Márcio Thomaz Bastos assume defesa da política de
cotas raciais
quinta-feira, 7 / abril / 2011 by Suzana Varjão
Foto: Antônio Cruz/ ABr
O ex-ministro acatou sugestão de Eloi Ferreira e defenderá sistema de cotas
Por Suzana Varjão
Um dos mais destacados juristas brasileiros, Márcio Thomaz Bastos acaba de ser
admitido como defensor da política de reserva de vagas para negros nas unidades de
ensino superior do País. Ao adotar o sistema de cotas, a Universidade de Brasília (UnB)
foi contestada pelo Partido Democratas (DEM), que ajuizou ação no Supremo Tribunal
Federal (STF), arguindo a inconstitucionalidade da medida. O ex-ministro da Justiça
pediu para ser ouvido sobre o assunto no STF, que acatou a solicitação.
A UnB decidiu adotar o sistema de cotas em 2004, porque “a universidade brasileira é
um espaço de formação de profissionais de maioria esmagadoramente branca”, e, “ao
manter apenas um segmento étnico na construção do pensamento dos problemas
nacionais, a oferta de soluções se torna limitada”, como registrado no site da instituição.
Entretanto, o DEM entrou com uma Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF), alegando violação de princípio constitucional.
AMICUS CURIAE – A ADPF 186 está para ser julgada pelo Supremo Tribunal
Federal, mas a Associação Nacional dos Advogados Afrodescendentes (ANAAD),
representada, gratuitamente, pelo escritório de Márcio Thomaz Bastos, solicitou a
admissão formal de sua intervenção no processo, na qualidade de Amicus Curiae. Um
dos principais articuladores da estratégia, o presidente da Fundação Cultural Palmares
(FCP), advogado Eloi Ferreira de Araujo, comemorou o deferimento do pedido.
O Amicus Curiae (“Amigo da Corte”, em latim) está inserido na legislação brasileira –
mais precisamente, no parágrafo 2º, artigo 7º da Lei 9.868, de 1999. Resumidamente,
consiste numa figura jurídica que, não fazendo parte de determinado processo, solicita
audiência em julgamentos de grande relevância para a sociedade, com o intuito de
prover os tribunais de informações sobre questões com grau elevado de complexidade,
como é o caso do sistema de cotas.
ARTICULAÇÃO – Carlos Alves Moura, advogado e ex-assessor da Secretaria
Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República,
acompanhou de perto o trabalho de articulação do então titular da SEPPIR, Eloi Ferreira
de Araujo, junto à ANAAD e ao jurista Márcio Thomaz Bastos. E também comemora o
resultado positivo da petição encaminhada ao ministro do STF e relator do processo,
Ricardo Lewandowski.
– Conseguir esse patrocínio de um dos maiores juristas do País é um ganho muito
grande para a causa, resume Moura.
Eloi Ferreira explica que a decisão de buscar o apoio de Thomaz Bastos deveu-se ao
risco de reversão do processo de inclusão da população descendente de africanos
escravizados nas universidades públicas brasileiras. Após a instituição da reserva de
vagas para negros, pela UnB, e do grande debate aberto a partir da adoção desta medida,
várias outras unidades aderiram ao sistema (ver quadro abaixo), aumentando
consideravelmente o número de afrodescendentes na rede de ensino superior do País.
ARGUMENTOS – Foi exatamente o impacto social provocado pela decisão do STF
que a ANAAD arguiu, para afirmar a relevância da matéria a ser julgada e justificar o
recurso do Amicus Curiae. Os efeitos negativos sobre as universidades que já adotam o
sistema de cotas e os matriculados e diplomados a partir deste critério de seleção são
algumas das consequências listadas pelos advogados, e que deverão ser levadas em
consideração pelos ministros do Supremo.
Para além do mérito da questão sob análise, a ANAAD questiona a validade do
instrumento jurídico empregado pelo DEM. Pela Lei 9.882/99 (artigo 4º, parágrafo 1º),
a ADPF só pode ser usada quando não há “qualquer outro meio eficaz de sanar a
lesividade”. Na petição, os advogados lembram que “à época da propositura da ação,
sustentava-se que a ADPF seria o único meio para questionar a constitucionalidade da
reserva de vagas por critérios raciais nas universidades”.
