EDITORIAL
N
este ano, além da já tradicional combinação da releitura de Freud,
de conversarmos sobre a APPOA e do friozinho da Serra, muitas
rememorações nos fizeram companhia. As memórias de Schreber
(no “Relendo Freud”) e as lembranças associadas à história da Instituição
(no “Conversando sobre a APPOA”) trabalharam lado a lado no último fim de
semana de maio, em Canela.
Esteve em causa o tempo: o implicado na constituição do sujeito, na
realização de uma obra ou de uma Instituição, o do momento de concluir e o
relacionado à autorização do analista.
O conceito de forclusão, a Verwerfung freudiana, implica forçosamente na noção de tempo. Oriundo do discurso jurídico, o adjetivo forclusivo se
refere a um direito não exercido no momento oportuno. Tempo inoportuno e
falha na inscrição se mesclam no não advindo do significante na psicose,
como o caso Schreber demonstra.
Sobre o tempo, Lacan apresenta os momentos lógicos do instante de
ver, tempo para compreender e momento de concluir, incluindo também três
intervalos, um prévio e outros dois alternados entre os tempos: a hesitação e
a urgência. Se a urgência de concluir está presente desde o primeiro momento, sem passar pela hesitação, pode se produzir o ato precipitado. De
outro lado, se a hesitação é intensa demais, pode chegar a congelar a ação.
No encadeamento lógico dos três tempos, portanto, é preciso que cada
momento produza seus efeitos, condição para que se consiga chegar à conclusão.
Nem na precipitação do cedo demais, nem na hesitação paralisante,
o tempo acompanha a inscrição das marcas que a história pode vir a produzir. A rememoração da história prévia à APPOA, sua fundação e as duas
décadas que se seguiram, revelaram, mais uma vez, uma Instituição atenta
a seu tempo e suas inscrições.
Por ter presente tal imbricação entre tempo, encadeamento lógico,
ato e inscrição significante, bem como as condições para concluir, que a
APPOA busca transmitir a seus associados as diferenças em relação ao
tempo de formação de cada um, assim como almeja proporcionar as condi-
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
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EDITORIAL
NOTÍCIAS
ções necessárias para que, de modo singular, cada integrante da Instituição
produza e se deixe afetar pelas marcas que vem com o tempo.
TESOURARIA
A Associação Psicanalítica de Porto Alegre informa que, a partir do
mês de julho, haverá um acréscimo nas mensalidades de membros, participantes e Percursos de Escola e de Crianças, em função da inflação acumulada no último ano. Seguem, abaixo, os novos valores:
CATEGORIA VALOR R$
Membros 190,00
Participantes 145,00
Percurso de Escola 225,00
Percurso Psicicanálise de Crianças 170,00
JORNADA DO PERCURSO
Nos dias 7 e 8 de agosto de 2009 ocorrerá, em nossa sede, a Jornada
do Percurso VIII da APPOA. Em breve estaremos divulgando a programação
da mesma.
ERRATA
A autora da Resenha “Mãe Aranha” sobre o filme “Coraline”, publicada
na página 41 do último número do Correio, é a psicanalista Diana Corso.
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
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SEÇÃO TEMÁTICA
OGIBA, S. M. M. Infância e discurso...
INFÂNCIA E DISCURSO EM SCHREBER
1. INFÂNCIA – RECONSTITUIÇÃO ... CONSTELAÇÃO FAMILIAR
1. A reconstituição da infância de Schreber foi possível pelo longo e
minucioso trabalho de pesquisa realizado por William Niederland, pesquisas
essas iniciadas no ano de 1951 e que se estenderam até 1972. Além de
Franz Baumeyer, psiquiatra-psicanalista, até 1955, William Niederland,
Maurits Katan e H.Nunberg, são os únicos no âmbito da Psicanálise a apresentar trabalhos específicos sobre Schreber. Melanie Klein, em 1952, faz
referência às Memórias para ilustrar os chamados mecanismos
esquizoparanóides.
2. Essas pesquisas, inspiradas em Freud, buscam descobrir o chamado núcleo de verdade no delírio. Niederland, por sua vez, realiza um amplo estudo da obra médico-educacional do pai de Schreber, Daniel Gottlieb
Moritz Schreber, e, por esse caminho, encontra algumas peças com as quais
reconstitui a infância de Schreber.
3. O pai Schreber (1808 – 1861) – médico, ortopedista, pedagogo,
descendia de família de Burgueses e Protestantes. Autor de vários (20, ao
que parece!) livros sobre ginástica, higiene e educação das crianças. Seus
antepassados deixaram obra escrita sobre Direito, Economia, Pedagogia e
Ciências Naturais, em que são recorrentes as preocupações com a moralidade
e com o bem da humanidade. Acreditava que seu trabalho contribuiria para
aperfeiçoar a obra de Deus e a sociedade humana.
4. Para garantir a postura ereta do corpo da criança em todos os
momentos do dia, inclusive durante o sono, o Dr. Moritz Schreber, projetou e
construiu vários aparelhos ortopédicos de ferro e couro. A retidão do espírito
era fruto do aprendizado precoce de todas as formas de contenção emocional e da supressão radical dos chamados sentimentos imorais, entre os
quais, naturalmente, todas as manifestações da sexualidade.
5. Nas palavras do Presidente Schreber, presente nas Memórias ....
“Poucas pessoas cresceram com princípios morais tão rigorosos como eu e
poucas (...) se impuseram ao longo de toda sua vida tanta contenção de
acordo com esses princípios, principalmente no que se refere à vida sexual”.
6. O pai Schreber orgulhava-se de ter aplicado, pessoalmente, nos
filhos os próprios métodos educacionais e afirmava que “os resultados tinham sido excelentes!” Em 1859, sofre um grave acidente: uma barra de
ferro de um aparelho de ginástica cai sobre a sua cabeça, resultando em
comprometimento cerebral irreversível. Retira-se da vida profissional e da
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
Sonia Mara Moreira Ogiba
I
nfância e Discurso em Schreber apresenta algumas notas de leituras
realizadas no cartel preparatório ao Relendo Freud. O tema da Infância,
agora interrogado pela formação que venho realizando na Appoa, exige
uma tarefa de escrita que ainda me sinto insegura de realizar. Sei que pensar
de outro modo exige escrever de outro modo! Em virtude deste fato, estas
anotações não possuem a forma de um texto-escrito, mas antes compõem
um roteiro orientador. Do contato com o Caso Schreber, através do texto
freudiano e do estudo que vimos realizando este ano do Seminário de Lacan,
Livro 3, As Psicoses, surgem algumas das interrogações que apresento aqui.
Dedico-me a recolher alguns dados biográficos sobre a criança do
Presidente Schreber, sobre a sua constelação familiar e busco interrogar um
certo material infantil que destes dados se pode inferir. Para tanto, sigo as
contribuições das pesquisas efetuadas por William Niederland, psiquiatra e
psicanalista norte-americano.
A articulação do tema infância e discurso em Schreber, se tece por
referência à noção de Discurso, estudada na obra de Michel de Foucault, de
modo especial, em A Ordem do Discurso, A Historia da Sexualidade, Vol.1,
e em Vigiar e Punir, como, da mesma forma, a partir dos trabalhos desenvolvidos em seus cursos no Collège de France, reunidos sob o titulo
Problematização do Sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise.
A título inicial, ao modo de uma hipótese provisória, aproximo-me do
ensaio de Giorgio Agambem, sobre Infância e Historia, para pensar a relação
Língua, Discurso e Inconsciente, no sistema delirante de Schreber.
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SEÇÃO TEMÁTICA
convivência diária com a família. Viveu fechado em seu quarto e em tratamento durante 03 anos. Morreu no ano de 1861.
7. Quanto à mãe, quase não há referência à mesma pelos biógrafos
de Schreber, apenas que parecia ser uma mulher pouco afetiva, deprimida e
dominada pelo marido. Soube-se que seu nome era Pauline, contrastando
com o nome do filho que se chamava Daniel Paul Schreber. Pauline parece
ter vivido até os 92 anos!
8. Daniel Schreber é o terceiro, dos cinco filhos do casal. O
primogênito, três anos mais velho que Schreber, chamava-se Gustav e,
segundo os registros encontrados, sofria de paralisia e suicidou-se aos 36
anos de idade. Maurits Katan (p.102 e 109), por exemplo, ao analisar o
material infantil, comenta sobre a relação de Schreber, ainda bem menino,
com esse seu irmão mais velho e com a sua mãe. De posse desse material sugere uma interpretação para o que chamou de “medula do conflito
infantil” atuante no sistema delirante de Schreber, através do tema da conspiração.
“... o irmão maior deve tê-lo atraído bastante, já que Schreber estava
em conflito acerca de quem era seu preferido: seu pai ou seu irmão”.
“... Schreber formou uma dependência masoquista feminina com respeito a seu pai. Resulta evidente que estava em perigo de fazer o mesmo em
relação ao seu irmão”.
OGIBA, S. M. M. Infância e discurso...
2. INFÂNCIA E DISCURSO(S)
1. Sabemos muito pouco sobre a infância de Schreber; entretanto,
talvez nos seja possível saber algo da criança Schreber tendo por referência
os efeitos discursivos da obra educacional do Dr. Moritz Schreber. Niederland,
como mencionado antes, ao tomar o caminho da investigação da obra educacional do pai, pôde vir a contribuir com a reconstituição dessa infância,
situando a criança Schreber em sua constelação familiar. No entanto, gostaria de interrogar essa obra, uma obra de educação moral e física na perspectiva de um Guia, ao revelar seus dispositivos de poder-saber voltados para a
produção da subjetividade infantil. Dispositivos atuantes sobre e no corpo,
tornando-o um “corpo dócil e submisso”, expressão emblemática de uma
leitura foucaultiana dos mecanismos de funcionamento do poder na sociedade moderna – uma série de tecnologias atuantes no corpo e nele produzindo
inscrições discursivas que virão dizer da realidade psíquica, estrutural e sintomática do Sujeito.
2. A criança Schreber, diz-se, foi um aluno aplicado. Ele próprio, em
suas Memórias, se apresenta como “de natureza tranqüila, quase sóbria,
sem paixão, com pensamento claro, cujo talento individual se orientava mais
para a crítica intelectual fria do que para a atividade criadora de uma imaginação solta”. Tudo indica, conforme menciona Marilene Carone, na introdução das Memórias..., que Schreber, em sua infância, submeteu-se com
docilidade ao despotismo pedagógico do pai.
3. No entanto, a obra do pai Schreber, ao ser concebida como dispositivo discursivo, é ela mesma produzida por outros tantos discursos veiculados no âmbito do social e da cultura do seu tempo. Se tomarmos o início do
séc. XIX, em suas primeiras décadas, época do nascimento do Dr. Moritz, e
refletirmos sobre as condições sociais, cientificas e filosóficas, em desenvolvimento desde o século XVIII, chegaremos a certo espírito do tempo, marcado pelas idéias iluministas e pela crença no progresso da razão. Século
das Luzes como assim o chamamos, o século XVIII, foi, de fato, o solo para
a reforma humanista do mundo ocidental no século XIX.
4. Buscando seguir a investigação de Niederland sobre a obra do pai
Schreber, visando à descoberta do núcleo da verdade do sistema delirante
do Schreber filho, e, tomando o cuidado para não cair na simplificadora relação de causa-efeito, acredito que se possa ver essa obra em seus efeitos de
sentido produtores de discurso parental. E, por esta via, poder pensar o
sistema delirante de Schreber, como sendo causado por efeitos de uma rede
de discursos, assim como apresentar a infância de Schreber, implicada e
estruturada por séries discursivas, cuja produção é, sobretudo, da ordem do
discurso e do acontecimento. Dessa perspectiva, colaborar com a investigação de Niederland, situando a infância na ordem dos discursos: social, cultural, parental, por um lado, e , por outro, constituindo-a (a infância) no
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
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SEÇÃO TEMÁTICA
OGIBA, S. M. M. Infância e discurso...
atravessamento destes discursos na cadeia de significantes que irão marcar
e atravessar o corpo do infans.
