Resumos Literários – Conhecimento Específico
Os Números – Georges Ifrah
Os Números
A história de uma grande invenção
Georges Ifrah
Onde e quando esta fantástica
aventura da inteligência humana começou?
Na Ásia, na Europa ou em algum lugar na
África? Na época do homem de CroMagnon, há trinta mil anos? Ou no tempo
do homem de Neandertal, há quase
cinquenta milênios? Ou ainda há cem mil
anos, talvez quinhentos mil, ou até, por que
não, háum milhão de anos? Não sabemos
de nada. O acontecimento se perde na
noite dos tempos pré-históricos, e dele não
resta hoje traço algum.
Erigida sem dúvida sobre bases
empíricas, a invenção dos números deve ter
correspondido a preocupações de ordem
prática e utilitária. Aqueles que guardavam
rebanhos de carneiros ou de cabras, por
exemplo, precisavam ter certeza de que, ao
voltar do pasto, todos os animais tinham
entrado no curral. Os que estocavam
ferramentas, ou armas, ou que mantinham
reservas alimentares para atender a uma
vida comunitária, deviam estar aptos a
verificar se a disposição dos víveres, armas
ou instrumentos era idêntica à que eles
haviam deixado anteriormente.
Tudo começou com este artifício
conhecido como correspondência um a um,
que confere, mesmo aos espíritos mais
desprovidos, a possibilidade de comparar
com facilidade duas coleções de seres ou de
objetos, da mesma natureza ou não, sem
ter de recorrer à contagem abstrata. Mas
este artifício do espírito não oferece apenas
um meio de estabelecer uma comparação
entre dois grupos: ele permite também
abarcar vários números sem contar nem
mesmo nomear ou conhecer as quantidades
envolvidas.
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Foi sem dúvida graças a este princípio
que, durante milênios, o homem préhistórico pôde praticar a aritmética antes
mesmo de ter consciência e de saber o que
é um número abstrato. Ao contrário da
percepção direta dos números, a contagem
não é uma aptidão natural. Já observamos
que certas espécies animais são mais ou
menos dotadas de uma aparente sensação
numérica, o que não implica que elas
saibam contar como nós. Pelo que
sabemos, a contagem é, com efeito, um
atributo exclusivamente humano: diz
respeito a um fenômeno mental muito
complicado, intimamente ligado ao
desenvolvimento da inteligência.
São necessárias três condições
psicológicas para que um homem saiba
contar e conceber os números no sentido
em que os entendemos:
a) ele deve ser capaz de atribuir um
“lugar” a cada ser que passar diante
dele;
b) ele deve ser capaz de intervir para
introduzir na unidade que passa a
lembrança de todas as que a
precederam;
c) ele dever saber conceber esta sucessão
simultaneamente;
Para permitir um progresso decisivo na
arte do cálculo abstrato, a compreensão dos
números exige então sua “classificação em
um sistema de unidades numéricas
hierarquizadas
que
se
encaixavam
consecutivamente uma nas outras”.
Foi exatamente graças aos seus dez
dedos que o ser humano adquiriu
gradualmente esses elementos. E não é por
acaso que nossos alunos ainda hoje
aprendem a contar deste modo ou que nós
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também, às vezes, recorremos a esses
gestos para reforçar nosso pensamento.
A partir do momento em que o homem
teve acesso à abstração dos números e
aprendeu a distinção sutil entre o número
cardinal e o número ordinal, ele retomou
seu antigos “instrumentos” (pedras,
conchas, pauzinhos, terços de contas,
bastões entalhados, nós de cordas etc.).
Mas desta vez passou a considerá-los sob o
ângulo da contagem. Portanto, de simples
instrumentos materiais eles tornaram-se,
assim, verdadeiros símbolos numéricos,
bem mais cômodos para assimilar, guardar,
diferenciar ou combinar números inteiros.
Foi então que o ser humano se
defrontou
com
um
problema
aparentemente impossível de ser resolvido:
como designar (concretamente, oralmente
ou, mais tarde, por escrito) números
elevados com o mínimo de símbolos
possível?