ESTATUTO – A partir, porém, da entrada em vigor do Estatuto da Igualdade Racial
(Lei 12.288/2010), houve “uma mudança relevante no cenário legislativo, quando
comparados o momento em que a ação foi proposta e o momento atual. As normas
sobre o tema mudaram de tal forma que a ADPF perdeu seu sentido original”,
argumentam. Se antes a política de reserva de vagas da UnB tinha como único norte a
Constituição Federal, o Estatuto, agora, é o seu referencial direto.
Mas é no capítulo sobre as “Razões de mérito” que se encontra o cerne do debate.
Demonstrando que, “a despeito das boas intenções normativas”, as estatísticas apontam
desequilíbrios gritantes entre negros e não-negros, argumenta-se que “a política que tem
como enfoque apenas a superação das distinções socioeconômicas não é suficiente para
resolver o antigo problema da discriminação e do preconceito”.
Chamando a atenção sobre a importância de não se confundir “a disctinctio necessária à
realização do princípio da igualdade de oportunidade com a discriminação odiosa
proibida pela norma constitucional”, o documento-manifesto lembra que “é tarefa do
Direito reconhecer critérios legítimos de distinção, equiparando condições desiguais”. E
sinaliza:
“Somente quando a igualdade formal se traduzir em igualdade real poderemos nos
orgulhar da consolidação da nossa democracia” (POCHMANN, em Retrato das
desigualdades de gênero e raça).
Foto: Suzana Varjão / FCP
O então titular da SEPPIR foi um dos principais articuladores da estratégia
Trechos da petição
Leia, aqui, alguns trechos da petição encaminhada pela Associação Nacional dos
Advogados Afrodescendentes (ANAAD) e deferida pelo Supremo Tribunal Federal
(STF).
“[...] Trata-se, a toda evidência, de uma política que busca a harmonia social, criando
condições para superar a cultura historicamente arraigada de preconceito contra o negro.
Nada tem a ver com incitação ao ódio, nem com segregação, como nos temores
projetados pelo anacronismo de certo tipo de pensamento conservador. Muito pelo
contrário. Odiosa é a discriminação fundada no preconceito racial, não os meios
legítimos, jurídicos e eficazes para combatê-la [...]”.
“[...] Estamos falando de pessoas que aguardam os resultados de um compromisso
histórico – o fim efetivo da desigualdade entre brancos e negros – e que sofrem as
consequências de um projeto inacabado [...]”.
“[...] A abolição não foi acompanhada por políticas capazes de acolher os libertos na
sociedade brasileira, depois de tantos anos segregados. Isso faz com que, até hoje,
descendentes de escravos sofram na pele – e por causa da cor de sua pele – as
consequências desse período [...]. Afinal, o estatuto de pessoas juridicamente livres não
garantiu uma transformação substancial na condição de excluídos dos antigos escravos”
[...].
“[...] É preciso finalmente que o mundo jurídico desperte para a consciência ética da
vulnerabilidade da condição social do negro” [...].
“[...] Mudar esse estado de coisas não é tarefa fácil. A transformação não aconteceu nem
acontecerá de um dia para o outro. Tampouco será fruto da mera passagem do tempo”
[...].
“[...] A discriminação positiva introduz tratamento desigual para produzir, no futuro e
em concreto, a igualdade. É constitucionalmente legítima, porque se constitui em
instrumento para obter a igualdade real” [...]
“[...] Não é a idéia biológica de ‘raça’ que autoriza, no caso, a distinção no acesso às
vagas do ensino superior, mas simplesmente a condição social mais vulnerável
associada ao negro pobre, vítima histórica de preconceito e discriminação [...]”.
“[...] Não é mais possível, neste estágio da evolução do pensamento jurídico, confundir
a disctinctio necessária à realização do princípio da igualdade de oportunidade com a
discriminação odiosa proibida pela norma constitucional [...]”.
“[...] O fenótipo pode ser objeto de uma distinção favorável, sem que caracterize ‘
racismo às avessas’, porque está associado ao fato de uma situação histórica de
marginalização em um país duramente marcado pela escravidão. Ser negro, no Brasil,
indica mais do que uma característica física – é também uma condição social [...]”.
“[...] O critério de distinção, no caso da reserva de vagas para negros, remete a uma
condição social de preconceito e discriminação identificável pelo fenótipo [...]”.
Márcio Thomaz Bastos
Márcio Thomaz Bastos vinculou, desde cedo, sua atividade profissional à militância
política. Trabalhou em quase mil julgamentos, quase sempre defendendo gratuitamente
acusados que não tinham condições de arcar com honorários advocatícios, tendo atuado
na acusação dos assassinos de Chico Mendes – um dos vários casos de grande
repercussão dos quais tomou parte.
