O | n 6 favelas, palafitas e loteamentos clandestinos RETRATO DO BRASILpor UMA VIAGEM CIDADES 1 RetratodoBRASIL nO 6 | R$ 6,00 CIDADES O PROGRAMA E O MERCADO O PAC da habitação foi anunciado com mais de 100 bilhões de reais. Metade é dinheiro do mercado imobiliário tradicional que se impõe, por diversos caminhos, mesmo nas áreas de moradia dos pobres 2 CIDADES RETRATO DO BRASIL | nO 6 ARQUITETURA DA POBREZA CIDADES 3 Fotos: Tania Caliari RETRATO DO BRASIL | nO 6 Em busca de sinais do PAC da habitação, Retrato do Brasil fez uma viagem por favelas, palafitas, cortiços e loteamentos clandestinos alvador é uma península entre o Atlântico e a Baía de Todos os Santos. Ao norte, dentro da Baía, ficam as enseadas dos Tainheiros e dos Cabritos, onde o povo construiu, ao longo de décadas, suas casas de pernas altas fincadas na lama: as palafitas. Para se chegar até as palafitas, toma-se o ônibus no bairro do Comércio, na Cidade Baixa, ao pé do famoso Elevador Lacerda, e se vai em direção ao chamado Subúrbio Ferroviário. Essa é a região onde, com a industrialização a partir de 1950, instalou-se grande parte das indústrias. Alagados, hoje, é o nome de um aglomerado de bairros, como Massaranduba, Uruguai, Joanes Leste e Lobato, que surgiram, perto dessas indústrias, sobre áreas inundáveis pela maré. Os manguezais foram sendo aterrados e ocupados pelas palafitas dos trabalhadores migrantes do interior do estado. Grande parte das palafitas já desapareceu. O mangue foi aterrado com entulho e lixo e os bairros, atualmente, são formados por casas modestas de tijolo aparente, erguidas sobre terra firme. O coordenador de uma creche e centro comunitário em Joanes Leste, Raimundo Pereira, já morou em palafita e participa de S movimentos por moradia desde 1976. Pereira leva a repórter por becos e ruelas labirínticos de uma típica favela. “Isso tudo aqui já foi maré”, ele diz. A certa altura, a terra firme desaparece e surgem as palafitas. Pode-se perceber que para os palafiteiros a relação com a maré é dúbia: maldita pelo fedor, pelos ratos, pelo risco de as crianças caírem na água e se afogarem; e boa pela pesca fácil da janela, pelo catar dos caranguejos e pitus, pela liberdade de não se pagar para morar. Água e luz chegam por meio de ligações clandestinas. O emaranhado de canos de água passa submerso no mar. Os fios de eletricidade ligam as casas pelos telhados. A maré está baixa, o chão está seco, as pernas das palafitas estão enfiadas em lixo. Pereira explica como elas eram e continuam sendo feitas. As pessoas saem de barco com os amigos para fincar na lama os paus de sustentação dos casebres e de uma pinguela que ligue a nova moradia à trama de construções já estabelecida. Depois, vão unindo os pilares, colocando placas para fazer o assoalho, levantando as paredes e os telhados. O material é o que é possível juntar. Geralmente, num dos cantos da casa, um buraco no assoalho indica o espaço da latrina, com alguma separação. O resto – cozinha, quarto e sala – geralmente é um cômodo só. A casa de Joice é a da ponta, frente ao mar. A ela se chega por uma pinguela estreita, esburacada e já frouxa. Joice tem 26 anos, comprou a moradia há três anos por 1.500 reais. São como que três cômodos: uma cozinha separada de uma sala-quarto por uma cortina, além da latrina. Uma panela de pressão chia sobre o fogãozinho de duas Baía de Todos os Santos SALVADOR Enseada dos Tainheiros Itapuã Pelourinho Elevador Lacerda Farol da Barra Oceano Atlântico 4 CIDADES bocas. Uma banheira de neném está pendurada, limpa, perto do buraco da privada. “Aqui, cobra nunca deu, mas os ratos são quase de casa”, diz Joice. Seu filho, de 6 meses, está com uma alergia de pele. Pereira expõe sua teoria sobre a urbanização do lugar. “Esta região foi uma mina de dinheiro para os governos que pegaram recursos de fora para a remoção.” Foi um serviço muito mal feito, ele diz. Militante da União dos Movimentos por Moradia, RETRATO DO BRASIL | nO 6 acha que não houve participação popular nas decisões. “Esses projetos nunca foram participativos. Muita gente foi tirada e levada para longe, para Jaguaripe, para 7 de Abril. Ali, sem emprego e sem os recursos