Em certas regiões da África ocidental,
há relativamente pouco tempo, os pastores
tinham um costume bastante prático para
avaliar um rebanho. Eles faziam os animais
passarem, em fila, um a um. Após a
passagem do primeiro enfiavam uma
concha num fio de lã branca, após o
segundo outra concha, e assim por diante
até dez. Nesse momento desmanchava-se o
colar e se introduzia uma concha numa lã
azul, associada às dezenas. E se recomeçava
a enfiar conchas na lã branca até a
passagem do vigésimo animal, quando se
introduzia uma segunda concha no fio azul.
Quando este tinha, por sua vez, dez
conchas, e cem animais haviam sido
contados, desfazia-se o colar das dezenas e
enfiava-se uma concha numa lã vermelha,
reservada desta vez para as centenas. E
assim por diante até o término da contagem
dos animais. Para duzentos e cinquenta e
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oito animais, por exemplo, haveria oito
conchas de lã branca, cinco azuis e duas
vermelhas.
Nem todas as civilizações resolveram
do mesmo modo o problema da base. A
base não foi a única referência do homem
através dos tempos. Alguns povos
adquiriram o hábito de agrupar os seres e
os objetos por feixes de cinco. Já outros
povos preferiram adotar uma base
vintesimal: eles se habituaram a agrupar
por vintenas e potências de 20 os seres e
objetos enumerados.
Muito mais difundida é a contagem
duodecimal, que, se tivesse evoluído,
poderia ter dado origem a uma numeração
completa de base doze, o que nos teria
dado, como já vimos, um sistema
certamente mais cômodo que a nossa
numeração decimal, sendo o número doze
divisível ao mesmo tempo por 2,3,4 e 6.
Esta numeração foi empregada em antigos
sistemas comerciais, dos quais temos o
testemunho nas nossas dúzia e grosa (dúzia
de dúzias), que ainda conservamos para os
ovos e as bananas, por exemplo.
Maravilha de mobilidade e de eficácia,
a mão do homem é o mais antigo e
difundido dos acessórios de contagem e de
cálculo para os povos através dos tempos. É
a primeira “máquina de calcular” de todos
os tempos, seguramente mais prática do
que seria, para um polvo, o conjunto de
seus oito tentáculos.
Podemos, assim, imaginar como,
durante séculos, homens que não
dispunham de nosso cálculo moderno, feito
por algarismos “arábicos”, foram capazes,
graças à memória e aos múltiplos recursos
dos dedos da mão, de soltar sua imaginação
para eliminar barreiras.
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Ao desembarcar na América do Sul sob
a direção de Pizarro, no início do século XVI,
os conquistadores espanhóis encontraram
um vasto império, com quase quatro mil
quilômetros de norte a sul, ocupando mais
de cem milhões de hectares e abarcando os
atuais territórios da Bolívia, do Peru e do
Equador. A civilização inca, cujas origens
remontam aparentemente ao inicio do
século XII de nossa era, chegara então a seu
apogeu.
Este alto grau de cultura e esta
prosperidade parecem à primeira vista
ainda mais espantosos considerando que os
incas não conheciam nem a roda, nem a
tração animal e nem mesmo a escrita no
sentido em que a entendemos hoje.
Mesmo assim, é possível explicar
parcialmente tal êxito: eles mantiveram
arquivos e uma contabilidade muito precisa,
graças ao uso de um sistema bastante
elaborado de cordões em nós. Denominado
quipo ou quipu (oriundo de uma palavra
inca que significava “nó”).
Estes quipus preenchiam funções
bastante variadas, tendo a cor dos cordões,
o número e a posição relativa de nós. Além
disso, o tamanho dos agrupamentos e seu
espaçamento tinham significações bastante
precisas. Sua utilização principal era na
contabilidade, uma vez que o sistema
correspondente se fundava numa base
decimal.
Estas
cordas
de
nós,
cuidadosamente conservadas para guardar
na
memória
os
resultados
das
enumerações, constituíam assim um
precioso instrumento de estatística em
todos os domínios da vida do império. O
quipu era tão simples e precioso que seu
uso persistiu durante muito tempo no Peru,
na Bolívia e no Equador. Parece que ainda
em
meados
do
século
passado,
principalmente nos altiplanos peruanos, os
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pastores consignavam o número dos
animais sob sua guarda por meio de quipus.
