Expressões do tédio na contemporaneidade: uma análise das músicas dos anos 80 Expressions of boredom in the contemporaneousness: an analysis of the music of the 80’s Adriana Aparecida Almeida de Oliveira1 José Sterza Justo2 Campus Assis Faculdade de Ciências e Letras – Unesp Assis Psicologia [email protected] Bolsa: FAPESP Palavras Chave: Contemporaneidade; Tédio; Cultura. Keywords: Contemporaneousness; Boredom and Culture. Introdução A contemporaneidade constitui-se como sendo o tempo atual no qual mudanças importantes e outras ainda em curso estão dando feições ao mundo, diferentes daquelas consagradas pela modernidade, seja pela intensificação e radicalização do processo de modernização ou pela eclosão de novos processos, dentre eles, inclusive, aqueles que foram situados como próprios da pós-modernidade. Este período se caracteriza, segundo Harvey (1998), pela incorporação e aceitação do efêmero e do provisório, tornando mundanas as imagens de aceleração, instabilidade, precariedade, metamorfose, fragmentação, imaterialidade, mixagem e outras que compõem a condição humana na atualidade. Começo com o que parece ser o fato mais espantoso sobre o pósmodernismo: sua total aceitação do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e do caótico que formavam uma metade do conceito baudelariano de modernidade. Mas o pós-modernismo responde a isso de uma maneira bem particular; ele não tenta transcendê-lo, opor-se a ele e sequer definir os elementos “eternos e imutáveis” que poderiam estar contidos nele. O pós-modernismo nada, e até se espoja, nas fragmentárias e caóticas correntes da mudança, como se isso fosse tudo o que existisse (Harvey, 1998, p.49). Bauman (1998), depois de ter assimilado a noção de pós-moderno, em seu livro “O Mal estar da pós-modernidade”, recuou e passou a usar e abusar da metáfora dos líquidos para caracterizar a atualidade como uma “modernidade líquida” (2001). Também ele entende que a modernidade se caracteriza pelo desmoronamento da ordem tradicional e pela busca de um novo modo de ser que é sempre reiterada em incessantes começos (sempre começar, constantemente). “(...) De fato, pode-se definir a modernidade como a época, ou o estilo de 1 2 Graduanda do Curso de Psicologia. UNESP-Assis Docente do Curso de Psicologia. UNESP-Assis - Orientador da pesquisa vida, em que a colocação em ordem depende do desmantelamento da ordem” tradicional “, herdada e recebida; em que ser significa um novo começo permanente (Bauman, 2001, p.20)”. Deleuze (1992), enfatizando a contemporaneidade como a disseminação da sociedade de controle, afirma que nessa sociedade nada se termina, nada se acaba, tudo permanece num constante estado de recomeço que não leva a lugar algum e retorna sempre ao ponto de partida. Um processo de repetição que intensifica o tempo e mantém a vida sempre acelerada. O estado de “recomeço permanente” cria uma situação de instabilidade, provisoriedade e precariedade dos vínculos e dos relacionamentos, rompendo com as tradicionais situações de estabilidade e segurança típicas das sociedades pré-modernas e do sedentarismo. (...) Lugares em que o sentimento de pertencimento era tradicionalmente investido (trabalho, família, vizinhança) são indisponíveis ou indignos de confiança, de modo que é improvável que façam calar a sede por convívio ou aplaquem o medo da solidão e do abandono (Bauman, 2005, p.37). Nesse ambiente de instabilidade, provisoriedade e de abreviação dos vínculos, não há lugar para a estabilidade e durabilidade. Os vínculos sociais e psicológicos tendem a se fragilizar e esvaecer a figura do outro, acentuando o individualismo e a produção de relacionamentos passageiros. Aliás, como destaca Augé (1994), o próprio da hipermodernidade, tal como ele chama a contemporaneidade, é criar espaços de trânsito, de passagem, anônimos, não identitários, pelos quais o sujeito circula como um passageiro à deriva, totalmente conduzido orientado e monitorado em seus passos. O abrandamento dos vínculos e dos relacionamentos, somado