da maré – a pesca, os caranguejos, os siris –, muitos trocaram as casas por algum bem e voltaram”, ele diz. Edna, 37 anos, removida há seis anos da palafita onde criou seus três filhos, teve um destino diferente. É moradora do Nova Primavera, conjunto habitacional de 258 casas construído na avenida Suburbana, próximo a uma palafita de origem. Foi um dos últimos projetos realizados por um programa de habitação e recuperação ambiental, iniciado no fim dos anos 1980 e desenvolvido em várias etapas com recursos do governo estadual, da Caixa Econômica Federal, do Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird) e do governo italiano. CIDADES 5 RETRATO DO BRASIL | nO 6 SALVADOR: ALAGADOS Ricardo Stuckert O entorno da enseada dos Tainheiros, no subúrbio de Salvador, foi ocupado por palafitas ao longo de décadas. Mesmo com os programas de remoções, os casebres sobre as águas resistem. Joice (no alto, à dir.) ainda vive sobre a maré. O ex-palafiteiro Raimundo Pereira (acima) ainda milita pela melhoria do lugar Mesmo assim, Edna não parece muito feliz. “Quando eu morava na maré, todo mundo era igual, um ajudava o outro, fazíamos mariscagem juntos”, diz. “Agora, só porque moramos em casa de bloco, uns aí acham que são melhores do que outros.” Além disso, ela e os vizinhos ouviram dizer que vão ter de pagar pela casa. “Pagar como? Me arranjem um emprego que eu pago. Hoje vivo só com o Bolsa Família, 76 reais, que é uma bênção, um dinheirinho certo. Aqui, já deixei de pagar água porque deixaram acumular dez contas de uma vez.” As casas do conjunto são agrupadas de quatro em quatro em torno de pequenos pátios. Muitos moradores se apropriaram desses espaços coletivos, colocando grades e portões. “É por segurança, tem muita gente sem ter o que fazer”, diz Edna. Várias casas estão à venda. Os moradores ainda não têm escritura do imóvel. Porém, por 10 mil reais, passam para frente. Com seis anos de uso, várias moradias já estão com as paredes rachadas, janelas empenadas. E, em dias de chuva, as águas voltam das galerias pluviais misturadas ao esgoto. Na Bahia, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para habitação, com recursos totais de 368,5 milhões de reais, vai passar a financiar os projetos de erradicação de palafitas do Habitar Brasil BID (HBB). E o maior volume dos investimentos do programa será destinado à recuperação ambiental da Falha Geológica: um projeto de 102,9 milhões de reais para a primeira e segunda fases, com obras de urbanização de assentamentos precários, remanejamento de famílias em áreas de risco e construção de novas unidades habitacionais. 6 CIDADES RETRATO DO BRASIL | nO 6 REPARAÇÃO NO PELOURINHO Na Falha Geológica em Salvador, o PAC vai financiar a recuperação de antigos casarões que serão transformados em moradia popular. Luiz Antônio, antigo morador da Rocinha no Pelourinho, espera poder ficar no centro histórico Por 5 centavos, o Elevador Lacerda leva o cidadão da Cidade Baixa para a Cidade Alta de Salvador. Pode-se vencer assim, sem esforço, a Falha Geológica, espécie de corte abrupto no relevo, onde se destaca o penhasco de cerca de 65 metros de altura que separa a estreita porção da Cidade Baixa, às margens da Baía de Todos os Santos, da cumeeira onde foi edificado o centro histórico da primeira cidade portuguesa nas Américas e capital do Brasil por 200 anos. A Falha começa ao sul, a partir do Farol da Barra, e se alonga para o norte por cerca de 15 quilômetros, para além do Subúrbio Ferroviário. E abriga em suas encostas, permanentemente em risco, dezenas de comunidades e edifícios. Na Falha Geológica Uma dessas comunidades é a da Rocinha e fica em pleno Pelourinho, bairro do centro histórico da cidade. O assessor de imprensa da Secretaria do Estado de Habitação, Carlos Rocha, fala com empolgação da comunidade da Rocinha, “um centro do reggae em Salvador, um foco de resistência popular, que foi esvaziado de seus moradores originais com a reforma nos anos 1990”. Um pequeno túnel com uma entrada discreta entre as fachadas coloridas dos casarões coloniais nos leva a uma área verde surpreendente atrás do casario. São cerca de 50 casas penduradas na