O processo das cordinhas com nós não
foi o único a atender à necessidade de
memorização dos números. O método mais
universalmente comprovado na história da
“contagem” além de ser o mais antigo, é o
do osso ou do pedaço de madeira
entalhado. Os primeiros testemunhos
arqueológicos conhecidos desta prática
datam do período denominado pelos
especialistas
em
pré-história
como
aurignacense (35000 a 20000 a.C.), e são
praticamente contemporâneos do homem
de Cro-Magnon.
Trata-se de inúmeros ossos, cada um
com uma ou várias séries de entalhes
regulamente espaçados, encontrados em
sua maior parte na Europa. Técnica
primitiva e sem futuro, dir-se-á. Primitiva
sim, mas sem futuro certamente não, pois
ela chegou até nossos dias sem alteração,
ao longo de milhares de anos de evolução,
de história e de civilizações. Sem o saber,
nossos ancestrais tinham realizado, há mais
de trinta mil anos, a invenção que bateria
um dos recordes de longevidade. Nem a
roda é tão antiga, e só o uso do fogo pode
com ela rivalizar.
No início do século passado, tanto na
França quanto na Suíça e na Alemanha,
esses mesmos bastões entalhados ainda
substituíam os livros de contabilidade e os
compromissos por escrito. Nos mercados
públicos prestavam-se como instrumento
de contabilidade a crédito. Também
serviam como garantia dos contratos ou
para comprovar a entrega de uma ou
diversas mercadorias.
Outro método concreto, também
universalmente testado, desempenhou um
papel ainda mais importante na história da
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aritmética e da contabilidade: é o dos
“montes de pedras” (ou dos agrupamentos
de pauzinhos, conchas, frutos duros etc.).
No início, portanto, este método é um dos
mais primitivos, pois como a prática mais
rudimentar do entalhe, ele marca por assim
dizer, o “grau zero” de qualquer técnica do
número: oferece igualmente um sistema de
“contabilidade silenciosa” que não exige
nenhuma memória nem conhecimento
abstrato dos números, fazendo intervir
unicamente o princípio da correspondência
um a um.
As pedras estão particularmente na
origem dos ábacos e dos contadores
mecânicos. Estes instrumentos que o
homem inventou no dia em que precisou
fazer cálculos cada vez mais complicados e
que tanto usou quando ainda não dispunha
do cálculo escrito por meio dos algarismos
“arábicos”.
Para os povos ocidentais, os ábacos
mais correntes foram tábuas ou pranchas
com divisões em diversas linhas ou colunas
paralelas separando as diferentes ordens de
numeração. Para representar números ou
para efetuar operações, ali se colocavam
pedras ou fichas valendo uma unidade
simples cada uma. Peças que os gregos
chamavam de psephoi e os romanos, de
calculi.
No ábaco dos romanos antigos, cada
uma dessas colunas enfileiradas simbolizava
geralmente uma das potências de 10.
Partindo da direita para a esquerda, a
primeira coluna era associada às unidades,
a seguinte, às dezenas, a terceira, às
centenas, a quarta, ao milhar, e assim por
diante.
Na China popular, o suan pan (nome
chinês do contador) tem até hoje um uso
quase universal, sendo encontrado tanto
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nas mãos do vendedor ambulante que não
sabe ler nem escrever, quanto nas do
comerciante, do contador, do banqueiro, do
hoteleiro, do matemático ou do astrônomo.
E
mais:
os
japoneses,
que
se
“informatizaram” consideravelmente e
representam o concorrente mais sério do
mercado americano em matéria de
fabricação de calculadoras, continuam a
considerar o soroban (nome japonês do
contador) como o principal instrumento
usual de cálculo e como a “bagagem”
indispensável de que deve dispor todo
escolar, vendedor ambulante ou funcionário
público.
Também na URSS o stchoty (nome
russo do contador) ainda impera ao lado
das modernas caixas registradoras, e
costuma presidir ao cálculo dos preços nas
lojas e nos grandes estabelecimentos do
Estado (hotéis, grandes lojas, bancos etc.).
Diante desses exemplos, podemos
afirmar, portanto, que dois acontecimentos
foram, na história da humanidade, tão
revolucionários quanto o domínio do fogo,
o desenvolvimento da agricultura ou o
progresso do urbanismo e da tecnologia: a
invenção da escrita e a invenção do zero e
dos algarismos denominados “arábicos”. Do
mesmo modo que os primeiros, elas
modificaram completamente a existência
do ser humano.