5. Penso, porém, nessa infância, como uma primeira infância, aquela
que podemos tomar pela temporalidade cronológica e afetada pelas redes de
discursos em seus dispositivos de poder-saber, acima delineados. Algo como
a infância das neuroses! Haverá outras? Bem, a aproximação ao ensaio de
Agamben – Infância e História -, parece ter o efeito de uma bússola conduzindo-me ao entendimento da implicação infância, discurso, corpo e inconsciente, no âmbito do sistema delirante de Schreber. Haverá aí, nos delírios do
Presidente Schreber, algo a nos informar de uma relação outra com a linguagem, isto é, com a língua? Será a este acontecimento que Schreber se refere
quando nos situa em relação à língua fundamental? Temo por estas indagações, mas as formulo visando, sobretudo, discuti-las. Na quarta parte destas
considerações, apresento, sucintamente, o principal argumento de Agamben.
Isto posto, o que aqueles efeitos “causam” no corpo e nos modos de
estruturação do sujeito será da ordem de uma nova ordenação desses discursos, no âmbito da língua. No caso do nosso presidente Schreber, a sua
produção delirante parece querer buscar essa tão propalada Ordem do Mundo através de uma reordenação daquela rede discursiva dentro da qual sua
estruturação subjetiva e psíquica se realizam.
6. Rede de discursos e seus impactos subjetivos... Falta mencionar,
no entanto, outra Série discursiva, aquela instaurada no sec. XX pela psicanálise freudiana e pelo retorno que a ela faz Jacques Lacan. Como um saber
moderno e contemporâneo, que tem algo a dizer sobre os modos de constituição subjetiva da criança, o discurso analítico é aquele que nos informa
sobre o modo de funcionamento do sujeito do inconsciente, re-situando, de
modo radical, as relações do Eu com o Outro, do Corpo com o(s) Discurso(s),
entre outros elementos constitutivos do campo do sujeito e do campo do
outro. Dentre os vários acontecimentos discursivos, tornados práticas, que
tecem, então, essa rede de historia, ou histórias, a Psicanálise, por tomar
os discursos em seus efeitos significantes parece ser o fio que desrealiza
aquela estruturação subjetiva, psíquica e corporal.
3. INFÂNCIA, DISCURSO E CORPO
1. O corpo enunciado como discurso de vários discursos – parece ser
isto que o Presidente Schreber enuncia quando nos diz em suas Memórias,
ao abrir seu cap.XI:
“Que pode ser mais definitivo para um ser humano que aquilo que foi
sentido e vivido em seu próprio corpo”.
2. Por volta de 1800, quando nasce o Dr. Moritz Schreber – para
Foucault essa época é mesmo um limiar na história, quando a consideramos do ponto de vista do poder -, é aí que vemos surgir os verdadeiros
fundamentos da sociedade moderna. Foucault critica as operações filosóficas da ideologia das luzes. (Adorno e W.Benjamin por outros caminhos também o fazem!)
3. Temas universalizantes, universalistas: verdade, justiça, liberdade
– mostram o caráter coercitivo das luzes, caráter coercitivo do pensamento
identificante que tende a subsumir o particular.
4. Sociedades modernas são sociedades totalitárias! Adorno, por exemplo, apreende as operações totalitárias nas manipulações psíquicas
provocadas pelos mass-media, produzidas pelas agências da indústria cultural. Para Foucault, as operações integrativas são, antes, asseguradas pelos procedimentos que visam disciplinar o corpo e que são, portanto, produzidos por instituições mais ou menos ligadas entre si: a escola, a fábrica ou
a prisão.
5. Todas as práticas pelas quais o sujeito é definido e transformado
são acompanhadas pela formação de certos tipos de conhecimento. Sobre o
corpo, sobre a sexualidade e sobre o Si mesmo. O Guia do Dr. Moritz parece
ter essa função.
6. Uma das imagens do sistema delirante do Presidente Schreber –
os Homúnculos – informa-nos o quanto a teoria do Homúnculo esteve articulada na forma de discurso parental. Teoria na qual a criança era vista como
um adulto em miniatura. Ainda que essa representação de criança viesse
sofrendo mudanças desde o século XV, justamente com a emergência das
figuras intelectuais, como as dos padres, juristas, moralistas, entre
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outros,quase quatro séculos depois, temos um desses intelectuais do século XV figurado na pessoa do Dr. Moritz, pai de Schreber.
7. Interrogo-me sobre essa “descontinuidade” no discurso social, educacional e médico. Quase chego a pensá-la em sua eficácia emolduradora
de um discurso parental, na família schrebiana. Sim, o sentimento de cuidado, de cultivo da vida da criança como seres diferentes dos adultos foi atuante nas múltiplas séries discursivas, e nas práticas de cuidado daquele pai,
cuja tamanha desmesura leva-nos a inferir sobre o quanto o mesmo se exercia também como “mãe”.
8. Este “Pai que sabia demais”, como nos apresenta Eric L. Santner,
em seu livro A Alemanha de Schreber, através dos “seus cuidados”, parece
ter deslocado a senhora Pauline do seu lugar-função materna. Bem, enfim,
considero arriscada uma formulação como esta, no entanto, à luz dos poucos dados obtidos sobre a mãe de Schreber e da sua posição naquela constelação familiar, é possível percebermos a figura da senhora Pauline como
sendo apagada, submissa ao Dr. Moritz, sobretudo, alienada ao discurso de
um outro. A essa posição da sua mãe na constelação familiar, Schreber,
parece ter aludido em seu conteúdo delirante sob o tema da conspiração,
pois que nas interpretações de Katan e Nierderland, a senhora Pauline tratou, por um período, de “esconder” as relações “tumultuadas” entre o menino
Schreber e seu irmão mais velho, as quais, aqui nesta ocasião, não terei o
tempo para esmiuçar.
9. São pois as experiências da sua infância (aquela tomada na
temporalidade cronológica, aludida antes) que aparecem em forma de delírios milagrosos, durante, por exemplo, o processo psicótico, fazendo com
que se possa dizer da existência de um núcleo, certa essência “realista”
presente no material de seus delírios. Toda uma linguagem arcaica típica
dos processos primários aí aparece. Dito, talvez, de outro modo, o material
psicótico converte em milagres as primeiras experiências infantis. Toda uma
instrumentalizada, e instrumentalizadora, manipulação (“a criança
regimentada”, formulada por Eric Santner) foi-lhe, vou usar a força mesmo da
palavra e dizer imposta, como forma de cuidado. Cuidados realizados atra-
vés da vigilância, da coação e, por vezes, com doçura; fazendo com que
certo dito poético, produzido na poesia contemporânea, já lá estivesse no
séc. XIX, a mostrar-se com toda contundência objetificante, a saber: “Te
odeio com doçura”, tema titulo do livro de poemas de Antônio Mariano. Um
tema libelo do amor eterno ...
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4. INFÂNCIA E HISTÓRIA... LÍNGUA, DISCURSO E INCONSCIENTE
1. Das análises sobre o Caso Schreber que Lacan formula no Seminário As Psicoses, destaco o tema da Foraclusão: essa falha no Outro. O que
o acontecimento da foraclusão do Nome-do-Pai virá a produzir na relação do
sujeito com os discursos? Pois bem, encontro uma passagem no referido
Seminário, na qual Lacan parece querer nos advertir sobre a singular posição
que o sujeito se encontra na rede dos discursos e, da mesma forma, apontando para a singularização da psicanálise enquanto uma série discursiva,
dentre as outras tantas que aludimos antes. Diz Lacan, à página 190:
“Se digo que tudo o que pertence à comunicação analítica tem estrutura de linguagem, isso não quer dizer que o inconsciente se exprima no
discurso. A Traumdeutung, a Psicopatologia da vida cotidiana e o Chiste
tornam isso transparente – nada dos rodeios de Freud é explicável, salvo que
o fenômeno analítico como tal, seja ele qual for, é, não uma linguagem no
sentido em que isso significaria ser um discurso – eu nunca disse que é um
discurso – , mas estruturado como uma linguagem.” (grifo nosso)
2. Há outras passagens no Seminário As Psicoses, onde Lacan vai
nos informando sobre essa particular relação do sujeito com a linguagem, e
da linguagem tomada em sua duplicidade essencial do significante e do
significado, no caso das neuroses e da psicose, em particular, no Caso
Schreber. Em outro momento, as revisarei, buscando discutir de modo mais
abrangente as implicações acima referidas.
3. Assim como, também vai informando-nos, em vários outros dos
seus seminários, sobre o que é o Discurso para ele, para a Psicanálise.
Fundamentalmente, nos diz que o Discurso é o Grande Outro e tem, então,
uma condição superlativa de gozar sobre nós. No caso das psicoses, ou
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SEÇÃO TEMÁTICA
OGIBA, S. M. M. Infância e discurso...
mesmo pensando, no sistema delirante de Schreber, motivo deste trabalho,
a relação que vemos com o discurso é da ordem de uma distorção, alterando, assim, a ordem do saber. O que observamos no sistema delirante de
Schreber parece ser, assim, uma fala que se estrutura não mais sob a lógica
do discurso, mas antes, pela própria língua.
4. Do ensaio de Agamben, apresento alguns recortes, visando apresentar sucintamente o foco da sua indagação em Infância e História.
Agamben, seguindo com Walter Benjamin em seu projeto de uma
filosofia que vem, nos informa de início que “a infância encontra o seu lugar
lógico em uma exposição da relação entre experiência e linguagem.” E experiência, no projeto benjaminiano, definido como algo nos termos “de uma
experiência transcendental”, transcendental, neste contexto indicando “alternativamente, uma experiência que se sustém somente na linguagem, um
experimentum linguae no sentido próprio do termo, em que aquilo de que se
tem experiência é a própria língua”.
“A in-fância que está em questão no livro não é simplesmente um fato
do qual seria possível isolar um lugar cronológico, nem algo como uma idade
ou um estado psicossomático que uma psicologia ou uma paleoantropologia
poderiam jamais construir como um fato humano independente da linguagem. (...) o conceito de infância é, então, uma tentativa de pensar estes
limites (os da linguagem) em uma direção que não é aquela, trivial, do inefável (...)” (p.10)
“... o lugar de uma tal experiência transcendental encontra-se naquela
diferença entre língua e fala (ou antes, nos termos de Benveniste, entre
semiótico e semântico) que permanece o incontornável com o qual toda
reflexão sobre a linguagem deve confrontar-se.”
“Pois é óbvio que, para um ser cuja experiência da linguagem não se
apresentasse desde sempre cindida em língua e discurso (grifo), um ser que
já fosse, portanto, sempre falante e estivesse sempre em uma língua indivisa,
não existiriam nem conhecimento, nem infância, nem história”.
5. Estes poucos recortes, são, certamente, insuficientes para abranger a complexidade e ao mesmo tempo apontar as possibilidades de uma
frutífera discussão sobre as implicações a que me propus seguir nesta parte
do trabalho. Mas, estes mesmos recortes me parecem quase suficientes,
digamos assim, para que possamos produzir certa “torção” neste tema da
infância e discurso, quando fustigados pela advertência lacaniana antes
mencionada. Uma hipótese provisória esta, de procurar o lugar da experiência com a língua enquanto infância do homem. O que significa então, poder
pensar, no âmbito das psicoses e dos sistemas delirantes que aí se montam
pelo sujeito, na sua relação de experiência com a língua (cindida com o
discurso), em uma idéia de infância para além de uma substância psíquica.
6. Pois bem, para “finalizar”, um outro recorte:
“É a infância, a experiência transcendental da diferença entre língua e
fala, a abrir pela primeira vez à história o seu espaço(...). É a este problema
que a teoria da infância possibilita dar uma resposta coerente. A dimensão
histórico-transcendental, que designamos com este termo, na realidade situa-se precisamente no hiato entre semiótico e semântico, entre língua pura
e discurso, e fornece por assim dizer, a sua razão. Na medida em que possui
uma infância, em que não é sempre já falante, o homem não pode entrar na
língua como sistema de signos sem transformá-la radicalmente, sem constituí-la como discurso”. (p.65)
Teria sido esta uma das diferenças entre a produção literária e filosófica (e delirante!) do “paranóico genial”, Jean J.Rousseau, assim chamado
por Lacan, e o sistema delirante do nosso Presidente Schreber, apresentado
por ele mesmo, em suas Memórias?