encosta. “Quando vim para este canto, tinha muita banana aqui, mas já era também a casa de quem chega. O governo nunca olhou para cá. Só veio com polícia e com ação de despejo. Mas nós ficamos. E com nossa luta, tive a felicidade de ver este poste de luz aqui, que chegou em 2006”, diz Luiz Antonio Silva. Morador da Rocinha há 40 dos seus 69 anos, Silva espera agora as verdadeiras obras de urbanização e o título da terra. No início dos anos 1990, com a intervenção do poder público, que fez projeto apoiado pela Unesco para preservar o patrimônio cultural representado na arquitetura colonial dos casarões, 65% dos imóveis do Pelourinho se tornaram pontos comerciais subsidiados pelo estado. Entre 1980 e 2000, o número de moradores diminuiu de 9,8 mil para 3,2 mil. Em 2002, o movimento popular, aliado ao Ministério Público, conseguiu mudar a lógica de ocupação do projeto oficial. O Ministério da Cultura intermediou um acordo utilizando recursos do Ministério das Cidades para que os imóveis recuperados fossem destinados aos antigos moradores com renda inferior a três salários mínimos. Agora, a recuperação e transformação de casarões em moradia popular também estão incluídas no PAC. Proporcionalmente, os investimentos ao longo da Falha são muito maiores do que em outros projetos de urbanização de favelas e de moradia popular. Na primeira fase, serão 42 milhões de reais para beneficiar 306 famílias, uma fortuna, se comparados com a intervenção na favela da Nova Constituinte, com 43 milhões para atender 2,5 mil famílias. Segundo Liana Viveiro, superintendente de Habitação do estado da Bahia, os custos de contenção das encostas são muito grandes. E há ainda a recuperação de patrimônio. “Esse é praticamente um ato de CIDADES 7 RETRATO DO BRASIL | nO 6 reparação histórica no Pelourinho, permitindo que a população pobre continue a viver no centro histórico.” NA OUTRA ROCINHA A Rocinha do Rio de Janeiro é maior e mais famosa. Depois de passar por grandes casas, escolas com jardins e parques do bairro de classe média/alta da Gávea, a estrada que leva o mesmo nome entra, enfim, na Rocinha, uma das maiores favelas do Rio de Janeiro. Edigler Viana, 57 anos, líder comunitário, está à espera da repórter na porta do número 487, um prédio bem construído, onde o escritório de arquitetura Mayerhofer e Toledo alugou um apartamento para se instalar na favela e fazer sua parte no plano oficial de urbanização da área. Sala grande, dois quartos, cozinha e copa, dois banheiros com bom acabamento – tudo com piso frio e muito azulejo. O espaço foi alugado por 600 reais. “Para morar na Rocinha, hoje não tem mais como invadir um terreno, tem de alugar ou comprar alguma coisa. E é caro”, diz Edigler. Quando chegou do Ceará, em 1970, a favela, fundada em 1929, ainda era de construções de madeira. A situação começou a mudar a partir de 1972, com a construção do túnel Dois Irmãos, passagem da Zona Sul em direção à Barra da Tijuca. “O pessoal trabalhava na obra e muitos ganhavam restos de material para melhorar suas casas”, diz. Da janela da cozinha do escritório, vêse a monumental pedra lisa e cinzenta do morro Dois Irmãos. Edigler mostra o limite estabelecido pela prefeitura para a sua ocupação, um cinturão de placas de madeira ao redor do morro. Dali, ninguém deve passar. Mesmo assim, recentemente foram tirados vários barracos de lá, Edigler diz. Sob a janela, um vizinho martela com vontade uma escada de madeira que leva à laje de sua casa. Se o rapaz construir sobre a laje, o apartamento perderá a vista. “Na favela é assim, todo mundo pode construir”, diz Edigler. De fato, por toda parte vê-se gente carregando uma escada, vigas, latas, carrinho de mão, fazendo uma ligação elétrica, mexendo numa vala de esgoto. Por todo lado também há placas de “vende-se esta casa”. Cristina, uma moradora, mostra a sua placa e explica: “É uma casinha boa, dois quartos. Minha mãe quer 20 mil, mas se der 18 mil, nós vendemos.” Edigler está ajudando os arquitetos da MT a mapear a favela e a detalhar o projeto de intervenção urbana que ganhou o concurso nacional realizado pelo governo do estado em 2006 para promover a urbanização da Rocinha. A