MULTIMODALIDADE E PRÁTICAS DIGITAIS: O PAPEL DOS OBJETOS FRONTEIRIÇOS Marcelo El Khouri Buzato (IEL/UNICAMP) [email protected] RESUMO Apresenta fundamentação teórica e dados preliminares do projeto de pesquisa Práticas Fronteiriças na Inclusão Digital. Relaciona multimodalidade, transmodalidade e multimodalidade com a teoria de objetos fronteiriços e formula hipóteses sobre o papel da multimodalidade no funcionamento desses objetos. Propõe análises relacionadas a essas hipóteses com base em um conjunto de dados retirado de pesquisas anteriores em inclusão digital. PALAVRAS‐CHAVE: multimodalidade; objetos fronteiriços; inclusão digital ABSTRACT Presents theory and preliminary data from the Boundary Practices in Digital Inclusion research project. Relates multimodality, transmodality and hypermodality to boundary object theory and puts forward hypotheses about the role of multimodality in the way these objects work. Proposes analyses based on those hypotheses applied to data collected in previous research in digital inclusion. KEY‐WORDS: multimodality, boundary objects; digital inclusion 0. INCLUSÃO DIGITAL: COMUNIDADE DE PRÁTICA, FRONTEIRA E REDE O projeto Práticas Fronteiriças na Inclusão Digital (BUZATO 2007b) procura ajudar a estabelecer o problema da inclusão digital como objeto de pesquisa no âmbito dos estudos aplicados de linguagem, partindo da concepção de inclusão digital como “um processo contínuo e conflituoso, marcado pela tensão entre homogeneização e proliferação da diferença, tradição e modernidade, necessidade e liberdade, através do qual as novas tecnologias da informação e da comunicação (TIC) penetram contextos socioculturais – sempre heterogêneos – transformando‐os, ao mesmo tempo em que são transformadas pelas maneiras como os sujeitos as praticam nesses contextos” (BUZATO 2007a: 74). Vinculada a essa noção de inclusão digital está uma ótica não determinista e não dicotômica sobre os letramentos digitais e sobre suas repercussões nas identidades e capacidades dos sujeitos ditos excluídos, ótica essa que visa incorporar à discussão corrente nesse campo de pesquisa a forte convergência tecnológica e a crescente interpenetração entre economias, culturas e domínios do saber no mundo contemporâneo. Três conceitos tem sido especialmente operativos1 nesse sentido: fronteira, rede e comunidade de prática. Fronteira porque toma‐se como pressuposto que letramentos digitais são, para além de habilidades que permitem aos seres humanos interagirem com artefatos e interfaces digitais, conjuntos de práticas sociais que promovem conexões transculturais. Também porque tais letramentos constituem uma frente para o novo, para o desconhecido ou até então não aventado 2 na relação tecnologia‐sociedade‐cultura. Rede porque, assim como os contextos de prática são hoje conectados, também os textos (no sentido amplo do termo) – quase sempre digitais, em alguma medida, na sua produção, circulação, estocagem e/ou recepção – são marcados por entrelaçamentos entre significados culturais e computacionais (MANOVICH, 2001; WALTON, 2004), bem como entre línguas, gêneros e sistemas semióticos antes vistos (e praticados) de forma mais estanque. A impossibilidade de ignorar essas ligações demanda do analista uma abordagem relacional, que permita desnudar os processos pelos quais os letramentos digitais tiram proveito de diferentes sistemas técnicos, semióticos e sociais 3 , em diversos contextos de prática, assim como conectam esses contextos e sistemas por intermédio de objetos e sujeitos. Isto porque, é a partir dessas conexões que tais letramentos vão tornando‐se mais influentes nas sociedades contemporâneas e, portanto, mais significativos nos processos de inclusão/exclusão (BUZATO, no prelo). Juntar uma concepção de letramento digital como prática social (e não apenas conjunto de habilidades) a uma abordagem relacional dos novos letramentos, que supere a noção de contexto como um contêiner espaço‐temporal pré‐existente à prática social (BUZATO, 2007c), tem sido possível neste projeto a partir de um outro conceito operativo, oriundo da Teoria Social do Aprendizado de Etienne Wenger (1998): comunidade de prática. Para o autor, comunidades de prática (doravante CPs) podem ser entendidas como grupos de pessoas que compartilham interesse ou paixão por algo que fazem em comum, e que aprendem a fazê‐lo de forma melhor e/ou mais sofisticada ao interagirem regularmente. Assim, são CPs, igualmente, um grupo de programadores que trabalham na construção de um sistema operacional, uma geração de artistas pesquisando novas formas de expressão, ou uma turma de adolescentes que mantém um Blog, por exemplo. 