DAS RELAÇÕES ENTRE CIÊNCIA E ARTE SEGUNDO PAUL PAUL FEYERABEND ABRAHÃO, Luiz Henrique de Lacerda1 ASSIS, Cristiano Carlos Borges de2 Introdução Uma das definições tradicionais para o terreno das artes sustenta que tais produções consistem em realizações estéticas que emulam criativamente as emoções. Assim, acredita-se elas não possuem qualquer valor pragmático ou cognitivo, apenas importam enquanto objeto de fruição contemplativa. Nessa perspectiva, as artes seriam em tudo antagônicas às ciências naturais cujos, incontestáveis resultados empíricos e lógicos ampliam racional e tecnologicamente nosso conhecimento e domínio dos fenômenos. No entanto, o físico e filósofo austríaco Paul Feyerabend (1924-1994) oferece uma concepção distinta das relações entre as Artes e as Ciências. No seu pouco conhecido ensaio A Ciência como Arte, resultado de uma conferência proferida em 1984 junto à Escola Politécnica Suíça (ETH), ele salientou que aquele dualismo é incorreto, afinal existem, por exemplo, feitos “artísticos” os quais apresentam as mesmas propriedades metodológicas comumente atribuídas a um experimento científico. Ilustrando sua ideia com o episódio histórico dos artefatos técnicos e teóricos empregados na construção da catedral florentina de San Giovani o autor demonstra como o arquiteto pré-renascentista Philippo Brunelleschi: (1) realizou uma comparação entre um objeto criado e a “realidade” e que (2) esse procedimento comparativo seguiu condições definidas previamente. No trabalho em curso, pretendemos compreender como Feyerabend considera o campo artístico como um laboratório produtivo conforme regras e métodos rigorosos (tal como, na visão ortodoxa na “metodologia científica”) e, ao mesmo tempo, o contexto das teorias científicas como esquemas de pensamento cujos padrões de correção e certeza são socialmente acordados (tal como nos “estilos estéticos”). Materiais e Métodos Nosso trabalho parte da realização de uma tradução comentada do texto A Ciência como Arte, cotejado suas versões espanhola e francesa. Em seguida, buscamos relacionar as teses feyerabendianas propostas nesse escrito com artigos e capítulos da mesma época (ver lista em “Discussão”, abaixo) incluídos nos seus livros Adeus a Razão (1987), Contra o método (1975, 1988 e 1993), A conquista da abundância (1999), esforço que caracteriza os estágios consecutivos desta pesquisa. 1 Orientador; Professor do IFMG – Campus Ouro Preto. Contatos: [email protected] Bolsista do PIBIC; Graduando em Física no Instituto Federal de Minas Gerais – IFMG Campus Ouro Preto. Contatos: [email protected] 2 51 Anais da Semana de Ciência e Tecnologia, Ouro Preto, v. 3, p. 1‐352, 2011. Resultados O saldo principal de nossa pesquisa até o momento consiste na tradução completa e revisada do ensaio inédito A Ciência como Arte, de Paul Feyerabend. Se tivermos como parâmetro a edição francesa deste texto publicada no volume La Science en tant qu’art (Bibliothèque Albin Michel, 2003), então vertemos para o português cerca de meia centena de páginas, incluindo as citações, notas e imagens. Com efeito, outro resultado (menos tangível) do trabalho realizado foi tornar o bolsista mais familiarizado com o estudo das questões epistemológicas a partir de um idioma estrangeiro, aspecto valoroso em termos acadêmicos e pedagógicos. Com efeito, é essencial marcar nesta ocasião que os resultados que ora apresentamos provisórios e, especialmente, parciais. Discussão Nos primeiros anos de 1980, portanto meia década após ganhar fama mundial com a publicação do Contra o Método (1975), Feyerabend foi contratado como conferencista junto à Escola Politécnica de Zurique (a famosa ETH). Através de Erich Jantsch, um antigo colega