motivação para o projeto foi a enorme repercussão de um confronto entre gangues rivais do tráfico de drogas na favela, que deixou dez mortos na Semana Santa de 2004. A foto-símbolo do episódio é a de um policial levando um rapaz morto num carrinho de mão. Logo depois, entidades e associações de moradores dos bairros vizinhos chamaram os moradores para discutir um plano de melhorias para a Rocinha. “O pessoal ali é só capitalista mesmo”, diz Edigler, definindo o que acha que são os moradores dos bairros São Conrado, Gávea, Alto Gávea, Parque da Cidade. A esses vizinhos se juntaram empresários, arquitetos, ONGs, professores da Universidade Católica, que também fica por perto. “Eles querem que a vida melhore aqui, porque a Rocinha é o berço da mão-de-obra da Zona Sul”, diz Edigler. O escritório da MT ganhou o concurso. Na época, não houve dinheiro para a execução. As obras devem sair agora, com recursos do PAC: 180 milhões de reais. Edigler mostra num mapa as prioridades: um hospital, uma área de lazer com quadras e piscina, conjuntos habitacionais com 500 apartamentos e a urbanização integrada de algumas ruas. Um estacionamento foi incorporado sob a área esportiva depois que, numa reunião, uma moradora lembrou: “Tem de ter estacionamento! Pobre também tem direito a carro.” Um projeto integrado de urbanização, com obras de esgoto, drenagem, iluminação, construção de conjuntos habitacionais para receber os moradores que tiverem suas casas demolidas para o alargamento da via, será implementado, primeiramente, na rua 4, que começa na Estrada da Gávea. O local foi escolhido devido ao alto índice de tuberculose e de doenças de pele entre os moradores, que sofrem com a falta de sol e ventilação nos imóveis. De rua, a 4 só tem o nome. Escadões que partem dela, morro acima ou morro abaixo, dão acesso às moradias mais escondidas e parecem úmidos em plena uma hora da tarde de um dia de sol. As construções mais altas enterram em sombra e umidade as que estão mais abaixo. A viela se estende por centenas de metros. Sua largura, irregular, não passa de 80 centímetros em alguns trechos. Uma pessoa obesa teria dificuldade de passar e os mais altos têm de abaixar a cabeça para não roçarem nos emaranhados de fios elétricos que passam sob lajes. Estas, unidas, formam uma espécie de túnel. “É que o sujeito puxa sua laje um pouco sobre a rua para aumentar o cômodo de cima, e o vizinho da frente também faz o mesmo...”, diz Edigler, “mas isso tudo vai sair”. No Alemão O Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio, recentemente ficou mais famoso que a Rocinha. No final de novembro, parecia viver ainda sob o trauma da operação policial dos meses de junho e julho deste ano, quando, por mais de 60 dias, a busca por traficantes, drogas e armas mobilizou 1.350 policiais e acabou deixando, após uma ocupação ao estilo de uma guerra, mais de 44 mortos em várias favelas da região. Soldados da Guarda Nacional, fortemente armados e amparados por barricadas de sacos de areia, ainda guardam as entradas das favelas, como as do próprio Morro do Alemão, na Estrada de Itararé. A repórter vê o Complexo do Alemão de cima, do alto da Pedra do Sapo, aonde chega guiada por David da Silva, 26 anos, e Sadraque Santos, 40, coordenador de comunicação e fotógrafo da ONG cultural Raízes em Movimento, moradores do Complexo desde sempre. Eles explicam a paisagem e fazem questão de diferenciar a região. “A Vila Cruzeiro, por exemplo, famosa nas últimas investidas da polícia, fica no Complexo da Penha e é o Alemão que leva a fama”, diz David, que admite que é mesmo difícil determinar os limites do Alemão, “que tem de 13 a 16 comunidades”. Baía da Guanabara Ilha do Governador Complexo do Alemão RIO DE JANEIRO Cidade de Deus Barra da Tijuca Centro Copacabana Rocinha Oceano Atlântico 8 CIDADES RETRATO DO BRASIL | nO 6 Depois da ação de ocupação militar da área, os governos federal e estadual anunciaram um investimento milionário no Complexo – 600 milhões de reais do PAC para um programa de urbanização. Desde então, os militantes vêm tentando articular um Comitê de Desenvolvimento Local para estabelecer prioridades e discutir propostas. Saneamento