__________________________________________ 1 Síntese dos Debates Nelson Rodrigues dos Santos1 Comitês de Ética em Pesquisa, Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 1999. In: Carneiro, F. (Org.). A Moralidade dos Atos Cientificos – questões emergentes dos Coordenador - Após essas três impressionantes contribuições sobre o poder, a flexibilidade da Ética em relação aos valores culturais da sociedade, e o Direito, como pacto possível entre as relações humanas, me veio à lembrança um artigo de Recúpero, cuja cópia tenho aqui comigo. Ele conta uma experiência sua num debate, na UNICAMP, sobre a deliberada política de esvaziamento de capital do Terceiro Mundo. Ele narra o impacto que sentiu, num determinado momento, ao olhar a platéia em sua quase totalidade de pósgraduandos, doutores, enfim, 'brancos de classe média para cima', assim como hoje, aqui, neste debate. O artigo fala do sentimento de solidariedade que lhe bateu em relação à maioria (60 %) da população brasileira excluída dos usufrutos do desenvolvimento econômico, percentagem similar à população negra, preta, parda, enfim, não branca... ausente dos debates. E, aqui, agora, ouvindo a questão da escala de valores presentes numa cultura, veio-me essa mesma sensação ali descrita: vivemos lado a lado em dois mundos que se tocam, mas não se comunicam, não se conhecem. E em um deles, a impressionante estatística de 60 mil jovens mortos 'antes dos 30' (nos últimos 5 anos), numa diversidade de cenários de crimes cantados de forma brutal e contundente no discurso poético de rappers, que aqui reproduzo (lendo) -"é a mofa do sórdido em relação ao limpo, o triunfo do sujo contra a ordem, a calma e a volúpia dos executivos enriquecidos no mercado financeiro". Então, a esta platéia, racial e socialmente semelhante a um dos mundos descritos acima... perguntamos: • • Como percebemos a escala de valores dessa sociedade? Que valores e que relações concretas podemos pensar em alterar nessa sociedade na tem ótica de hoje - a ética em pesquisa biomédica envolvendo seres humanos? PERGUNTAS Sobre as motivações, finalidades e limites às pesquisas - O percurso humano da ciência e da técnica vem sendo sempre justificado como "para o bem do Homem". Mas, uma certa reflexão sobre este percurso indica que muitas soluções para o mal estar do Homem acaba por produzir novas tensões... para o mal estar do Homem. Isso é fato notável no percurso da ciência e da técnica. Aí me ocorre a afirmação do Nietzsche sobre a 'vontade do poder' e, nesse sentido, a fala de Wim Degrave foi muito interessante, pois é visão que brota do interior da Ciência. E eu pergunto: • 1 Até que ponto essa busca do bem do Homem não é a busca, na verdade, do bem de alguns sobre outros? Coordenador do Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde. __________________________________________ 2 • Até que ponto nós pensamos a Ética como a manutenção ou busca do bem ou do equilíbrio entre a ação e o bem do Homem e, até que ponto nós procuramos balizar, efetivamente, a luta entre os humanos pelo poder? - Eu ouvi duas coisas contraditórias aqui. O Prof. Olinto Pegoraro disse que a Ética não impõe limites à pesquisa. E, na abertura do evento, o Dr. Renato Cordeiro falou que é preciso admitir limites para as escolhas de investigações científicas. Ora, nós vivemos atualmente numa sociedade muito plástica onde tudo é possível e eu pergunto: • • Deveríamos pensar a produção do conhecimento científico como a gente produz o lixo? A gente vai fazer ciência, jogar o conhecimento científico na sociedade e depois a sociedade decide o que vai fazer com ele? Ou a gente seleciona o que será lixo antes? Vejam bem, não estou chamando o conhecimento científico de lixo. Quero chamar atenção sobrea responsabilidade do conhecimento científico, que é a primeira responsabilidade do cientista e depois a da sociedade. Os cientistas não estão também na sociedade? A Ética impõe limites à nossa escolha ou não? - Estamos falando das escolhas individuais dos cientistas sobre o que investigar, mas sabe-se que a grande concentração de investimento em pesquisas está hoje em três rubricas: genoma humano, câncer e AIOS. - O poder econômico também está financiando pesquisas na área da Ética e está dominando até a discussão da ética em biotecnologia: 10% do Projeto Genoma é para estudar Bioética. As indústrias têm suas rubricas para financiar a Ética. Então: • • • • A liberdade