A escrita foi inventada não apenas para
responder
às
necessidades
de
representação visual e de memorização do
pensamento, mas também - e sobretudo para anotar a linguagem articulada. Quanto
à segunda invenção, ela surgiu para permitir
uma notação perfeitamente coerente de
todos os números e para oferecer a
qualquer um, a possibilidade de efetuar
qualquer tipo de cálculo sem ter de recorrer
a acessórios como a mão, o contador
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mecânico ou a tábua de contar.Tal
surgimento teve início há mais de cinco mil
anos em certas sociedades avançadas e em
plena expansão, onde foi preciso fixar
operações econômicas excessivamente
numerosas e variadas para serem confiadas
apenas à memória humana. Em meados do
quarto milênio a.C., os responsáveis pelas
antigas civilizações suméria e elamita
elaboraram um sistema de contagem que
lhes permitiu vencer a dificuldade por certo
tempo.
Vejamos agora uma informação
relevante sobre o sistema de bases:
estamos por volta do ano 3500 a.C., perto
do golfo Arábico em duas regiões vizinhas
entre si, situadas respectivamente no
Iraque e no Irã: as terras de Summer e Elam.
Estas civilizações são equivalentes, mas
rivais. Já são avançadas e bastante
urbanizadas. Contando sobre a base
sessenta e tendo a dezena como unidade
auxiliar para descarga da memória, os
sumérios decidiram representar:
a) uma unidade simples por um pequeno
cone;
b) uma dezena por uma bolinha;
c) sessenta unidades por um grande cone;
d) o número 600 (= 60 x 10) por um
grande cone perfurado;
e) o número 3.600 (= 60 x 60 = 602) por
uma esfera;
f)
e o número 36.000 (= 602 x 10) por uma
esfera perfurada.
Partindo desses calculi, representam-se
números intermediários reproduzindo cada
um deles tantas vezes quanto necessário.
Para 223, por exemplo, tomam-se três
grandes cones, quatro bolinhas e três
pequenos cones. Os elemitas, por sua vez,
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contavam por dezenas no caso dos números
usuais e de acordo com um “compromisso”
entre as bases dez e sessenta para as
unidades de ordem superior. Eles também
utilizavam um pequeno bastão para uma
unidade simples, uma bolinha para 10, um
disco para 100, um cone para 300 (= 60 x 5)
e um grande cone perfurado para 3.000 (=
300 x 10 = 60 x 5 x 10).
Para representar o numero 223,
precisavam, assim, de dois discos, duas
bolinhas e três bastões.
Os egípcios
também inventaram uma escrita e um
sistema de numeração escrita. Foi por volta
do ano 3000 a.C., isto é, mais ou menos na
mesma época de Elam e da Mesopotâmia.
A própria numeração hieroglífica egípcia é
igualmente diferente da dos sumérios, e
isto não apenas no plano gráfico, mas
também de um ponto de vista matemático:
a primeira é fundada numa base
estritamente decimal, enquanto a outra
repousa sobre uma base sexagesimal. Os
suportes materiais empregados também
são diferentes. Os sumérios fazem seus
algarismos e signos de escrita imprimindoos ou traçando-os quase exclusivamente
sobre pedaços de argila, enquanto os
egípcios reproduzem os seus gravando ou
esculpindo em monumentos de pedra, por
meio do cinzel e do martelo; ou ainda
traçando-os em lascas de rocha, cacos de
cerâmica ou em folhas de papiro, com o
auxílio de um caniço de ponta esmagada,
mergulhado numa matéria colorante.
Os algarismos e os hieroglifos egípcios
nasceram, desta forma, nesse lugar e são
produto apenas da civilização egípcia. Onze
ou doze séculos após o Egito faraônico,
outra civilização avançada se viu também
em condições iniciais favoráveis à invenção
dos algarismos e da escrita – a que se
desenvolveu na ilha de Creta entre 2200 e
1400 aproximadamente antes de nossa era,
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e que os arqueólogos chamam de civilização
minóica (do nome do legendário rei Minos,
o primeiro soberano da ilha, segundo a
mitologia grega).
