O
| n 6 favelas, palafitas e loteamentos clandestinos
RETRATO
DO BRASILpor
UMA
VIAGEM
CIDADES 1
RetratodoBRASIL
nO 6
|
R$ 6,00
CIDADES
O PROGRAMA E O MERCADO
O PAC da habitação foi anunciado com mais de 100 bilhões de reais.
Metade é dinheiro do mercado imobiliário tradicional que se impõe,
por diversos caminhos, mesmo nas áreas de moradia dos pobres
2 CIDADES RETRATO DO BRASIL | nO 6
ARQUITETURA
DA POBREZA
CIDADES 3
Fotos: Tania Caliari
RETRATO DO BRASIL | nO 6
Em busca de sinais do PAC da habitação,
Retrato do Brasil fez uma viagem por favelas,
palafitas, cortiços e loteamentos clandestinos
alvador é uma península entre o Atlântico e a Baía de Todos os Santos. Ao norte,
dentro da Baía, ficam as enseadas dos
Tainheiros e dos Cabritos, onde o povo
construiu, ao longo de décadas, suas casas
de pernas altas fincadas na lama: as palafitas.
Para se chegar até as palafitas, toma-se o
ônibus no bairro do Comércio, na Cidade
Baixa, ao pé do famoso Elevador Lacerda,
e se vai em direção ao chamado Subúrbio
Ferroviário. Essa é a região onde, com a industrialização a partir de 1950, instalou-se
grande parte das indústrias.
Alagados, hoje, é o nome de um aglomerado de bairros, como Massaranduba,
Uruguai, Joanes Leste e Lobato, que surgiram, perto dessas indústrias, sobre áreas
inundáveis pela maré. Os manguezais foram sendo aterrados e ocupados pelas
palafitas dos trabalhadores migrantes do interior do estado. Grande parte das palafitas
já desapareceu. O mangue foi aterrado com
entulho e lixo e os bairros, atualmente, são
formados por casas modestas de tijolo aparente, erguidas sobre terra firme.
O coordenador de uma creche e centro
comunitário em Joanes Leste, Raimundo
Pereira, já morou em palafita e participa de
S
movimentos por moradia desde 1976. Pereira leva a repórter por becos e ruelas
labirínticos de uma típica favela. “Isso tudo
aqui já foi maré”, ele diz. A certa altura, a
terra firme desaparece e surgem as palafitas.
Pode-se perceber que para os palafiteiros a
relação com a maré é dúbia: maldita pelo
fedor, pelos ratos, pelo risco de as crianças
caírem na água e se afogarem; e boa pela
pesca fácil da janela, pelo catar dos caranguejos e pitus, pela liberdade de não se
pagar para morar. Água e luz chegam por
meio de ligações clandestinas. O emaranhado de canos de água passa submerso
no mar. Os fios de eletricidade ligam as
casas pelos telhados.
A maré está baixa, o chão está seco, as
pernas das palafitas estão enfiadas em lixo.
Pereira explica como elas eram e continuam
sendo feitas. As pessoas saem de barco com
os amigos para fincar na lama os paus de
sustentação dos casebres e de uma pinguela
que ligue a nova moradia à trama de construções já estabelecida. Depois, vão unindo
os pilares, colocando placas para fazer o
assoalho, levantando as paredes e os telhados. O material é o que é possível juntar.
Geralmente, num dos cantos da casa, um
buraco no assoalho indica o espaço da
latrina, com alguma separação. O resto –
cozinha, quarto e sala – geralmente é um
cômodo só.
A casa de Joice é a da ponta, frente ao
mar. A ela se chega por uma pinguela estreita, esburacada e já frouxa. Joice tem 26 anos,
comprou a moradia há três anos por 1.500
reais. São como que três cômodos: uma
cozinha separada de uma sala-quarto por
uma cortina, além da latrina. Uma panela
de pressão chia sobre o fogãozinho de duas
Baía de
Todos os Santos
SALVADOR
Enseada dos Tainheiros
Itapuã
Pelourinho
Elevador Lacerda
Farol da Barra
Oceano
Atlântico
4 CIDADES bocas. Uma banheira de neném está pendurada, limpa, perto do buraco da privada.
“Aqui, cobra nunca deu, mas os ratos são
quase de casa”, diz Joice. Seu filho, de 6
meses, está com uma alergia de pele.
