de SELVAGEM
a EFEMINADO
As representações de Dioniso
no imaginário Ático
Leandro Mendonça Barbosa
©2012 Leandro Mendonça Barbosa
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permissão da editora e/ou autor.
B2344 Barbosa, Leandro Mendonça
De selvagem a efeminado: as representações de Dioniso no Imaginário Ático/
Leandro Mendonça Barbosa
Jundiaí, Paco Editorial: 2012.
200 p.
ISBN: 978-85-8148-023-7
1. Dioniso 2. Representações de imagem 3. Mitologia 4. História da Grécia,
Leandro Mendonça Barbosa
CDD: 938
Índices para catálogo sistemático:
1. História da grécia Antiga
2. Pintura Histórica
3. História Antiga em geral
IMPRESSO NO BRASIL
PRINTED IN BRAZIL
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É hora de agradecer. Por vezes isto é uma coisa clichê. Por vezes é algo
emocionante. O caso é que é necessário. Sem a ajuda e o apoio de algumas
pessoas esta obra não aconteceria. A primeira e primordial ajuda foi, sem
dúvida, de minha família. Financeiramente e moralmente ela me apoiou em
todas as fases do meu estudo; sem ela, o término deste estudo seria incerto.
Em igual relevância devo agradecer a minha orientadora de Mestrado na
Universidade Federal de Goiás: Profa. Dra. Ana Teresa Marques Gonçalves. Nossa relação pode ser resumida em uma palavra: confiança. Confiança
por aceitar a orientação, dando-me a oportunidade de trabalhar com a área
que eu realmente gostaria, mesmo que muitos historiadores que respeito
me dissessem que isto não aconteceria, pois muitos eram os empecilhos.
Confiança também por aceitar me orientar a quase mil quilômetros de distância. Obrigado, Ana, por toda a confiança depositada em mim.
Como bom historiador, sei que jamais poderia me desvencilhar de meu
próprio passado; desta forma, a Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul constitui o ponto de partida de minha carreira, e consequentemente
alguns professores que nela estiveram ou ainda estão. Ao Prof. Dr. Paulo
Marcos Esselin devo, sem sombra de dúvidas, a função de meu ofício de
historiador. Obrigado, professor, por, ainda na graduação, me oportunizar ensinamentos que me moldaram como profissional e como pessoa. Da
mesma forma, agradeço ao Prof. Dr. César Campiani Maximiano, que me
proporcionou a oportunidade de escrever um texto realmente histórico. Ao
Prof. Dr. Gonçalo Santa Cruz de Souza, devo o auxílio para elaboração de
meu pré-projeto de Mestrado, que muito me ajudou quando do processo de
seleção, e também por sempre ter me prestigiado como profissional. Faz-se necessário agradecer também o Prof. Dr. José Carlos Ziliani, por toda a
ajuda concedida nestes tantos anos de convivência.
Já a vivência na UFMS como professor foi, apesar de bem diferente da
vivência como acadêmico, tão gratificante quanto. Agradeço aos meus alunos e orientandos, pela compreensão de, muitas vezes, ter de me ausentar
por compromissos com a Pós-Graduação. Agradeço também a todo o corpo
docente do curso de História do CPTL, principalmente ao Prof. Dr. Fortunato Pastore, pela amizade, companheirismo, pelas várias dicas acerca de
meu tema e pelas turbaínas de limão.