básico certamente é uma das prioridades. David pára diante de uma grande vala entulhada com sacos de lixo, por onde escorre o esgoto recolhido morro acima. “Olha, as crianças entram aí para brincar. Eu brincava. E essa é apenas uma das muitas valas”, diz. “Quando chove, essa água cresce e cobre esse escadão aqui. O cara desce se molhando todo com esse nojo. Lá embaixo se troca para ir para o trabalho”, completa Sadraque. Um menino de uns 3 anos abre um berreiro e aponta para uma espécie de bueiro mal tampado no beco. Embaixo passa uma corrente malcheirosa. O pai aparece à porta e a irmãzinha explica: o menino perdeu o chinelo no buraco. Sadraque ainda corre para ver se a sandália deu na vala. Nada. O chinelo se foi no meio de tanto lixo. De acordo com o projeto apresentado por Paulo Magalhães, funcionário da Caixa Edigler (abaixo), há 40 anos na famosa Rocinha, do Rio de Janeiro, ajuda a detalhar projeto do PAC. Na foto maior, o Santuário da Penha, na zona norte carioca, cercado pelos pobres das favelas dos complexos da Penha e do Alemão Genilson Araujo / Parceiro / Agência O Globo FAVELAS DO RIO Econômica Federal, o único interlocutor governamental do comitê popular na época da visita da repórter, a prioridade é a chamada acessibilidade: a abertura e alargamento de ruas e vielas. Haverá também uma obra de grande impacto: um teleférico para transportar cerca de 30 mil pessoas por dia, moradores que vivem em terrenos onde, às vezes, a inclinação é de mais de 50%. O presidente da associação dos moradores da Grota, Wagner Nicácio, achou a idéia boa. “Mas esse projeto todo aí não foi discutido com a gente, não. E acho que agora nem dá mais tempo.” “Claro que acessibilidade é importante, mas o teleférico é discutível. Temos outras prioridades, principalmente de equipamentos sociais: escolas, creches, hospitais. Poderiam começar recuperando e mantendo para valer os hospitais e postos de saúde que já existem, como o Hospital Getúlio Vargas, na Penha, que estão totalmente degradados. Alguém decidiu como esse dinheiro vai ser empregado, e não fomos nós”, diz Sadraque. O Comitê de Desenvolvimento propõe que as ações dos governos sejam mais amplas do que o programa de obras previsto no PAC e que atinjam uma área muito maior. “Para nós interessa o desenvolvimento econômico das comunidades como um todo, CIDADES 9 RETRATO DO BRASIL | nO 6 não só em algumas favelas aqui do Alemão. São muitas comunidades pobres concentradas numa região grande, que é a Serra da Misericórdia, um maciço onde só mora gente pobre, sai do Morro da Baiana e vai até Vaz Lobo”, diz David. No centro No final do expediente de uma sextafeira, no escritório da Secretaria de Obras do Estado, na rua México, bem perto do Largo da Carioca, no centro, Demetre Anastassakis, superintendente de Urbanismo Metropolitano, está atarefado, trabalhando nos projetos do PAC no Rio e preparando sua viagem para a 3ª Conferência Nacional das Cidades, que reuniria na semana seguinte representantes governamentais e de movimentos sociais do Brasil todo em Brasília. Demetre está animado. A Conferência aconteceria num momento em que, segundo ele, “nunca houve tanto dinheiro para programas de saneamento e habitação no Brasil”. Ex-membro do Conselho das Cidades, ele se lembra de que, há poucos anos, lutaram muito para conseguir investimentos de 400 milhões de reais para a malha urbana de todo o Brasil. “Hoje são 400 milhões só no programa de urbanização em Manguinhos, aqui no Rio.” Arquiteto veterano de programas de urbanização de favelas, como o Favela-Bairro, da prefeitura do Rio, Demetre projetou também, por coincidência, o conjunto Nova Primavera, em Salvador, onde mora Edna. “O esgoto lá está voltando para a casa das pessoas”, informamos. “Bom, o projeto é meu. Mas se não foi bem executado...” Demetre admite que grande parte dos problemas dos projetos de urbanização e da construção de conjuntos habitacionais como solução para a moradia do pobre é a falta de controle da qualidade das construções, sua não-integração com a cidade e a saída do Estado das áreas, depois do fim 10 CIDADES RETRATO DO BRASIL | nO 6 Cleo Velleda/Folha Imagem das obras, como