1 Entendo por conceito “operativo” todo aquele que se caracteriza não por sua definição temática ou objetiva, mas pelo tipo de operação intelectual que ele permite realizar independentemente do tema ou objeto da reflexão a que é aplicado. 2 Como explica Machado (1998), a idéia de fronteira acarreta tanto a de limite, ou linha divisória, quanto o de horizonte, ou faixa aberta à conquista e à novidade, o que fica mais claro em línguas como o inglês norte-americano, que desmembra esses significados em duas palavras distintas, mas relacionadas: border e frontier. 3 Considere-se que as redes são, antes de mais nada, um recurso que habilita os atores (humanos ou não-humanos) a alocarem partes de si, ou de sua ação, em regimes normativos (técnicos, jurídicos, semióticos, epistemológicos ou de outra natureza) distintos, cada uma delas operando no espaço mais eficaz para si. O aporte teórico representado por essa teoria é significativo para a concepção relacional já mencionada porque, primeiro, as CPs atravessam tanto diferentes instituições ou domínios sociais tais como a família, a igreja, o trabalho ou a escola, como critérios usuais de estratificação sociológica, tais como gênero, classe, faixa etária ou etnia. Segundo, porque identidades e relações de poder são nela vistos como produzidos na prática, e não pré‐ estabelecidos pelo contexto, o que é condizente com a noção de inclusão defendida na pesquisa. Finalmente, porque as comunidades de prática desenvolvem um repertório de recursos compartilhados, dentre os quais pode‐se destacar textos e letramentos. Vinculada aos pressupostos do interacionismo simbólico, a teoria de CPs concebe significado como algo sempre negociado, construído e modificado na relação dinâmica entre os sujeitos, e entre esses e o mundo. Essa negociação de significados, por sua vez, envolve uma dualidade que constitui o cerne da prática: participação e reificação. A participação manifesta‐se tanto pela ação quanto pela relação entre os participantes, isto é, participar não significa apenas ou necessariamente tomar parte na ação, mas estar posicionado nas relações sociais que constituem prática, ainda que de forma periférica. Já a reificação é o processo de dar forma à experiência da comunidade por meio de representações, ferramentas, símbolos, documentos etc. Tais artefatos (concretos ou simbólicos) são importantes não apenas para a continuidade e desenvolvimento da prática, mas também porque atuam como marcas explícitas de identidade. De extrema importância para a pesquisa é o fato de que participação e a reificação não apenas marcam limites entre práticas e domínios, mas também habilitam a comunicação entre elas. A participação no sentido de que um sujeito pluripertencente pode atuar como um intermediário (broker) entre CPs. A reificação no sentido de que certos objetos (concretos ou simbólicos) funcionam como meios de tradução que permitem a ação coordenada entre CPs, sem que elas necessariamente unifiquem suas perspectivas interpretativas. É desses objetos que trato na seção seguinte. 1. OBJETOS FRONTEIRIÇOS O conceito de objeto fronteiriço nasce na Sociologia da Ciência e Tecnologia de orientação interacionista, mais especificamente com o trabalho de Star e Griesemer (1989) sobre formas de cooperação e pontos de tensão existentes entre amadores, cientistas profissionais, administradores e outros grupos envolvidos no funcionamento de um museu de Zoologia. Sobre esses objetos, Bowker e Star (1999: 297, apud BÜRGER, 2006, minha tradução) afirmam que “tanto habitam várias comunidades de prática como satisfazem as demandas informacionais de cada uma delas”. Sendo “suficientemente flexíveis para adaptarem‐se a necessidades e restrições dos vários grupos que os empregam, mas também suficientemente robustos para manter uma identidade própria nesses diferentes lugares”, eles se mostram “fracamente estruturados em seu uso compartilhado e tornam‐se rigidamente estruturados em seu uso localizado (individual site use)”. Todo objeto utilizado por mais de uma CP é, potencialmente, um objeto fronteiriço (doravante OF), mas Wenger (op. cit.) os tenta caracterizar mais precisamente a partir de