Fundador e chefe de um dos mais respeitados escritórios de advocacia do País, deixou o
grupo em 2003, para ocupar o cargo de ministro da Justiça, destacando-se, dentre outros
feitos, pela reestruturação da Polícia Federal, pela aprovação da Emenda Constitucional
45 (Reforma do Poder Judiciário), pela defesa do Estatuto do Desarmamento e por ter
dado início à reestruturação do Sistema Brasileiro de Concorrência.
Recentemente, ao lado de profissionais liberais, fundou o Instituto de Defesa do Direito
de Defesa (IDDD). Dentre outras bandeiras de luta do movimento social brasileiro,
Márcio Thomaz Bastos defende o controle externo do judiciário e a ampliação do
sistema de penas alternativas.
ANAAD
A Associação Nacional dos Advogados Afrodescendentes (ANAAD) é uma
organização civil sem fins lucrativos, que tem por objetivo “incentivar o
desenvolvimento social, cultural, moral e educacional dos afrodescendentes”. Fundada
há 10 anos e sediada na cidade de Salvador (BA), congrega advogados, estudantes e
professores de Direito com ascendência africana e “ligados à causa da defesa dos
direitos humanos da comunidade negra”.
Dentre os princípios estabelecidos em seu Estatuto Social, estão “defender a valorização
das origens étnicas dos afrodescendentes, bem assim, seus valores culturais, políticos e
religiosos [...]”; e “desenvolver políticas e ações efetivas e afirmativas em defesa dos
direitos inerentes à cidadania, primordialmente, dos associados afro-descendentes, bem
assim, de todos os demais cidadãos”.
Os princípios registrados no Estatuto da entidade vêm se traduzindo em ações efetivas,
com a realização de cursos de capacitação para advogados afrodescendentes e
atendimento jurídico gratuito para africanos, afro-brasileiros e pessoas de baixa renda
em geral – o que confere à ANAAD a representatividade e a legitimidade exigidas pelo
Supremo Tribunal Federal para a admissão como “Amigo da Corte”.
Grande referência da política de valorização dos advogados afro-brasileiros, Sílvia
Cerqueira também colaborou para a iniciativa. Uma das fundadoras da Associação,
Cerqueira atua na ANAAD e preside a Comissão Nacional de Promoção da Igualdade
do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Sua liderança política
levou-a à segunda suplência do Senador Walter Pinheiro (PT-BA), também atento à
questão racial.
Ações afirmativas & Cotas
Ações Afirmativas são políticas públicas instituídas com o objetivo de promover a
ascensão de grupos socialmente vulneráveis, combatendo as desigualdades resultantes
de processos de discriminação negativa. A reserva de vagas para estudantes negros nas
universidades públicas do País é uma destas políticas, e está prevista na legislação
brasileira.
Foi a Lei 3.708/01 que institui o sistema de cotas para estudantes autodeclarados negros
ou pardos, reservando a este segmento um percentual de 40% das vagas das
universidades estaduais do Rio de Janeiro – o que passou a ser aplicado no Vestibular
de 2002 da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Estadual do
Norte Fluminense (UENF).
Mas foi a decisão da Universidade de Brasília (âmbito federal), de adotar o sistema, que
colocou o assunto no centro do debate nacional, provocando a adesão de outras
instituições e aumentando consideravelmente o número de estudantes negros na rede
pública de ensino superior do País. Hoje, os cotistas correspondem a 18,6% dos alunos
da UnB, o que equivale a quatro mil estudantes negros.
Universidades que adotam as cotas
Veja, abaixo, a relação de algumas das universidades brasileiras que têm programas de
ação afirmativa
Universidade de Brasília
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Universidade Estadual de Montes Claros
Universidade do Estado da Bahia
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Universidade Estadual do Norte Fluminense
Universidade Federal do Acre
Universidade Federal de Alagoas
Universidade Estadual da Paraíba
Universidade Federal da Bahia
Universidade Federal de Goiás
Universidade Federal do Espírito Santo
Universidade do Estado de Minas Gerais
Universidade Federal do Maranhão
Universidade Federal do Pará
Universidade Federal da Paraíba
Universidade Federal do Paraná
Universidade Federal de Pernambuco
Universidade Federal do Piauí
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Universidade Tecnológica Federal do Paraná
Centro Federal de Educação Tecnológica da Bahia
Universidade do Estado de Mato Grosso
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Universidade Estadual de Londrina
Universidade Federal de Santa Catarina
Universidade Federal de Juiz de Fora
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