Rousseau, no século XVIII, e Schreber, na Alemanha do século XIX,
ambos re-inventam, re-tomam a (suas) infância, a Infância do homem, através, então, do hiato, da beância, entre língua e discurso.
Desta perspectiva, ocorreu-me, então, situar a interrogação que formulam Jean Bergès e Gabriel Balbo sobre se Há um infantil da psicose? ,
nos termos de que parece atuar aí nas psicoses, à luz do que se pôde
conhecer sobre o Caso Schreber, por meio das pesquisas realizadas por
Nierderland e outros, aquela outra Infância, para a qual o sujeito falante estará sempre reentrando.
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SEÇÃO TEMÁTICA
TREVISAN, E. Schreber (não) é um livro.
SCHREBER (NÃO) É UM LIVRO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Agamben, Giogio. Infância e História. Belo Horizonte, Ed.UFMG, 2008.
Foucault, Michel. A ordem do discurso. São Paulo, Loyola, 1996.
___. Historia da Sexualidade, Vol. 1, Rio de Janeiro,Graal, 1985
___. Vigiar e Punir. Petropolis, Vozes, 1987.
___. Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise. Rio de
Janeiro, Forense Universitaria, 1999.
Lacan, Jacques. O Seminário, Livro 3, As psicoses. Rio de Janeiro, Zahar Ed.,
2002.
Niederland, William G. e outros. Los casos de Sigmund Freud – El caso Schreber.
Buenos Aires, Ed. Nueva Visión, 1980.
Revista de Comunicação e Linguagens. Michel Foucault – uma analítica da experiência. Lisboa, Portugal, Ed.Cosmos, 1993.
Santner, Eric L. A Alemanha de Schreber. R.J., Zahar, 1997.
Schreber, Daniel Paul. Memórias de um Doente dos Nervos. R.J, Paz e Terra,
2006.
Soler, Colette. A psicanálise na civilização. Rio de janeiro, Contra Capa, 1998.
Ester Trevisan
“(...) l’intransmissible est au coeur du désir de transmettre, non pas comme
ineffable perdu dans les sables mais seuil à l’invention1”.
S
chreber é um livro. Um livro autobiográfico, mas um livro. Apesar dele
nunca ter encontrado psicanalistas, veio a ser “o paciente mais citado da história da psicanálise”2. O fato é que o livro despertou o interesse de Freud, levando-o a afirmar que reconhecia nas “Memórias” o melhor
manual de psicologia e psiquiatria já escrito.
Eduardo Prado de Oliveira, na leitura que faz da relação de Freud com
Schreber, chega a afirmar que “Freud não leu o livro de Schreber: encontrando ali a sua teoria ele se releu”3 . O próprio Freud explicita em seu texto ter
edificado a sua teoria da paranóia muito antes de saber do livro de Schreber.
O livro chega a Freud por volta de 1908, pelas mãos de seu amigo e
interlocutor Carl Gustav Jung, por quem Freud nutria certas expectativas
quanto à divulgação de suas idéias fora do círculo de Viena. O livro interpela
Freud, que encontra, na pena deste “doente dos nervos”, elementos que de
certo modo estão presentes nas suas elaborações psicanalíticas. O fato de
ser autobiográfico fez com que o considerasse como um caso exemplar,
“porta de entrada para o reino da paranóia”. No seu artigo sobre o caso, é
onde Freud vai dizer a sua conhecida frase: “tive sucesso lá onde o paranóico fracassou”.
1
Porge, E. Transmettre la clinique psychanalytique. Freud, Lacan, aujourdhui. Ed. Érès,
Ramonville-Saint-Ange, 2005. p.12. « (…)o intransmissível está no cerne do desejo de
transmitir, não como inominável perdido nas areias, mas como abertura à invenção”. (Tradução livre do autor)
2
De Oliveira, Eduardo Prado (Org). Le Cas Schreber. Contributions psychanalytiques.
Recueil organisé, traduit avec présentation, introduction et notes de Eduardo Prado de
Oliveira sous l’orientation de Jean Laplanche. P.U.F, Paris 1979.
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Idem p.13. Grifos nossos.
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SEÇÃO TEMÁTICA
Sabemos que Freud veio da neurologia, Flechsig, o médico que tratara Schreber na primeira crise e que se tornou figura central de seu delírio, era
um eminente neurólogo. O próprio Freud utiliza termos da neurologia ou toma
dela metáforas para explicar os fenômenos psíquicos que tenta desvendar. A
questão do pai e da religião, da relação entre sonho e delírio, seus estudos
tomando referências literárias como apoio, enfim, são inúmeros aspectos da
obra de dois grandes homens que parecem ter se encontrado. Poderíamos
dizer que “os nervos” de Schreber encontraram certa ressonância em Freud,
levando-o a apontar, como o faz ao final de seu texto, certas semelhanças
entre as hipóteses que lança para a compreensão da paranóia e alguns
aspectos da formação delirante de Schreber.
Schreber toca Freud em pontos que lhe são caros naquele momento:
o de pesquisador que quer transmitir a psicanálise e desvendar elementos
que possam ancorar decisões propriamente analíticas:
“Vejo uma certa quantidade de paranóicos (e de dementes) e aprendo
deles tanto quanto outros psiquiatras aprendem de seus casos, mas em
regra geral isto não é o suficiente para produzir decisões analíticas.”4
O período entre 1908 e 1911 5 é o período em que Freud lê e redige,
então, o seu texto sobre “As Memórias”, que vai ser publicado na primeira
Revista de psicanálise, co-dirigida por ele e Bleuler6 .
A partir da transferência de Freud com o texto de Schreber, algo da
relação transferencial dos psicanalistas com Freud se coloca em curso neste trabalho de transformar Schreber em um caso. Ele produz sua narrativa do
“caso” articulando-a aos seus pontos de reflexão, pontos que faziam parte
TREVISAN, E. Schreber (não) é um livro.
de um trabalho compartilhado com os psicanalistas que frequentavam o seu
círculo.
Enquanto preparávamos esta jornada, fui levada a ler algumas das
“Minutas da Sociedade Psicanalítica de Viena”, e é interessante o que podemos encontrar nos comentários de Freud e seus colegas nas reuniões das
quartas-feiras, nos debates daqueles primeiros psicanalistas às voltas com
as questões em que estavam trabalhando. O trabalho em torno de Schreber,
a transferência com o texto produziu em mim este efeito de “busca das
origens”. O que me interessou nesta leitura foi o enorme trabalho de
compartilhamento na construção dos conceitos psicanalíticos, que me parece ser o grande legado freudiano: o analista não pode prescindir do diálogo
com os pares.
Trago brevemente, a título ilustrativo, alguns temas tratados nestas
reuniões que, além de abordarem escritos que poderíamos chamar de mais
“técnicos”, eram especialmente ricas em comentários de obras literárias. É
o caso, por exemplo, da sessão de 24 de outubro de 19067 , em que O. Rank
faz uma exposição intitulada “O drama do Incesto”. O debate acontece basicamente a partir de referências literárias contendo o tema do incesto para
abordar a questão do recalcamento e do retorno do recalcado nas neuroses.
A sessão seguinte8 vai tratar da leitura do livro de Bleuler que se chama
“Afetividade, sugestibilidade e paranóia”. Freud critica Bleuler por “concordar
somente em parte com sua teoria, que não compreende nada de suas teorias sexuais”9 , e ressalta como ponto importante o fato de Bleuler defender a
questão do afeto, pois, segundo Freud: “é preciso elucidar a origem do afeto
na idéia delirante. (...) O mecanismo da paranóia é relativamente claro, mas
o processo que leva à paranóia ainda não foi estudado”. 10
4
Freud,S. Le Président Schreber. Remarques psychanalytiques sur un cas de paranöia
(dementia paranoides) décrit sous forme autobiographique. Paris, France, Quadrige/P.U.F,
1995. p.7.
5
Cf Thierry,V. La psychose freudienne. L’Invention psychanalytique des psychoses. Paris,
Éd. Arcanes, 1995. p. 85.
6
O Jahrbuch für psychopathologische und psycho-analytische Forshungen.
16
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
7
Pontalis, J.B. (Org). Les Premiers Psychanalystes : Minutes de la Société de Vienne Tome
I 1906-1908. Paris, Éditions Gallimard, 1976. p.45-56.
8
Idem, Sessão de 31 de outubro de 1906.p.57-62.
9
.Idem, p. 60.
10
Idem, p. 60.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
17
SEÇÃO TEMÁTICA
Em fevereiro de 1907, Stekel faz um comentário de duas obras: “A
psicopatologia do errante”11 , estudo clínico de Willmanns e “A psicologia da
demência precoce” de Jung. Sabemos que o debate em torno da demência
precoce vai ser um pivô na indisposição com Jung, e nesta sessão vemos
uma manifesta discordância diagnóstica do caso apresentado, para Freud,
um caso de paranóia. Posteriormente, ao escrever o seu Schreber, Freud vai
fazer também um diálogo com Bleuler a respeito da demência precoce para
afirmar a paranóia “como um tipo clínico autônomo, mesmo se o seu quadro
é complicado por traços esquizofrênicos”12 . É nesta sessão ainda que ele
menciona a hipocondria e sua relação com a paranóia:
“Se é justo que a neurose de angústia é o equivalente somático da
histeria, deve haver um estado somático em que há uma relação
análoga com a paranóia que é a hipocondria. Produz-se um retorno da libido em direção ao eu, retorno ao qual correspondem sempre transformações em sensações penosas”. 13
Ele retoma este ponto em seu escrito de Schreber. Talvez possamos
dizer que a relação da hipocondria à paranóia passa a ser “lida” na clínica a
partir de Freud. Não é incomum encontrarmos pacientes com uma pregnância
de delírios corporais, mostrando-nos o quanto a questão do corpo está
implicada de um modo particular nas psicoses. Lacan vai falar da hipocondria
da primeira crise de Schreber como sendo da ordem dos “fenômenos elementares” que aparecem nas psicoses.
É como comentador de um texto que Freud estuda o delírio de Schreber.
Ele se atém ao escrito, ao enunciado – diferente de outros que vão lê-lo
11
É curioso encontrar entre estes primeiros psicanalistas esta questão que é tão atual e
relativamente pouco explorada entre os psicanalistas. Faz-se já ali toda uma crítica ao tipo
de abordagem feita nos asilos, chega-se a falar em “sadismo médico” relativamente aos
casos referidos.
12
Freud,S. Le Cas Schreber, p. 74.
13
Freud, Op. cit. p. 132.
18
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
TREVISAN, E. Schreber (não) é um livro.
buscando referências biográficas. É a partir do testemunho de Schreber que
ele estabelece noções sobre a paranóia que são muito vivas ainda hoje,
apesar de calcadas na clínica das neuroses. A análise que Freud faz do
delírio permite-nos ler as “Memórias” com Freud. A escrita de Schreber pode
produzir um efeito de sideração, impedindo a sua leitura. Não é fácil ler
Schreber, é um texto de uma alteridade absoluta. Octave Mannoni, ao abordar a questão de pensarmos o valor literário do escrito de Schreber, diz que
o considera
“louco por causa de sua insistência em descrever o que para ele é
objetivo, desvelando assim a falha que permite passar da cena da
escrita, onde reina o autor, à cena do sujeito, onde, para Schreber,
reinam o inconsciente e o delírio. (...) Schreber transforma em psiquiatra qualquer leitor, por mais ignorante que seja no assunto”.
Alfredo Jerusalinky, em um comentário após a entrevista de um paciente paranóico há alguns anos no CAPS, alertava-nos para o fato de que o
que falta ao psicótico é o espaço ficcional. Espaço este que é diferente do
imaginário, que é circunscrito, tem uma extensão limitada. No delírio nos
deparamos com um imaginário ilimitado, como o constatamos na leitura das
“Memórias”.
A estabilização de Schreber se dá a partir de sua transformação em
mulher e é algo que ele mantém do seu delírio. Henriquez ressalta a “admirável coincidência: ao mesmo tempo que ele inscreve sobre o seu corpo as
marcas de sua feminização, Schreber começa a escrever”14.
Schreber inicialmente jogava algumas notas sobre o papel, numa transcrição desordenada de idéias e palavras, e é somente a partir de 1897, ou
seja, quatro anos após sua internação, que passa a escrever um diário e
concebe o plano futuro de suas “Memórias”.
