ANAIS DO VI SENALIC – TEXTOS COMPLETOS | ISSN – 2175-4128 Organizadores: Carlos Magno Gomes; Ana Maria Leal Cardoso; Maria Lúcia Dal Farra São Cristóvão: GELIC, Volume 06, 2015 A RETOMADA DE UM PROJETO MODERNISTA: INFLUÊNCIAS OSWALDIANAS EM MEU QUERIDO CANIBAL Bruna Lago Dourado (UEFS) Este estudo aproxima aspectos das obras Pau-brasil e Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, do romance Meu querido canibal, de Antônio Torres. O projeto modernista anunciado no título refere-se ao ideal de refazer a história do Brasil, reinterpretar o passado nacional, estabelecer rupturas com a cultura acadêmica e a dominação cultural estrangeira no Brasil e construir uma outra ideia de identidade nacional, defendido na primeira fase do modernismo brasileiro, principalmente por Oswald de Andrade. Sua retomada em 2000, ano que Meu querido canibal foi publicado, pode ser identificada pelo momento de reflexão sobre os 500 anos do descobrimento do país, que foi instaurado e que representou um diálogo com as ideias modernistas de revisão crítica do passado colonial brasileiro. Já as influências, estão relacionadas com as aproximações que podem ser estabelecidas entre a poesia Pau-brasil e o Manifesto antropófago com o romance de Torres. Iniciando o trabalho de estabelecer relações entre os textos de Oswald de Andrade com o romance de Antônio Torres, é possível encontrar, em ambos os autores, uma visão diferenciada da história do Brasil, com releituras de textos dos cronistas do descobrimento e da colonização. Em Pau-brasil, “Pero Vaz Caminha” é o título do poema que abre a sessão “História do Brasil” da obra. A apropriação parodística da carta, efetuada pelo autor modernista, pode ser lida como um texto de contração da própria história da pátria. Sem rodeios e ornamentos, Oswald de Andrade recortou fragmentos do texto original, fez uma nova disposição em versos e estrofes e os intitulou. PERO VAZ CAMINHA A DESCOBERTA Seguimos nosso caminho por este mar de longo Até a oitava da páscoa Topamos aves 1 ANAIS DO VI SENALIC – TEXTOS COMPLETOS | ISSN – 2175-4128 Organizadores: Carlos Magno Gomes; Ana Maria Leal Cardoso; Maria Lúcia Dal Farra São Cristóvão: GELIC, Volume 06, 2015 E houvemos vista da terra OS SELVAGENS Mostraram-lhes uma galinha Quase haviam medo dela E não queriam pôr a mão E depois a tomaram como espantados PRIMEIRO CHÁ Depois de dançarem Diogo Dias Fez o salto real AS MENINAS DA GARE Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis Com cabelos mui pretos pelas espáduas E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas Que de nós as muito bem olharmos Não tínhamos nenhuma vergonha. (ANDRADE, 2001, p.69-8). A supressão da preposição “de” no título, uma referência a Pero Vaz de Caminha, autor do dito primeiro documento literário a respeito do Brasil, amplia as possibilidades de leitura do poema. Assim deslocado, o sobrenome Caminha passa ria a funcionar como verbo, sugerindo uma polissemia: Pero Vaz desloca-se, explora. Não só o título representa uma contração em relação ao texto original, os subtítulos das partes que compõem o poema também funcionam como elementos de ruptura e dessacralização. O primeiro deles, “A descoberta”, coloca em questão a veracidade da história oficial no que diz respeito à versão sobre o acaso no descobrimento do Brasil. O fragmento do poema flagra o momento do choque cultural entre os índios e os colonizadores e, de certo modo, sugere uma leitura crítica acerca do processo de desculturação/aculturação aos quais os indígenas brasileiros foram submetidos. O segundo subtítulo, de caráter ambíguo, pode se relacionar tanto com os indígenas, em que selvagens podem ser lidos no sentido de inocentes e primitivos, que temeram e se espantaram com a visão de uma galinha, quanto para caracterizar os colonizadores, selvagens no sentido de grosseiros e violentos, com suas técnicas de exploração e imposição cultural. 