de estudos astronômicos dos passados anos de graduação na Universidade de Viena, o filósofo e físico austríaco tomou conhecimento do desejo que esse instituto tecnológico manifestava em recrutar um filósofo da ciência para seu corpo docente. Imediatamente candidatou-se ao cargo. “‘Soube que vocês precisam de um filósofo da ciência; estou interessado’” (PKF/MT, p. 171), escreveu ao presidente da instituição suíça. Suas razões para pleitear a vaga saltam aos olhos: o prestígio da escola era imenso, o salário altamente satisfatório e a carga de trabalho mínima (PKF/STA, p. 12; PKF/MT, p. 174-177). Após ser admitido pela comissão avaliadora, os primeiros ensinamentos feyerabendianos na sala F7 da ETH versaram sobre tópicos consagrados da filosofia de Platão: a epistemologia do Teeteto e a complexa cosmogonia elaborada no Timeu. Em seguida, sua abordagem sobre a teoria das cores de Goethe foi televisionada (PKF/MT, p.176). Os ensaios “Criatividade – Fundamento das Ciências e das Artes ou Palavra Vã” e “Concepções Sintéticas e Agregativas, Ilustradas através do Exemplo da Continuidade e do Movimento” apresentam, respectivamente, a versão definitiva daquelas conversas. Finalmente, sua leitura da Física de Aristóteles originou o denso “Alguns Comentários à Teoria da Matemática e do Contínuo de Aristóteles”, atualmente incluído no Adeus à Razão. Todavia, além de aprofundar os conhecimentos do autor em história e filosofia antiga, tais seminários o estimularam a detalhar suas pesquisas sobre as relações entre arte e ciência. O par de ensaios “A Ciência como Arte” (1981) – cujas muitas páginas explicitam o conteúdo da aula inaugural na ETH – e “O Progresso nas Artes, na Filosofia e nas Ciências” (1983) – originalmente apresentado por ocasião do 58o Simpósio do Prêmio Nobel – apresentam resultados dessas pesquisas as quais, em parte, pretendem aperfeiçoar pormenores da concepção feyerabendiana sobre o progresso e a natureza do conhecimento científico. Dentro da concepção ortodoxa da epistemologia, representada especialmente pelos membros do Círculo de Viena, os campos da arte e das ciências naturais não apresentavam quaisquer traços gnosiológicos comuns. De um lado, as artes seriam expressões de estados afetivos; as ciências, por outro, 52 Anais da Semana de Ciência e Tecnologia, Ouro Preto, v. 3, p. 1‐352, 2011. descrições factuais e informativas acerca de dados objetivos. Em 1934, no texto “O Abandono da Metafísica”, o lógico Rudolf Carnap insistiu que as artes não fornecem conteúdo genuíno acerca do mundo, mas reflete traços emocionais. “Um poema”, ele afirma, “não tem sentido asseverativo, não tem sentido teórico, nem contém conhecimento” (CARNAP, 1998, p. 17). Antes disso, em 1929, ele já salientava no manifesto A Concepção Científica do Mundo que as artes não possuíam qualquer valor no âmbito do conhecimento dos fenômenos; e isto porque não seria possível atribuir significação factual para o conteúdos de tais proposições: [as] proposições [da metafísica e da teologia são] apenas expressão de algo como um sentimento perante a vida. Tal expressão certamente pode ser uma tarefa significativa no âmbito da vida. O meio adequado a isso é, porém, a arte: a poesia lírica ou a música, por exemplo. Se, em vez disso, se escolhe a roupagem verbal de uma teoria, surge um perigo: simula-se um conteúdo teórico onde não existe nenhum. Caso o metafísico ou o teólogo queiram manter a roupagem linguística habitual, devem ter claro e reconhecer nitidamente que não realizam descrição, mas expressão, que não produzem teoria, isto é, comunicação de conhecimento, mas poesia ou mito (CARNAP, HAHN, NEURATH, 1986, p. 11). De forma implícita, é contra uma visão similar a essa