No início do segundo milênio antes da
era cristã, os cretenses passaram de fato
por uma transformação radical de seu
modo de vida tradicional, num quadro
social e político novo revelado pela
amplitude das construções desta época e
particularmente pela imponente edificação
dos primeiros palácios fortificados de
Cnosso, Phaestos e Mallia.
O artesanato, portanto, (fabricação de
jóias, objetos de arte, vasos, armas etc.)
toma um impulso considerável, o comércio
floresce e o desenvolvimento das riquezas é
cada vez maior. Para isto, os cretenses
disporão de três tipos diferentes de escrita:
a) a hieroglífica, cujos signos serão
imagens mais ou menos realistas
representando seres ou objetos de todo
tipo;
b) a linear A, que derivará da primeira,
mas cujos signos serão desenhos muito
mais esquemáticos;
c) enfim, a chamada linear B, que
resultará de um remanejamento da
precedente e que servirá para anotar
não mais a língua minóica, mas um
dialeto grego arcaico (o micênico).
A primeira será empregada quase
exclusivamente nos palácios, do ano 2000
até 1600 a.C. aproximadamente. Já a
segunda será atestada em Creta, entre 1700
e 1400 a.C., e se difundirá tanto nos meios
administrativos ou religiosos quanto junto à
comunidade. Quanto à última, ela será por
sua vez utilizada entre 1350 e 1200 a.C.,
após o desenvolvimento definitivo da
civilização minóica e depois da invasão da
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ilha pelos micenianos, difundindo-se não
apenas em Creta, mas também no
continente helênico.
Do outro lado do mundo, trinta e cinco
séculos mais tarde, a civilização asteca
alcançou os mesmos resultados. Tendo-se
desenvolvido no México, entre os séculos
XIV e XVI de nossa era, antes da chegada
dos conquistadores espanhóis, ela também
se encontrou em condições iniciais
inteiramente análogas, atingindo também
uma escrita e um sistema de algarismos.
É o que sabemos graças a um certo
número de manuscritos aos quais os
especialistas dão o nome de codex, cuja
maior parte foi redigida após a conquista
espanhola. A escrita asteca era figurativa:
seus caracteres eram desenhos realistas
reproduzindo seres e objetos de todo tipo.
Ela constitui, entretanto, uma espécie de
compromisso
entre
uma
notação
ideográfica e uma notação fonética.
É impressionante observar como, em
suas buscas e tentativas muito distantes no
tempo e no espaço tomaram às vezes os
mesmos caminhos e desembocaram em
resultados inteiramente similares. Mas seria
absurdo pensar que estes povos se
copiaram uns aos outros: como vimos, eles
simplesmente foram colocados diante de
condições iniciais rigorosamente idênticas.
O que explica por que sociedades sem
nenhum contato entre si tenham chegado,
simultaneamente ou em épocas diferentes,
a resultados semelhantes: domínio do fogo,
descoberta dos números, progresso do
urbanismo
e
da
tecnologia,
desenvolvimento da agricultura, tratamento
e liga dos metais, invenção da roda ou do
arado.
Influenciados provavelmente pelos
micênicos, os gregos utilizaram no início
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uma notação numérica com as mesmas
características do sistema cretense. Assim
como neste sistema, ela foi decimal e
aditiva e só atribuiu signo gráfico especial à
unidade e a cada uma das primeiras
potências de sua base.
Esta evolução marcou, no entanto,
uma regressão na história do cálculo
propriamente dito. Ao atribuir um algarismo
especial apenas à unidade e a cada potência
de sua base, a numeração grega devia
permitir no início, como a numeração
egípcia, a execução das operações por
escrito. Mas, ao introduzir algarismos
suplementares na sua lista inicial, os gregos
a privaram de qualquer possibilidade
operatória, o que levou os calculadores
gregos a recorrer a partir de então apenas
às “tábuas de contar”.
Como os signos da numeração
precedente, os algarismos romanos não
permitiram que seus usuários fizessem
cálculos.
Assim
como
os
gregos,
“acrofônicos”, não se destinavam a efetuar
operações aritméticas, mas a fazer
abreviações para anotar e reter os números.