Pereira expõe sua teoria sobre a urbanização do lugar. “Esta região foi uma mina
de dinheiro para os governos que pegaram
recursos de fora para a remoção.” Foi um
serviço muito mal feito, ele diz. Militante
da União dos Movimentos por Moradia,
RETRATO DO BRASIL | nO 6
acha que não houve participação popular
nas decisões. “Esses projetos nunca foram
participativos. Muita gente foi tirada e levada para longe, para Jaguaripe, para 7 de Abril.
Ali, sem emprego e sem os recursos da maré
– a pesca, os caranguejos, os siris –, muitos
trocaram as casas por algum bem e voltaram”, ele diz.
Edna, 37 anos, removida há seis anos
da palafita onde criou seus três filhos, teve
um destino diferente. É moradora do Nova
Primavera, conjunto habitacional de 258
casas construído na avenida Suburbana,
próximo a uma palafita de origem. Foi um
dos últimos projetos realizados por um
programa de habitação e recuperação
ambiental, iniciado no fim dos anos 1980 e
desenvolvido em várias etapas com recursos do governo estadual, da Caixa Econômica Federal, do Banco Internacional para
Reconstrução e Desenvolvimento (Bird) e
do governo italiano.
CIDADES 5
RETRATO DO BRASIL | nO 6
SALVADOR: ALAGADOS
Ricardo Stuckert
O entorno da enseada dos
Tainheiros, no subúrbio de Salvador,
foi ocupado por palafitas ao longo de
décadas. Mesmo com os programas de
remoções, os casebres sobre as
águas resistem. Joice (no alto, à dir.)
ainda vive sobre a maré. O ex-palafiteiro
Raimundo Pereira (acima) ainda milita
pela melhoria do lugar
Mesmo assim, Edna não parece muito
feliz. “Quando eu morava na maré, todo
mundo era igual, um ajudava o outro, fazíamos mariscagem juntos”, diz. “Agora, só
porque moramos em casa de bloco, uns aí
acham que são melhores do que outros.”
Além disso, ela e os vizinhos ouviram dizer que vão ter de pagar pela casa. “Pagar
como? Me arranjem um emprego que eu
pago. Hoje vivo só com o Bolsa Família, 76
reais, que é uma bênção, um dinheirinho
certo. Aqui, já deixei de pagar água porque
deixaram acumular dez contas de uma vez.”
As casas do conjunto são agrupadas de
quatro em quatro em torno de pequenos pátios. Muitos moradores se apropriaram desses
espaços coletivos, colocando grades e portões.
“É por segurança, tem muita gente sem ter o
que fazer”, diz Edna. Várias casas estão à venda. Os moradores ainda não têm escritura do
imóvel. Porém, por 10 mil reais, passam para
frente. Com seis anos de uso, várias moradias
já estão com as paredes rachadas, janelas empenadas. E, em dias de chuva, as águas voltam
das galerias pluviais misturadas ao esgoto.
Na Bahia, o Programa de Aceleração
do Crescimento (PAC) para habitação,
com recursos totais de 368,5 milhões de
reais, vai passar a financiar os projetos de
erradicação de palafitas do Habitar Brasil
BID (HBB). E o maior volume dos investimentos do programa será destinado
à recuperação ambiental da Falha Geológica: um projeto de 102,9 milhões de reais
para a primeira e segunda fases, com obras
de urbanização de assentamentos precários, remanejamento de famílias em áreas
de risco e construção de novas unidades
habitacionais.
6 CIDADES RETRATO DO BRASIL | nO 6
REPARAÇÃO NO PELOURINHO
Na Falha Geológica em Salvador, o
PAC vai financiar a recuperação de
antigos casarões que serão
transformados em moradia popular.