2 ANAIS DO VI SENALIC – TEXTOS COMPLETOS | ISSN – 2175-4128 Organizadores: Carlos Magno Gomes; Ana Maria Leal Cardoso; Maria Lúcia Dal Farra São Cristóvão: GELIC, Volume 06, 2015 Em “Primeiro chá”, é possível visualizar uma metáfora do que foi a relação entre invasor e dominado. Assim como nas outras partes, Oswald de Andrade faz um recorte do texto original e o ressignifica. Eis como o momento de encontro dos indígenas com Diogo Dias é narrado na carta de Caminha: [...] além do rio andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomar pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto aquilo os agradasse e segurasse e afagou, tomavam logo uma esquiveza como de animais monteses, e foram-se para cima. (CAMINHA, 2000, p. 45). No texto do escrivão, os indígenas dançavam sem se darem as mãos, num gesto de desarticulação social, que se altera quando Diogo Dias, com seu jogo de sedução ao som de uma gaita, toma-os pelas mãos, depois riem e dançam. Com direito a salto real, que pode ser interpretado como uma espécie de apresentação circense, o almoxarife seduz os indígenas. Não é a toa que o subtítulo do poema de Oswald de Andrade se chame “Primeiro chá”, que dentro da proposta de leitura crítica do autor, pode simbolizar o primeiro chá de sedução, de exploração e acumulação das riquezas encontradas na nova terra pelo colonizador. Ou seja, “depois de dançarem”, de os indígenas estarem seduzidos pela música do invasor, “Diogo Dias fez o salto real”, desestabilizando a base cultural dos autóctones e tomando posse de suas terras logo no primeiro contato. Na última parte do poema, intitulado “As meninas da Gare”, é flagrado o momento em que os colonizadores portugueses reparam na nudez das índias, num jogo carregado de malícia, quando pensada na sociedade portuguesa da época, na qual a nudez feminina era território problemático. Contrastando um tempo histórico com o atual, o título da seção faz referência a Gare, afamada por 3 ANAIS DO VI SENALIC – TEXTOS COMPLETOS | ISSN – 2175-4128 Organizadores: Carlos Magno Gomes; Ana Maria Leal Cardoso; Maria Lúcia Dal Farra São Cristóvão: GELIC, Volume 06, 2015 se constituir como uma região de prostituição. Neste contraste, Oswald de Andrade problematiza o fim que tiveram as índias, ou seja, a sua conversão em prostituas. Desse modo, o poema denuncia não apenas a colonização do espaço físico e geográfico da nova terra, mas também a exploração de seu habitante tanto pelo trabalho escravo quanto pela servidão sexual. Assim como Oswald de Andrade, a carta endereçada ao rei de Portugal foi deglutida por Antônio Torres com pretensões similares à realizada pelo escritor modernista. As apropriações em Meu querido canibal também funcionam como elementos de contrastes em relação ao texto original. No texto de Torres, os trechos que aludem à carta são utilizados ironicamente para a caracterização detalhada de Cunhambebe: “Não o imagine apenas um edênico bom selvagem – e nu, ainda por cima, sem nada a lhe cobrir as vergonhas etc” (TORRES, 2007, p. 11) e ainda para descrever as índias com “os pelos pubianos raspadinhos”. Tais apropriações funcionam como uma rasura para a visão etnocêntrica europeia sobre os indígenas, principalmente quando classificaram a mente dos autóctones como “tabula rasa” ou folha de papel em branco, imagens que no romance também são invertidas: “Nem burros, nem broncos. Muito pelo contrário. Eram inteligentes, argutos e raciocinavam com muita lucidez” (TORRES, 2007, p. 21). O trabalho de revisão crítica do passado histórico brasileiro também aparece nos outros poemas da seção “História do Brasil” de Pau-brasil. Seguindo uma ordem cronológica dos acontecimentos dos fatos e, consequentemente, das figuras relacionadas a eles, além de “Pero Vaz Caminha” aparecem os poemas: “Gandavo”, “O Capuchinho Claude D’Abbeville”, “Frei Vicente do Salvador”, “Fernão Dias Paes”, “Frei Manoel Calado”, “J. M. P. S.” e “Príncipe Dom Pedro”. De forma sintética e, muitas vezes utilizando fragmentos do texto original, Oswald de Andrade faz um convite para redescobrir o Brasil, para viajar pelo passado nacional com o olhar de colonizado e satirizar a maneira como o país foi descrito pelos primeiros colonizadores e viajantes que por aqui estiveram. 