14
Henriquez, M. Aux carrefours de la haine : paranoia-masochisme-apathie. Paris, Éd. ÉPI,
1984. p. 60.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
19
SEÇÃO TEMÁTICA
Henriquez destaca também :
“o quanto a aceitação de se ver e de se exibir com traços femininos,
colocando-se em cena como uma mulher, olhando-se no espelho
(...) leva a uma cessação das sensações dolorosas de transformação do corpo e do cortejo de angústia persecutória que as acompanhavam (...) Às preocupações hiponcondríacas e aos ataques
do corpo, sucedem uma idealização, uma reunificação do corpo,
uma retomada narcísica em uma imagem especular”.15
Em suas observações, o Dr Weber, médico assistente de Schreber,
assinala que “na primavera de 1897, pode-se observar uma mudança no paciente, quando teve início uma viva troca de cartas entre ele e sua esposa”. 16
A catástrofe do mundo que encontramos em Schreber durante o estádio “tempestuoso” de sua doença, não é rara de ser encontrada em outras
histórias de doentes, dirá Freud, o que podemos constatar na clínica. Ele
dirá, ainda, que “o paranóico o reconstrói [o mundo] (...) de modo que possa
aí viver. Ele o edifica pelo trabalho de seu delírio. O que tomamos por produção da doença, a formação delirante, é na realidade a tentativa de cura, a
reconstrução”. 17 No que Schreber escreve podemos perceber a sua busca
de representações dele mesmo e de identificações que o permitissem se
inscrever no campo de um possível.
Quando propus o título “Schreber (não) é um livro”, pensava na dificuldade que é o encontro com o paranóico, na diferença de posição em que
estamos quando encontramos o texto e quando encontramos o paciente às
voltas com a sua paranóia.
TREVISAN, E. Schreber (não) é um livro.
É muito diferente “ler” o escrito de um paranóico e “estar na presença”
de alguém no momento em que está vivendo o seu delírio em toda a sua
força e ali tentarmos produzir uma intervenção clínica. Certamente avançamos na clínica da paranóia depois de Freud, mas não creio que possamos
dizer que o trabalho psicanalítico com o paranóico tenha se tornado mais
fácil. O próprio Schreber retorna ao asilo em 1907, para dele nunca mais sair.
O seu retorno ao asilo se dá no mesmo ano em que morre sua mãe e que
sua esposa fica afásica devido a um derrame, dando-nos mostra do quão
frágil é o equilíbrio na paranóia.
No seu relatório, o Dr. Weber escreve que apesar da grande crise ter
passado, em determinados momentos o paciente não conseguia controlar
certos gestos: “as violentas contorções da face, resmungos, pigarros,
risadinhas” e que “o que mais tornava perturbador era o estado de urros.”18
Schreber, ao redigir a sua apelação, contesta categoricamente um a um os
argumentos do Dr. Weber e, em particular este, dizendo que, caso ocorressem, não seriam de responsabilidade médica, mas deveriam ser tratados
com um caso de polícia. Ele alega que, naquele momento, o “estado de
urros” só acontecia quando estava no hospital, entre os loucos, e sobretudo
quando lhe faltava oportunidade de “conversar com pessoas cultas”. 19 É muito
interessante ler a sua argumentação, a clareza com que expõe todos os
seus pontos de vistas e contesta as afirmações do perito. Tomo este exemplo apenas para mostrar a sua coerência argumentativa e para pensarmos
nos limites do que chamamos de cura quando estamos diante de um grande
paranóico. Schreber, apesar de ter conseguido escrever sua experiência,
permaneceu terrivelmente só, a sua verdade era incompartilhável.
Gostaria de concluir trazendo um fragmento clínico de um caso que
venho acompanhando há mais ou menos 6 anos. Trata-se de um homem de
47 anos, extremamente delirante, que desencadeou sua paranóia há 25 anos.
15
Idem, p. 60.
Schreber, D. P. Memórias de um doente dos nervos. Trad. e org. Marilene Carone. São
Paulo, Ed Paz e Terra, 3ª ed., 2006. p. 288.
17
Freud op. cit. p.70.
18
Memórias, p. 297.
16
20
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
19
Memórias, p. 318.
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SEÇÃO TEMÁTICA
TREVISAN, E. Schreber (não) é um livro.
Ele apresentou sua grande crise logo após ter passado no vestibular e começado a cursar duas universidades. Até o momento da crise, ele trabalhava.
De origem alemã, é proveniente do interior do estado em região de típica
colonização. O pai, alcoolista, era um homem que se tornava violento quando alcoolizado. Sua crise parece também conter elementos de sua tentativa
de defender a mãe da agressividade paterna. Digo parece, porque ele fala
muito pouco de sua história. Percebo que ele tem muito cuidado em não
mostrar os seus sintomas para a mãe, não quer “preocupá-la”, sente que a
decepcionou.
No início do tratamento, ele era completamente impermeável a qualquer colocação que eu pudesse fazer acerca do que dizia. Nos primeiros
tempos do atendimento, ele vinha com uma agressividade enorme, gritava a
qualquer interpelação que eu fizesse, cada palavra proferida por mim era
tomada como absurdo, ele ficava furioso, levando-me a encerrar a sessão.
Nestas ocasiões, eu dizia a ele que gostaria de continuar a recebê-lo, porém
não daquele modo, eu não estava ali para ser agredida, que o esperava em
seu próximo horário. Confesso que ele me causava medo.
Aos poucos, parece que minha presença não lhe era mais tão ameaçadora, ele fazia algumas questões sobre as coisas das quais eu gostava e,
percebendo que eu me interessava por literatura, passou a trazer cadernos
que escrevera ao longo de muitos anos e lia seus poemas para mim. Lembro-me que me impressionava a forma como descrevia a mulher: idealizada,
inatingível. Ele queria que eu fizesse “crítica literária”, e se eu ousasse colocar qualquer questão de ordem pessoal, que pudesse levá-lo a falar de sua
história, ele novamente ficava furioso. Era-me extremamente difícil suportar
estas sessões, eu me sentia literalmente pregada à cadeira, qualquer gesto
meu era tomado dentro de seu sistema interpretativo, enfim eu me perguntava sempre até que ponto o que eu fazia – ou melhor, o que conseguia fazer –
teria alguma função.
Ele é Deus, tem mais de 2000 anos, múltiplas vidas, ele é vários. Dizse um erudito, que começou a ler aos três meses de idade, sabe todas as
línguas, inclusive as mortas. Queixa-se de ter que se contentar com o seu
trabalho simples, ele que tem um destino grandioso: foi treinado e trabalhou
com a KGB e a CIA, escreveu milhares de poemas – que estão com os
escribas (ele pode prová-lo), traduziu a bíblia em todas as línguas, já nasceu
inúmeras vezes, é um grande cineasta (Steven Spielberg deve seus filmes a
ele), é um eminente cientista, enfim, eu poderia citar vários temas do seu
“gigantismo” que é como nomeia este ilimitado do delírio que falamos acima.
A sua grande questão sempre foi com a psiquiatria e, dado seu
acúmulo de conhecimento, os psiquiatras obviamente não sabem tanto quanto
ele. Houve um momento em que ele chegou a sair do serviço por não suportar a psiquiatra que o atendia: ela o recebia com a mãe e ele se sentia
extremamente ameaçado. Naquele momento, ele passou por uma internação
e, quando saiu, pediu para retornar ao serviço porque queria continuar se
tratando comigo, porém não com ela. Ele passou a ser assistido, então, por
um outro médico, mas no momento em que este fez um gesto de conduzi-lo
até a porta do consultório, ele interpretou como assédio e os problemas com
o psiquiatra novamente recomeçaram. Ele, atualmente, vem sendo acompanhado por um psiquiatra mais experiente, mas não são poucas as críticas
que escuto: ele o chama de “filosofozinho barato”, “psiquiatra de manual”,
“homicida químico” pelos medicamentos que lhe prescreve. Porém, algo se
modificou: ele tem restringido os seus momentos de briga com o psiquiatra
à sessão que antecede sua avaliação mensal e passou a reivindicar uma
psiquiatra que ele encontrou em uma de suas internações. Queixa-se do
conselho de medicina e do Estado, que “absurdamente” não o escutam em
sua reivindicação. Esta psiquiatra o avaliou em uma de suas internações e
ele diz que ela teria conversado com ele como nenhum outro psiquiatra o fez.
Ultimamente, ele vem falando da possibilidade de passar “de caso
ambulatorial para caso clínico”. Isto quer dizer: ser atendido por ela e por
mim. Por que? A psicanálise para ele é para que possa falar de seu futuro,
dos seus projetos, porque desde seu encontro comigo ele passou novamente a “ter esperanças de vir a ter uma vida normal”. Com essa psiquiatra ele
falaria dos seus traumas, pois para ele “a verdadeira psiquiatria é a que trata
dos traumas, não é esta que tenta intoxicá-lo”. Falar do futuro é porque, o
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
22
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SEÇÃO TEMÁTICA
TREVISAN, E. Schreber (não) é um livro.
que ele quer, é a cura. A cura “é poder casar, ter uma vida em que seja
respeitado”.
Entrementes, o que temos feito? Conversado. De um modo estranho,
mas pode-se dizer que conseguimos ter algumas conversas. Ele me fala
“dos paranóicos que o perseguem”, que hoje se restringem a “um certo casal” e à “família postiça” que o atrapalham: eles o impedem de ler, de retomar
os estudos, trabalhar.
Há mais ou menos um ano ele me falou de um livro escrito “sobre” ele:
é um livro em cujo título encontramos as iniciais de seu nome. Perguntou-me
se eu gostaria de lê-lo e eu disse que sim, que me interessaria muito. Ele me
trouxe o livro e me emprestou com muitas recomendações, o livro precisava
ser devolvido “intacto”.
A partir daí, como eu “cuidei muito bem do livro”, ele “decidiu” que eu
deveria ler a “Comédia Humana” de Balzac, todos os 17 volumes. Ele quer
me tornar uma profunda conhecedora da psiqué dos franceses, porque soube que morei na França. Eu estou no terceiro volume, ele diz que eu não
preciso ter pressa, pois, afinal, “teremos muito tempo, ainda, juntos”. Eu
confesso que achei perturbador fazer parte deste seu “projeto”, mas de todo
modo, eu não tinha escolha. No início, eu tinha dúvidas se ele realmente
tinha lido e é com surpresa que constato que ele os leu. Tem sido um modo
interessante de conseguir dialogar com ele através destes contos, ele consegue permitir que eu lhe faça algumas questões a respeito de sua história.
O que percebo é que, apesar de ele já conseguir suportar que eu
pergunte, que o interrompa em alguns momentos, que suporte falar de sua
vida, de sua história ele tem uma rigidez e uma necessidade imperiosa de
“estar no controle”. Não é qualquer dia em que eu posso intervir. Muitas
vezes ele vem, traz o seu discurso pronto, diz o que preparou para dizer,
pergunta se pode ir, e vai. É curioso também como ele começa a referir que
não é sempre que tem necessidade de preparar o que vai falar com antecedência, que não precisa mais fazer isto, podendo se permitir o improviso.
Hoje ele aceita quando eu o incito a ficar e falar mais um pouco, mas confesso que, muitas vezes, a sua fala é tão fantástica que eu nem mesmo consigo
fazer o convite. Ele vem rigorosamente a todas as sessões, reclama se eu
falto por algum motivo.
Fico me perguntando se esta seria a sua “cura”, a sua “estabilização”.
Ele diz que “precisa” vir, é o único lugar onde pode conversar “com” alguém e
não só “por telepatia ou com as paredes”. Ele se queixa de ser só. Um
grande avanço para ele foi a construção de um Shopping, próximo à sua
casa, lugar onde se tornou um assíduo freqüentador. Um dia eu o encontrei
ali, por acaso, e ele veio me cumprimentar dizendo: “podes ficar à vontade e
vir sempre que quiseres ao meu shopping”.