Luiz Antônio, antigo morador da
Rocinha no Pelourinho, espera poder
ficar no centro histórico
Por 5 centavos, o Elevador Lacerda leva
o cidadão da Cidade Baixa para a Cidade
Alta de Salvador. Pode-se vencer assim, sem
esforço, a Falha Geológica, espécie de corte
abrupto no relevo, onde se destaca o penhasco de cerca de 65 metros de altura que
separa a estreita porção da Cidade Baixa, às
margens da Baía de Todos os Santos, da
cumeeira onde foi edificado o centro histórico da primeira cidade portuguesa nas
Américas e capital do Brasil por 200 anos.
A Falha começa ao sul, a partir do Farol da
Barra, e se alonga para o norte por cerca de
15 quilômetros, para além do Subúrbio
Ferroviário. E abriga em suas encostas, permanentemente em risco, dezenas de comunidades e edifícios.
Na Falha Geológica
Uma dessas comunidades é a da Rocinha
e fica em pleno Pelourinho, bairro do centro
histórico da cidade. O assessor de imprensa
da Secretaria do Estado de Habitação, Carlos
Rocha, fala com empolgação da comunidade da Rocinha, “um centro do reggae em
Salvador, um foco de resistência popular, que
foi esvaziado de seus moradores originais
com a reforma nos anos 1990”. Um pequeno túnel com uma entrada discreta entre as
fachadas coloridas dos casarões coloniais nos
leva a uma área verde surpreendente atrás do
casario. São cerca de 50 casas penduradas na
encosta.
“Quando vim para este canto, tinha
muita banana aqui, mas já era também a casa
de quem chega. O governo nunca olhou para
cá. Só veio com polícia e com ação de despejo. Mas nós ficamos. E com nossa luta, tive
a felicidade de ver este poste de luz aqui, que
chegou em 2006”, diz Luiz Antonio Silva.
Morador da Rocinha há 40 dos seus 69 anos,
Silva espera agora as verdadeiras obras de
urbanização e o título da terra.
No início dos anos 1990, com a intervenção do poder público, que fez projeto apoiado pela Unesco para preservar o patrimônio
cultural representado na arquitetura colonial
dos casarões, 65% dos imóveis do Pelourinho
se tornaram pontos comerciais subsidiados
pelo estado. Entre 1980 e 2000, o número de
moradores diminuiu de 9,8 mil para 3,2 mil.
Em 2002, o movimento popular, aliado ao
Ministério Público, conseguiu mudar a lógica
de ocupação do projeto oficial. O Ministério
da Cultura intermediou um acordo utilizando recursos do Ministério das Cidades para
que os imóveis recuperados fossem destinados aos antigos moradores com renda inferior a três salários mínimos. Agora, a recuperação e transformação de casarões em
moradia popular também estão incluídas no
PAC. Proporcionalmente, os investimentos
ao longo da Falha são muito maiores do
que em outros projetos de urbanização de
favelas e de moradia popular. Na primeira
fase, serão 42 milhões de reais para beneficiar
306 famílias, uma fortuna, se comparados
com a intervenção na favela da Nova Constituinte, com 43 milhões para atender 2,5
mil famílias. Segundo Liana Viveiro, superintendente de Habitação do estado da Bahia,
os custos de contenção das encostas são
muito grandes. E há ainda a recuperação de
patrimônio. “Esse é praticamente um ato de
CIDADES 7
RETRATO DO BRASIL | nO 6
reparação histórica no Pelourinho, permitindo que a população pobre continue a viver
no centro histórico.”
NA OUTRA ROCINHA
A Rocinha do Rio de Janeiro é maior e
mais famosa. Depois de passar por grandes casas, escolas com jardins e parques do
bairro de classe média/alta da Gávea, a estrada que leva o mesmo nome entra, enfim, na Rocinha, uma das maiores favelas
do Rio de Janeiro. Edigler Viana, 57 anos,
líder comunitário, está à espera da repórter
na porta do número 487, um prédio bem
construído, onde o escritório de arquitetura Mayerhofer e Toledo alugou um apartamento para se instalar na favela e fazer sua
parte no plano oficial de urbanização da área.