certas propriedades, dentre as quais interessam mais diretamente aqui duas: modularidade e abstração 4 . Modularidade refere‐se ao fato de que o objeto contém partes (ou módulos) relacionados a perspectivas específicas, pertinentes a cada uma das comunidades em que circula. É o caso, por exemplo, de um jornal, com seus diferentes assuntos e tipos de informações que leitores de diferentes comunidades utilizam seletivamente. Por abstração o autor entende a omissão de traços muito específicos e concretos, ligados a cada perspectiva particular, em função de um conjunto mais abstrato de traços comuns/permanentes. Um bom exemplo nesse caso seria um mapa, cujos contornos podem servir a geólogos, metereólogos, turistas ou engenheiros rodoviários igualmente. A maneira como Star e Griesemer descrevem os OFs pode dar a entender que eles são entidades relativamente neutras. No entanto, diversos autores têm mostrado o contrário. Popham (2005), por exemplo, estudando um conjunto de formulários (os OFs, nesse caso) utilizados em serviços de atendimento médico, mostrou que, subjacentes à sua forma e à maneira com eram usados, havia mecanismos retóricos, tais como reduções semânticas e destilações 5 , que subalternizavam a Medicina em relação à área de Negócios. Já Gal et al (2004: 194; 204, minha tradução), estudando as repercussões da introdução de um novo software nos processos compartilhados de trabalho de um consórcio de engenharia mostraram que os OFs estão freqüentemente “atrelados em relações recíprocas com as identidades sociais e as infra‐estruturas sociais das comunidades que os compartilham“, e que “mudanças nos objetos fronteiriços habilitam mudanças nas infra‐estruturas sociais e identidades em um determinado grupo, o que, a seu turno, cria as condições de possibilidade para a mudança nos grupos que lhe são fronteiriços ”. Retomando, então, o tema dos letramentos digitais por esse prisma, a pesquisa toma como pressuposto que não apenas os letramentos digitais envolvem textos, conceitos, modos de fazer, dispositivos, gêneros etc que podemos caracterizar como OFs, como também podem esses letramentos ser considerados práticas fronteiriças, que se dão em zonas de contato entre comunidades e práticas distintas. Entende‐se que uma investigação profícua desses objetos envolverá uma explicação sobre como suas propriedades mais genéricas se manifestam no meio digital, e sobre como essa manifestação vem a pesar na construção de sentidos. Fundamental para esse propósito é o engajamento com a multimodalidade. 4 Há outras duas propriedades apontadas por Wenger (op. cit.) que não serão aqui exploradas em detalhe, embora consideradas de alguma maneira. Uma é a acomodação, i.e., o fato de que o OF se presta a diferentes atividades; a outra é a padronização, que se refere ao fato de que a informação contida no OF pode ser pré-especificada de modo que cada comunidade saiba lidar com ela localmente. 5 A autora chama de destilação o processo pelo qual uma disciplina toma idéias ou teorias chave da outra e as reduz a blocos codificados para usar em seu próprio proveito. 2. MULTIMODALIDADE 2.1 PRESSUPOSTOS Antes de avançar na teorização da relação entre objetos fronteiriços na inclusão digital e multimodalidade, faz‐se necessário explicitar alguns pressupostos que encontram sustentação nos trabalhos de Kress (2000, 2005), Kress e Van Leeuwen (2001), e Lemke (1998, 2002), a saber: (i) O termo modalidade (mode) tenta expressar não apenas as relações internas a um determinado sistema semiótico como as convenções que emergem no uso culturalmente situado desse sistema, ou sistemas articulados entre si. (ii) Não faz sentido, do ponto de vista lógico, estabelecer diferenças valorativas – do tipo mais rica/mais pobre, mais precisa/mais imprecisa, mais lógica/menos lógica etc. – entre as modalidades, uma vez que todas são igualmente aptas (contemplados sistema e uso) a satisfazer as necessidades comunicativas dos grupos culturais em que existem. Pode‐se dizer, contudo, que diferentes modalidades permitem, com maior ou menor facilidade, a construção de tipos diferentes de significados, mais ou menos adequados a diferentes intenções ou situações 6 . (iii) Todas as modalidades dependem de signos, e todos os signos, por sua vez, possuem uma materialidade que potencializa a construção dos sentidos. Assim sendo, toda modalidade é, a rigor, heterogênea ou multimodal em si mesma, embora