4 ANAIS DO VI SENALIC – TEXTOS COMPLETOS | ISSN – 2175-4128 Organizadores: Carlos Magno Gomes; Ana Maria Leal Cardoso; Maria Lúcia Dal Farra São Cristóvão: GELIC, Volume 06, 2015 Da mesma forma, ainda no tocante ao diálogo realizado com os cronistas do descobrimento, encontra-se registrado em Meu querido canibal a cena que descreve o momento de encontro entre Hans Staden e Cunhambebe, na verdade, uma apropriação do texto do cronista, que anteriormente narrou tal episódio em obra intitulada Duas viagens ao Brasil (1557). No texto de Staden, são apresentados os elogios que ele teria feito a Cunhambebe, o quanto o guerreiro se mostrou satisfeito com tais elogios e ao mesmo tempo como isso serviu de estratégia para tardar a sua morte e, consequentemente, conseguir sua libertação. Na apropriação realizada por Antônio Torres, os valores se invertem, uma vez que de esperto e com boa lábia para enganar os tupinambás, o cronista é descrito como um medroso que fazia de tudo para escapar de ser devorado pela tribo. Na verdade, era bastante difícil “crer que Cunhambebe quisesse de fato comer a carne trêmula de Hans Staden. O alemão vivia rezando e choramingando e se borrando de medo. Comportava-se mais como um europeu azarado nos trópicos do que como um guerreiro vencido” (TORRES, 2007, p. 47), comportamento que, segundo o texto de Torres, provavelmente teria feito Cunhambebe libertar o prisioneiro. Outra cena deglutida do relato do viajante é o momento em que Hans Staden vê Cunhambebe com uma cesta cheia de carne humana e este lhe oferece um pedaço, o que o deixa horrorizado e o faz questionar o porquê daquele ato: “–Mesmo um animal irracional raramente devora os seus semelhantes. Porque então um homem iria devorar os outros?”, questionamento para o qual Cunhambebe responde: “– Sou uma onça. Isto está gostoso” (TORRES, 2007, p. 46). Se no texto de Hans Staden, a cena é descrita como uma marca de barbárie, no texto de Torres, a resposta de Cunhambebe revela-se, num tom um tanto cômico, certa sensação de prazer pela devoração da carne, inserindo, desta forma, o canibalismo como uma prática cultural indígena, carregada de significados. 5 ANAIS DO VI SENALIC – TEXTOS COMPLETOS | ISSN – 2175-4128 Organizadores: Carlos Magno Gomes; Ana Maria Leal Cardoso; Maria Lúcia Dal Farra São Cristóvão: GELIC, Volume 06, 2015 Assim como o diálogo com os cronistas, outros aspectos, defendidos no Manifesto Antropófago, encontram-se presentes em Meu querido canibal. Ambos os textos revisam a história do Brasil e fundamentam a antropofagia como um impulso necessário para a construção de uma cultura preparada para questionar seu passado colonial e enfrentar sua dependência cultural. Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi that is the question. Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. (ANDRADE, 1997, p. 353). O manifesto de Oswald de Andrade nega a possibilidade de conciliação entre colonizadores e colonizados. O texto trabalha “contra todas as catequeses” e valoriza o índio no seu estado natural, bruto, um “mau selvagem”. Trata-se de um índio que prega a Revolução Caraíba: “Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem [...]” (ANDRADE, 1997, p. 354). A palavra caraíba designa tanto os primeiros povos indígenas, com os quais os colonizadores estabeleceram contato, predominantemente nas regiões norte da América, quanto a uma