ao individualismo e ao temor ou ao incômodo, suscitado pela presença do outro, cria certo refluxo na convivência e nas ligações pessoais, caracterizando o que tem sido chamado de solidão na multidão (Tanis, 2004), solidão essa já detectada por Baudelaire no século XIX, no fervilhar da modernidade (Medeiros, 2009). No cenário da solidão, da indiferença e do vazio, produzido pela velocidade, pelo distanciamento do outro e pela brandura das vinculações e relacionamentos, destaca-se uma forma de subjetivação: o tédio. Estamos tomando-o como um estado de desolação e desânimo para com a vida decorrente de experiências básicas da modernidade relacionadas à aceleração do tempo, que começaram a se despontar no século XIX e se prolongaram até os dias atuais. O tédio se apresenta como uma tentativa de parar o tempo ou recusar um ritmo de vida frenético. Objetivo O objetivo principal e central da presente pesquisa é identificar e analisar as expressões do tédio na cultura, tomando como corpus letras de músicas pop rock que fizeram sucesso na década de 80. Metodologia: A presente pesquisa teve como corpus letras de músicas, do repertório do Rock Nacional, da década de 80, que versavam sobre o tédio. A escolha de letras musicais não teve a pretensão de considerar tais obras como as mais expressivas de um tempo ou suficientes para examinar a experiência do tédio que se sobressai na modernidade e se acentua nos fins do século XX, com a configuração do pós-moderno. Foram tomadas apenas como expressões significativas, porém não totalizadoras, de sentimentos que tiveram forte presença na época. As letras de músicas foram tratadas mediante uma Análise de Conteúdo, na linha proposta por Bardin (2002). Tal análise é bastante apropriada para exame de textos, possibilitando um tratamento sistemático dos mesmos que permite apreender sentidos que escapam a uma leitura ingênua ou convencional. No caso da presente pesquisa, as categorias foram estabelecidas a priori, ou seja, a partir dos conteúdos da experiência já estabelecidos na literatura como pertencentes ao que se chama de “Sentimento de Tédio”. Dessa forma, o material selecionado foi analisado mediante as seguintes categorias: sentimentos de tristeza, perda, vazio, apatia, solidão, insatisfação, cansaço e idéias que expressem a percepção de tempo parado e de repetição dos acontecimentos da vida. Tais sentimentos que formam as categorias de análise foram observados em palavras, frases ou segmentos do texto. Resultados e Discussões: O tédio é temporal, ele se constitui na experiência da velocidade, por isso mesmo é uma subjetividade da modernidade potencializada na atualidade. A música “Domingo”, dos Titãs, por exemplo, não fala de uma amada perdida, como as músicas conhecidas como “de dor de cotovelo”; fala sim de um tempo que não passa, um tempo parado. Este estado subjetivo é a expressão de uma experiência de paralisação da vida, onde nada acontece e tudo se repete tal como pode ser visualizado na música “Cotidiano”, de Chico Buarque: “Todo dia ela faz/ Tudo sempre igual/ Me sacode/ Às seis horas da manhã” (HIGUET, 2007). Esse aborrecimento é um cansaço de viver, uma despotencialização da vida ou diminuição da sua intensidade: uma vida de baixa intensidade. Na música intitulada Tédio, do grupo musical Biquíni Cavadão, é possível perceber que há uma espécie de denúncia a este estado subjetivo, descrito como algo que "corta os programas", "corrói" e assim "leva a esperar o fim", no sentido de levar quem o sente intensamente ao suicídio, ao total desligamento da vida. Pode também ser entendido como uma recusa a acompanhar o ritmo frenético da superfície da vida, como um desligamento da orgia da velocidade, uma apatia e desinteresse pelos espetáculos do mundo. Em algumas estrofes dessa letra os sentimentos de apatia e insatisfação aparecem com bastante clareza: "Leio o jornal que é de ontem/Pois prá mim, tanto faz". No refrão da música Domingo, dos Titãs, o dia de domingo é cantado como um dia entediante: "Domingo