Para terminar: Freud conclui a sua leitura do caso dizendo: “pertence
ao futuro decidir se há mais delírio em minha teoria do que gostaria, ou se há
mais verdade no delírio de Schreber que estejamos preparados para acreditar.”20 Penso que esta dúvida de Freud está sempre presente também no vivo
do trabalho, pois com estes pacientes nós vamos tateando, aprendendo,
num trabalho de construção incessante, perguntando-nos muitas vezes se
nossas hipóteses não seriam também um pouco delirantes. O paciente que
acompanho não é um livro, mas as suas construções neste espaço com o
analista tem se tornado compartilháveis através dos livros.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
24
20
Freud, op. cit p. 77.
25
SEÇÃO TEMÁTICA
POLI, M. C. Uma paranóia freudiana.
UMA PARANÓIA FREUDIANA
Maria Cristina Poli
E
xistem muitos aspectos surpreendentes na leitura que Freud faz das
“Memórias”. Ele parte de um livro – uma autobiografia, é certo, mas
assim mesmo um livro – para interpretar seu autor e transformá-lo
em um caso clínico. Uma das “cinco psicanálises”, indicadas na bibliografia
tradicional. Não deixa de ser curioso que seja este texto que conste no rol de
clássicos, e não outros, de pacientes acompanhados diretamente por Freud,
como, por exemplo, o da jovem homossexual.
Mas o aspecto surpreendente que eu gostaria de destacar é o lugar
de leitor e intérprete que Freud assume em seu texto e as possibilidades e
impasses que tal posição acarreta. Freud chega ao texto de Schreber antecedido por Jung e Abraham e incentivado por ambos. Ele reconhece essa
influência nas cartas que escreve a eles e a Ferenczi nesse mesmo período,
situando seu interesse pelo caso com base em uma questão identificatória:
a paranóia de Schreber com Flechsig lhe evoca o episódio da acusação de
plágio proferida por Fliess em torno do tema da bissexualidade.
Porge aborda esse tema no livro “Um roubo de idéias?”. Ele menciona
alguns recortes dessa correspondência que testemunham da presença desse episódio no interesse de Freud por Schreber:
“Desde o caso Fliess, em cuja superação, precisamente, você me
viu ocupado, essa necessidade [de abertura da personalidade] se
extinguiu em mim. Uma parte do investimento homossexual foi
retirada e utilizada para o crescimento do meu eu próprio. Tive êxito
ali onde o paranóico fracassa.” (carta a Ferenczi, 06/10/1910).
“Meu amigo de então, Fliess, desenvolveu uma bela paranóia depois de se ter desembaraçado de sua inclinação por mim, que
decerto não era pequena. É a ele, ou seja, a seu comportamento,
com efeito, que devo essa idéia.” (12/07/1908 carta a Jung)
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
“Não se esqueça de que nós dois aprendemos com ele [Fliess] a
compreender o mistério da paranóia.” (carta a Abraham, 03/03/1911)
É, portanto, em Fliess que Freud primeiro interpreta a relação entre
paranóia e homossexualidade: seu amigo atuou suas pulsões homossexuais, rechaçadas, acusando-o paranoicamente de plágio. Freud mesmo reconhece no texto sobre Schreber que sua teoria sobre a paranóia antecede a
leitura das memórias. Como ele escreve ao final do texto de 1911: “Posso,
não obstante, invocar um amigo e colega especialista para testemunhar que
desenvolvi minha teoria da paranóia antes de me familiarizar com o conteúdo
do livro de Schreber.” (p. 85)
Porém, não passa desapercebido que Freud também se reconhece
em Schreber. Como menciona na correspondência com Ferenczi: “tive êxito
ali onde o paranóico fracassa”. Também no texto sobre Schreber tal colocação tem a conotação do bem sucedido de suas elaborações teóricas que ele
desconfia serem tão delirantes quanto as do presidente da corte.
Esses elementos presentes na leitura de Freud são enfatizados por
Santner, no livro “A Alemanha de Schreber”, que aponta neles um substrato
histórico interessante: a época da publicação do texto de Freud é contemporânea da fundação da Associação Psicanalítica Internacional. O texto de
Freud é carregado, portanto, da preocupação do autor com a transmissão da
psicanálise, para além da sua pessoa, e inclui suas percepções sobre a
fragilidade da função simbólica a qual seu nome e o da psicanálise estão
sujeitos. Cito Santner:
“Aqueles foram anos cruciais na consolidação do movimento psicanalítico, frente a divisões internas cada vez mais profundas – o
rompimento final com Adler viria em 1911, e com Jung, dois anos
depois, as quais, é claro, só faziam intensificar e complicar a luta
continua pelo reconhecimento por parte da comunidade cientifica
e intelectual mais ampla. A instituição da psicanálise achava-se,
poderíamos dizer, num estado de emergência (emergency), no
sentido de um estado de surgimento (em ergence [estar emergin-
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
27
SEÇÃO TEMÁTICA
do]), de vir-a-ser, bem como de crise e exposição a perigos. Esse
foi um período em que as palavras e conceitos fundantes – o que
poderíamos chamar, com Schreber de Grundsprache ou ‘lingua
fundamental’ da psicanálise – que viriam a estabelecer a forma e a
direção intelectual dessa nova e estranha ciência, em que as fronteiras que determinariam o interior e o exterior do pensamento
psicanalítico propriamente dito, estavam sendo acalorada e asperamente contestados.” (p. 39)
E Santner continua um pouco mais adiante com essa instigante proposição: “Será minha tese nesse livro que os aspectos cruciais da ‘doença
nervosa’ de Daniel Paul Schreber, inclusive a fantasia central de feminização,
só se tornam inteligíveis quando cotejados com o contexto dos problemas e
questões gerados por esses estados de emergência institucionais e políticos.” (p. 39). Da mesma forma – podemos acrescentar seguindo sua indicação – a identificação maciça a Schreber, nesse contexto de crise políticoinstitucional, ou, como denomina o autor, de “crise de investidura”, precisa
ser incluída na leitura do texto de Freud.
De fato, como observa Santner, encontra-se em Freud, e reconhecida
por ele, angústias de influência e anseio por originalidade que se precipitam
em hesitações na “transferência” de poder na psicanálise. A história culmina,
como sabemos, nas rupturas com Adler e Jung. Assim, afirma o autor:
POLI, M. C. Uma paranóia freudiana.
qual Freud é o ator principal. Contudo, penso ser importante identificá-la para
abordar uma dificuldade de leitura do caso Schreber, que continua a nos
interrogar, e que se refere à interpretação da paranóia como realização sintomática de um fantasma homossexual.
A pergunta, difícil de ser respondida, é: afinal, qual a relação entre
paranóia e homossexualidade? Poderíamos responder rapidamente que se
trata de uma leitura equivocada de Freud, uma interpretação movida pela
contratransferência (no sentido lacaniano, isto é, da atuação dos preconceitos do analista). Nas “Memórias”, Schreber expressa suas fantasias inconscientes “a céu aberto”, como se costuma dizer, e ele jamais referiu ter desejos homossexuais. Trata-se antes de transformar-se em mulher, o que é
outra coisa. O que ele realiza em seu delírio é até mesmo a realização da
fantasia heterossexual por excelência: ser a mulher de Deus. Ou ainda, em
outra faceta da mesma fantasia, ser homem e mulher em um mesmo corpo,
realizando assim a impossível relação sexual. Conforme o próprio Schreber:
“(...) represento a mim mesmo como homem e mulher numa só
pessoa, consumindo o coito comigo mesmo, realizando comigo
mesmo certas ações que visam a excitação sexual, ações que de
outra forma seriam consideradas indecorosas, e das quais se deve
excluir qualquer idéia de onanismo ou coisas do gênero.” (p. 218)
Enfim, recorro a esse expediente de leitura do texto freudiano no contexto de sua produção não para sobrepor uma interpretação a outra; não se
trata de propor que a verdade do caso Schreber estaria numa outra cena na
No entanto, é bem verdade – ou como diria Charcot, “ça n’empêche
pas d’exister” – que podemos identificar na clínica a existência de algum
parentesco entre homossexualidade e paranóia. Mas não seria talvez o caso
de se dizer “a fantasia paranóica do homossexual” e não o contrário? Pensei
nisso a partir de um caso clínico no qual as fantasias paranóicas do paciente
se sobrepunham a um exercício homossexual recusado. “Recusado” no sentido de não encontrar suporte na enunciação do desejo, sendo a nominação
“homossexual” percebida como injuriosa.
É pela via da injuria que podemos identificar, talvez, o ponto de encontro entre o exercício sexual e posição de objeto de gozo do Outro. A
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
“Se de fato há uma dimensão transferencial no envolvimento apaixonado de Freud com o material de Schreber, ela diz respeito não
apenas a questões de paixão pelo mesmo sexo, mas também a
questões de originalidade e influência, questões pertinentes à
transferência de conhecimento e autoridade no próprio campo que
Freud estava demarcando como seu.” (Santner, p. 35-36)
28
29
SEÇÃO TEMÁTICA
sobreposição dessas inscrições, na fantasia e no delírio, aproxima paranóia
e neurose obsessiva. Em Schreber, tal elemento se expressa no episódio
bem conhecido da nominação que recebe do deus Ariman: Luder (que pode
ser traduzido por puta, vagabunda ou podre). Nas “Memórias”, ele descreve
assim esse momento:
POLI, M. C. Uma paranóia freudiana.
No contexto da formação delirante de Schreber a nomeação injuriosa
é recebida como benéfica, como encontro com um significante que faz suplência à forclusão da castração, ponto de basta na deriva da significação.
Ela inscreve ao mesmo tempo, e no mesmo ponto, os registros da filiação e
da sexuação. Tal como o Édipo o faz na neurose. Porém, nesta, o efeito do
recalque incide justamente nessa sobreposição de registros. Assim que a
injuria é aí recebida como interpelativa e insuportável. Ela é signo da condenação moral pela qual o sujeito fica à mercê do gozo do supereu. O efeito é
paranóico, mas a estrutura é a da neurose.
É, pois, no âmbito da neurose e, mais especificamente, na
obsessividade, que a homossexualidade pode se apresentar primeiramente
como injuriosa, sendo portanto sujeita ao recalque: ela atualiza a fantasia de
incesto, na qual exercício sexual e objeto do gozo do Outro se confundem.
Retomando o trabalho de Santner, ele nos traz elementos que, como
já assinalei, propõe o desencadeamento da psicose de Schreber como uma
“crise de investidura”. Freud menciona o excesso de trabalho, referido por
Schreber, como precipitador de sua hipocondria, mas não chega a associála ao ato de nomeação como presidente da corte. É Lacan que vai trazer
esse elemento, permitindo que se aborde a semelhança no estatuto do objeto na obsessão e na paranóia, pela identificação com o objeto resto e sua
sobreposição à cena incestuosa, ali onde o significante do Nome-do-pai
(forcluído na psicose e excessivamente imaginarizado – quase forcluído – na
obsessão grave) depõe suas armas.
O efeito injuntivo da nomeação é, no entanto, como vimos, bastante
distinto na paranóia e na obsessão. Na primeira, a inconsistência simbólica
da inscrição do Nome-do-pai lança o sujeito na busca delirante de um signo
que faça consistir, no mesmo ponto, filiação e sexuação. Já na obsessão, é
justo esse o ponto insuportável, de desencadeamento de angústia, – a possibilidade de se identificar a um significante que situe esses dois registros
como sobrepostos.