O tempo que passei na Universidade Federal de Goiás foi um momento
ímpar em minha vida, assim como o tempo na inesquecível cidade de Goiânia. Alguns mestres serão lembrados para sempre em minha vida profissional: Prof. Dr. Élio Cantalício Serpa, Prof. Dr. Carlos Oiti Berbert Junior e
Prof. Dr. Luiz Sérgio Duarte da Silva, meus professores durante o cumprimento de créditos de Mestrado, imprescindíveis para uma visão mais ma-
dura deste ainda jovem historiador. Às integrantes de minha banca – tanto
de qualificação quanto de defesa – Profa. Dra. Maria Beatriz Borba Florenzano (USP) e Profa. Dra. Luciane Munhoz de Omena (UFG), meu especial
agradecimento pela atenta leitura e pelos apontamentos essenciais para o
aperfeiçoamento do estudo. As falhas contidas neste são de inteira responsabilidade minha. Aos colegas da pós, agradeço as trocas de experiências e
o apoio nos momentos de angústia, seja no corredor da Faculdade de História ou nas mesas da Pamonharia e do Mercado Popular. Agradeço também
a minha colega de orientação, Alice Maria de Souza, pela ajuda constante,
sempre necessária para alguém que mora longe. Como última menção a
querida Goiânia, devo agradecer a alguém muito especial, a grande amiga
Luana Neres de Sousa. Graças ao seu incentivo, meu sonho foi possível;
naquela fria Londrina, em 2005, vi a primeira chama da Antiguidade nascer com as nossas conversas.
Devo agradecer a secretaria da Pós-Graduação, em especial à Neuza,
pelo profissionalismo e compreensão para comigo. Da mesma forma agradeço os funcionários da biblioteca do Museu de Arqueologia e Etnologia da
Universidade de São Paulo, por abrirem seu acervo para minha pesquisa,
sem nenhuma restrição. De muita valia foi o site do Laboratório de Estudos sobre a Cidade Antiga – LABECA: www.mae.usp.br/labeca, que proporcionou diversas traduções de textos aqui utilizados. Ao amigo lusitano Manoel, também meu agradecimento, por fazer o original do Hino Homérico
a Dioniso atravessar on-line o Atlântico e chegar até mim. Devo agradecer
também os funcionários da Universidad de Salamanca, por permitirem a
consulta em seu acervo de Antiguidades.
Agradeço a todos os meus amigos – historiadores ou não; com vocês
tenho a certeza de que mesa de bar também é lugar de se fazer história.
Encerrando estes agradecimentos, que julgo tão importantes como todo o
resto, cabe aqui um agradecimento especial ao povo brasileiro, pois tenho
consciência de que pagaram muito caro para que eu pudesse realizar meu
trabalho. À Dona Maria Antônia, catadora de latinha, meu muito obrigado.
PREFÁCIO
O incremento nos estudos culturais, promovido nos últimos tempos, tem
possibilitado que os pesquisadores se interessem por temas cada vê mais
instigantes no que se refere à análise das sociedades complexas antigas e
de suas práticas culturais. No mais profundo esforço hermenêutico, o tema
desta obra alinha-se aos mais modernos campos de investigação histórica.
As múltiplas faces de Dioniso são desveladas por meio de um competente trabalho de interpretação dos documentos textuais e imagéticos gregos,
permitindo ao leitor perceber como a representação de uma divindade foi se
adequando paulatinamente às necessidades humanas, a partir dos dois vetores básicos que definem a construção do saber histórico: o tempo e o espaço.
Como demonstrou Pierre Grimal, em seus diversos trabalhos sobre a
construção, divulgação e recorrente recriação das mitologias grega e romana, o relato mitológico é polissêmico e moldável, pois se ajusta aos mais
diversos suportes de divulgação de mensagens, aos mais variáveis intentos
dos comunicadores, aos múltiplos gêneros retóricos de oratória e de escrita. Não apenas os aspectos temporais, espaciais e lingüísticos concorriam
para que o mito fosse constantemente reescrito, mas também os interesses
dos autores implicados na sua reelaboração, na sua inclusão num determinado gênero, na mensagem a ser passada pela obra. Esta plasticidade
explica as múltiplas Helenas, culpadas ou não da eclosão da Guerra de
Tróia, tão diversas em sua disposição nos relatos homéricos e nos textos
dos tragediógrafos; ou os múltiplos Héracles que podem ser encontrados,
com seus mais diversos trabalhos, como nos aponta Apolodoro na Biblioteca, nos vários textos e imagens que fazem referência ao mais reputado
herói grego. Até um Heracles decrépito, envelhecido e enfraquecido, que
seduz mais pela palavra do que pela valentia, pode ser encontrado, por
exemplo, na obra de Luciano de Samósata.