Sala grande, dois quartos, cozinha e
copa, dois banheiros com bom acabamento – tudo com piso frio e muito azulejo.
O espaço foi alugado por 600 reais. “Para
morar na Rocinha, hoje não tem mais
como invadir um terreno, tem de alugar
ou comprar alguma coisa. E é caro”, diz
Edigler. Quando chegou do Ceará, em
1970, a favela, fundada em 1929, ainda
era de construções de madeira. A situação
começou a mudar a partir de 1972, com a
construção do túnel Dois Irmãos, passagem da Zona Sul em direção à Barra da
Tijuca. “O pessoal trabalhava na obra e
muitos ganhavam restos de material para
melhorar suas casas”, diz.
Da janela da cozinha do escritório, vêse a monumental pedra lisa e cinzenta do
morro Dois Irmãos. Edigler mostra o limite estabelecido pela prefeitura para a sua
ocupação, um cinturão de placas de madeira
ao redor do morro. Dali, ninguém deve
passar. Mesmo assim, recentemente foram
tirados vários barracos de lá, Edigler diz.
Sob a janela, um vizinho martela com
vontade uma escada de madeira que leva à
laje de sua casa. Se o rapaz construir sobre a
laje, o apartamento perderá a vista. “Na favela é assim, todo mundo pode construir”,
diz Edigler. De fato, por toda parte vê-se
gente carregando uma escada, vigas, latas,
carrinho de mão, fazendo uma ligação elétrica, mexendo numa vala de esgoto. Por
todo lado também há placas de “vende-se
esta casa”. Cristina, uma moradora, mostra
a sua placa e explica: “É uma casinha boa,
dois quartos. Minha mãe quer 20 mil, mas
se der 18 mil, nós vendemos.” Edigler está
ajudando os arquitetos da MT a mapear a
favela e a detalhar o projeto de intervenção
urbana que ganhou o concurso nacional realizado pelo governo do estado em 2006 para
promover a urbanização da Rocinha. A
motivação para o projeto foi a enorme repercussão de um confronto entre gangues
rivais do tráfico de drogas na favela, que deixou dez mortos na Semana Santa de 2004.
A foto-símbolo do episódio é a de um policial levando um rapaz morto num carrinho
de mão. Logo depois, entidades e associações de moradores dos bairros vizinhos chamaram os moradores para discutir um plano de melhorias para a Rocinha.
“O pessoal ali é só capitalista mesmo”,
diz Edigler, definindo o que acha que são os
moradores dos bairros São Conrado, Gávea,
Alto Gávea, Parque da Cidade. A esses vizinhos se juntaram empresários, arquitetos,
ONGs, professores da Universidade Católica, que também fica por perto. “Eles querem
que a vida melhore aqui, porque a Rocinha é
o berço da mão-de-obra da Zona Sul”, diz
Edigler. O escritório da MT ganhou o concurso. Na época, não houve dinheiro para a
execução. As obras devem sair agora, com
recursos do PAC: 180 milhões de reais.
Edigler mostra num mapa as prioridades: um hospital, uma área de lazer com
quadras e piscina, conjuntos habitacionais
com 500 apartamentos e a urbanização integrada de algumas ruas. Um estacionamento foi incorporado sob a área esportiva depois que, numa reunião, uma moradora
lembrou: “Tem de ter estacionamento! Pobre também tem direito a carro.”
Um projeto integrado de urbanização,
com obras de esgoto, drenagem, iluminação, construção de conjuntos habitacionais
para receber os moradores que tiverem suas
casas demolidas para o alargamento da via,
será implementado, primeiramente, na rua
4, que começa na Estrada da Gávea. O local foi escolhido devido ao alto índice de
tuberculose e de doenças de pele entre os
moradores, que sofrem com a falta de sol
e ventilação nos imóveis. De rua, a 4 só
tem o nome. Escadões que partem dela,
morro acima ou morro abaixo, dão acesso
às moradias mais escondidas e parecem
úmidos em plena uma hora da tarde de
um dia de sol. As construções mais altas
enterram em sombra e umidade as que
estão mais abaixo.
