Campinas, 28 de outubro a 3 de novembro de 2013 A matemática e o teatro da vida real Foto: Antonio Scarpinetti Região central de Campinas, uma das cidades pesquisadas pelo autor do estudo: ampla visão dos fenômenos urbanos MANUEL ALVES FILHO [email protected] ma maneira tradicional de se avaliar a qualidade de vida no meio urbano é considerar os indicadores econômicos a ele relacionados. Embora sejam muito importantes, esses dados não dão conta, sozinhos, de analisar um sistema tão complexo como uma cidade, principalmente quando ela apresenta grandes dimensões. Pensando nisso, o arquiteto e engenheiro Luca D’Acci desenvolveu algumas equações matemáticas capazes de mensurar o nível de qualidade urbana que contempla fatores complementares como sustentabilidade, ecologia e bem-estar psicológico dos moradores, entre outros. Assim, o pesquisador chegou a uma ferramenta capaz de personalizar a visão sobre um dado espaço. A proposição tem tido significativa repercussão no meio científico, tendo sido citada em artigos, por exemplo, pela Agência Espacial Americana (Nasa) e pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT Technology Review). D’Acci realizou os estudos de pós-doutorado na Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC) da Unicamp, sob a supervisão do professor Leandro Medrano. Recentemente, ele atuou como pesquisador assistente na University of Strathclyde, em Glasgow (Escócia), onde deu sequência às abordagens relacionadas à temática. De acordo com ele, a avaliação da qualidade de vida urbana tem recebido cada vez mais atenção, tanto dentro quanto fora da academia. O pesquisador, que nasceu na Itália, explica que o método convencional de se aferir os atributos de uma cidade, baseado principalmente nos indicadores econômicos, que são essenciais para gerar bem-estar, tem sido insuficiente para tratar de um assunto tão complexo. “Por isso têm surgido inúmeros artigos sugerindo novas formas de se pensar e avaliar as cidades, que incorporam pontos como memórias e gostos e necessidades pessoais dos moradores”, diz. A proposta formulada por D’Acci está baseada em conceitos advindos de modelos urbanos gravitacionais e, em alguns aspectos, modelos de interação espacial, bem como nas equações exponenciais de acessibilidade. Embora esses termos possam soar demasiadamente complicados aos leigos, o arquiteto garante que a equação é relativamente simples de ser entendida. “O que eu tentei fazer foi construir uma fórmula matemática que permitisse considerar cada aspecto capaz de contribuir para o prazer da vida urbana. Tal fórmula, ainda que estática e redutora, favorece usos mais elaborados. Um deles é justamente a possibilidade de personalizar a visão sobre a cidade, que muda de uma pessoa para outra ou até mesmo conforme as variações de humor do observador”, detalha. Em resumo, segundo D’Acci, a equação é uma ferramenta quantitativa que promove medições pessoais de fatores qualitativos. “Cada aspecto que pode oferecer uma sensação de prazer na vida dos cidadãos – seja ela diária ou ocasional – é levado em consideração pela fórmula. Ao final, o que se obtém é uma representação numérica daquilo que as pessoas dizem ou demonstram gostar”, acrescenta. Esse instrumento, reconhece o pesquisador, pode não ser de grande utilidade no caso de dimensões urbanas muito pequenas, visto que a decisão quanto a morar neste ou naquele lugar não requer uma avaliação tão pormenorizada. “Entretanto, a ferramenta pode ser especialmente útil quando pensamos em grandes ou megacidades. Nesse caso, os inúmeros pontos a serem considerados e as suas mútuas influências podem exigir uma capacidade de análise altamente complexa, o que é facilitado pela simulação”, pondera. Questionado sobre a viabilidade de a equação matemática contribuir para a formulação de políticas públicas voltadas ao planejamento urbano, D’Acci responde que essa é uma aplicação possível. De acordo com ele, uma cidade pode ser entendida como um jogo de xadrez, no qual as peças são representadas por áreas de lazer, vias, prédios, equipamentos públicos etc. Nesse caso, as peças ganham ou perdem proeminência de acordo com o uso e o posicionamento que os jogadores [no caso, os moradores, os investidores, os planejadores urbanos, etc.] fazem delas. “Por suas características, o instrumento proposto pode ajudar nos processos decisórios de políticas