É por isso que os contadores romanos (e,
depois deles, os calculadores egípcios da
Idade Média) sempre recorreram a ábacos
de fichas para a prática do cálculo. Apesar
disso, os romanos acabaram complicando
esse sistema, introduzindo nele a regra
segundo a qual todo signo numérico
colocado à esquerda de um algarismo de
valor superior é dele abatido.
Ficam claras, então, a complexidade e a
insuficiência da numeração romana, que, ao
recorrer às convenções e aos princípios
mais variados, acabou não tendo coesão
nem qualquer possibilidade operatória. Não
há dúvida de que este sistema representou
uma nítida regressão em relação a todas as
numerações da história.
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No início, as numerações escritas
foram, portanto, muito primitivas. Baseadas
em modelos concretos arcaicos, elas
exigiam
frequentemente
repetições
exageradas de símbolos idênticos. A
numeração hieroglífica egípcia, por
exemplo, só atribuía algarismo particular a
estes números:
1 10 100 1.000 10.000 100.000
1.000.000
E, como ela repousava sobre o
princípio aditivo, contentava-se em repetir
cada um desses algarismos tantas vezes
quantas fossem necessárias. Assim, para o
número 3.577, por exemplo, era preciso
recorrer a vinte e dois grafismos,
reproduzindo três vezes o algarismos do
milhar, cinco vezes o da centena, sete vezes
o da dezena e sete vezes o da unidade. Ora,
um sistema desses deixava muito a desejar
para aqueles que, como os escribas
egípcios, desejavam ganhar tempo.Por este
motivo, a invenção do alfabeto foi decisiva
na história da civilização, pois constituiu o
derradeiro aperfeiçoamento da escrita.
Forma superior de transcrição da fala,
adaptável às inflexões de qualquer
linguagem articulada, ela ofereceu, de fato,
a possibilidade de escrever todas as
palavras de uma língua com um pequeno
número de signos fonéticos simples
denominados letras.
Esta descoberta fundamental se deu
por volta do ano 1500 a.C., próximo da
costa sírio-palestina pelos fenícios, que,
com o propósito de abreviar, buscaram
romper com as escritas complicadas do tipo
egípcio ou assírio-babilônico então em uso
no Oriente Próximo. Em virtude das
múltiplas relações que mantinham com os
mais diversos povos, estes grandes
mercadores
e
hábeis
navegadores
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asseguraram, para a sua invenção, um
grande sucesso e uma difusão considerável.
Com o uso das letras alfabéticas,
enquanto verdadeiros signos de numeração
surgiu pouco a pouco, a possibilidade de
atribuir um valor numérico a cada palavra
ou grupo de palavras, extraindo daí toda
uma prática poético místico religiosa
denominada pelos gregos e gnósticos de
isopsefia e de gematria pelos rabinos e
cabalistas.
Ao fundar o processo da transposição
numérica das palavras, a invenção dos
alfabetos numéricos ofereceu farta matéria
para os mais fantasistas devaneios
ocultistas
ou
mágicos,
situando-se
consequentemente na origem de grande
quantidade de práticas, crenças e
superstições.
Por meio de seus dez algarismos de
base (1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 0), nossa
numeração escrita atual permite não
apenas uma representação simples e
perfeitamente racional de qualquer número
(por maior que seja), mas ainda uma prática
muito cômoda de todas as operações
aritméticas. Assim, do ponto de vista
intelectual, este sistema é nitidamente
superior
a
todas
as
numerações
precedentes.
Isto não se deve de modo algum à
natureza de sua base. Numerações
equivalentes poderiam evidentemente ser
construídas sobre as bases dois, oito, doze,
vinte ou sessenta, com as mesmas
vantagens que este sistema decimal. A
superioridade e a engenhosidade de nossa
numeração moderna provêm na realidade
da reunião do princípio de posição e do
conceito denominado zero.
Quando se aplica o principio de
posição, há um momento em que é preciso
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dispor de um signo gráfico especial para
representar as unidades que estão faltando.
Pouco a pouco, assim, perceber-se-á que
este “nada” deve ser obrigatoriamente
figurado por “alguma coisa”, para escapar
da confusão nas representações de
números.