A viela se estende por centenas de
metros. Sua largura, irregular, não passa de
80 centímetros em alguns trechos. Uma
pessoa obesa teria dificuldade de passar e
os mais altos têm de abaixar a cabeça para
não roçarem nos emaranhados de fios elétricos que passam sob lajes. Estas, unidas,
formam uma espécie de túnel. “É que o
sujeito puxa sua laje um pouco sobre a rua
para aumentar o cômodo de cima, e o vizinho da frente também faz o mesmo...”,
diz Edigler, “mas isso tudo vai sair”.
No Alemão
O Complexo do Alemão, na Zona
Norte do Rio, recentemente ficou mais famoso que a Rocinha. No final de novembro, parecia viver ainda sob o trauma da
operação policial dos meses de junho e julho deste ano, quando, por mais de 60 dias,
a busca por traficantes, drogas e armas
mobilizou 1.350 policiais e acabou deixando, após uma ocupação ao estilo de uma
guerra, mais de 44 mortos em várias favelas
da região. Soldados da Guarda Nacional,
fortemente armados e amparados por barricadas de sacos de areia, ainda guardam as
entradas das favelas, como as do próprio
Morro do Alemão, na Estrada de Itararé.
A repórter vê o Complexo do Alemão
de cima, do alto da Pedra do Sapo, aonde
chega guiada por David da Silva, 26 anos, e
Sadraque Santos, 40, coordenador de comunicação e fotógrafo da ONG cultural
Raízes em Movimento, moradores do
Complexo desde sempre.
Eles explicam a paisagem e fazem questão de diferenciar a região. “A Vila Cruzeiro,
por exemplo, famosa nas últimas
investidas da polícia, fica no Complexo da
Penha e é o Alemão que leva a fama”, diz
David, que admite que é mesmo difícil determinar os limites do Alemão, “que tem
de 13 a 16 comunidades”.
Baía da
Guanabara
Ilha do
Governador
Complexo do Alemão
RIO DE JANEIRO
Cidade de Deus
Barra da Tijuca
Centro
Copacabana
Rocinha
Oceano
Atlântico
8 CIDADES RETRATO DO BRASIL | nO 6
Depois da ação de ocupação militar da
área, os governos federal e estadual anunciaram um investimento milionário no Complexo – 600 milhões de reais do PAC para
um programa de urbanização. Desde então, os militantes vêm tentando articular
um Comitê de Desenvolvimento Local para
estabelecer prioridades e discutir propostas.
Saneamento básico certamente é uma
das prioridades. David pára diante de uma
grande vala entulhada com sacos de lixo,
por onde escorre o esgoto recolhido morro
acima. “Olha, as crianças entram aí para brincar. Eu brincava. E essa é apenas uma das
muitas valas”, diz. “Quando chove, essa
água cresce e cobre esse escadão aqui. O cara
desce se molhando todo com esse nojo. Lá
embaixo se troca para ir para o trabalho”,
completa Sadraque.
Um menino de uns 3 anos abre um
berreiro e aponta para uma espécie de bueiro
mal tampado no beco. Embaixo passa uma
corrente malcheirosa. O pai aparece à porta
e a irmãzinha explica: o menino perdeu o
chinelo no buraco. Sadraque ainda corre para
ver se a sandália deu na vala. Nada. O chinelo se foi no meio de tanto lixo.