Nesse sentido, portanto, apesar do equívoco, Freud nos indica um
caminho a perseguir. Para além de suas motivações identificatórias, podemos acompanhar Santner, no argumento de que se trata de uma questão de
ideologia: homossexual, assim como femininilidade/passividade, entram para
Freud (e para o seu tempo) na linha associativa de Luder. Santner indica
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
“Acredito poder dizer que nesse momento, e só nesse momento, vi
a onipotência de Deus em toda sua pureza. À noite – e até onde me
recordo, em uma única noite – apareceu o deus inferior (Ariman). A
imagem resplandecente de seus raios – estando eu deitado, não
dormindo, mas acordado – ficou visível para o meu olho espiritual,
isso é, refletiu-se no meu sistema nervoso interno. Ao mesmo
tempo eu o ouvi em sua língua; mas essa não era – como sempre
foi o caso da conversa das vozes antes e depois dessa época – um
leve sussurro, mas ecoava, por assim dizer, bem em frente a minha janela como um poderoso tom de baixo. A impressão era tão
imponente que ninguém teria deixado de tremer dos pés a cabeça,
a não ser que, como eu, já estivesse calejado pelas terríveis impressões provocadas pelos milagres. O que era dito também não
tinha um tom amistoso; tudo parecia calculado para me inspirar
medo e terror e ouvi várias vezes a palavra “puta” [Luder] – uma
expressão muito comum na língua fundamental quando se trata
de fazer com que uma pessoa que vai ser aniquilada por Deus
sinta o poder divino. Mas tudo o que se dizia era autêntico, sem
frases decoradas, como mais tarde, tão somente a expressão direta de sentimentos verdadeiros. Por esse motivo, a impressão
que prevaleceu em mim não foi a de pavor, mas a de admiração
pelo grandioso e sublime; também por essa razão, apesar das
injurias em parte contidas nas palavras, o efeito sobre meus nervos foi benéfico (...).”(p. 119-120)
30
31
SEÇÃO TEMÁTICA
ainda nessa série o significante “judeu” que teria propiciado de forma mais
direta a identificação de Freud a Schreber. Podemos também incluir o termo
psicótico ou louco nessa série.
Estaríamos, então, ai na linha fronteiriça entre discurso e estrutura?
Entre ideologia e efeito de sujeito? São questões que deixo em aberto e que
buscam retomar a íntima relação que se estabeleceu na tradição pós-freudiana
entre sexuação e estruturas clínicas. Se elas estão sujeitas às ideologias,
são, então, historicamente modificáveis. Como concebê-las hoje? Como incluir em nossa prática os efeitos políticos que a interpretação psicanalítica
acarreta?
Referências Bibliográficas:
FREUD, S. (1911/1996). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de
um caso de paranóia (dementia paranoides). In: Obras completas. V. XII. Rio
de Janeiro: Imago.
SANTNER, E. (1903/1997) A Alemanha de Schreber – uma história secreta da
modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
SCHREBER, D.P. (1995) Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro: Paz
e Terra.
PORGE, E. (1998) Roubo de idéias? Rio de Janeiro: Companhia de Freud.
GIL, A. Uma questão preliminar...
UMA QUESTÃO PRELIMINAR DE J. LACAN:
RUPTURAS E ALGUMAS CONSEQÜÊNCIAS CLÍNICAS
Alfredo Gil
O
s anos 50 marcam uma ruptura no tratamento da doença mental,
nos seus estudos e nas suas elaborações teóricas, tanto do ponto
de vista psiquiátrico quanto do psicanalítico, dois campos que, aliás, andavam de mãos dadas sem dificuldade nessa época, e que, diria mesmo, se enriqueciam mutuamente como se viu nas instituições psiquiátricas
européias e americanas com a criação de novas formas de abordagem terapêutica.
O DSM I nasce em 1952 e, com ele, seu primeiro derivado medicamentoso neuroléptico. Em 1955, a confirmação de sua eficácia, incontestável no trabalho com psicóticos, desde que corretamente administrado, é confirmada no I Colóquio Internacional sobre este tipo de tratamento.
Neste mesmo ano de 1955, no que concerne à concepção da psicose
no âmbito da psicanálise, a ruptura, é J. Lacan que a opera em seu seminário dedicado a este tema, tendo como pano de fundo as memórias do Presidente Schreber. Mas ruptura com relação a quê? Ruptura com o debate
anglo-saxônico1 em torno do caso Schreber, debate que já se encontrava,
aliás, bem mais avançado e que tinha o mérito e o privilégio de poder contar
neste mesmo ano com a primeira tradução inglesa das Memórias, enquanto
que a primeira versão francesa só viria vinte anos depois.
A ruptura é estrutural. A concepção anglo-saxônica, a começar pelos
tradutores das Memórias – I. Malcapine e R. Hunter – mas também M. Katan,
W. G. Niederland e outros, todos criticados por Lacan ao longo do seminário,
é herdeira da tradição kleiniana. Essa, resumindo grosseiramente, propõe o
seguinte: a fraqueza da instância egóica, confrontada com a parte psicótica
1
32
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
Le cas Schreber. Contributions psychanalytiques de langue anglaise. Paris : Puf, 1979.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
33
SEÇÃO TEMÁTICA
da personalidade, fende-se, causando os sintomas psicóticos que preponderam sobre a parte não psicótica da personalidade. Esta dinâmica explicaria, para os autores em questão, os sintomas esquizofrênicos de Schreber,
que não hesitam em tratá-lo como um caso de esquizofrenia.
A este respeito, a questão diagnóstica nesses anos é importante e
exige algumas observações antes de avançarmos sobre a ruptura propriamente psicanalítica, pois é por esta razão que Lacan abre seu seminário
indicando que se esperavam nesta época muito mais resultados da terapia
com esquizofrênicos do que com paranóicos.
Mas o que Lacan não indica é que os anos 50 são o início da era
internacional das esquizofrenias 2 , tanto para os psiquiatras quanto para os
psicanalistas anglo-saxões (os citados acima, mas outros de grande envergadura como W. Bion e H. Rosenfeld). Nesta época, a esquizofrenia é a
porta-bandeira do projeto estatístico DSM. Ela encarna, nos anos 50 e 60, a
busca do projeto de uma língua única. A crítica de Lacan, nas duas primeiras
aulas do seminário “As psicoses”, sobre o fato que a designação de paranóia
recobre, em grande parte do século XIX, 70% das vesânias na clínica alemã,
valeria para a esquizofrenia neste período.A esquizofrenia nos intercâmbios
clínicos é a língua falada nesta Torre de Babel internacional : designação
solvente que dilui suas particularidades ao mesmo tempo em que engloba o
conjunto das psicoses. Em 1950, o I Congresso Mundial de Psiquiatria acontecia em Paris, e a esquizofrenia, onipresente, atravessava os diferentes
colóquios, seja na perspectiva organogênica ou psicogênica. Vale lembrar
que, neste período pan-esquizofrênico, as pesquisas na busca etiológica
passam a ser multifatoriais e a esquizofrenia é o quadro clínico que se aplica
aos diferentes fatores: biológico, psicológico e/ou sociocultural. Equívoco
chama equívoco, e nisto o movimento antipsiquiátrico trazia consigo um duplo equívoco. Exemplo da perspectiva sociocultural, a antipsiquiatria, quer
seja americana, inglesa ou italiana, recusava a existência da doença mental,
2
GARRABÉ, J. Histoire de la schizophrénie, Paris : Seghers, 1992.
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
GIL, A. Uma questão preliminar...
sinônimo de esquizofrenia, pois esta era concebida como um mito, produto
da sociedade. A partir desse contexto histórico, é possível constatar que a
primeira ruptura feita por Lacan está no fato de abordar as psicoses pelo
ângulo da paranóia, ruptura iniciada já em 1932 na sua tese de doutorado,
como ele mesmo indica em sua primeira aula do seminário ao adotar esta
nominação. Como lembrava freqüentemente G. Lantéri-Laura em seu seminário, na tradição germânica as nominações clínicas davam-se freqüentemente
pela criação de neologismos de origem grega: paranóia, parafrenia (E.
Kraepelin), esquizofrenia (E. Bleuler), autismo (E. Bleuler), etc., enquanto
que na tradição francesa predominava a preocupação temática – delírio de
perseguição (Ch Lasègue), folie raisonnante (P. Serieux, J. Caprgas), delírio
de imaginação (E. Dupré) etc. –, explicando assim a introdução tardia do
significante paranóia e mesmo o de psicose na clínica psiquiátrica francesa.
Mas nesta ruptura há um aspecto clínico que faz com que Lacan se debruce
sobre a paranóia muito mais do que sobre a esquizofrenia: naquela há preservação de uma consistência da personalidade, e, por conseguinte, de um
tipo de relação para com o outro que permite isolar os elementos estruturais
de sua elaboração teórica. O estádio do espelho é uma das primeiras conseqüências neste sentido.
Retornemos à ruptura no campo da psicanálise. Na concepção de
uma organização da personalidade regida por uma parte psicótica e outra
não psicótica, cujo equilíbrio repousaria no comércio de objetos internos e
externos entre a instância egóica e a realidade exterior por meio de diferentes mecanismos como, por exemplo, a identificação projetiva, não há distinção entre neurose e psicose. A idéia é que aquela é uma defesa contra as
angústias inexoráveis desta, existente em todo sujeito. Em outros termos,
não haveria distinção estrutural psicopatológica entre neurose e psicose,
mas, de um certo ponto de vista, continuidade. Isolar um mecanismo próprio
da psicose, como fará Lacan, o leva para uma posição oposta a de seus
contemporâneos.
No seminário de 55-56, estamos a meio caminho da elaboração do
conceito de forclusão (Verwerfung) do Nome-do-pai que assina a psicose.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
35
SEÇÃO TEMÁTICA
Lembramos que é em 1953, debatendo com J. Hypollite, que Lacan começa
a isolar o “Ver” freudiano que seria o próprio desta clínica. Temos que ao
menos sublinhar, sem aqui poder tirar todas as conseqüências, que sua
porta de entrada não foi Schreber, mas o episódio do dedo cortado do Homem dos Lobos, que tendemos muito rapidamente a considerar como uma
alucinação à semelhança dos exemplos a que recorre Lacan em 55-56. Se é
nos “Escritos técnicos de Freud” que se situa o início desta construção, seu
encerramento só ocorrerá em 1958 em “De uma questão preliminar a todo
tratamento possível da psicose”, com duas representações topológicas. A
primeira é a do esquema R, apresentado no seminário do mesmo ano3 e
retomado nesse texto. Ela dá conta da estruturação do sujeito que atravessa
a castração pela via edipiana com a instauração do significante Nome-do-pai
simbolizando o desejo da mãe e barrando, assim, este Outro primordial. A
outra, a do esquema I, que procura dar conta da experiência schreberiana, é
uma anomalia do esquema R, por causa da forclusão do Nome-do-pai (Po).
Notemos, assim, que os elementos estruturais que Lacan isola progressivamente nesses anos são os mesmos na delimitação dos campos da
neurose e da psicose. Do lado da neurose, temos S, A, a, a’ dispostos num
triângulo imaginário, duplicado por um triângulo simbólico, quando a realidade enquadrada é organizada pelo significante fálico. Do lado da psicose, a
forclusão do Nome-do-pai (Po) no simbólico, com a elisão do falo em um
ponto correlativo, mas imaginário, precipita Schreber num “puro e simples furo”.
Temos assim duas estruturas psicopatológicas radicalmente distintas rompendo completamente com o modelo anglo-saxônico abordado acima, pelo “simples” fato de que Lacan escutou e diferenciou os dois modos
pelos quais o falasser pode ser parasitado pelo significante.
A questão preliminar assim introduzida não apenas distingue Lacan
em relação à teoria vigente das psicoses, mas abre novas perspectivas na
GIL, A. Uma questão preliminar...
apreensão da estrutura psicótica que hoje conhecemos bem. Por esta razão, preferimos correr o risco e fazer alguns comentários, que aqui só poderemos apresentar de modo alusivo, sobre certos efeitos da dita questão preliminar.
Apesar da prudência de Lacan, que pode ser percebida no título que
propõe “uma questão preliminar” para um “possível” tratamento das psicoses, o aforismo da forclusão do Nome-do-pai não escapará a um destino que
lembra o desenvolvimento feito anteriormente a respeito da esquizofrenia.
Para começar, extrapolando de um modo quase caricatural, encontravam-se na França, no início dos anos 70, em alguns certificados médicos
psiquiátricos, observações do tipo: “persistência da forclusão em tal...” De
uma vez por todas, por mais subversivo que possa ser um pensamento num
momento histórico dado, momento de Aufhebung, ele pode rapidamente se
tornar uma síntese sem vigor se não formos vigilantes.