Este “alguma coisa” que não significa
“nada”, ou melhor, este signo que serve
graficamente para marcar a ausência das
unidades de uma certa ordem será
finalmente o zero. Até então, apenas três
povos conseguiram descobrir o princípio de
posição: os babilônios, os chineses e os
maias, que foram assim os primeiros da
história a poder representar qualquer
número, por maior que fosse, por meio de
uma quantidade bastante limitada de
algarismos de base. Contudo, nenhuma
destas civilizações foi capaz de tirar
proveito da descoberta fundamental.
No início da era cristã, os chineses
descobriram, por sua vez, a regra de
posição e a empregaram, segundo uma
base decimal. Não avançaram mais que os
outros, pois, em vez de atribuir signos
diferentes às suas nove unidades simples,
eles conservaram sua notação ideográfica.
Entre os séculos III e IV da nossa era,
os maias refizeram a mesma descoberta,
aplicando-se desta vez à base vinte. Eles
também se contentaram em representar
suas unidades significativas por meio do
velho princípio de adição, a partir de um
algarismo particular valendo uma unidade e
de um outro, valendo 5.
Dois desses três povos, os babilônios e
os maias, inventaram em seguida o zero
(servindo este signo particular para marcar
a ausência das unidades de uma certa casa
absolutamente indispensável, quando se
aplica rigorosamente a regra numeral
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precedente).
Graças
a
isto,
eles
conseguiram
eliminar
qualquer
ambiguidade na escrita dos números, mas,
ainda assim, não souberam tirar todo o
proveito possível desta descoberta capital.
Apesar de suas descobertas, nem os
babilônios, nem os chineses, nem os maias
foram capazes de dar o passo decisivo rumo
ao derradeiro aperfeiçoamento da notação
numérica.
A que povo se deve atribuir a honra
desta descoberta tão importante quanto a
do fogo, da roda ou da máquina a vapor – a
da
numeração
moderna?
Segundo
historiadores do início do século, ela se
deveria aos matemáticos da Grécia antiga.
De acordo com eles, nossa numeração
escrita atual teria tido ali a sua origem, no
início da era cristã. Do porto de Alexandria
ela teria, em seguida, passado para Roma
na época imperial e, um pouco mais tarde,
para o Oriente Próximo e para a Índia por
via comercial. Esta é um explicação
sedutora, mas sem nenhum fundamento
histórico, pois, até hoje, nenhum traço do
emprego desse sistema foi comprovado
junto aos gregos antigos.
De fato, foi no norte da Índia, por volta
do século V da era cristã, que nasceu o
ancestral de nosso sistema moderno e que
foram estabelecidas as bases do cálculo
escrito tal como é praticado hoje em dia. A
partir desta época, o sistema deveria
conhecer um considerável sucesso junto aos
matemáticos e astrônomos hindus, que o
empregaram em sua maioria até uma data
relativamente recente.
A partir do século VI, ele se expandiu
até fora das fronteiras da Índia, sendo
largamente empregado pelos gravadores de
inscrições em pedra das civilizações khmer
(Camboja), cham (sudoete do Vietnã),
javanesa etc., para a expressão de suas
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datas. A ciência hindu não exerceu
diretamente sua influência na Europa. Foi
preciso mais de um milênio para que estas
novidades
revolucionárias
fossem
definitivamente aceitas pelo mundo
ocidental.
Até o final do século XI, os povos
cristãos mergulharam na maior desordem
política, na recessão econômica e no
obscurantismo. A Europa custou a se
recuperar da queda do Império Romano e
das invasões bárbaras. Seus conhecimentos
científicos eram elementares, para não
dizer inexistentes. O ensino da “aritmética
teórica”, em particular, buscava suas
principais informações numa obra atribuída
ao latino Boécio (séc. V d.C.), que por sua
vez se inspirou amplamente numa obra
matemática de qualidade medíocre
atribuída ao grego. Nicômaco de Gerasa
(séc. II d.C.). A aritmética prática, por seu
lado, consistia essencialmente no uso da
numeração arcaica do povo romano, tanto
no modo de contar com os dedos quanto na
prática de operações através de pedras ou
de fichas nos velhos Abacus, também
legados pela civilização romana.
Nesta escuridão quase total, os
ocidentais tinham perdido até a memória
das artes e das ciências. Com exceção talvez
de Carlos Magno, os príncipes europeus
desta época se preocupavam muito pouco
com a cultura e nem procuraram
salvaguardar os raros tesouros antigos que
ainda subsistiam.