O mesmo ocorre com Dioniso, como é demonstrado de forma cabal neste livro. Divindade meio grega, meio bárbara, trata-se de um dos mais fortes elementos da constituição do sagrado no mundo políade. Jovem e velho,
lascivo e ordenador, impositivo e lacônico, ébrio e divino, selvagem e efeminado, rural e urbano, autóctone e estrangeiro; são múltiplas as imagens
do deus formadas e divulgadas nas fontes antigas. Estudar as imagens mitológicas e sagradas das divindades gregas é entrar em contato com o que
há de mais histórico: a transitoriedade. E por que não dizer, com o que há
de mais humano: o eterno refazer, a dura tarefa de se reconstruir cânones,
ideias e percepções, a possibilidade de reescrever memórias.
A filósofa Jeanne Marie Gagnebin já atentou para o fato de que o ato de
escrita no mundo antigo se revestia de uma característica muito diversa do
nosso ato de produzir textos. Para nós, escrever nos permite esquecer, pois
o pensamento já está elaborado, escrito, estabelecido para outras gerações.
No mundo antigo, escrever era parte integrante dos artifícios mnemônicos, ou seja, escrevia-se para lembrar. Escrever era reunir apontamentos
para facilitar o ato de decorar, não estabelecer cânones imutáveis. Escrever
era produzir um texto para ser declamado, com uma retórica própria que
deveria gerar emoções das mais diversas nos ouvintes. Ao ouvir um texto,
seja num banquete animado ao som das epopéias, ou no espaço sagrado do
teatro num concurso dedicado ao próprio Dioniso, a platéia recorria ao seu
imaginário, à sua memória, à sua imaginação criativa, para estabelecer a
sua imagem do personagem, como era narrado a partir das informações
dadas pelos autores.
Por isso, cada texto analisado, cada imagem pesquisada vai revelando
nuances de Dioniso. Os hinos religiosos buscam captar a atenção das divindades, as epopéias, entreter o público nos banquetes pelo relato dos feitos
dos heróis, os textos trágicos elaboram mensagens cívicas para uma polis
que requer a constante rememoração dos motivos que expressam a vida
em comunidade. Assim, o deus se renova a cada necessidade humana. Suas
imagens constantemente reproduzidas e ressignificadas o mantêm vivo no
imaginário grego. O culto, o ritual, as cerimônias, as festividades auxiliam
no refazer de suas formas e na construção de suas múltiplas representações.
Certamente a leitura deste livro será agradável a todos, pois congrega
informações atualizadas sobre uma das divindades mais emblemáticas do
panteão grego: Dioniso e seu séqüito de mênades e sátiros. Nas palavras
de Jean Pierre Vernant, o deus caleidoscópico, a divindade das mil faces.
Algumas delas se revelam neste belo trabalho de pesquisa. Desejamos uma
boa, saborosa e inebriante leitura a todos, como sugere tudo o que cerca a
imagem multifacetada dionisíaca.
