LEITURAS CRUZADAS: CONVERSAS LITERÁRIAS NA BIBLIOTECA 19.03.2015 "CRU E NO FEMININO": MARIA JOÃO CANTINHO SOBRE INGEBORG BACHMANN, ELFRIEDE JELINEK, HERTA MÜLLER «Dos Tédios Hoje não tenho turno da manhã, nem turno da tarde, nem turno da noite. Depois do último turno da noite vem sempre a longa quarta-feira. É o meu domingo e só termina quinta-feira às duas da tarde. Fico com demasiado ar livre à minha volta. Estava a precisar de cortar as unhas, mas da última vez pareceu-me estar a cortá-las, nos meus dedos, a outra pessoa. Não sei a quem. Pela janela do barracão, vê-se a avenida até à cantina. Ali vêm as duas Zirris, carregam um balde. Deve ter carvão dentro, está pesado. Passaram pelo primeiro banco, sentam-se no segundo porque tem encosto. Podia abrir a janela e acenar-lhes ou ir até lá fora. Já me estou a enfiar nas galochas e depois fico de galochas calçadas sentado na cama. Há a entediante mania das grandezas da minhoca de borracha no relógio de cuco, o cotovelo negro no canto do fogão. Pelo chão, estende-se a sombra da decrépita mesinha de madeira. Quando o sol gira, a sombra renova-se. Há depois o tédio do espelho de água no balde de lata e da água nas minhas pernas inchadas. Há o tédio da própria costura na camisa esgarçada e da agulha emprestada e depois o tédio trémulo de coser, em que os miolos me escorregam para cima dos olhos, e há o tédio da linha partida com os dentes. No caso dos homens, há o tédio das depressões indetectáveis, durante os seus quezilentos jogos de cartas sem réstia de paixão. Mesmo com uma boa mão, é preciso querer-se ganhar, mas os homens deitam o jogo abaixo, antes de alguém ganhar ou perder. E no caso das mulheres, há o tédio do canto, as suas canções de saudade durante o despiolhamento, no tédio dos sólidos pentes-finos de chifre e baquelite. E há o tédio dos pentes de metal cheios de bocas que não servem para nada. Depois há o tédio de rapar cabeças e o tédio dos crânios como caixas de porcelana, decoradas com florzinhas de pus e grinaldas de ferradelas frescas de piolhos em fase minguante. E há também o tédio calado da Kati-Plantão. A Kati-Plantão nunca canta. Eu perguntei-lhe: Kati, não sabes cantar. Ela disse: já me penteei. Estás a ver, sem cabelo o pente arranha. O pátio do campo é uma aldeia vazia ao sol, as pontas das nuvens são fogo. A minha titi Fini apontou para o prado do monte no meio do pôr-do-sol. Uma rabanada de vento tinha-me levantado o cabelo em forma de ninho e cortado a nuca ao meio com uma risca branca. E ela disse: O Menino Jesus está a assar bolos. Eu perguntei: Agora mesmo. Agora mesmo, disse ela. LEITURAS CRUZADAS: CONVERSAS LITERÁRIAS NA BIBLIOTECA 19.03.2015 Há o tédio das conversas, para não dizer oportunidades, desperdiçadas. Usam-se muitas palavras para um simples desejo e talvez nenhuma delas vingue. Evito conversas muitas vezes e, quando as procuro, tenho medo delas, principalmente das conversas com a Bea Zakel. Pode ser que não queira absolutamente nada da Bea Zakel, quando converso com ela. Que mergulhe nos seus olhos alongados porque quero mendigar a misericórdia do Tur. No fundo, falo com todos mais do que é minha vontade, para estar menos sozinho. Como se fosse possível estar-se completamente sozinho dentro do campo. Não é possível, nem sequer quando o campo é uma aldeia vazia ao sol. É sempre a mesma coisa, deito-me, pois tão sossegado como agora mais tarde nunca vai estar, porque os outros chegam do trabalho. Trabalhadores de turno não dormem muito tempo seguido, aos