científica e da discussão ética estão cerceadas? São bilhões de dólares! Essas escolhas, são decididas por quais critérios? O que orienta essa escolha? Não seria nestes fóruns de decisão de investimento onde se privilegiaria a discussão de questões éticas contemporâneas, tais como a responsabilidade na escolha do caminho das pesquisas e da concentração dos investimentos? RESPOSTAS Wim Degrave - Tanto a Ciência quanto a Ética provêm dos homens e podem ser usadas para dominar outros homens. Em primeiro lugar, a produção do conhecimento, em si, não visa o bem do Homem, pois a motivação da produção científica são as perguntas que se criam e tenta-se respondê-las para ampliar o espaço do conhecimento. O cientista, pelo menos o do setor público, tem um aspecto que domina quase todas as suas ações no laboratório que é um tipo de idealismo; Mas, a finalidade da produção científica, em boa parte, justifica-se para o bem do Homem. Obviamente, as pesquisas são e têm de ser financiadas e aplicadas, às vezes, são desenvolvidas com o fim de ampliar a consciência da humanidade e essa é uma finalidade válida. Mas, já que têm uma relação intríseca com o financiamento, segue o mesmo percurso da dominação econômica, bem ilustrada pela menção ao artigo do Recúpero. __________________________________________ 3 É válido perguntar se vale a pena fazer pesquisas conceituais se há tanta criança morrendo de fome, mas este é um problema de distribuição e as pesquisas que se ocupam em construir conceitos não resolverão estes problemas e nunca poderá ser a Ciência que os resolverá. A Ética, ao trabalhar com assuntos "de elite", gasta seu tempo também dentro de um percurso de dominação. Mas tudo isso é muito complexo. O debate ético trata do direcionamento da pesquisa quando envolve humanos, animais ou algum impacto no meio ambiente. Mas, o assunto propriamente dito da pesquisa não passa por nenhum crivo ético. O pesquisador segue seu código de ética profissional. A indústria pesquisa, inventa, tenta patentear e vender. Os juristas, depois, vão discutir as aplicações e o que pode ou não pode ser feito. Creio que é impossível filtrar o assunto a ser pesquisado, de antemão. É inerente à produção científica. Boa parte da invenção vem da pesquisa do inútil. Há aquele caso de um brasileiro que fez um estudo matemático e publicou um grande artigo na revista Science sobre a explosão da pipoca! (risos). Acho que não dá para filtrar essas coisas. Não estou querendo dizer que o cientista está lá numa torre, como sempre se diz, sem que possa ser controlado. As pesquisas básicas são feitas sem financiamentos. Faz-se muito mais pesquisa do que o que é de fato financiado. O pesquisador tem que "vender seu peixe"; produzir conhecimento, adquirir prestígio, publicar em revistas consideradas pela comunidade como de melhor qualidade científica. Toda avaliação é sempre em cima disso. O cientista é gerente de laboratório que tem de agradar a gregos e troianos: aos que financiam, aos que fazem avaliação acadêmica; a revistas indexadas, que é uma forma de obter reconhecimento, fama, prestígio, etc. Um debate ético, um filtro, para dirigir os investimentos em pesquisas que seriam úteis para a sociedade seria muito complicado e não se pode transferir essa responsabilidade para o pesquisador. A sociedade pode fazer este debate e canalizar investimentos para isso. Realmente não são os cientistas que decidem. A sociedade ou setores da sociedade decidem onde investir. Por que não se investe em pesquisas e tratamento em tuberculose que é a doença que mais mata no mundo? Porque os doentes não pagam. Por que que os estudos sobre o H IV tem tanto financiamento? Porque parte dos doentes que têm H IV conseguem pagar o diagnóstico e o tratamento e vai garantir retorno. Hanseníase, por exemplo, foi considerada pela OMS uma doença que poderia ser erradicada como problema de saúde pública até o ano 2000, e suspenderam-se os investimentos em pesquisa. Muitos pesquisadores que estudavam essa doença mudaram seus objetos de estudo. A indústria não investe em tuberculose porque não dá lucro... Estive num congresso sobre genomas e bactérias onde a pesquisa está a todo vapor (30 a 40 genomas são seqüenciados por ano). A metade dos participantes era de indústrias e o interesse era a produção de testes, diagnósticos e medicamentos para quem vai pagar. Então, o saber científico é tutelado pelo poder econômico em sua maioria. O