família lingüística a quem pertenciam algumas tribos brasileiras. Para o autor modernista, a revolução caraíba representava a união de várias tribos indígenas contra a presença colonizadora. A proposta de revolução indígena também aparece em Meu querido canibal por meio da narração da Confederação dos Tamoios, considerado o maior movimento realizado por diversos povos indígenas brasileiros, contra a dominação da colonização portuguesa, nas regiões de São Vicente, no litoral paulista e em Cabo Frio, no Rio de Janeiro. Toda a narração do movimento no romance é realizada a partir da relação intertextual estabelecida com a obra A guerra dos tamoios (1965), de Aylton Quintiliano. Em ambos os textos, encontram-se registrados os momentos decisivos da Confederação ou Guerra dos Tamoios, desde os fatores que determinaram a sua formação até os 6 ANAIS DO VI SENALIC – TEXTOS COMPLETOS | ISSN – 2175-4128 Organizadores: Carlos Magno Gomes; Ana Maria Leal Cardoso; Maria Lúcia Dal Farra São Cristóvão: GELIC, Volume 06, 2015 acontecimentos que levaram ao seu fim. Segundo Aylton Quintiliano, o movimento indígena ocorreu presumivelmente entre os anos de 1554 e 1555 e significou um momento da história indígena marcado pelo forte desejo pela independência e liberdade. O posicionamento de indignação contra a presença colonizadora também aparece no Manifesto Antropófago através da aversão à catequese e, por consequência, à atuação jesuítica. “Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia” (ANDRADE, 1997, p. 355). Neste tópico, Oswald de Andrade faz referência à investida colonial de exploração do açúcar maranhense, que em nada beneficiou a colônia. Além de Vieira, a denúncia do processo de desculturação indígena através, principalmente, da arte teatral, é representada pela figura de José de Anchieta: “Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema – o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo” (ANDRADE, 1997, p. 359). O padre José de Anchieta aparece em Meu querido canibal como aquele que defendeu a guerra contra os índios rebeldes à catequização. Ele, assim como o padre Manuel de Nóbrega, ganham papel de destaque na narração sobre a Confederação dos Tamoios. No momento em que os indígenas pareciam vencer a guerra e por um fim na exploração implantada pelos portugueses, os padres foram acionados para tentar um acordo de paz com os confederados. Inicialmente visitaram a aldeia de Coaquira, chefe indígena que, de algum modo, possuía certa simpatia pelos padres. Depois, foram até os outros membros do conselho para conseguir o acordo. Anchieta, descrito como um ser muito astuto, desde que chegara, aprendera a língua, os costumes e até as fraquezas dos indígenas. Utilizando-se de um poder de convencimento surpreendente, com sua “retórica jesuítica”, acabou conseguindo a confiança da maioria dos chefes tamoios, apesar de Aimberê, chefe indígena que ficou na liderança da Confederarão após a morte 7 ANAIS DO VI SENALIC – TEXTOS COMPLETOS | ISSN – 2175-4128 Organizadores: Carlos Magno Gomes; Ana Maria Leal Cardoso; Maria Lúcia Dal Farra São Cristóvão: GELIC, Volume 06, 2015 de Cunhambebe, ainda considerar os “pêros”, como chamava os portugueses, covardes e traiçoeiros. Assim como no manifesto, o texto de Torres trabalha no sentido contra a catequização. Os padres são descritos como mentirosos. Apesar de conseguirem o apoio de muitos chefes indígenas da Confederação dos Tamoios, para o herói Cunhambebe, não eram dignos de confiança. Mesmo depois de morto, tentou alertar seu filho sobre o perigo que corriam ao aceitarem o acordo de paz com os portugueses: - Filho – urrou a medonha voz. – Filho, deixe a barba crescer. - Por que, meu pai? - Para poder botar ela de molho. - Mas por que, pai? - Porque não vai ser nada disso que você está acreditando. - E por que não, meu pai? - Porque eles