1057 ANAIS DO X ENCONTRO NACIONAL DE TRADUTORES & IV ENCONTRO INTERNACIONAL DE TRADUTORES (ABRAPT-UFOP, Ouro Preto, de 7 a 10 de setembro de 2009) Até que a língua os separe: entre instâncias do signo e o furor traducendi Paulo Sérgio de Souza Jr. (Universidade Estadual de Campinas) Resumo: Augusto e Haroldo de Campos não apenas possibilitaram, como materialização da discussão estética proposta sob a égide do nome de transcriação, um grande número de traduções para o português, como também situaram um novo veio para escoarem as traduções literárias como um todo. No que diz respeito ao seu próprio trabalho enquanto tradutores, diversos escritores tiveram versos publicados no Brasil pelos punhos desses irmãos; a poetisa russa Marina Tsvietáieva, por exemplo. Procuramos discutir neste trabalho os efeitos de algumas escolhas de Augusto de Campos na tradução de um poema de Tsvietáieva escrito em 1934 – texto que dialoga intensamente com a obra crítica da autora. A partir dos resultados, vemos a possibilidade de relacionar alguns dos pontos dessa visada teórica do procedimento tradutório e, sobretudo, tocar por um incômodo questões fundamentais no que diz respeito ao texto literário, como a báscula autoral entre tradutor e autor e a posição de um texto traduzido com relação à crítica. Palavras-chave: Transcriação; Marina Tsvietáieva; Significante. O presente trabalho busca dar sequência a questionamentos que se iniciaram durante a produção de um texto publicado ano passado na Revista Tradução & Comunicação, n. 17, cujo título é “Traduzir e autorizar: como errar pelo significante” (Souza Jr., 2008, p. 185-193). Tal artigo, mediante a discussão sobre um poema de Marina Tsvietáieva traduzido por Augusto de Campos, possibilitou-nos animar algumas questões que parecem merecer ser levadas adiante no que diz respeito à transcriação e seus efeitos. Para tanto – e também para seguir à risca o que acabei de chamar aqui de dar sequência ao trabalho –, gostaria de iniciar esta discussão justamente com o poema através do qual encerrei o artigo citado e também recuperando o texto em linhas gerais, para que, então, possamos arriscar mais um quarto de volta, atendo-nos especialmente a duas questões. Na tradução de Aurora Bernardini, assim escrevera Tsvietáieva (2006, p. 111): 1058 ANAIS DO X ENCONTRO NACIONAL DE TRADUTORES & IV ENCONTRO INTERNACIONAL DE TRADUTORES (ABRAPT-UFOP, Ouro Preto, de 7 a 10 de setembro de 2009) Que vou fazer agora, cego e enteado, Num mundo em que cada um tem vista e pai, Onde entre anátemas, como sobre aterros — Há paixões? onde o choro Se chama — muco! Que vou fazer com o osso e o ofício De cantora? Qual despedida! queimadura! Sibéria! Entre meus delírios — como por uma ponte! Imponderáveis, Num mundo de pesos. Que vou fazer, cantor e primogênito, Num mundo, onde o mais preto — é cinza! Onde guardam a inspiração numa garrafa térmica! Imensurável, Num mundo de medidas?! Não seria ousado assinalar que Tsvietáieva poderia tranquilamente ter colocado essas perguntas na boca do texto original: imponderável, imensurável; e, sobretudo, perdido em si mesmo, e por si mesmo, daquilo que ela chamava de “verso primário” [первичный стих] (cf. Souza Jr., 2008, p. 187). Porém, aforismos desse tipo não são propriamente novidades: o texto órfão de si; o original que só se funda como possibilidade a partir da existência da tradução; o texto como tradução de si mesmo a cada movimento de leitura. E onde é que estão, pois, as questões que procuramos trazer no presente trabalho, quando falamos da incomensurabilidade do original? Ao considerarmos as preocupações dos irmãos Campos pelas questões tradutórias, encaramos a seguinte afirmação: é preciso