fim de quatro horas de sono obrigatório, estou acordado. Podia pôr-me a calcular quanto tempo ainda demora até voltar a ser no campo uma Primavera de tédio, com uma próxima paz inconsequente e o boato de que em breve podemos regressar a casa. E eu fico deitado nesta nova paz, na nova erva, e já apertei as correias com a Terra inteira às minhas costas. Mas em vez disso, somos transferidos daqui para outro campo de trabalho, ainda mais para leste, para um campo de lenhadores. E eu arrumo as minhas coisas da cave na mala da grafonola, arrumo, arrumo e nunca mais acabo. Os outros já estão à espera. A locomotiva apita, salto para o estribo no último momento. Viajamos de uma floresta de abetos para outra. Os abetos pulam para o lado e desviam-se dos carris, voltando a saltar atrás do comboio para o lugar onde estavam. Chegamos e começamos a sair. O comandante Chichtvanionov primeiro. Avanço devagar e espero que ninguém note que na mala da grafonola não tenho nem uma serra nem um machado, só coisas da cave e o meu lenço branco. O comandante mudou de roupa logo que começámos a sair. Tem no seu uniforme botões de chifre e dragonas com folhas de carvalho, apesar de estarmos numa floresta de abetos. Fica impaciente, daváie, despacha-te, diz ele na minha direcção, serras e machados temos cá de sobra. Eu saio do comboio e ele entrega-me um saco de papel castanho. Outra vez cimento, penso eu. Mas o saco está rasgado num canto e é farinha que de lá escorre. Agradeço o presente, meto o saco debaixo do braço esquerdo e com o direito faço a continência. Diz o Chichtvanionov: Descontração nessas pernas, aqui nos montes também é preciso usar explosivos. Então eu percebo que a farinha branca é dinamite. Em vez de pensar nestas coisas, eu poderia estar a ler. Mas o terrível Zaratustra, o volumoso Fausto e a delgada edição do provador de vinhos já eu tinha vendido como mortalha de cigarro para comprar algum silêncio da fome. Na minha quarta-feira de folga anterior, pus-me a imaginar que não era no comboio que entrávamos. Que o barracão sem rodas viaja connosco mais para leste e estica durante a viagem como um acordeão. Que não dá solavancos, que lá fora as acácias passam a correr e arranham as janelas com os ramos e eu estou sentado ao lado do Kobelian e pergunto: Como é que estamos a andar, nós não temos rodas. E que o Kobelian diz: Mas este é um campo que rola sobre esferas. LEITURAS CRUZADAS: CONVERSAS LITERÁRIAS NA BIBLIOTECA 19.03.2015 Estou cansado e não me apetece ansiar muito seja pelo que for. Há tédios de toda a espécie, rápidos e antecipadores, coxos e retardatários. Se os trato bem, não me afectam e constituem no dia-a-dia o meu património. Durante todo o ano, paira sobre a aldeia dos russos o tédio da lua fina. O seu pescoço simula uma flor de pepino ou uma corneta de pistões cinzentos. Alguns dias depois, cresce uma meia-lua com um boné de rufia pendurado. E nos dias seguintes olha-nos lá de cima o tédio de uma esfera lunar inteira, cheia até deitar por fora. Há todos os dias o tédio do arame farpado sobre o muro do campo, o tédio das sentinelas nas torres, as biqueiras brilhantes dos sapatos do Tur Prikulitsch e o tédio das minhas galochas rasgadas. E depois há o tédio da nuvem branca da torre refrigeradora, assim como o tédio dos panos brancos do pão. E há o tédio das placas onduladas de alcatrão e das poças velhas de óleo. Há o tédio do sol, quando a madeira cresta e a terra minga mais do que na cabeça o juízo, quando os cães de guarda dormitam em vez de