Profa. Dra. Ana Teresa Marques Gonçalves
Professora Associada de História Antiga e Medieval na UFG
Doutora em História pela USP
Coordenadora do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano em Goiás
Coordenadora do Grupo de Trabalho em História Antiga da Anpuh-GO
Bolsista Produtividade do CNPq
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................9
CAPÍTULO 1
A REPRESENTAÇÃO DIVINA DURANTE O PERÍODO HOMÉRICO
E SUA INSERÇÃO NA POLÍTICA E NA SOCIEDADE..............................13
1. A questão da representação.......................................................................13
2. O imaginário e o mito: inter-relações e características conceituais.........19
3. Os períodos micênico e homérico: organização e política............................29
4. Dioniso no Mediterrâneo...........................................................................37
5. O Hino Homérico a Dioniso.....................................................................52
CAPÍTULO 2
PISÍSTRATO E AS TRANSFORMAÇÕES RELIGIOSAS
NO PERÍODO ARCAICO: O CASO DA DIFUSÃO DO DIONISISMO
PELO PODER TIRÂNICO...........................................................................59
1. Pisístrato, o tirano demagogo da obra Histórias, de Heródoto..............59
2. Pisístrato, o tirano moderado da
Constituição de Atenas de Aristóteles.........................................................76
3. A difusão da memória religiosa através da questão artística:
as representações dionisíacas na cerâmica ática do período arcaico............84
4. Os Pisistrátidas, o fim da tirania ateniense e o governo de Clístenes....106
CAPÍTULO 3
DIONISO NO PERÍODO CLÁSSICO:
A FORMATAÇÃO DA IMAGEM E DO CULTO
NA TRAGÉDIA EURIPIDIANA...............................................................113
1. Ascensão de Péricles e apogeu da democraia.........................................113
2. A questão do rito.....................................................................................120
3. O teatro democrático do século V e a imagem de Dioniso..........................132
4. As Bacantes e a imagem do deus Dioniso..............................................142
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................179
REFERÊNCIAS..........................................................................................183
SUMÁRIO DE iMAGENS
Imagem 01....................................................................................................95
Imagem 02....................................................................................................97
Imagem 03..................................................................................................100
Imagem 04..................................................................................................101
Imagem 05..................................................................................................102
Imagem 06..................................................................................................102
Imagem 07..................................................................................................104
INTRODUÇÃO
Passados oito anos da publicação no Brasil do clássico sobre Dioniso,
intitulado Dionisismo, poder e sociedade na Grécia até o fim da época clássica, de autoria do professor José Antonio Dabdab Trabulsi, poucas coisas
sobre Dioniso foram discutidas neste intervalo de tempo. O chamado deus
do vinho, que ganhou grande notoriedade no meio historiográfico brasileiro com os estudos de Trabulsi, vem sendo pouco estudado desde então por
outros especialistas da Antiguidade.
Este livro, sete anos depois, propõe uma leitura acerca de Dioniso, seu
culto e as suas representações imagéticas que ora se assemelham, ora se
distanciam das conclusões apresentadas por Trabulsi. Queremos deixar
claro que a obra Dionisismo, poder e sociedade na Grécia até o fim da época clássica serviu como ponto norteador dos nossos estudos desde o início,
e a excelente pesquisa que esta obra apresentou elucidou muitos aspectos completamente desconhecidos por nós. Não é nossa intenção esgotar o
debate, muito menos realizar uma tentativa de ultrapassar esta obra em
qualidade e competência teórica; o que pretendemos é outra abordagem
historiográfica, com um aporte teórico distinto e algumas fontes que não
foram contempladas pela obra de Trabulsi, o que é normal quando se pesquisa um assunto tão rico historicamente.
Dioniso e seu culto foram assuntos estudados pela mais diversa gama de
especialistas, nos mais distintos espaços de tempo – inclusive pelos próprios
gregos. Porém, foi com a obra O Nascimento da Tragédia, de Friedrich Nietzsche, nos tempos modernos, que uma imagem una de Dioniso foi colocada e
assim reverenciada. Dioniso muitas vezes torna-se até mais nietzscheniano
do que grego. As características exaltadas por Nietzsche acabam por “modelar” uma só faceta do deus, como se as divindades gregas possuíssem somente uma face, uma máscara. A proposta contida no estudo é a de perceber
que o deus não é tão “moderno” como às vezes os nietzschenianos querem
defender. O deus é grego e possui muito mais especificidades da Antiguidade
do que a imagem que se formou a partir do que Nietzsche apresenta.