que se vá a um para-além do significado – “não se traduz apenas o significado”, diz Haroldo de Campos (1992, p. 35; grifo nosso) –, o que faz com que os irmãos tradutores se voltem justamente para a dimensão do significante, em detrimento daquele que, tradicionalmente, vinha ocupando lugar desde há muito nas reflexões sobre a prática da tradução. O que 1 vai estar em jogo é, doravante, a materialidade do signo . Isso naturalmente remete os dois tradutores a textos que sejam, invariavelmente, boas fontes de trabalho no que diz respeito ao material 1 “Fascinante aventura de criar com dígitos, com o sistema fonético, uma área linguística não-discursiva, que participa das vantagens da comunicação não verbal (maior proximidade das coisas [...]), sem, evidentemente, mutilar o seu instrumento – a palavra...” (Campos, 1965 apud Seligmann-Silva, 2005, p. 194; grifo nosso) 1059 ANAIS DO X ENCONTRO NACIONAL DE TRADUTORES & IV ENCONTRO INTERNACIONAL DE TRADUTORES (ABRAPT-UFOP, Ouro Preto, de 7 a 10 de setembro de 2009) fônico, dentre eles: alguns poetas eslavos do começo do século, sobretudo os cubo-futuristas russos – como V. Maiakóvski e V. Khliébnikov. Nesse sentido, Tsvietáieva fica um pouco apartada desse contexto, uma vez que sua poesia não é marcadamente portadora da ambição sonora cubo-futurista. De todo modo, ela faz parte do rol de artistas suicidas do começo do século XX na Rússia soviética, e seu texto carrega a densidade de uma “geração que esbanjou seus poetas” (cf. Jakobson, [1930] 2006) e a insere no cânone dos artistas do período – de forma a não ser possível negligenciá-la em uma coletânea de autores dessa época, por exemplo. Apesar de destoar do cubo-futurismo nesse sentido, a poetisa não escapava do costume coetâneo de produzir, além de seus textos poéticos, textos de crítica da própria produção poética, bem como textos teorizando a literatura em sentido mais amplo. É aí que encontramos obras como O poeta e o tempo; A arte à luz da consciência; Um poeta a respeito da crítica (cf. Tsvietáieva, 1990): obras em que Marina Tsvietáieva fala, sobretudo, das suas concepções de criação poética. Se, como afirma Márcio Seligmann, “o concretismo herdou da concepção cubista da arte a tentativa de desmontar o aparato mimético do código artístico, mas sem abandonar o elemento, digamos assim, ‘semântico’ ou ‘figurativo’ (no caso das artes plásticas)” (2005, p. 194; grifo nosso), então o projeto crítico de Marina Tsvietáieva, ou muito provavelmente o desconhecimento desse projeto, coloca o poema sem título traduzido por Augusto de Campos – e que foi trabalhado por mim no artigo citado – em um lugar bastante curioso para que iniciemos uma discussão a respeito do papel do tradutor como autor de um texto produzido “a partir de”. Fazer do original “tradução da sua tradução” e legitimar o componente autoral no trabalho tradutório, ambos motes transcriacionistas, tem evidentemente um efeito não negligenciável sobre a figura do autor do chamado texto original, ainda mesmo que pensemos por via negativa: na medida em que desloca a figura do tradutor – alguém que se debruça sobre o texto de uma forma bastante específica e que é, ou mais, ou menos, legitimado a fazer o trabalho que faz. Quando Haroldo de Campos (1981, p. 180) fala sobre a possibilidade trazida pela transcriação de fuga “à tirania de um Logos pré-ordenado”, a proposta de redenção do texto traduzido – agora marcadamente autoral – nos intriga de alguma forma. Afinal, com essa mudança proposta – marcada pela saída da subserviência rumo a uma negociação mais amistosa com o texto base –, não é dado a ambos (original e tradução) a mesma oportunidade de recusa a essa tirania: afinal, o