De acordo com o projeto apresentado
por Paulo Magalhães, funcionário da Caixa
Edigler (abaixo), há 40 anos na
famosa Rocinha, do Rio de Janeiro, ajuda
a detalhar projeto do PAC. Na foto maior,
o Santuário da Penha, na zona norte
carioca, cercado pelos pobres das favelas
dos complexos da Penha e do Alemão
Genilson Araujo / Parceiro / Agência O Globo
FAVELAS DO RIO
Econômica Federal, o único interlocutor governamental do comitê popular na época da
visita da repórter, a prioridade é a chamada
acessibilidade: a abertura e alargamento de
ruas e vielas. Haverá também uma obra de
grande impacto: um teleférico para transportar cerca de 30 mil pessoas por dia, moradores que vivem em terrenos onde, às vezes, a
inclinação é de mais de 50%. O presidente da
associação dos moradores da Grota, Wagner
Nicácio, achou a idéia boa. “Mas esse projeto
todo aí não foi discutido com a gente, não.
E acho que agora nem dá mais tempo.”
“Claro que acessibilidade é importante,
mas o teleférico é discutível. Temos outras
prioridades, principalmente de equipamentos sociais: escolas, creches, hospitais. Poderiam começar recuperando e mantendo
para valer os hospitais e postos de saúde
que já existem, como o Hospital Getúlio
Vargas, na Penha, que estão totalmente degradados. Alguém decidiu como esse dinheiro vai ser empregado, e não fomos
nós”, diz Sadraque.
O Comitê de Desenvolvimento propõe
que as ações dos governos sejam mais amplas do que o programa de obras previsto
no PAC e que atinjam uma área muito maior.
“Para nós interessa o desenvolvimento econômico das comunidades como um todo,
CIDADES 9
RETRATO DO BRASIL | nO 6
não só em algumas favelas aqui do Alemão. São muitas comunidades pobres concentradas numa região grande, que é a Serra
da Misericórdia, um maciço onde só mora
gente pobre, sai do Morro da Baiana e vai
até Vaz Lobo”, diz David.
No centro
No final do expediente de uma sextafeira, no escritório da Secretaria de Obras do
Estado, na rua México, bem perto do Largo
da Carioca, no centro, Demetre Anastassakis,
superintendente de Urbanismo Metropolitano, está atarefado, trabalhando nos projetos do PAC no Rio e preparando sua viagem
para a 3ª Conferência Nacional das Cidades,
que reuniria na semana seguinte representantes governamentais e de movimentos
sociais do Brasil todo em Brasília. Demetre
está animado. A Conferência aconteceria num
momento em que, segundo ele, “nunca
houve tanto dinheiro para programas de saneamento e habitação no Brasil”.
Ex-membro do Conselho das Cidades,
ele se lembra de que, há poucos anos, lutaram muito para conseguir investimentos
de 400 milhões de reais para a malha urbana de todo o Brasil. “Hoje são 400 milhões
só no programa de urbanização em
Manguinhos, aqui no Rio.”
Arquiteto veterano de programas de
urbanização de favelas, como o Favela-Bairro, da prefeitura do Rio, Demetre projetou
também, por coincidência, o conjunto
Nova Primavera, em Salvador, onde mora
Edna. “O esgoto lá está voltando para a
casa das pessoas”, informamos. “Bom, o
projeto é meu. Mas se não foi bem executado...” Demetre admite que grande parte dos
problemas dos projetos de urbanização e
da construção de conjuntos habitacionais
como solução para a moradia do pobre é a
falta de controle da qualidade das construções, sua não-integração com a cidade e a
saída do Estado das áreas, depois do fim
10 CIDADES RETRATO DO BRASIL | nO 6
Cleo Velleda/Folha Imagem
das obras, como ocorreu muitas vezes no
programa Favela-Bairro.
Como diferencial do PAC, Demetre vê
a obrigatoriedade de se fazer a regularização
fundiária das áreas urbanizadas e de se investir 20% do valor das obras em equipamentos sociais e 2,5% do total em programas sociais nas comunidades. O pagamento de empreiteiro e construtores pelas obras
estaria condicionado ao andamento dos
projetos de geração de renda, capacitação,
reforço em educação e esporte.