possamos tratá‐las como unas, em oposição a outras modalidades, para fins analíticos. (iv) A escolha de uma modalidade para a expressão material de um discurso sempre acarreta a perda de algumas possibilidades de significado e ganho de outras. Daí a eficácia das mensagens multimodais, nas quais diferentes tipos de significados, codificados em diferentes modalidades, podem ser combinados para expressar significados mais precisos e/ou complexos do que cada modalidade isoladamente permitiria. (v) Todo arranjo multimodal contém um potencial praticamente infinito de significação que pode ou não ser acionado pelos intérpretes a depender da situação, propósito ou tipo de mediação envolvidos. Cada cultura, entretanto, lança mão de determinados gêneros multimodais que limitam esse potencial de modo a facilitar a construção de sentidos usuais numa dada esfera de atividade e/ou situação de interlocução. O potencial infinito de significação nesses arranjos, não obstante o funcionamento do gênero, permanece à disposição dos interlocutores, que o pode acionar através de combinações inusitadas e, com isso, promover abertura de sentidos. 6 Lemke (1998), por exemplo, defende que a modalidade visual adequa-se melhor à expressão de significados topológicos (i.e baseados em diferenças de grau) do que tipológicos (baseadas em categorizações), para os quais a escrita seria mais indicada. Tendo em conta esses pressupostos, é importante lembrar que a multimodalidade – sempre existente nos textos de diferentes épocas e lugares – foi alçada a uma posição mais proeminente na comunicação social contemporânea a partir da massificação dos meios eletrônicos e, mais adiante, da popularização de recursos digitais (software e hardware) que permitem às pessoas comuns (não profissionais) produzir textos multimodais de forma mais autônoma e, por vezes, automatizada. Embora muitos autores identifiquem a transição da superfície da escrita da página impressa para a tela eletrônica como o fator chave dessa mudança, considera‐se mais significativo, na presente discussão, o fato de que o computador (ou, em última análise, qualquer dispositivo digital) é uma máquina de linguagem, que trabalha com o que Manovich (2001) chama de representação numérica, ou seja, submete todas as mensagens, internamente, a uma linguagem formal (binária/elétrica) unificada que pode ser manipulada automaticamente, em cadeias de tradução e compilação. A representação numérica é que nos permite digitalizar (isto é, transformar em elementos discretos recombináveis matematicamente) qualquer imagem, som ou seqüência textual e, com isso, tornar disponíveis infinitas possibilidades de recombinação entre os mesmos. Nessa pesquisa, busca‐se relacionar a representação numérica (sem a qual a multimodalidade no meio digital não seria mais significativa do que em qualquer outro meio) ao que Wenger (op. cit.) chama de abstração nos OFs, e ambos ao duplo potencial, includente e excludente, que a multimodalidade pode fazer emergir nesses objetos. Nesse sentido, se é certo que a representação numérica amplia a possibilidade prática de fazer‐se de um texto digital um objeto que pode, simultaneamente, servir a diferentes intérpretes, com diferentes capacidades interpretativas, há também que se investigar como ela funciona no sentido contrário, i.e da exclusão desses intérpretes, ou ainda, se é certo que os OF estabelecem pontes entre diferentes CPs, também o é que eles podem reforçar relações de poder entre elas estabelecidas (POPHAM, op. cit), ou ajudar algumas delas a impor mudanças nas políticas de participação e reificação das demais (GAL et al, op. cit.). Para investigar mais detidamente esse funcionamento duplo, opressor e transgressor, includente e excludente, dos objetos fronteiriços 7 , lança‐se mão do conceito de transmodalidade. 