Alguns são os nossos objetivos com este estudo. O principal deles é realmente perceber como se configurava esta religião em Atenas e como um
culto que antes era tão misterioso se transforma em uma grande festa
para os habitantes da Ática. Da mesma forma, como um deus, que em períodos remotos era representado com certa imagem, passa a adquirir uma
imagem distinta. Queremos constatar como o poder político influencia no
imaginário, por meio das manifestações religiosas.
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Leandro Mendonça Barbosa
Diversos aspectos da cultura grega são por nós abordados neste livro.
Desde a religiosidade até as manifestações teatrais estão analisadas como
forma de compreender as especificidades deste imaginário helênico. Pretendemos estudar o poder não de uma forma fechada, mas de uma forma
ampla. Nesta obra, abarcaremos as diversas relações de poder com a sociedade e deste com a cultura e com o cotidiano, isto é, de que forma a política
influencia os costumes e de que forma esta é influenciada por estes.
Trataremos de algumas questões conceituais pertinentes à nossa temática e às nossas fontes. Conceitos como representação, mito e imaginário
são tratados por meio de uma discussão teórica que facilite a compreensão
destas categorias como métodos de análise. Também situamos o contexto
histórico do século VII e como Dioniso aparece neste momento. O Hino
Homérico a Dioniso, além da Ilíada e da Odisseia, são os documentos estudados. O Hino configura-se como uma rica fonte acerca do imaginário helênico a respeito de Dioniso. Das obras Ilíada e Odisseia, de autoria de Homero, estão analisadas as passagens particulares que remetem a Dioniso.
Também trataremos do período seguinte, o arcaico. No século VI, várias transformações políticas e sociais ocorreram na Ática; estas transformações afetaram sensivelmente os aspectos religiosos da região. A tirania
de Pisístrato e, posteriormente, a de seus filhos faz com que Dioniso e seu
culto adentrem no civismo da polis, junto com os seguidores do deus. Heródoto, em sua obra Histórias e Aristóteles, na obra Constituição de Atenas, narram a nova forma de governo que transfigurou vários aspectos de
Atenas. Pretendemos analisar como a imagem de Dioniso era retratada no
início da tirania e como ela se transformou com o passar das décadas. Sete
imagens de cerâmica da época foram selecionadas por nós para percebemos
como estas transformações ocorreram, no que se refere às questões imagéticas, a serem apresentadas no segundo capítulo do livro.
O período democrático também será abordado. A hegemonia de Atenas,
com a vitória na Guerra Greco-Persa, faz com que a economia da Ática
conheça seu momento mais pujante, e isto permitiu que o governo de Péricles tenha tido tanto sucesso. Junto com a democracia, surge também uma
nova forma de cultuar Dioniso. O deus, que anteriormente era ruralizado,
é introduzido na cidade pela tirania e, na democracia, o culto dionisíaco
passa a fazer parte do calendário oficial de festas atenienses. O capítulo
conta ainda com uma discussão teórico-conceitual acerca do rito e com a
análise de duas documentações. A primeira é a obra Poética, também de
autoria de Aristóteles, na qual o filósofo tece uma análise acerca do teatro.
A última fonte é a peça As Bacantes, escrita no fim do século V pelo tragediógrafo Eurípides. Esta peça, que é a principal obra que aborda Dioniso e
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De selvagem a efeminado: As representações de Dioniso no Imaginário Ático
seu culto, possui inúmeros elementos caros ao dionisismo, e pretendemos
realizar uma leitura que possa elucidar aspectos do deus e de sua religiosidade no período clássico.
Por último, vale ressaltar que não utilizaremos a sigla a.C. – antes de
Cristo – após os séculos, por tratarmos somente de períodos anteriores ao
nascimento de Cristo. Quando for necessário citar algum século depois do
nascimento deste, utilizamos a sigla d.C. – depois de Cristo. Devemos deixar
claro também que as citações de obras em inglês, espanhol, francês e italiano foram traduzidas para o português por este autor. Da mesma forma, nos
apoiando em traduções já reconhecidas de vários documentos textuais, somos responsáveis pela citação em português dos originais em grego antigo.