ocorreu muitas vezes no programa Favela-Bairro. Como diferencial do PAC, Demetre vê a obrigatoriedade de se fazer a regularização fundiária das áreas urbanizadas e de se investir 20% do valor das obras em equipamentos sociais e 2,5% do total em programas sociais nas comunidades. O pagamento de empreiteiro e construtores pelas obras estaria condicionado ao andamento dos projetos de geração de renda, capacitação, reforço em educação e esporte. SÃO PAULO, ZONA SUL Para se achar a moradia dos pobres em São Paulo, de um modo geral, tem-se de ir bem mais longe do que no Rio. No último estágio de nossa viagem, saímos do Largo Treze, em Santo Amaro, a cerca de 13 quilômetros do centro da capital paulista. A repórter e sua guia, Maria da Luz, tomam a lotação que cruza o rio Pinheiros em direção ao sul e vão deixando para trás o último grande centro operário de São Paulo. A ponte chama-se Santo Dias, em homenagem ao líder operário morto pela polícia no final dos anos 1970. A área ainda está repleta de galpões abandonados e terrenos vazios. Nosso destino é o Jardim Gaivotas, numa ponta de terra entre dois braços da represa Billings, mais ao sul ainda. A periferia se expande como se não tivesse fim: uma seqüência de loteamentos de casas baixas e pobres se estende ao longo do caminho. A certa altura, sobe à lotação Marluce, ex-vizinha de Maria. As duas são colegas de infortúnio do Jardim Gaivotas. Foram retiradas de lá à força pela prefeitura, por estarem em loteamento clandestino à beira da represa. Maria da Luz investiu ali todo o seu dinheiro. Desde que chegara do Maranhão, morava na casa em que era doméstica. Com isso, pode juntar 4,5 mil reais que deu na compra de um terreno de 5 m x 20 m com uma casa de um cômodo e banheiro. Seu companheiro colocou mais outro tanto para aumentar a construção. Maria conta que comprou o terreno de um homem bem vestido, bem falante, como um pastor de igreja, e que chamava a todos de irmão. Só depois soube que ele apenas passava adiante os lotes retalhados por um certo Nilson Antonio da Silva, que dizia a todos que ganhara o terreno à beira da represa como indenização trabalhista de um militar já falecido. Hoje os herdeiros do militar, viúva e dois filhos, têm um processo contra Nilson a ser julgado no STF, por posse indevida do terreno. As 97 casas do loteamento foram derrubadas pela prefeitura. A 300 metros da borda da represa, Maria pisa sobre os cacos de sua casa e se apóia na árvore que fazia sombra à sua porta. Outros moradores, que se ajeitaram em casas de parentes na vizinhança, começam a chegar. “Veio matar saudade?”, perguntam. A família de Marluce foi uma das poucas despejadas a receber um benefício concreto da prefeitura. Depois de alguns dias num acampamento de triagem, onde ela diz que havia lama e frio, foi para um hotel pago pela prefeitura. Depois conseguiu uma bolsa-aluguel: 300 reais por três meses, a qual está prestes a acabar. Edvaldo, outro morador, lembra: estava em casa quando funcionários da Secretaria do Meio Ambiente chegaram para apresentar um auto de advertência acusando-o de invasão, desmatamento e construção irregular. Àquela altura, já havia perdido o emprego de pizzaiolo de tanto faltar ao serviço para vigiar a casa, diante da ameaça de despejo. “Quem bate?”, Edvaldo lembra ter perguntado. “É o verde”, lhe teriam respondido. Documento, uma escritura, Edvaldo não tinha. Ele e todos os outros moradores têm apenas um contrato de compra e venda dos terrenos. Ademário, vizinho de Edvaldo, também foi demitido por faltar ao emprego dias seguidos para guardar sua casa. A baixa em sua carteira de trabalho ocorreu no mesmo dia da derrubada, 29 de agosto. Por CIDADES 11 RETRATO DO BRASIL | nO 6 ironia, o serviço de Ademário era numa empresa de demolição. A subprefeitura de Capela do Socorro já havia advertido os moradores do Gaivotas. Durante seis meses, foram visitados por assistentes sociais, policiais, fiscais do meio ambiente. Eles responderam a questionários, preencheram cadastros, assinaram papéis. Ao fim da visita do “verde”, viu-se que a opção era apenas uma: ou saíam por bem ou por mal. Com a demolição, a prefeitura e o governo estadual