A célebre biblioteca de Alexandria, a
mais rica da antiguidade grega, foi pilhada e
destruída duas vezes: uma primeira no
século IV por vândalos cristãos e outra,
paradoxalmente, por muçulmanos fanáticos
do século VII. Vários manuscritos originais
vieram a desaparecer e várias obras-primas
da literatura e da ciência gregas teriam sido
Resumos Literários – Conhecimento Específico
Os Números – Georges Ifrah
perdidas para a posteridade, se já não
tivessem sido recolhidas e traduzidas em
língua árabe. Se mais tarde Santo Tomás de
Aquino pôde estudar e compreender a
importância da obra do filósofo grego
Aristóteles, é preciso lembrar que foi
sobretudo graças às obras do árabe Ibn
Roshd, ou Averroès, que isso foi possível.
Os árabes se interessavam também
pelas culturas orientais. Com relação aos
números, primeiro eles se dedicaram às
numerações alfabéticas grega e judia, cujo
uso foi adaptado às 28 letras de seu próprio
alfabeto.Quando eles tiveram acesso às
descobertas hindus, foi como uma
iluminação.
Como proclamava com
entusiasmo o autor de uma obra árabe da
época, este sistema “é o método mais
resumido e prático, mais fácil de entender e
mais cômodo de aprender. Ele comprova,
sem dúvida, um espírito penetrante, um
belo talento criador e a superioridade de
discernimento e de gênio inventivo dos
hindus”.
Como o império arábico-muçulmano
se desagregou muito cedo, no século IX, o
norte da África e a Espanha já não faziam
mais parte do califado de Bagdá. Assim
mesmo, as relações entre as diferentes
regiões ocupadas pelos povos de língua
árabe não foram rompidas, sobretudo por
causa das peregrinações regulares a Meca,
do intercâmbio comercial, das guerras, das
migrações de populações e das idas e
vindas de inúmeros viajantes individuais.
Uma vez conhecida pelos árabes, a
aritmética hindu – graças às múltiplas
relações desses povos – ganhou também
rapidamente todos os “países irmãos” do
Magreb e da Espanha.
Quando se viram diante da numeração
e dos métodos de cálculo vindos da Índia,
os árabes tiveram suficiente presença de
espírito para apreciar suas vantagens,
reconhecer sua superioridade e adotá-los.
10
Ao contrário, os cristãos da Europa
ficaram tão agarrados a seus sistemas
arcaicos e foram tão reticentes diante da
novidade que foi preciso esperar durante
séculos, até que o triunfo do “algoritmo”,
como era então denominado o cálculo
escrito, fosse finalmente total e definitivo.
A partir do final do século XI, a
atividade
dos
tradutores
e
dos
compiladores de obras árabes, gregas ou
hindus floresceu na Espanha. Os contatos
culturais entre os dois mundos passaram a
ser ali cada vez mais frequentes, com o
desembarque cotidiano de uma vaga
considerável de europeus desejosos de se
instruir em matemática, astronomia,
ciências naturais e filosofia.
Lenta mas irremediavelmente, este
período
(séc
XII-XIII)
trouxe
ao
conhecimento da Europa as obras de
Euclides,
Ptolomeu,
Aristóteles,
alKhowarizmi, al-Biruni e de muitos outros
ainda. Foi a vez dos cristãos traduzirem em
latim tudo o que lhes chegava às mãos.
Tanto uns como outros, cruzados do sítio de
Jerusalém ou sábios de Toledo, assinavam,
deste modo, num prazo mais ou menos
curto a condenação à morte do abacismo.
De volta ao lar, eles não esconderam
seu entusiasmo pelos novos métodos de
cálculo, muito mais prático que o processo
tradicional, que continuavam a não
entender. Entusiasmo que foi, aliás,
comunicado a seus discípulos cada dia mais
numerosos.
A partir de então, o cálculo e a ciência
moderna puderam desenvolver-se sem
entraves. Eles acabavam de abater para
sempre seu temível e resistente inimigo.
Bibliografia:
Os Números – História de uma grande
invenção
Tradução: Stella M. de Freitas Senra
Editora Globo – 11ª edição
2005
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Os Números A história de uma grande invenção