por ele criado, o V República, e venceu. O seu discurso, diferente de tudo o que se conhecia, empolgou as massas. Eleito Presidente da República em dezembro de 1998, tomou consciência de uma realidade: a conquista da presidência fora uma tarefa muito mais fácil do que aquela que se propunha a empreender: a transição do capitalismo dependente, hegemonizado pelos EUA, para uma Venezuela soberana, rumo a uma Revolução de contornos ainda por definir. Era um obscuro oficial quando surgiu em l992 como líder de uma rebelião militar contra o governo de Carlos Andrés Pérez Dois golpes de Estado, montados e financiados pelos EUA, confrontaram Chávez com crises inesperadas. O primeiro, em 2002, foi um golpe militar que contou com a participação de altas patentes das Forças Armadas. Salvo pela mobilização popular, o presidente compreendeu que, afinal, o corpo de oficiais era permeável à ofensiva ideológica do imperialismo e da grande burguesia. Uma segunda intentona quase paralisou o país e demonstrou que a PDVSA, a gigantesca empresa petrolífera, somente era nacional nominalmente, pois os dirigentes estavam identificados com o capital financeiro internacional. Em ambos os golpes estiveram envolvidos militares e civis nos quais Chávez tinha confiança. Sucessivas deserções – as mais chocantes terão sido a de Miquelena, ex ministro do Interior, e a do general Baduel – demonstraram posteriormente que muitos dos antigos companheiros não se sentiam identificados com o projeto revolucionário do presidente. Durante largo tempo uma questão sem resposta comprometeu o avanço do processo. Qual o rumo da Revolução Bolivariana? A definição tardou. No terreno da ideologia era uma revolução democrática e nacional, anti-imperialista. Chávez apercebeu-se de uma evidência: sem organização revolucionária que lhe assuma os objetivos, não há revolução que possa atingir as metas propostas. Creio que foi em 2004, dirigindo-se a um Encontro de Intelectuais em Defesa da Humanidade, que deixou pela primeira vez implícita a opção pelo socialismo. A criação de um Partido da Revolução tornou-se então uma necessidade: o Partido Socialista Unido da Venezuela. O Psuv nasceu porém numa atmosfera polêmica porque no chavismo cabiam muitas tendências, algumas incompatíveis. Criado de cima para baixo, o número de filiados atingiu rapidamente um total impressionante. O êxito gerou ilusões; muitos aderentes não eram revolucionários. O presidente exigiu que todos os partidos que apoiavam a Revolução se dissolvessem, integrando-se no Psuv. O Partido Comunista da Venezuela, reiterando a sua solidariedade irrestrita com a revolução e o seu líder, recusou. No momento em que muitos intelectuais do Psuv criticavam o marxismo- leninismo, considerando-o obsole- Venezuelanos se reúnem em ato de apoio à candidatura de Nicolás Maduro à presidência to, o PCV esclareceu que não faria sentido integrar-se num partido no qual influentes quadros atacavam princípios e valores inseparáveis do seu combate como comunistas. Não cabe neste artigo comentar os debates então travados em torno do chamado socialismo do século XXI, a ideologia que, em alternativa ao socialismo científico, estava a tomar forma na Venezuela e na América Latina. Limitome a citar o que escrevi em odiário.info no regresso de Caracas: “A fórmula do Socialismo no século XXI é equívoca e enganadora. Lembra um balão vazio. O núcleo de teórico e programático não existe praticamente. O mal está no ataque aos clássicos do marxismo, desencadeado sobretudo por alguns intelectuais latino americanos. Para eles, o pensamento de Marx, Engels e Lenin, toda a obra teórica sobre o socialismo científico tornou-se uma velharia cuja superação se apresentaria como exigência da história”. Era inevitável que a decisão de romper gradualmente com o capitalismo seria fonte de grandes problemas Política externa Com exceção dos efeitos da complexa relação com a Colômbia e os elogios a governantes liberais europeus, a política exterior de Chávez foi desde o início progressista pela firmeza e coragem que caracterizaram o choque com o imperialismo estadunidense. No tocante à América Latina, empenhou-se na solidariedade entre países irmãos. Foi decisiva a sua intervenção no debate que liquidou o projeto recolonizador