que Feyerabend se dedica, especialmente a partir dos anos 1980, a investigar as aproximações existentes entre os campos das artes e das ciências. O referido ensaio “A Ciência como Arte”, com efeito, ombreia com mais uma quadra de artigos, com vistas a oferecer uma apreciação mais ajustada das relações entre aqueles dos modos de manifestações linguísticas. Dado o que até o presente momento pudemos mapear, os principais estudos do autor nesse sentido são: 1. “A Criatividade” (1980) 2. “A Ciência como Arte” (1984) 3. “O Progresso na Filosofia, nas Artes e nas Ciências” (1986) 4. “Brunelleschi e a Invenção da Perspectiva” (1991) 5. “A Arte como um Produto da Natureza e como uma Obra de Arte” (1992) Em síntese, e de forma provisória, podemos sinalizar como objetivo comum deste cinco escritos a tentativa de superação da citada dicotomia entre artes e ciências a partir de três níveis argumentativos básicos: (A) metodológico (como em [1], [3] e [4]), (B) estilístico (como em [2], [3] e [4]) e (C) ontológico (como em [3] e [5]). Isto é, enquanto em (A) são mostrados como artistas e cientistas desenvolvem suas 53 Anais da Semana de Ciência e Tecnologia, Ouro Preto, v. 3, p. 1‐352, 2011. pesquisas utilizando procedimentos similares, em (B) aprendemos que os critérios empregados em ambos os casos para avaliar o sucesso de um empreendimento artístico ou científico são dependentes de fatores contextuais e relativos à própria comunidade envolvida. Por fim, (C) indica que o resultado dos processos elaborados em (A) e acordados em (B) trazem como fruto a “realidade” com a qual cientistas e artistas laboram. Assim, tanto as artes quanto as ciências seriam construtoras das ontologias com as quais trabalham e dos resultados (técnicos e estéticos) derivados de seus “estilos de pensamento”. Portanto, nessa linha pretendemos atribuir analiticamente uma unidade temática à crítica histórica de Feyerabend àquela ortodoxa diferenciação entre os campos científico e artístico a partir de reflexões epistemológicas radicais e abstratas. Conclusões Os resultados parciais de nossa pesquisa apontam para uma compreensão inovadora das relações interpretativas entre os campos das ciências naturais e das artes. O encerramento da tradução do referido ensaio nos colocou diante de uma vanguardista superação da tradicional dicotomia entre Ciência e Arte, baseada em uma reavaliação dos elementos procedimentais, metodológicos e gnosiológicos. Referências Bibliográficas CARNAP, R; HANH, H.; NEURATH, O. (1986), A Concepção Científica do Mundo: o Círculo de Viena. Tradução de Fernando Pio de Almeida Fleck. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, v. 10, p. 5-20. CARNAP, R. (1998), Filosofía y Sintaxis Lógica. Traducción de César Molina. Universidad Nacional Autónoma de México. FEYERABEND, P. K. (PKF/AR*), Adiós a la Razión 3ª edição. Madri: Editora Tecnos (Grupo Anaya, S.A.), 2005. FEYERABEND, P. (PKF/AR), Adeus à Razão. Tradução de Maria Georgina Segurado. Lisboa: Edições 70, 2001. FEYERABEND, P. (PKF/CA), A Conquista da Abundância. Organizado por Bert Terpstra; tradução de Cecília Prada e Marcelo Rouanet. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2005. (Filosofia e Ciência, 4). FEYERABEND, P. (PKF/CM3), Contra o Método. Tradução de Cezar Augusto Mortari. São Paulo: Editora UNESP, 2007. (3a edição, 1993). FEYERABEND, P. (STA), La Science en tant qu’Art. Traduit d’allemand par Françoise Périgaut. Paris: Éditions Albin Michel, 2003. (Science d’aujourd’hui). FEYERABEND, P. (PKF/MT), Matando o Tempo – uma autobiografia. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Editora Unesp, 1996. 54 Anais da Semana de Ciência e Tecnologia, Ouro Preto, v. 3, p. 1‐352, 2011.