2.2 TRANSMODALIDADE Em psicologia, o termo transmodalidade denota a possibilidade de transmissão de informações obtidas por meio de um canal perceptivo para outro, como, por exemplo, quando depreendemos as características táteis de um objeto a partir da sua visualização ou vice‐versa. Já para os estudiosos de Interação Humano‐Computador (IHC) e especialistas em telecomunicações, o termo significa a possibilidade de transmissão de informações originariamente expressas em uma modalidade semiótica para outra, como, por exemplo, no uso de um software de síntese‐de‐voz para o acesso a um texto escrito por parte de uma pessoa cega. 7 Note-se que aqui entram em cena simultaneamente os dois sentidos de fronteira já apontados. Neste trabalho (e no projeto de pesquisa a que ele se filia), a transmodalidade é definida como a possibilidade (contemplados sistema e uso) de um elemento participante de um texto (digital ou não) comportar‐se ao como entidade pertencente simultaneamente a duas modalidades, por virtude, em geral, mas não exclusivamente, da representação numérica. Para ilustrar o funcionamento desse tipo de elemento, cita‐se três exemplos. Na Imagem 1, em destaque, um recurso que os especialistas chamam de “capture” 8 . Trata‐se de um arquivo de imagem que o computador representa para si mesmo como matriz numérica (array), manipulável matematicamente tanto quanto qualquer segmento alfanumérico, mas reconhecível como texto verbal apenas por um leitor humano, que, para tanto, lança mão do duplo potencial (visual‐verbal) da escrita. A função de um elemento como este na mensagem é vedar o acesso ao banco de dados por um certo tipo de leitor (um programa invasor ou agente automatizado) de modo que a transmodalidade aparece aqui a serviço de uma política de participação seletiva (excludente). Imagem 1 ‐ Mecanismo de proteção a bancos de dados que utiliza transmodalidade. 8 Disponível em http://www.receita.fazenda.gov.br/Aplicacoes/ATRJO/ ConsRest/Atual.app/index.asp, consultado em 17/08/2006. Na Imagem 2, destacam‐se representações visuais (oscilogramas) de arquivos sonoros disponibilizados num repositório da Web. Nesse caso, utiliza‐se a transmodalidade para a expressão de certas nuances de significado (ritmo, densidade, freqüência, andamento, dinâmica etc) que interessam ao leitor, mas que a linguagem verbal não expressa precisamente 9 . A transmodalidade serve aqui, contrariamente ao que ocorria no exemplo anterior, para romper limites, do leitor humano e da própria natureza linear, desdobrada no tempo, da música. Por meio dela, pode‐se contrastar, para selecionar, diversos segmentos musicais que, se executados simultaneamente, como som, redundariam em ruído. Note‐se, especialmente, que a transmodalidade habilita aqui uma prática que é também trans‐ (ou fronteiriça): ”folhear” uma coleção de sons como quem folheia um catálogo bibliográfico ou um álbum fotográfico. Imagem 2 ‐ Oscilogramas produzidos pelo computador representam arquivos sonoros (músicas) estocadas em sua memória. Como terceiro exemplo, no quadro 1, um fragmento em Leet (do inglês elite, significando “linguagem da elite”), variedade de escrita utilizada por praticantes de jogos de tiro em primeira pessoa em rede com o intuito de burlar restrições, codificadas no programa que dá acesso público aos jogos, ao uso de palavrões ou expressões de apologia à violência e ao ódio. 9 Obviamente influem no julgamento do leitor as informações codificadas verbalmente, tais como o título e o gênero do segmento, mas há aí, necessariamente, uma pré-interpretação subjetiva e uma perda de significados que o oscilograma tenta compensar. Quadro 1 – Exemplo de Leet. Esse mesmo procedimento, que aproveita a natureza visual dos grafemas e algarismos para trocar‐lhes o correspondente fonológico, é utilizado por autores de mensagens de e‐mail não solicitadas (SPAM) para burlar os filtros existentes em servidores de correio eletrônico (trocar “viagra” por “via99ra”, por exemplo). Vale ressaltar, a respeito desse terceiro exemplo, que nele a transmodalidade é habilitada pela própria materialidade dos grafemas e diacríticos utilizados no português escrito tradicional, que deixa à disposição dos interpretes humanos um potencial de significado aproveitado, até então, apenas em logomarcas ou outros gêneros restritos a certos grupos profissionais. Desse modo, fica claro que a transmodalidade não é um atributo do meio digital: é uma possibilidade da linguagem, sempre à disposição do construtor de sentidos, que pode ser, inclusive, utilizada contra o computador. 