Neste mesmo sentido, um outro efeito, inesperado talvez, foi o destino funesto do registro Imaginário que reduziu-se (reduz-se às vezes ainda)
ao Eu, lugar do desconhecimento, da alienação e do sintoma. Que nos anos
50 Lacan, no seu “retorno a Freud”, tenha sido obrigado a criticar a teorização
dos anglo-saxões que fundava-se em grande medida no registro Imaginário,
visando restabelecer a função da fala e o campo da linguagem na experiência analítica, ou seja, da primazia do Simbólico sobre o Imaginário, nem por
isso ele prescrevia um tal destino para o registro Imaginário. Tratava-se antes de agenciar sua consistência (ou não) diante da determinação Simbólica. Na progressão do ensino de Lacan, dirigindo-se cada vez mais para uma
clínica do Real como “o que retorna sempre ao mesmo lugar”4 , ou mais tarde
como “impossível que não cessa de não se escrever”5 , associada à sua
crítica bem conhecida sobre as questões de fim de análise pela via da iden-
4
3
Formações do inconsciente, 1957-1958.
36
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1985, aula do 05/02/64.
5
LACAN, J. Les Non-dupent errent. Paris, 1981, aula do 19/01/1974, inédito.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
37
SEÇÃO TEMÁTICA
tificação com o analista, o Imaginário será relegado cada vez mais ao segundo plano, mas não pelo próprio Lacan. Por outro lado, paradoxalmente, alimentou-se uma concepção da psicose como inteiramente reduzida ao eixo
Imaginário na medida em que se lia a forclusão do Nome-do-pai como
erradicação total do (sujeito) psicótico do registro Simbólico.
Ora, na experiência com pacientes psicóticos é difícil esquivar-se de
momentos transferenciais bem conhecidos em que o analista, como pequeno outro, encontra-se justaposto ao Outro persecutório. No esquema I podemos indicar este pólo transferencial em M, que Lacan designa como “figuras
do outro imaginário nas relações de agressão erótica”. Que este tipo de
situação se produza em um dado momento de uma cura é efeito de estrutura
e não necessariamente uma fausse manobra da parte do analista. Ao “não
recuar diante da psicose”, como recomendava Lacan, o psicanalista só poderá operar no interior do eixo que lhe é imposto pelo paciente, no intuito de
amenizar o gozo ao qual ele mesmo – o paciente – é submetido.
É no interior desse debate que se pode entender a pertinência da
analise de C. Calligairs 6 quando ele afirma que a forclusão do Nome-do-pai é
um conceito negativo, que funda um “universal negativo” daquilo que a psicose não é, a saber, a neurose. Esta leitura introduz uma bifurcação na apreensão da psicose como estrutura: de um lado, e que fará a quase totalidade de
contribuições de grande importância nesta área, tratar-se-á de trabalhos sobre os efeitos da forclusão, pois a única apreensão possível deste mecanismo se dá pelos seus efeitos, ou seja, pelas manifestações positivas, em
particular o delírio e a alucinação. Por outro lado, a via aberta pela hipótese
de C. Calligaris consiste em poder diagnosticar a psicose numa temporalidade
aquém dos efeitos da forclusão, ou seja, anterior a uma situação que injunge
um sujeito a referir-se à função paterna que para ele não foi simbolizada.
GIL, A. Uma questão preliminar...
Entre estas duas perspectivas, que não estão necessariamente em
oposição, propomos uma nuance direcionando nosso questionamento para
um fato clínico, que são as dificuldades de diagnóstico diferencial, e, sobretudo, insistindo aqui na direção do tratamento. O Homem dos Lobos é um
exemplo paradigmático. Doze anos após a sua análise – se não contarmos
aquela “breve pós-cura”, a pedido de Freud, que durará de outubro 1919 a
abril 1920 – ele deve ainda responder a Freud7 nos seguintes termos: “Estou
quase certo de ter sonhado o sonho dos lobos exatamente como eu tinha
contado na época”. 8 Freud continuava a insistir em querer saber. Em outubro
do mesmo ano, 1926, Freud é obrigado a endereçá-lo a Ruth Mack Brunswick
para tratar aqueles “resíduos da transferência”9 , que, segundo ele, seriam a
causa do que nomeou de “caráter paranóico”10 do Homem dos Lobos.
Ao contrário da perspectiva freudiana de querer saber, a perspectiva
lacaniana pode visar à suspensão do significante, apontando sua polissemia,
sua sobredeterminação, como dizia Freud, jogando com o equívoco inerente
a ele mesmo. Assim, um paciente que, ao falar de um lugar de predileção de
sua infância e de origem da família paterna, a saber, um morro, 11 recebe do
analista em retorno o equívoco que indica a passagem do substantivo ao
verbo, conjugado na primeira pessoa. Na conjunção da tríade sexo, morte e
nominação relativa ao pai, o que poderia parecer uma forte inibição obsessiva desdobrar-se-á nos primeiros sinais de uma desamarração significante,
com a entrada do paciente na psicose manifesta.
Alguns pacientes parecem encontrar vias de proteção “natural”. Foi o
caso de um jovem de 17 anos que veio consultar trazido pela sua mãe. Ela
começava a mostrar sinais de cansaço, diante das múltiplas solicitações do
7
CALLIGARIS C. Qu’est-ce que guerir une psychose ? in Le Bulletin Freudien n° 5, Belgique,
octobre 1985 ; e Introdução a uma clinica diferencial das psicoses , Porto Alegre : Artes
Médicas, 1989.
Carta de 6 de junho de 1926.
L’Homme aux loups par ses psychanalystes et par lui-même. Éditions Gallimard, Paris,
1981, p. 282.
9
FREUD, S. L’analyse avec fin et l’analyse sans fun (1937) in Résultats, idées, problèmes.
Paris, Puf, 1985.
10
FREUD, S. Ibid., p. 233.
11
Cujo o nome não daremos mas que alude ao sexo.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
8
6
38
39
SEÇÃO TEMÁTICA
GIL, A. Uma questão preliminar...
filho ao longo do dia, ao ter que participar de seus diferentes rituais obsessivos. Ele sempre evitou dizer por que não podia renunciar à ação, mas sabia
que se não executasse os ditos rituais algo de ruim aconteceria. Estávamos
em um ponto de imbricação clássico, nesta idade sobretudo, entre manifestações obsessivas numa estrutura neurótica do mesmo nome ou de uma
sintomatologia que tem por função defensiva de regulação de uma economia
psicótica, esquizofrênica em particular, mas ainda sem evidência. O que me
inclinava a pensar nesta última era a seriedade deste jovem tendo como
reverso um “desinteresse e intolêrancia a todo relativismo”, como ele mesmo
dizia. Ele estava preparando um concurso que lhe daria acesso a uma Grande École, supra-sumo do ensino francês, para as ciências ditas duras, a
física no seu caso. Mostrando-se brilhante neste campo, dizia que nos estudos de filosofia (obrigatório para passar o equivalente ao vestibular) ele trabalhou o mínimo necessário, pois não “suportava o relativismo metafísico filosófico”. Em realidade, esta intolerância estendia-se para os estudos das
letras em geral tendo também feito o mínimo de leituras exigido em literatura
francesa. “Na física, dizia ele, não existe este relativismo, a aplicação de
uma fórmula uma vez conhecida (o que não era um obstáculo para ele) temos o resultado, um, e um único resultado”. Acompanhei este jovem durante
seis meses. Com sua carga horária de estudos associada à resistência da
mãe que, apesar do cansaço, não estava disposta a renunciar ao gozo de
situar-se como receptáculo do sintoma do filho – entre os quais, por exemplo: “Boa noite mamãe. Boa noite meu filho”, repetindo três vezes, quartos
lado a lado, a porta aberta – a interrupção do tratamento foi inevitável. A
última informação que tive a seu respeito, um ano depois, me veio, infelizmente, de uma colega do setor de psiquiatria: meu paciente havia sido hospitalizado em um estado gravemente confusional depois de sua mãe ter sido
também hospitalizada devido a um acidente de carro, sem graves conseqüências.
Não é o primeiro paciente que encontro, em uma vertente mais
esquizofrênica, para quem a relação com o raciocínio matemático, a
materialidade do número, parece ter valor de antídoto contra os efeitos de
todo equívoco significante. Há um esboço de hipótese que poderia ser desenvolvido a respeito de alguns pacientes, mesmo se outros tantos poderiam contradizê-la. Trata-se da tese de S. Leclaire12 , demasiadamente
esquemática, como ele mesmo admitirá, e que foi contemporânea ao período de elaborações que aqui nos interessa, ou seja, metade dos anos 50.
Leclaire avançava a tese de que, para o paranóico, tratar-se-ia de simbolizar
o imaginário, de onde, em alguns casos, a importância da escrita, como foi
o caso de Schreber, e para o esquizofrênico, tratar-se-ia de imaginarizar o
simbólico, o número sendo talvez representação deste último em estado
bruto. Mas para o meu paciente, se não fosse sua dependência à presença
materna, a lógica matemática aplicada às leis da física teria sido um suporte
suficiente, protegendo-o contra os equívocos inerentes ao uso da língua, e
toda iniciativa que apontasse para um além disto poderia levá-lo a responder
a uma divisão que lhe era estruturalmente inviável.
À guisa de conclusão a estas questões preliminares, diríamos que,
se um tratamento é possível com o paciente psicótico seja no trabalho de
cura individual seja no dispositivo institucional (no qual a hospitalização pode
fazer parte num momento dado), ou muitas vezes os dois articulados, ele só
será “possível” tecendo os três registros ( R,S,I ) que são próprios ao falasser
e respeitando a tensão e o entrelaçamento destes registros em cada sujeito.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
40
12
LECLAIRE, S. Principes d’une psychothérapie des psychoses. Paris : Fayard, 1999 ; e À
la recherche des principes d’une psychothérapie des psychoses, in L’Évolution
psychiatrique, n°11, 1958, p. 377-419.
41
SEÇÃO DEBATES
QUINET, A. Lições de Stonewall...
LIÇÕES DE STONEWALL A SÃO PAULO1
Antonio Quinet2
1
969, Stonewall, Nova York. 2009, atentado com bomba na Parada Gay
em São Paulo. Após sucessivas batidas policiais com humilhação e
prisão no Bar Stonewall, reduto gay do Greenwich Village em NY, os
homossexuais reagiram e se rebelaram contra a polícia; a rebelião ganhou o
apoio dos passantes e os policiais recuaram. É o marco histórico do início
do movimento de emancipação e liberação dos homossexuais e do combate
à homofobia. No ano seguinte, deu-se a primeira Parada Gay. Em São Paulo, além da bomba atirada numa sacola do alto de um prédio, outras agressões deixaram rapazes feridos. Um deles morreu. Aos 40 anos de Stonewall,
ataques como o de São Paulo estão além da homofobia. São atos de
homoterrorismo. Apesar das transformações nos costumes e leis e da maior
liberdade de expressão da opção sexual, prevalece, mundo afora, a repressão através de atos de guerra. No Brasil, o número de assassinatos de
homossexuais aumentou 55% em 2008 em relação ao ano anterior, revela a
pesquisa anual sobre crimes com motivação homofóbica, do Grupo Gay da
Bahia (GGB).
Como se explica o homoterrorismo? Como a homofobia, termo que
designa medo, se transforma em ódio? Por um lado, podemos pensar a
partir da lógica da exclusão do diferente e situar o homossexual ao lado do
negro e do judeu, vítimas de discriminação e intolerância (o
triângulo gay era cor-de-rosa nos campos de concentração) e também, como
se tem visto, aqueles que frequentam religiões “fora da norma”, como a
Umbanda, alvos de agressões em seus templos. As mulheres, acrescentese, continuam a ser discriminadas. Essa norma mítica, que se confunde
com o “normal”, é a do “branco, masculino, jovem, heterossexual, cristão,
1
Artigo publicado no Jornal O Globo no dia 21 de junho de 2009. No dia 26 de junho ocorrerá
na Universidade Veiga de Almeida (RJ) o Colóquio “Homossexualidades na psicanálise”.
2
Psicanalista e doutor em filosofia.
42
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
financeiramente seguro e magro” (cf. Dollimore). O homossexual provoca o
imaginário de um gozo outro, tão diferente, e ao mesmo tempo tão semelhante. Para a consciência da norma, é melhor qualificá-lo de pervertido, nãoconfiável, pois um gozo periférico, daí ser perigoso. Como disse Arnaldo
Jabor, os gays “ (...) sempre foram uma fonte de angústia, pois atrapalham
nosso sossego, nossa identidade `clara´. O gay é duplo, é dois, o viado tem
algo de centauro, de ameaçador para a unicidade do desejo... o gay sério
inquieta... o gay de terno, o gay forte, o gay caubói são muito próximos de
nós (...).”