eu quero ver o domingo passar". É possível notar, nessa letra, a preocupação com esse dia da semana dedicado ao descanso, quando os ritmos do cotidiano e da cidade diminuem objetivamente. Como se pode observar em outras estrofes da música, no clima de calmaria do domingo, não se sabe o que fazer, muito menos aonde ir. Com tantas possibilidades em um dia sem compromissos o que permanece é a dúvida e a sensação de que o mundo parou e não se tem aonde ir e o que fazer pois "Tudo esta fechado/ Tudo esta fechado". O que está fechado, na realidade, é o estado subjetivo do sujeito pós-moderno frente ao "mar de possibilidades" (Carvalho, 1998) com o qual o tédio se confronta. A música Tédio (com um T bem grande pra você), da Legião Urbana, retrata os estado de insatisfação por não se ter o que fazer de interessante e por não se fazer nada. Essa letra expressa a falta de sentido da vida num mundo que se apresenta como farto, mas uma fartura de alienação entre tantos objetos de consumo. O sujeito propriamente dito, aquele protagonista de sua vida e de seu mundo são muito pouco solicitados a entrar em cena. Permanecem como espectadores passivos sendo levados pela vertigem e pelo ritmo acelerado da “sociedade do espetáculo” (Debord, 1997). É no afastamento ou na anulação do sujeito, pela aceleração do tempo, que o desinteresse pela vida pode fazer sua aparição sob a forma de tédio. Conclusões As letras das músicas que foram selecionadas expressam claramente um sentimento de tédio, tal como foi definido nesta pesquisa. Vale ressaltar que são muitas as letras de rock, dos anos 80, que abordam o tema do tédio direta ou indiretamente. Várias trazem a palavra tédio no próprio título; outras, nos versos da letra e, ainda, existem aquelas que trazem em seus versos várias palavras alusivas a esse sentimento. A década de 1980 foi chamada por alguns autores de “década perdida” para a arte, tamanho estado de estagnação que diagnosticaram nesse período. Tal estado de estagnação da arte pode ser investigado em suas conexões com as produções de subjetividade que se fizeram presentes nesse período, de maneira significativa, tal como pudemos apreender nas letras das músicas analisadas. Não se pode ignorar que se houve um estado de estagnação da arte e da cultura, a tecnologia avançou rapidamente e contribuiu para uma grande aceleração da vida no plano prático-instrumental. As letras falam de um mundo objetivo em vertigem, repleto do que se pode ter e fazer, com a expansão do consumo, mas, ao mesmo tempo, desacelerado subjetivamente, esvaziado de sentido no que diz respeito à implicação do sujeito nesse fazer do cotidiano, um fazer no qual se implique como protagonista. No desencontro entre uma objetividade acelerada e uma subjetividade desinteressada e em desaceleração, o tédio irrompe como um dos principais dispositivos de análise da contemporaneidade. O mundo de super-ofertas não consegue ofertar o principal: sentido para a vida. A falta de sentido para a vida fica é bastante acentuada nas músicas desse período, mostrando muito bem o estado de dês-subjetivação que é típico do tédio. A música, tomada como reveladora ou produtora de sentido, é um indicador confiável das produções subjetivas de um determinado tempo e lugar. Portanto, nossa pesquisa indica que o tédio, já flagrado por escritores e poetas, como Baudelaire, em suas aparições na modernidade do século XIX, esteve presente dentre as produções subjetivas da década de 1980. Resta rastrear a continuidade de suas aparições nas condições de aceleração da vida que desde o início da modernidade tem se tornado cada vez mais acentuadas. Referências Bibliográficas: ALVARO, B. SHEIK, M. Tédio. Intérprete: Bruno Gouveia.In: CAVADÃO.Cidades em torrente Polygram, 1986.1 Cd sonoro.Faixa10. BIQUÍNI AUGÉ, M. Não lugares: introdução a uma antropologia da super modernidade. Campinas: Papiros, 1994. BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: edições 70, 2002. BAUMAN, Z. 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