texto do autor há de conviver com a tradução que o determinará, subsequen- 1060 ANAIS DO X ENCONTRO NACIONAL DE TRADUTORES & IV ENCONTRO INTERNACIONAL DE TRADUTORES (ABRAPT-UFOP, Ouro Preto, de 7 a 10 de setembro de 2009) temente, ao menos pelo fato de que ela [a tradução] traz a rubrica do autor pelo punho daquele que, logo abaixo, também assina o próprio nome na condição de tradutor (Souza Jr., 2008, p. 192). Há, então, um deslocamento das peças em jogo; mas não exatamente uma mudança das regras, o que já nos dizia Bárbara Johnson (1985), na tradução de Lenita Esteves: [S]e o texto original já é uma batalha tradutória, na qual o que está sendo traduzido é, em última instância, a própria impossibilidade de tradução, então gestos apaziguadores como a aderência escrupulosa ao significante são tão infiéis à energia do conflito como a tirania do significado de pés inchados. (apud Ottoni, 2005, p. 34) Se nos ativermos ao caso daquele poema em específico, depreendemos que a liberdade das amarras da predeterminação de um Logos simplesmente apaga a produção crítica de Marina Tsvietáieva a respeito da própria obra. Existe uma densidade de sentido na noção de verso cunhada pela autora que é simplesmente ignorada nas opções feitas pelo tradutor, uma vez que a possibilidade de uma compensação, prevista e proposta pela teoria, vê nos significantes verso e poesia a característica de mercadorias subtrocáveis – na ocasião, a custo da rima (cf. Souza Jr., 2008, p. 191). Ainda que haja “um trabalho incansável de, por um lado, uma busca de uma linguagem icônica, transparente aos objetos, imediata, concreta, e, por outro lado, de crítica da possibilidade de se instituir esta linguagem” (Seligmann-Silva, 2005, p. 195-196), em que medida isso passa da teoria para a prática da tradução? Ou seja, não se pode confundir e deixar de ver o abismo que existe entre a tradução e a teoria que a causa: isto é, como, em certo sentido, a tradução – como “amostra de pura língua”, tal qual qualifica Jean-Claude Milner (1978, p. 9) – teima em desmentir a teoria que a suporta; e o texto original não deixa de parecer que reclama, insatisfeito. Em um poema dedicado a Haroldo de Campos, Paulo Leminski (1995, p. 36) escreve: O que quer dizer, diz. Não fica fazendo O que, um dia, eu sempre fiz. Não fica só querendo, querendo, Coisa que eu nunca quis. O que quer dizer, diz. 1061 ANAIS DO X ENCONTRO NACIONAL DE TRADUTORES & IV ENCONTRO INTERNACIONAL DE TRADUTORES (ABRAPT-UFOP, Ouro Preto, de 7 a 10 de setembro de 2009) Só se dizendo num outro O que, um dia, se disse, Um dia, vai ser feliz. O texto, pois, pede tradução, tradução a qualquer custo. Se pensarmos na gama de TR-s derridianos: transplantar, transpor, transitar rumo a uma tradução relevante, isto é, capaz de relevar a dívida impagável contraída com o original, reconhecendo-a, já que não é possível pagar a libra de carne que cabe ao texto pelo qual se funda como segunda. No caso de uma poetisa como Marina Tsvietáieva, tendo em vista o trabalho crítico desenvolvido pela própria autora (e também tradutora), estar-se-ia impelido a um trabalho de tradução que não se prendesse apenas ao material fônico, mas se estendesse à consideração de tais textos. A escolha significante (com toda a ambiguidade que a expressão pode suscitar) traz, portanto, ainda que se saiba que o contrato é insustentável, a chave que também pode condenar a uma espécie de deriva medial, em que o significante não salva o que o significado turvaria; e o significado não dá conta de arrematar o pesponto alinhavado pelo significante. Referências bibliográficas CAMPOS, H. Deus e o diabo no Fausto de Goethe. 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