buscam barrar os processos de ocupação que podem comprometer os reservatórios de água da capital, as represas Billings e Guarapiranga. É uma intenção, em princípio, louvável. E Maria da Luz, Marluce, Edvaldo e Ademário, como ficam? Instalado num escritório bem modesto de um bonito prédio no centro velho de São Paulo, o defensor público Carlos Loureiro é enfático: “Essas ações de despejo provocam o aumento da exclusão social, da população de rua, a dissolução das famílias. Essa política tem um viés de NA BEIRA DA BILLINGS Ademário, Maria da Luz e Edvaldo, sobre as ruínas de suas casas à beira da represa Billings, em São Paulo. A prefeitura, preocupada com o “verde”, combate loteamentos irregulares (ao lado), mas não providencia moradia para os despejados higienização social. Ninguém é contra a proteção dos mananciais, mas a pura e simples destruição de casas não consegue interromper o processo de formação de loteamentos irregulares ou clandestinos, porque a origem desses processos está basicamente na falta de uma política habitacional eficaz. As pessoas só vão construir em área de proteção ambiental e de manancial, áreas baratas e proibidas, porque não existe uma política de habitação social eficaz.” A Defensoria Pública do Estado propôs, em outubro, uma ação civil pública para contestar a Ordem Interna 01/2007, do prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, que permite a demolição de casas em áreas de mananciais sem ordem judicial e sem oferecer às famílias desabrigadas alternativas de moradia. A Ordem Interna 01/ 2007, uma norma administrativa, dá à prefeitura o chamado poder de polícia para fazer as remoções. “O poder de polícia”, explica o defensor Loureiro, “é um instrumento do direito administrativo que pode ser usado para resolver conflitos relacionados com os direitos individuais, como o direito de propriedade, o direito de associação, de manifestação e de ir e vir. Se o direito de manifestação de um grupo esbarrar no direito de ir e vir de outro, por exemplo, a prefeitura pode usar do poder de polícia para garantir a desocupação da via pública. No entanto, o direito à moradia não é um direito individual. Segundo a Constituição, é um di- SÃO PAULO Praça da Sé Jardim Gaivotas Represa Guarapiranga Represa Billings reito fundamental, social. Exercer o poder de polícia sobre um direito social é inconstitucional.” Segundo Evaniza Rodrigues, da União dos Movimentos de Moradia, a prefeitura e o governo estadual de São Paulo estão realizando uma enorme quantidade de despejos pela cidade, valendo-se de decisões judiciais favoráveis à reintegração de posse ou das Ordens Internas que versam sobre áreas de risco e de mananciais. Com as desocupações, acredita ela, os loteamentos clandestinos só tendem a aumentar. Segundo a Secretaria Municipal de Habitação, existem 2.472 loteamentos irregulares na cidade (dados de 2005), nos quais vivem 2,6 milhões de pessoas. Desses loteamentos, 469 estariam em áreas de mananciais, abrigando cerca de 600 mil pessoas. Maria da Luz, que até então nunca tinha militado por um direito seu, tem liderado, com outros vizinhos, um movimento pelo reconhecimento do seu direito à moradia. A pressão tem levado a subprefeitura a ouvir os ex-moradores. “Vamos lutar até que eles se comprometam com uma solução de habitação para todos nós”, diz ela. “O direito à moradia é um dos fundamentais mais desprezados, porque é de difícil implantação, depende de muitos recursos e sempre se deixou muito ao arbítrio do poder público satisfazê-lo ou não, sempre na medida de sua capacidade econômico-financeira. O direito à saúde, que também é um direito social, é imposto todos os dias judicialmente nos tribunais. Entretanto, com relação à moradia, há uma enorme resistência, inclusive no Judiciário, de propor e aceitar ações relacionadas com a realização desse direito”, diz Loureiro. 12 CIDADES CPMF? No Retrato do BRASIL você fica sabendo do que importa Mais de 800 páginas com textos, fotos, gráficos e tabelas que tratam dos temas mais relevantes da realidade nacional. E dois índices, um temático e outro por nomes e siglas. 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