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CAPÍTULO 1
A REPRESENTAÇÃO DIVINA DURANTE O PERÍODO HOMÉRICO
E SUA INSERÇÃO NA POLÍTICA E NA SOCIEDADE
1. A questão da representação
Tratar deste novo campo historiográfico – a chamada História Cultural
– mostrou-se um desafio com a expansão dos trabalhos com esta temática,
ao contrário do que poderia parecer à primeira vista. Com o desenvolvimento cada vez maior de pesquisas neste campo, diversas abordagens passaram a ser denominadas História Cultural, acabando por banalizar este
viés historiográfico. Não é nossa intenção realizar uma exaustiva análise
sobre a trajetória da escrita da história até culminar na História Cultural,
nem pontuar as contribuições deste campo para as ciências humanas, haja
vista que vários autores já se debruçaram nestas temáticas com maestria.
A intenção é compreender como o conceito de representação surgiu dentro
dos trabalhos de História Cultural e de que forma ele serviu às necessidades de nosso estudo.
Krzysztof Pomian caracteriza esta chamada História Cultural como uma
história dos semióforos.Os semióforos, simplificadamente, são qualquer objeto que possa representar signos deixados por um indivíduo ou uma sociedade, desde um lápis e um livro, até um ídolo religioso ou uma construção
tecnológica, aproximando-se assim da teoria semiótica. O autor também
utiliza a linguagem como semióforo e parte de uma análise estrutural, unindo cultura e linguagem para a compreensão do conjunto de sistemas de
signos que formam uma sociedade (POMIAN, 1998, p. 89). São estas representações materiais que passaram a ser agregadas pela História Cultural,
como atenta Carlo Ginzburg (2001, p. 93):
Pomian, por sua vez, para entender o que unifica os objetos tão díspares que encontramos nas coleções, partiu das ofertas funerárias:
nelas reconheceu, assim como nas relíquias, nas curiosidades, nas
imagens, “intermediários entre o aquém e o além, entre o profano e o
sagrado [...] objetos que representam o distante, o escondido, o ausente [...] intermediários entre o espectador que os mira e o invisível
de que provêm [...]”.
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Leandro Mendonça Barbosa
O termo representação1 foi utilizado no final do século XIX, dentro dos
estudos de Émile Durkheim e Marcel Mauss sobre os povos ditos primitivos,
nos quais estes pensadores analisavam as formas integradoras de vida social
por meio das pistas deixadas pelas representações imagéticas, discursivas,
ritualísticas e normativas (PESAVENTO, 2005, p. 39). As representações
coletivas da obra de Durkheim mais tarde foram substituídas por novas formas de análise, como as representações sociais formadas através da psicologia social, mais flexíveis do que as representações coletivas, por facilitarem
a comunicação e garantirem os interesses comuns entre os membros de um
mesmo grupo (SANTOS, 2008, p. 20). Porém, com a ascensão da já citada
História Cultural, a representação toma outras formas, principalmente com
os estudos de Jacques Le Goff e Roger Chartier. O termo representação
social substitui o termo mentalidades, do início do século. Como afirma
Sandra Pesavento, “representar é, pois, fundamentalmente, estar no lugar
de, é presentificação de um ausente; é um apresentar de novo, que dá a ver
uma ausência. A idéia central é, pois, a da substituição, que recoloca uma
ausência e torna sensível uma presença” (PESAVENTO, 2005, p. 40).