2.3 HIPERMODALIDADE Lemke (2002) cunha o termo hipermodalidade para designar o potencial de significação que se apresenta ao designer e ao leitor de um website (ou, a rigor, de qualquer objeto new media) a partir da possibilidade de combinação e recombinação de diferentes módulos ou blocos informativos expressos nas diferentes modalidades. Tal combinação, como sabemos, pode ser seqüencial – através do acionamento de hiperlinks, ou por agrupamento em uma mesma lexia – como no caso de uma página multimídia. Nas palavras do autor (op. cit.: 301), a hipermodalidade é a união (conflation) da multimodalidade com a hipertextualidade. Não apenas temos vínculos (links) entre unidades textuais em varias escalas, mas também vinculações entre unidades de texto escrito (text units), elementos visuais, e unidades sonoras. E todos esses vínculos vão além das convenções usuais dos gêneros multimodais tradicionais. A tese básica de Lemke é a de que, uma vez que não há uma relação biunívoca entre palavras e imagens, ou entre imagens e sons, ou entre sons (que não fonemas) e palavras, o potencial de significado desses construtos é infinitamente superior ao potencial de cada uma das modalidades tomadas isoladamente. Isto quer dizer que, quando combinamos esses elementos, a despeito das convenções existentes nos gêneros multimodais tradicionais, podemos utilizar esse potencial para criar significados mais precisos, ou talvez mais instáveis, abertos, em devir. Isto posto, assim como é possível traçar uma relação entre representação numérica, abstração e transmodalidade, pode‐se propor um alinhamento entre modularidade no sentido de Manovich (2001), modularidade no sentido de Wenger (op. cit), e hipermodalidade. Manovich (op. cit.) chama de modularidade a propriedade dos objetos new media de articularem‐se e rearticularem‐se ad hoc a partir de módulos (elementos independentes em seu funcionamento interno) que se juntam em diversas escalas de organização, quer seja de forma automática (como quando uma página da web é carregada no browser), quer seja por meio da ação do leitor/produtor que vai vinculando os módulos via hiperlinks. É óbvio o bastante que isto se alinha com a modularidade enquanto propriedade dos OFs proposta por Wenger, quando se considera que as partes (ou módulos) combinadas nesses objetos são freqüentemente produzidas e consumidas por/em comunidades de prática diferentes (programadores, redatores, músicos, animadores, designers, internautas etc). Assim, se a transmodalidade parece servir tanto à imposição quanto à transgressão de limites nas relações entre CPs, a hipermodalidade tende a possibilitar uma ampliação quantitativa e qualitativa dessas relações e, logo, uma abertura dos significados possíveis para a prática. Instaura‐se aí, entretanto, o desafio de descrever como isto se dá através de uma certa metalinguagem que, coerentemente com o que pretende descrever, se mostre suficientemente abstrata e modular. Investiga‐se, no projeto, a utilidade, para essa finalidade específica, da semântica hipermodal de Lemke (2002) – tributária da Semiótica Social e da Gramática Sistêmico Funcional de Halliday (1994) – de que trata, sucintamente, a seção seguinte. 3. UMA METALINGUAGEM E UMA HIPÓTESE Essencialmente, a teoria de Lemke preconiza, para cada mensagem produzida em um dado contexto situacional e de cultura, a intervenção simultânea de diferentes tipos de significados (ligados a metafunções), não importa quantas e quais as modalidades envolvidas: significados aparentes (presentational meanings), performativos (orientational meanings), e organizacionais (organizational meanings) 10 , correspondentes, respectivamente, às metafunções ideacional, interpessoal e textual de Halliday (op. cit.). O autor argumenta que cada um desses tipos de significado, em cada uma das modalidades envolvidas, pode combinar‐se com os mesmos ou demais tipos de significado nas demais modalidades. Contudo, tais combinações estão sujeitas, em cada cultura, a certas convenções genéricas. Por exemplo, em uma página de jornal, os significados aparentes de uma foto podem ser interpretados mais precisamente com a ajuda da legenda, assim como os significados organizacionais do texto escrito podem ser reforçados pelo lay‐out. Já em um filme, um fundo musical que atravessa dois planos‐sequências distintos pode estabelecer a continuidade (significado organizacional) da narrativa, e, ao mesmo tempo, unir‐se a variáveis como o enquadramento (em close, plano médio ou plano geral) para aproximar ou afastar (um significado performativo) o expectador do mundo interior/privado da personagem. A hipótese contemplada pela pesquisa no momento diz que, certos textos, utilizados em certas práticas digitais, funcionam como OFs ao manter alguns desses significados para as diferentes comunidades implicadas num evento comunicativo, adequando ou permutando os demais significados de modo a atender perspectivas particulares de cada comunidade e/ou estabelcer políticas de participação e reificação intercomunitárias. Na seção seguinte, procura‐se discutir a plausibilidade dessa hipótese, e suas repercussões, a partir de um exemplo específico de OF. Os dados foram extraídos de um conjunto mais amplo obtido em dois trabalhos anteriores 11 . 