SÃO PAULO, ZONA SUL
Para se achar a moradia dos pobres em
São Paulo, de um modo geral, tem-se de ir
bem mais longe do que no Rio. No último
estágio de nossa viagem, saímos do Largo
Treze, em Santo Amaro, a cerca de 13 quilômetros do centro da capital paulista. A repórter e sua guia, Maria da Luz, tomam a
lotação que cruza o rio Pinheiros em direção ao sul e vão deixando para trás o último grande centro operário de São Paulo. A
ponte chama-se Santo Dias, em homenagem ao líder operário morto pela polícia no
final dos anos 1970. A área ainda está repleta de galpões abandonados e terrenos
vazios. Nosso destino é o Jardim Gaivotas, numa ponta de terra entre dois braços
da represa Billings, mais ao sul ainda.
A periferia se expande como se não tivesse fim: uma seqüência de loteamentos de casas baixas e pobres se estende ao longo do
caminho. A certa altura, sobe à lotação Marluce,
ex-vizinha de Maria. As duas são colegas de
infortúnio do Jardim Gaivotas. Foram retiradas de lá à força pela prefeitura, por estarem
em loteamento clandestino à beira da represa.
Maria da Luz investiu ali todo o seu
dinheiro. Desde que chegara do Maranhão,
morava na casa em que era doméstica. Com
isso, pode juntar 4,5 mil reais que deu na
compra de um terreno de 5 m x 20 m com
uma casa de um cômodo e banheiro. Seu
companheiro colocou mais outro tanto para
aumentar a construção.
Maria conta que comprou o terreno de
um homem bem vestido, bem falante,
como um pastor de igreja, e que chamava a
todos de irmão. Só depois soube que ele
apenas passava adiante os lotes retalhados
por um certo Nilson Antonio da Silva, que
dizia a todos que ganhara o terreno à beira
da represa como indenização trabalhista de
um militar já falecido. Hoje os herdeiros do
militar, viúva e dois filhos, têm um processo contra Nilson a ser julgado no STF, por
posse indevida do terreno.
As 97 casas do loteamento foram derrubadas pela prefeitura. A 300 metros da borda da represa, Maria pisa sobre os cacos de
sua casa e se apóia na árvore que fazia sombra à sua porta. Outros moradores, que se
ajeitaram em casas de parentes na vizinhança, começam a chegar. “Veio matar saudade?”, perguntam.
A família de Marluce foi uma das poucas despejadas a receber um benefício concreto da prefeitura. Depois de alguns dias
num acampamento de triagem, onde ela
diz que havia lama e frio, foi para um hotel
pago pela prefeitura. Depois conseguiu uma
bolsa-aluguel: 300 reais por três meses, a
qual está prestes a acabar.
Edvaldo, outro morador, lembra: estava
em casa quando funcionários da Secretaria do
Meio Ambiente chegaram para apresentar um
auto de advertência acusando-o de invasão,
desmatamento e construção irregular. Àquela
altura, já havia perdido o emprego de pizzaiolo
de tanto faltar ao serviço para vigiar a casa,
diante da ameaça de despejo.
“Quem bate?”, Edvaldo lembra ter perguntado. “É o verde”, lhe teriam respondido. Documento, uma escritura, Edvaldo não tinha. Ele
e todos os outros moradores têm apenas um
contrato de compra e venda dos terrenos.
Ademário, vizinho de Edvaldo, também foi demitido por faltar ao emprego
dias seguidos para guardar sua casa. A baixa em sua carteira de trabalho ocorreu no
mesmo dia da derrubada, 29 de agosto. Por
CIDADES 11
RETRATO DO BRASIL | nO 6
ironia, o serviço de Ademário era numa
empresa de demolição.
A subprefeitura de Capela do Socorro já
havia advertido os moradores do Gaivotas.
Durante seis meses, foram visitados por assistentes sociais, policiais, fiscais do meio ambiente. Eles responderam a questionários, preencheram cadastros, assinaram papéis. Ao fim
da visita do “verde”, viu-se que a opção era
apenas uma: ou saíam por bem ou por mal.