da Alca. A Alternativa Boliva- riana para as Américas, Alba, bem como a criação da Unasul, do Banco do Sul, da Petrocaribe, da Celac assinalaram avanços anti-imperialistas. Transparente foi a sua atitude internacionalista, a solidariedade permanente com governos como o do Irã que não se submetem à dominação imperial dos EUA. Desafios Não obstante a ofensiva contrarrevolucionária da oposição, agora liderada pelo milionário Henrique Capriles, a situação financeira do país está controlada. As reservas de hidrocarbonetos são das maiores do mundo. Mas a insistência de alguns ministros e dirigentes do Psuv em apresentar a Venezuela como país em transição acelerada para o socialismo, deturpa a realidade. Com exceção do petróleo, a contribuição do setor privado para o PIB é maioritária. É ele que controla quatro quintos das importações. O Banco Central é autónomo. O sistema midiático é hegemonicamente controlado pela oposição. A transição para o socialismo é, portanto, ainda incipiente num contexto em que o modo de produção, as relações de produção e as estruturas económicas continuam a ser fundamentalmente capitalistas. A transição difícil Era inevitável que a decisão de romper gradualmente com o capitalismo seria fonte de grandes problemas. Mas distorce a realidade a mídia que insiste em apresentar um panorama alarmante da economia do país. Num contexto histórico muito desfavorável, hostilizada pelos governos de Bush e Obama, a Revolução Bolivariana realizou, sob uma ofensiva permanente da oligarquia crioula, conquistas muito importantes. O que surpreende não é aquilo que não foi possível realizar; mas sim o terem conseguido tanto numa atmosfera de guerra não declarada, no contexto de uma luta de classes que somente terá precedente no Chile de Allende. O analfabetismo, antes elevadíssimo, foi praticamente erradicado. Nas escolas públicas o ensino é gratuito. Num país onde o setor editorial era quase inexistente, o Estado distribuiu gratuitamente desde o início da Revolução dezenas de milhões de livros de autores nacionais e estrangeiros. Novas universidades foram criadas. A assistência médica é hoje gratuita. Nessa política, as Misiones, programas sociais, desempenham um papel fundamental. A Mision Mercal atende a preços subsidiados 10 milhões de pobres em 1500 lojas do Estado. A Mision Barrio Adentro desenvolve um trabalho insubstituível no campo da saúde. Mais de vinte cinco mil médicos e enfermeiros cubanos levaram Saúde a milhões de trabalhadores que a ela não tinham acesso. O analfabetismo, antes elevadíssimo, foi praticamente erradicado. Nas escolas públicas o ensino é gratuito Wilson Dias/ABr Os presidentes Chávez, Dilma, Mujica e Cristina em ato que simbolizou a entrada da Venezuela no Mercosul, em julho de 2012 Conclusão Como definir e situar o revolucionário Hugo Chávez? Não é fácil a resposta. Optou pelo socialismo, imprimindo à Revolução um rumo que poucos esperavam. Não foi um marxista, nem um socialista utópico. Nunca escondeu a força do seu sentimento cristão católico. Se ele apresenta afinidades idiossincráticas na sua trajetória de revolucionário carismático e humanista, com grandes personagens da história da América Latina, não creio que seja com Bolivar, o seu génio tutelar. Como líder de massas que fascinou os oprimidos do seu povo e por eles foi amado e compreendido, ele me faz pensar em grandes caudilhos como o uruguaio Artigas e os mexicanos Pancho Villa e Emiliano Zapata. É imprevisível o amanhã da Venezuela Bolivariana. Mas tomam o desejo por realidade os que anunciam que a Revolução está condenada. Como afirma o ex-ministério da Industria, Victor Alvarez, num artigo publicado em Portugal (Público, 10.03.2013), Hugo Chávez deixou como legado uma carta de navegação e um painel de instrumentos para que seja mantido o rumo. Confrontam-se duas opções. Uma desenvolvimentista, inseparável de um modelo rentista. A outra, social, que privilegia o direito ao trabalho, a educação, a habitação, a saúde, a alimentação, a cultura. Hugo Chávez restituiu a esperança aos seus compatriotas e aos povos da América Latina. Desaparecido fisicamente, já deu entrada no panteão dos heróis do Continente. Miguel Urbano Rodrigues é jornalista português e membro do Partido Comunista de Portugal.