A representação engloba o simbólico de uma sociedade. É o que ela deixa representado – muitas vezes sem uma intenção consciente – em seu corpo social:
A cruz significa o Cristo. Ela não o substitui, mas é uma parcela dele,
ou seja, é o Cristo que se significa na cruz e não o inverso. Em termos
lingüísticos e da questão do todo representado na parte, Cristo está inteiramente presente nesse objeto. Assim também, o machado de Xangô
faz presente para os seus adeptos a divindade Xangô. Essa divindade
está no machado. (LAPLANTINE & TRINDADE, 2003, p.14 - 15)
Entretanto, deixemos claro que a representação não se trata de mentira ou
fantasia. O objeto representado é a presença que torna a ausência palpável,
material. A cruz torna a ausência material de Cristo presente, assim como
o martelo de Xangô, a estátua de Minerva na Roma Antiga ou a máscara de
Dioniso no teatro grego.
Na definição de Carlo Ginzburg, na obra Olhos de Madeira: nove reflexões sobre a distância, a representação é um termo que traz em sua essência
ambiguidades, por tornar real algo ausente: “a representação faz as vezes
da realidade representada e, portanto, evoca a ausência; por outro, torna
visível a realidade representada e, portanto, sugere a presença” (GINZNão iremos discorrer sobre a questão filológica da palavra representação, para isto, ver: Dominique Vieira Coelho dos SANTOS. As representações da cristianização da Irlanda Celta: uma
análise das cartas de São Patrício (V séc. d.c.).
1
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De selvagem a efeminado: As representações de Dioniso no Imaginário Ático
BURG, 2001, p. 85). Com esta presença, podemos entender os semióforos
de Pomian; por meio dos objetos – os signos – que uma sociedade nos
lega – no nosso caso, a sociedade ática antiga – é que podemos compreender de que forma a ausência, no caso o deus Dioniso, é representada
para tornar o deus presente no corpo dos habitantes de Atenas. Todavia, a
representação de que tratamos aqui não é o real – e muito menos a mentira,
como já elucidamos. A representação é parte do real e não existe sem ele:
“a representação e o real são interdependentes, um não existe sem o outro,
criando-se uma aproximação com uma espécie de voz média do pensamento” (SANTOS, 2008, p. 34).
Atualmente, o maior nome da História Cultural quando se trata de representação – sobretudo as representações sociais – é o historiador Roger
Chartier. Chartier faz parte da terceira geração da Escola dos Annales, integrando a chamada Nova História. Discípulo do sociólogo Pierre Bourdieu
e crítico da teoria semiótica do etnólogo Cliffor Geertz, Chartier está preocupado em refletir como uma realidade social é construída e de que forma
esta sociedade a representa; a representação, para o historiador, parte de um
objeto ausente que é substituído por uma imagem material, que por sua vez
irá reconstituir uma memória (SANTOS, 2008, p. 22). Chartier será um
grande crítico, tanto da visão tradicional de história, quanto da história pautada em análises economicistas. O autor lega à História Cultural a retomada
das análises da História Social:
Trabalhando sobre as lutas de representações, cujo objetivo é a ordenação da própria estrutura social, a história cultural afasta-se sem dúvida de uma dependência demasiado estrita em relação a uma história
social fadada apenas ao estudo das lutas econômicas, mas também faz
retorno útil sobre o social, já que dedica atenção às estratégias simbólicas que determinam posições e relações e que constroem, para cada
classe, grupo ou meio, um “ser-percebido” constitutivo de sua identidade. (CHARTIER, 2002, p. 73)
Contudo, Roger Chartier será muito criticado por esta posição. Para Ciro
Flamarion Cardoso, Chartier configura-se como um pós-moderno reducionista
que recusa a “tirania do social”, mas propõe uma “tirania do cultural”. Cardoso
considera que Chartier critica um reducionismo propondo outro reducionismo
(CARDOSO apud SANTOS, 2008, p. 23). Concordamos com Ciro Flamarion
Cardoso no que tange as análises de Roger Chartier. Compreendemos que considerar somente a História Cultural – e especificamente este campo, chamado
de Nova História – para realizar uma análise do termo representação e abordá-lo
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