ladrar. E antes de a erva morrer completamente de sede, o céu fecha-se. Há então o tédio na extremidade inferior dos cordões de chuva, até que a madeira incha e os sapatos ficam colados na lama e as roupas à pele. O Verão atormenta a sua folhagem, o Outono as suas cores, o Inverno atormenta-nos a nós. Há o tédio da neve recente com pó de carvão e da neve já velha com pó de carvão, o tédio da neve já velha com cascas de batata e da neve recente sem cascas de batata. O tédio da neve com pregas de cimento e manchas de alcatrão, a lã farinhenta sobre os cães de guarda e o seu ladrado suave de latão ou agudo de soprano. Há o tédio dos canos gotejantes, das suas estalactites de gelo como rábanos de vidro, e o tédio da neve aveludadamente mobiliária nas escadas da cave. Há também o retrós de gelo e o seu degelo capilarmente enredado sobre a argila refractária e esboroada das baterias de coque. Depois, também o tédio da neve pegajosa obcecada pelo ser humano, que nos vidra os olhos e nos queima a cara. Nos lanços largos da ferrovia russa, há a neve das travessas de madeira, a coroa enferrujada dos parafusos, muito juntos, dois, três, ou mesmo cinco, como dragonas de vários níveis de patente. E há no aterro do comboio, quando alguém cai para o lado, o tédio da neve com o cadáver e as suas pás. Ainda mal foi removido, já o morto foi esquecido, porque no meio da grossa neve não se vê o recorte fino dos magros cadáveres. Só o tédio de uma pá abandonada. Não se deve ficar próximo da pá. Quando o vento se levanta fraco, é uma alma que voa, enfeitada de penas. Quando sopra forte, está a ser levada em ondas. Não só ela. Com cada cadáver, liberta-se presumivelmente também um anjo da fome que procura um novo hospedeiro. Mas alimentar dois anjos da fome nenhum de nós consegue. […] O tédio é a paciência do medo. Não quer cometer exageros. Só às vezes, e isso é muito importante para ele, quer saber como é que eu estou. LEITURAS CRUZADAS: CONVERSAS LITERÁRIAS NA BIBLIOTECA 19.03.2015 Eu podia tirar da almofada um pedaço de pão guardado, para comer com um bocadinho de açúcar ou sal. Ou secar nas costas da cadeira, junto do fogão, os meus trapos molhados dos pés. A mesinha de madeira lança uma sombra mais longa, foi o sol que girou. Na Primavera, na próxima Primavera, talvez arranje na fábrica dois pedaços de borracha de cinta transportadora, ou de pneu na garagem. Depois levo-os ao sapateiro. A Bea Zakel foi a primeira a usar ballettki no campo de trabalho, já no Verão passado. Fui ter com ela à rouparia, precisava de sapatos de madeira novos. Revolvi o monte de sapatos e a Bea Zakel disse: Só tenho muito grandes ou muito pequenos, ou dedais ou barcaças, os médios desapareceram todos. Eu provo muitos, para poder ficar mais tempo. Primeiro decidi-me por pequenos, depois perguntei quando chegam mais médios. Disse a Bea Zakel: Calça-os já, deixa ficar os velhos. Olha os que eu tenho, ballettki. Eu perguntei: Onde arranjaste. Ela disse: No sapateiro. Olha, dobram como se estivesses descalço. Quanto custam, perguntei eu. Ela disse: Isso tens de perguntar ao Tur. Os pedaços de borracha, talvez o Kobelian mos dê de graça. Têm de ter pelo menos o tamanho de duas lâminas de pá. Para o sapateiro é preciso dinheiro. Teria de vender carvão enquanto ainda está frio. No Verão, no próximo Verão, talvez o tédio descalce os trapos dos pés e calce os ballettki. Depois vai andar como se estivesse descalço.» Excerto de “Tudo o que trago Comigo”, Herta Müller Publicações Dom Quixote, 2010