balanço este poder e o que é produzido com fins do interesse científico e da saúde públic: piorando. Quanto ao financiamento de estudos bioéticos pelas empresas biotecnológicas, sob o ponto de vista econômico, o projeto Genoma Humano investe na bioética com o sentido de preparar a sociedade para absorver as aplicações destes estudos e inventos, para garantir o retorno financeiro. Ninguém investe tanto para produzir o conhecimento em si. __________________________________________ 4 Olinto Pegoraro - Todos dizem que vão fazer alguma coisa para o bem de alguém, para o Bem do Homem É claro que a lógica do capital e consumo acaba por se dirigir para o bem de alguns. Entretanto, onde está o controle ético e o fórum de decisão no que se relaciona a capital, técnicas e laboratórios? A produção laboratorial chega de alguma forma à comunidade. A comunidade é quem decide e cabe a ela, a posteriori, usar ou não. Nesse sentido é a política a atividade mais importante no auto-governo social. Quanto menos consciência política mais problemas éticos. O processo político de onde investir depende dessa consciência, inclusive a parlamentar. Por isso a importância desse debate, que deve ser levado a todas as comunidades. Quanto aos limites à pesquisa, no momento em que o produto ou o assunto chega à sociedade é que o debate acontece. Não há como controlar as pesquisas básicas, pois os resultados, nunca se sabe onde chegarão. As normas vêm depois que se alcança a consciência da comunidade científica e de consumo. A elaboração da Resolução CNS 196/96 é um exemplo disso. Não tenhamos medo da Ciência. A tecnociência depende do Homem. É para homens e mulheres e desenvolvido por eles. Deve se subordinar à capacidade humana de decisão. Seja uma decisão posterior ou anterior ao início da pesquisa. Mas sempre será uma decisão. A Ciência deve ser um objeto de crítica. Francisco Amaral - Serei breve. A Ética é sempre corporativa e comunitária. Essa relação moral se diferencia entre os grupos profissionais - há o código dos advogados, dos médicos, dos jornalistas, códigos deontológicos para pesquisadores, etc. É a própria comunidade quem dita. O grande componente a ser garantido é a democracia. Todo grupo social tem seus códigos morais. Os primeiros limites são colocados pela Ética e depois pelo Direito. E as normas são sempre transgredidas, por isso é que tem de haver sanções. Mas, nós raciocinamos ainda pelos paradigmas da era moderna e as questões contemporâneas ainda não podem ser respondidas pelos modelos do século XVIII, XIX e não devemos ser reducionistas - não pode ser o fator econômico o que determina o caminho das pesquisas. É necessário o consenso de critérios orientadores e por isso é que estamos aqui. Temos que criar modelos epistemológicos para enfrentar questões inusitadas. PERGUNTAS Sobre imprensa, empresas e instituições de pesquisa - Vamos considerar universidades, instituições públicas de pesquisa, as indústrias e a imprensa. Se a imprensa também é um negócio lucrativo, está comprometendo a isenção das informações de forma desinteressada, está ignorando a discussão ética: • Qual é o relacionamento entre imprensa, empresas e instituições públicas de pesquisa? Até que ponto essa relação influencia o direcionamento das pesquisas e a veracidade das informações veiculadas? __________________________________________ 5 • Sobre os transgênicos, a clonagem, por exemplo, a imprensa quando informa e omite aspectos da questão não influenciaria a própria legislação? RESPOSTA Wim - A imprensa sempre deixa a desejar quando veicula artigos científicos - tanto em seu conteúdo quanto em seus propósitos. É um assunto delicado. Mas é verdade que a imprensa tem como objetivo vender. Busca excitar o interesse do leitor de qualquer modo. É verdade que a qualidade da matéria é atingida e a imprensa tenta ser sensacionalista, alterando questões técnicas e o entendimento, como vem acontecendo, por exemplo, nas matérias sobre clonagem ou sobre os transgênicos. Mas, também a imprensa divulgou aspectos legislativos e alargou a percepção pública sobre este assunto. Mas, é verdade que a população acaba ficando sem a menor noção sobre o que as empresas estão preparando para o mercado. Os produtos chegam até nós na forma de campanhas e o público se perde no processo. A divulgação é assim. Pode- se chamar à Ética do Jornalismo e exigir a divulgação de fatos corretos. Mas é muito difícil alcançar isso.