urbanas, principalmente em relação a grandes ou megacidades, visto que ele considera fenômenos ligados à qualidade de vida urbana – valor de propriedade, índice de criminalidade, atratividade econômica de áreas de investimentos etc – que não seriam facilmente manipulados sem esse tipo de recurso”, reforça o pesquisador. Foto: Divulgação Luca D’Acci, autor da proposta: “O que eu tentei fazer foi construir uma fórmula matemática que permitisse considerar cada aspecto capaz de contribuir para o prazer da vida urbana” 3 Arquiteto desenvolveu equações para medir fatores que conferem qualidade à vida no meio urbano CONVITES D’Acci revela que está trabalhando atualmente com um especialista de renome internacional em simulação baseada em agente, o professor Pietro Terna, da Universidade de Turim, na Itália. O objetivo da cooperação é formular um modelo que simule o “jogo” compreendido pelo planejamento urbano e os fenômenos que emergem das ações individuais dos moradores. “Além disso, alguns processos relacionados ao planejamento urbano que venho estudando deverão ter continuidade no Programa de Pós-graduação em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade da Universidade Federal de Sana Catarina [UFSC], onde tive a honra de ganhar uma vaga de professor visitante”, informa. Paralelamente, o arquiteto está executando um trabalho com o professor Pierluigi Morano, do Politecnico de Bari, na Itália, baseado em algumas das suas proposições. Nesse caso, a dupla de cientistas está orientando um grupo de estudantes de pós-graduação com o objetivo de propor às autoridades locais uma ferramenta para auxiliar no planejamento urbano da cidade, levando em conta as transformações pelas quais ela deverá passar nos próximos anos. Graças à qualidade e à repercussão internacional do seu trabalho, D’Acci tem recebido vários convites profissionais de diferentes instituições de ensino e pesquisa, como ele mesmo revela. Um deles partiu de uma universidade da China, para apresentar, em uma palestra, o seu conceito de Isobeneft Cities como proposta de um modelo alternativo das megacidades do futuro. “Além desta universidade chinesa, outra importante instituição daquele país me ofereceu uma vaga para analisar o desenvolvimento econômico, social e urbano das antigas aldeias do país”. Embora alguns dos estudos conduzidos pelo arquiteto estejam fundados em métricas e simulações matemáticas, ele faz questão de ressaltar que esse tipo de ferramenta deve ser considerado como um suporte para a tomada de decisões que possam afetar o design das cidades, definidas poeticamente por ele como “teatros em que recitamos nossas vidas”. “Instrumentos dessa ordem jamais poderão substituir o julgamento humano, que é o resultado de uma mistura holística da história com o espírito do local”, sustenta. BRASIL A experiência obtida com a realização do pós-doutorado na Unicamp foi enriquecedora tanto do ponto de vista profissional quanto pessoal, de acordo com D’Acci. No período em que esteve no Brasil, ele teve a oportunidade de travar contato com pesquisadores de outros Estados, bem como de estudar, in loco, cidades como Brasília, São Paulo, Belém, Florianópolis, Campinas etc. “Minha passagem pela Unicamp foi valiosa. Aí encontrei professores e estudantes desafiadores e um clima que valoriza o espírito livre e o progresso científico. A Universidade abriga uma interessante comunidade multidisciplinar. Poucos metros separam laboratórios avançados de química, matemática e computação dos de música, dança e filosofia. E tudo isso dentro de um campus poliédrico com muito verde e no qual ocorrem diversos eventos culturais”, relembra o pesquisador. O arquiteto faz uma referência especial ao professor Leandro Medrano, com quem teve a oportunidade de aprender e também de refletir sobre diferentes aspectos de algumas cidades brasileiras. “O que está em um livro não muda. Tanto faz você lê-lo no Japão, na França ou na Venezuela. O que pode mudar é a situação em que a obra é lida. E a situação que eu experimentei em meu tempo de Unicamp deu um valor e um sabor especial ao aprendizado, que vou levar comigo para sempre. Além disso, ter visitado as cidades brasileiras, bem como as anglo-americanas e australianas, muitas delas diferentes das europeias, me deu uma visão mais ampla para vários aspectos relacionados aos fenômenos urbanos”, considera.