Com a demolição, a prefeitura e o governo estadual buscam barrar os processos
de ocupação que podem comprometer os
reservatórios de água da capital, as represas
Billings e Guarapiranga. É uma intenção,
em princípio, louvável. E Maria da Luz,
Marluce, Edvaldo e Ademário, como ficam?
Instalado num escritório bem modesto de um bonito prédio no centro velho de
São Paulo, o defensor público Carlos Loureiro é enfático: “Essas ações de despejo
provocam o aumento da exclusão social,
da população de rua, a dissolução das famílias. Essa política tem um viés de
NA BEIRA DA BILLINGS
Ademário, Maria da Luz e Edvaldo,
sobre as ruínas de suas casas à beira
da represa Billings, em São Paulo. A
prefeitura, preocupada com o “verde”,
combate loteamentos irregulares (ao
lado), mas não providencia moradia
para os despejados
higienização social. Ninguém é contra a proteção dos mananciais, mas a pura e simples
destruição de casas não consegue interromper o processo de formação de loteamentos
irregulares ou clandestinos, porque a origem desses processos está basicamente na
falta de uma política habitacional eficaz. As
pessoas só vão construir em área de proteção ambiental e de manancial, áreas baratas
e proibidas, porque não existe uma política
de habitação social eficaz.”
A Defensoria Pública do Estado propôs, em outubro, uma ação civil pública
para contestar a Ordem Interna 01/2007,
do prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab,
que permite a demolição de casas em áreas de mananciais sem ordem judicial e sem
oferecer às famílias desabrigadas alternativas de moradia. A Ordem Interna 01/
2007, uma norma administrativa, dá à
prefeitura o chamado poder de polícia para
fazer as remoções. “O poder de polícia”,
explica o defensor Loureiro, “é um instrumento do direito administrativo que
pode ser usado para resolver conflitos relacionados com os direitos individuais,
como o direito de propriedade, o direito
de associação, de manifestação e de ir e
vir. Se o direito de manifestação de um
grupo esbarrar no direito de ir e vir de
outro, por exemplo, a prefeitura pode usar
do poder de polícia para garantir a desocupação da via pública. No entanto, o direito à moradia não é um direito individual. Segundo a Constituição, é um di-
SÃO PAULO
Praça da Sé
Jardim Gaivotas
Represa
Guarapiranga
Represa
Billings
reito fundamental, social. Exercer o poder de polícia sobre um direito social é
inconstitucional.”
Segundo Evaniza Rodrigues, da União
dos Movimentos de Moradia, a prefeitura e
o governo estadual de São Paulo estão realizando uma enorme quantidade de despejos
pela cidade, valendo-se de decisões judiciais
favoráveis à reintegração de posse ou das
Ordens Internas que versam sobre áreas de
risco e de mananciais. Com as desocupações,
acredita ela, os loteamentos clandestinos só
tendem a aumentar. Segundo a Secretaria
Municipal de Habitação, existem 2.472
loteamentos irregulares na cidade (dados de
2005), nos quais vivem 2,6 milhões de pessoas. Desses loteamentos, 469 estariam em
áreas de mananciais, abrigando cerca de 600
mil pessoas.
Maria da Luz, que até então nunca tinha
militado por um direito seu, tem liderado,
com outros vizinhos, um movimento pelo
reconhecimento do seu direito à moradia.
A pressão tem levado a subprefeitura a
ouvir os ex-moradores. “Vamos lutar até
que eles se comprometam com uma solução de habitação para todos nós”, diz ela.
“O direito à moradia é um dos fundamentais mais desprezados, porque é de difícil implantação, depende de muitos recursos e sempre se deixou muito ao arbítrio
do poder público satisfazê-lo ou não, sempre na medida de sua capacidade econômico-financeira. O direito à saúde, que também é um direito social, é imposto todos
os dias judicialmente nos tribunais. Entretanto, com relação à moradia, há uma enorme resistência, inclusive no Judiciário, de
propor e aceitar ações relacionadas com a
realização desse direito”, diz Loureiro.
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RETRATO DO BRASIL | nO 6
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