são mentirosos. Ouça o que eu estou lhe dizendo. Eles sempre foram ferozes, traidores, covardes e mentirosos. E não é agora que vão deixar de ser o que sempre foram. Não seja tolo, meu filho. Não dá para acreditar numa única palavra desse padreco. E, cá pra nós, que bicho feio, heim? Branquelo, pequeno, corcunda... feio como a peste. Ainda por cima tá empesteado, com o mal do peito. - Deixa de implicância com o padre, pai. Ele passou muitos dias com a gente. E se comportou como um santo homem. Até nos ensinou muitas coisas boas. - Treta. Tudo treta. Filho, não se deixe enganar pelas aparências. Cuidado com esse papa-hóstia. É um mentiroso igual aos outros. (TORRES, 2007, p. 88). Além dos padres jesuítas, o texto de Torres retoma o ideal de ir contra “o patriarca João Ramalho o fundador de São Paulo”, do Manifesto antropófago, e abre um “rodapé” para trazer algumas considerações sobre este personagem. Português proprietário de terras, João Ramalho ficou conhecido na Europa pelo tráfico de índios, principalmente os guaianases e carijós. O explorador português casou-se com Bartira, filha do chefe indígena Tibiriça, inimigo dos Tupinambás. Embora tenha sido alvo dos confederados, o traficante de índios conseguiu escapar de muitas batalhas, “viveu quase 100 anos. Um fenômeno, para aquele tempo. E virou nome de rua em São Paulo e pelo Brasil 8 ANAIS DO VI SENALIC – TEXTOS COMPLETOS | ISSN – 2175-4128 Organizadores: Carlos Magno Gomes; Ana Maria Leal Cardoso; Maria Lúcia Dal Farra São Cristóvão: GELIC, Volume 06, 2015 afora” (TORRES, 2007, p.67). Através de exemplos como o de João Ramalho, Antônio Torres denuncia o apagamento do lugar do índio na história do Brasil. “Ou seja: aqui também a história só começa com a chegada dos portugueses” (TORRES, 2007, p. 151). Tanto o manifesto de Oswald de Andrade quanto o romance de Antônio Torres, valorizam o índio natural, o habitante da “era da pedra lascada”. O índio nu, numa clara “reação contra o homem vestido”; o índio que vivia feliz antes da chegada dos colonizadores, porque “antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade” (ANDRADE, 1997, p.358). Ambos os textos trabalham contra a ideia do índio ingênuo e dócil, que entra em íntima comunhão com o colonizador, imagens que aparecem na ficção romântica, principalmente nos romances indianistas de José de Alencar. Os dois textos subvertem a ideia do bom selvagem e problematizam a entrega ou sacrifício do índio ao branco, encenada por Peri e Iracema, nos romances de Alencar. “Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz” (ANDRADE, 1997, p. 358). Para Haroldo de Campos (2001, p. 44): O “índio” oswaldiano não era o “bom selvagem” de Rousseou, acalentado pelo Romantismo e, entre nós “ninado pela suave contrafação de Alencar e Gonçalves Dias”. Tratava-se de um indianismo às avessas, inspirado no selvagem brasileiro de Montaigne (Des Cannibales), de “um mau selvagem”, portanto, a exercer sua crítica (devoração) desabusada contra as imposturas do civilizado. Com este mesmo perfil indígena, em Meu querido canibal, Cunhambebe é caracterizado como o mais corajoso de todos os guerreiros tupinambás, afamado nas batalhas contra os inimigos tupiniquins. O herói, escolhido como líder da Confederação dos Tamoios, é recriado como o mais valente da região habitada e famoso por suas batalhas na defesa do seu povo contra os colonizadores portugueses. Descrito como um canibal, o índio honra o papel esperado do rebelde, que luta contra a presença do invasor. 