Ao responder a uma mãe extremamente preocupada com a homossexualidade de seu filho, Sigmund Freud (que assinara uma petição pela
descriminalização da homossexualidade) aponta, em 1935, que não é nenhuma desvantagem, nem vantagem, “não é motivo de vergonha, não é uma
degradação, não é um vício e não pode ser considerada uma doença”. Apesar disso, só em 1973 a American Psychiatric Association (APA) deixou de
classificar a homossexualidade como doença. E depois que ativistas gays,
por duas vezes (1970 e 1971), invadiram seu encontro anual.
A psicanálise, na mesma direção, se opõe à pedagogia do desejo,
pois esta é uma falácia. Não se pode educar a pulsão sexual, desviá-la para
acomodá-la aos ideais da sociedade. A pulsão segue os caminhos traçados
pelo inconsciente, individual e singular. A pulsão não é louca: obedece à
lógica de uma lei simbólica a que todos estamos submetidos. Para a psicanálise, o interesse exclusivo de um homem por uma mulher também merece
esclarecimento. A investigação psicanalítica, diz Freud em seu texto premiado sobre Leonardo da Vinci, opõe-se à tentativa de separar os homossexuais dos outros seres como um “grupo de índole singular”, pois “todos os
seres humanos são capazes de fazer uma escolha de objeto homossexual e
que de fato a consumaram no inconsciente”. Ou seja, a bissexualidade é
constitutiva de todos, seja a escolha homossexual praticada ou não. O complexo de Édipo, que cai no esquecimento, comporta também a ligação libidinal
do filho para com o pai e da menina para com a mãe, além das ligações do
filho com a mãe e da filha com o pai. Assim, o número de homossexuais que
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
43
SEÇÃO DEBATES
RESENHA
se proclamam como tais, diz Freud, “não é nada em comparação com os
homossexuais latentes”. Há uma diversidade enorme na homossexualidade
tanto na praticada quanto na latente e sublimada. Devemos falar, portanto,
de “homossexualidades”. As sexualidades são tantas quanto existem os
sujeitos, determinadas pelas fantasias de cada um. A questão que se coloca
nesse episódio de terror é como cada um lida com sua homossexualidade
(patente ou latente) que se materializa nas amizades, nas relações entre
parentes do mesmo sexo e em todo ajuntamento social.
Segundo Freud, a libido homossexual é o cimento dos grupos e da
massa, assim como a raiz dos ideais subjetivos de cada um se encontra em
seu narcisismo (do amor por si mesmo e até a auto-estima). O “amar aos
outros como a si mesmo” tem claramente fundamento homo (igual) erótico.
A aceitação da homossexualidade do outro se encontra na dependência de
como o sujeito lida com a sua própria. Quanto mais ele a rejeita em si mesmo, menos saberá lidar com ela, podendo fazer desse outro um objeto de
ódio, de agressões e até de assassinato. Dentro de uma cultura machista e
falocêntrica (existe no ocidente alguma que não o seja?) parece mais fácil
para a mulher lidar com sua homossexualidade do que o homem. Não é à
toa que o lipstick lesbian virou moda entre as meninas. O que está longe de
ser o caso para os meninos que cedo, muitas vezes na escola, aprendem a
prática do homoterrorismo. A aceitação do outro como sexuado, diferente e
independente, podendo fazer suas próprias escolhas de gozo sem ter que se
desculpar, é um índice de civilização. O contrário é a barbárie.
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
AS POSIÇÕES FEMININA E
MASCULINA NA PSICANÁLISE
CONTEMPORÂNEA
POLI, Maria Cristina. Feminino/Masculino – a diferença
sexual em psicanálise. Jorge Zahar, 76p.
“...A identidade sexual é frágil; as vicissitudes da vida – o casamento, a maternidade e a paternidade, as mudanças do esquema corporal que
a idade acarreta etc. – estão constantemente a nos
demandar provas de nossa consistência identitária.
Pode-se passar a vida buscando encontrar o outro
complementar que, pelo amor, garantiria a identidade...” p.56
C
om essa afirmação, podemos antever um pouco do que a leitura do
texto “Feminino/Masculino”, de Maria Cristina Poli nos oferece. Percorrendo os caminhos da elaboração freudiana sobre o desejo inconsciente e a sexuação humana, a autora leva-nos a visitar os principais
textos de Freud sobre o tema. Tomando os “Três ensaios para uma teoria
sexual”, trabalho publicado por Freud em 1905, a autora resgata as bases da
teoria psicanalítica e a contextualiza, em companhia de Lacan, e alertada
pelas recomendações de Michel Foucault: é preciso “ler Freud sem elidir a
sua própria posição de autor na produção da teoria e da prática da psicanálise.” Poli esclarece não se tratar de servir-se da biografia para explicar a
obra, mas considerar que toda a teorização está sujeita a uma posição de
enunciação, incluindo o sujeito que a produz. O código cultural, ou ainda o
campo do Outro, incidem sobre as condições de enunciação do desejo, são
as condições de alienação do autor. Desse encontro e do movimento possível de separação, surge a obra. Freud não está livre disso, é o que a autora
afirma. As descobertas freudianas, não são construtos teóricos sem base na
experiência. A clínica de sua época, o tornava testemunha das fantasias e
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
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RESENHA
RESENHA
dos ideais vigentes. Por exemplo, havia a extrema valorização da maternidade, idealizada pelas mulheres e homens de sua época. Ser mulher na virada
do século XIX para o século XX era uma condição solidamente vinculada à
assunção da maternidade.
O discurso vigente nesse período concebia a diferença entre os sexos
como consequência da diferença anatômica. A ausência ou a presença do
pênis determinava o destino sexuado do sujeito. Era o que Freud escutava e
disso ele depreendeu algo verdadeiramente precioso: os adultos concebiam
a diferença sexual nos mesmos moldes das fantasias das crianças. Para
essas, nas suas tentativas de interpretar a diferença, inicialmente haviam os
seres com pênis e aqueles aos quais falta o órgão. Para os meninos, já que
o tinham, restava o medo de perder uma parte tão valiosa de seu corpo. Às
meninas, restava a inveja daqueles que o tinham.
Se pensarmos nas condições sociais do exercício da cidadania, vamos perceber que ter o pênis na época de Freud, significava ter uma vida
pública, instruir-se, eleger os próprios representantes no campo político, isto
é, ir além da vida doméstica. Restava às mulheres uma certa compensação
através dos filhos, de preferência homens, para amenizar a inveja de que
caiam vítimas. Nesse contexto, dizer que a “anatomia era destino” não seria
uma interpretação errônea.
Um dos grandes méritos deste livro é o de lembrar que a leitura do
complexo de Édipo, promovida por Lacan, privilegia situar a referência sexuada
na enunciação do desejo e não nas bases anatômicas, como o fazem as
crianças e o faziam os adultos contemporâneos de Freud. Mas a autora nos
lembra a leitura lacaniana de forma muito consistente e assim como percorre os textos freudianos fundamentais sobre o tema da diferença sexual, Poli
expõe as contribuições lacanianas sobre a função significante do falo, este
sim, operador da diferença, uma vez que introduz a falta (castração)
concernente a todo sujeito humano. Nossas identificações estão muito mais
sujeitas ao desejo, do Outro em primeira mão, o que indica o quanto na
leitura lacaniana da estruturação psíquica devemos muito mais ao desejo
alheio inscrito em nós, do que à estrita percepção anatômica do nosso cor-
po. Só integramos o corpo que temos, depois que ele foi integrado, “fisgado”
no campo do Outro.
Não vou repetir o que está escrito, já o fiz em alguma medida, mas
quero renovar o convite de percorrê-lo. Trata-se de um livro denso, o que
confirma que tamanho não é documento. O início leva o leitor a acompanhar
a contextualização feita pela autora, depois a visitar ou a revisitar os textos
clássicos freudianos e finalmente a entrar numa seara pouco conhecida do
público que é a leitura lacaniana da sexuação. É um livro que além de constituir um certo roteiro de estudos e um convite ao aprofundamento, nos trabalha, no sentido de que sua leitura concerne ao que nos é mais íntimo: àquilo
que somos ou ao que pensamos ser.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
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Roséli Maria Olabarriaga Cabistani
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AGENDA
Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events
in the last decade. London, Hogarth, 1992.)
Criação da capa: Flávio Wild - Macchina
JULHO – 2009
Dia
Hora
Local
19h30min Sede da APPOA
02, 09,
16, 23 e 30
21h
09
Sede da APPOA
10 e 17
8h30min
Sede da APPOA
03, 10,
14h30min Sede da APPOA
17, 24 e 31
20h30min Sede da APPOA
06 e 20
21h
23
Sede da APPOA
23
19h30min Sede da APPOA
Atividade
Reunião da Comissão de Eventos
Reunião da Mesa Diretiva
Reunião da Comissão de Aperiódicos
Reunião da Comissão da Revista
Reunião da Comissão do Correio
Reunião da Mesa Diretiva aberta aos
Membros da APPOA
Reunião da Comissão da Biblioteca
ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE
GESTÃO 2009/2010
Presidência: Lúcia Alves Mees
1a Vice-Presidência: Nilson Sibemberg
2a Vice-Presidência: Marieta Luce Madeira Rodrigues
1a Secretária: Maria Elisabeth Tubino
2° Secretários: Otávio Augusto Winck Nunes e Ieda Prates da Silva
1a Tesoureira: Maria Beatriz de Alencastro Kallfelz
2a Tesoureira: Liz Nunes Ramos
MESA DIRETIVA
Alfredo Néstor Jerusalinsky, Ana Costa, Ana Laura Giongo, Beatriz Kauri dos Reis,
Carmen Backes, Emília Estivalet Broide, Inajara Erthal Amaral, Lucia Serrano Pereira,
Márcia da Rocha Lacerda Zechin, Maria Ângela Cardaci Brasil, Maria Ângela Bulhões,
Maria Elisabeth Tubino, Nilson Sibemberg, Norton Cezar dal Follo da Rosa Júnior,
Regina de Souza Silva, Robson de Freitas Pereira, Sandra Djambolakdjian Torosian,
Siloé Rey, Simone Goulart Kasper, Tatiane Reis Vianna.
EXPEDIENTE
Órgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre
Rua Faria Santos, 258 CEP 90670-150 Porto Alegre - RS
Tel: (51) 3333 2140 - Fax: (51) 3333 7922
e-mail: [email protected] - home-page: www.appoa.com.br
Jornalista responsável: Jussara Porto - Reg. n0 3956
Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.
Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (51) 3318 6355
PRÓXIMO NÚMERO
INSTITUTO APPOA
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.
Comissão do Correio
Coordenação: Fernanda Breda e Norton Cezar Dal Follo da Rosa Júnior
Integrantes: Ana Laura Giongo, Ana Paula Stahlschmidt, Gerson Smiech Pinho,
Márcia Lacerda Zechin, Marcia Helena de Menezes Ribeiro,
Marta Pedó, Mercês Gazzi e Robson de Freitas Pereira.
S U M Á R I O
EDITORIAL
NOTÍCIAS
1
3
SEÇÃO TEMÁTICA
4
INFÂNCIA E DISCURSO EM SCHREBER
Sonia Mara Moreira Ogiba
SCHREBER (NÃO) É UM LIVRO
Ester Trevisan
UMA PARANÓIA FREUDIANA
Maria Cristina Poli
UMA QUESTÃO PRELIMINAR DE
J. LACAN: RUPTURAS E ALGUMAS
CONSEQUÊNCIAS CLÍNICAS
Alfredo Gil
N° 181 – ANO XVI
JULHO – 2009
4
15
26
33
SEÇÃO DEBATES
42
LIÇÕES DE STONEWALL A SÃO PAULO
Antonio Quinet
42
RESENHA
45
AS POSIÇÕES FEMININA E MASCULINA
NA PSICANÁLISE CONTEMPORÂNEA
Roséli Maria Olabarriaga Cabistani
45
AGENDA
48
RELENDO FREUD:
“O CASO SCHREBER”
ISSN 1983-5337
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Daniel Paul Schreber - APPOA - Associação Psicanalítica de Porto