9 ANAIS DO VI SENALIC – TEXTOS COMPLETOS | ISSN – 2175-4128 Organizadores: Carlos Magno Gomes; Ana Maria Leal Cardoso; Maria Lúcia Dal Farra São Cristóvão: GELIC, Volume 06, 2015 A Antropofagia de Oswald de Andrade fundou, sem dúvidas, uma outra possibilidade de se pensar no problema da dependência cultural brasileira. O movimento trouxe uma perspectiva de olhar para a história do país de forma crítica, sem idealizações. Enquanto outras manifestações artístico-culturais insistiram em negar a antropofagia, Oswald de Andrade persistiu em afirmá-la como um traço positivo a ser ressaltado. O autor modernista via na antropofagia a possibilidade de inserção do índio na história e na cultura brasileira, uma maneira de estabelecer um diálogo com a tradição literária e cultural do Brasil e, ainda, uma alternativa para o enfrentamento do problema da dependência cultural. Em Meu querido canibal, o tema do canibalismo ou antropofagia aparece como eixo central da obra, uma vez que é utilizado positivamente para caracterizar o protagonista Cunhambebe, para assinalar o caráter antropofágico do narrador em suas andanças na busca de vestígios que lembrem a história dos tupinambás e de seu herói maior e, por fim, para assinalar o próprio processo literário de escrita do autor, que recorreu a inúmeros referentes para compor a sua trama. Encontram-se deglutidos na obra vários textos relacionados ao período do descobrimento, inclusive aqueles em que aparece o chefe máximo dos tupinambás; outros mais atuais, literárias ou não, que podem ser observadas por meio de citações diretas, tornando-se, desta forma, fator recorrente no romance. A análise comparativa entre os textos de Oswald de Andrade e o romance de Antônio Torres, longe de querer identificar a migração de um elemento literário de uma obra para a outra, revelou a existência de relações mútuas nas duas propostas de literaturas diferentes, neste caso, uma modernista e a outra contemporânea. É claro que a análise apresentada corresponde apenas a uma parcela das aproximações que podem ser estabelecidas entre os dois autores. No entanto, é possível reconhecer certo grau de importância nessa retomada da antropofagia oswaldiana em Meu querido canibal. A estética literária baseada na ideia de canibalismo cultural dialoga com a crítica pós-colonial e os chamados Estudos Culturais, uma vez que pode ser pensada como um estatuto de ponto de vista pós-colonial que sugere uma teoria 10 ANAIS DO VI SENALIC – TEXTOS COMPLETOS | ISSN – 2175-4128 Organizadores: Carlos Magno Gomes; Ana Maria Leal Cardoso; Maria Lúcia Dal Farra São Cristóvão: GELIC, Volume 06, 2015 brasileira preparada para o enfrentamento do atraso e da dependência cultural do país. No caso de Meu querido canibal, é possível concluir que, ao realizar um projeto de escrita fundamentado na ideia de “canibalismo literário”, o romance aproxima-se do movimento da antropofagia e atualiza a estratégia de recuperar/devorar as mais variadas inovações de diferentes matrizes culturais, com o intuito de se pensar um fazer artístico com caráter de abertura, de flexibilidade e de mistura. REFERÊNCIAS ANDRADE, Oswald de. “Manifesto antropófago”. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro: apresentação dos principais poemas, manifestos, prefácios e conferências vanguardistas, de 1857 a 1972. Petrópolis, RJ: Vozes, p. 353-360,1997. ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil. Obras Completas. 7. ed. São Paulo: Globo, 2001. CAMINHA, Pero Vaz de. Carta ao rei Dom Manuel. 3. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000. MARQUES, Reinaldo Martiniano. As cartas de Caminha e os Modernistas: releitura, reescrita e reinvenção das origens. Cadernos da Pós-Reitoria de extensão da PUC. MG/ BH: PUC. MG, 1991. QUINTILIANO, Aylton. A guerra dos tamoios. Rio de Janeiro: Reper, 1965. STADEN, Hans. Duas Viagens ao Brasil: primeiros registros sobre o Brasil. [tradução Angel Bojadsen; introdução de Eduardo Bueno]. Porto Alegre: L∞PM, 2008. TELLES, Gilberto Mendonça et al. Oswald plural. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1995. TORRES, Antônio. Meu querido canibal. 7. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. 11