4. RECEITAS CULINÁRIAS: NA FRONTEIRA ENTRE A TV E A WEB Na pesquisa descrita em Buzato (2007a), constatou‐se que muitas pessoas da comunidade buscavam o telecentro para consultar e imprimir receitas culinárias disponibilizadas no website do programa Mais Você, da Rede Globo de televisão. Já em Buzato et al (2007), esse mesmo tipo de prática, envolvendo o mesmo tipo de site, aparece em outro contexto e protagonizado por um sujeito particularmente interessante, porque muito pouco escolarizado. Parte‐se do princípio de essa é uma prática fronteiriça, situada entre assistir TV, navegar na Web e colecionar receitas, e de que ela tem repercussões para a inclusão/exclusão digital dos sujeitos. Tomando‐se esse tipo de site como OF, tenta‐ se esclarecer seu funcionamento, a partir da hipótese mencionada no item 3. 4.1 O EVENTO TELEVISIVO 10 Adotarei a nomenclatura em português para as metafunções descritas por Lemke (2002) seguindo Braga (2004). A primeira dessas pesquisas (BUZATO 2007a) foi um estudo de cunho etnográfico realizado em um telecentro. A segunda (BUZATO et al, 2007) estava ligada à preparação de um protocolo para testagem de capacidades leitoras de pessoas pouco escolarizadas visando a otimização de sites de governo eletrônico. 11 Porque a TV convencional é um meio unidirecional, dois problemas tem que ser contornados por pessoas que produzem e assistem programas culinários. Primeiro, a forma de concatenar os significados produzidos ao longo do programa em unidades maiores precisa levar em conta a necessidade de haver intervalos comerciais, assim como digressões mais ou menos freqüentes feitas pelo apresentador, ou causadas por atividades paralelas no contexto de recepção. Segundo, sendo a mensagem como um todo evanescente (a menos que um recurso como o de gravar o programa seja utilizado), há que se criar maneiras para o telespectador registrar o que é dito/visto de forma sincronizada com a própria apresentação. Estes dois fatores explicam, em parte, a maneira como as modalidades estão agenciadas entre si nesse tipo de evento. Tradicionalmente, o(a) telespectador(a) de um programa culinário assiste a uma demonstração acional‐gestual do preparo da receita, acompanhada de uma narração dos procedimentos feita pelo culinarista e/ou pelo(a) apresentador(a) do programa. Ao final, nos programas mais tradicionais, o apresentador dita a receita para o telespectador, enquanto se projeta na tela uma versão escrita da mesma, para que ele a copie. Do ponto de vista das categorias utilizadas na teoria de Lemke, pode‐se dizer que os signigicados aparentes são redundantes nas três modalidades, embora não sejam apresentados de forma síncrona sempre. Isto é, em parte, resultado da necessidade de uma maior precisão dos sentidos construídos (afinal, trata‐se de uma receita, uma prescrição a ser seguida à risca), mas há, também, o fato de que o telespectador está recebendo a mensagem em um contexto privado, no qual outras atividades, fora do controle dos produtores, podem o estar impedindo de receber esse conteúdo por um ou por outro canal perceptivo. Quanto aos significados performativos, há, predominantemente, uma oferta de informação por parte do apresentador, mas, ao mesmo tempo, demandas de serviços ao telespectador (prestar atenção, manter‐se no canal, copiar a receita) cujo não atendimento implicará a perda do conteúdo aparente que lhe está sendo ofertado. Para que a oferta tenha o máximo de chance de ser aceita, e as demandas atendidas, os significados organizacionais vão sendo construídos em conjunto pelas modalidades, ora simultaneamente, ora em revezamento, pautados pela seqüência usual (título > ingredientes > preparo > resultado) do gênero. Essa é, sinteticamente, a maneira pela qual meio, multimodalidade, significado e atividade se acomodam nesse letramento. 4.2 O EVENTO FRONTEIRIÇO Atendendo ao convite/demanda feito pelos produtores do programa, um telespectador pode ser levado a buscar parte dos mesmos significados aparentes mencionados em 4.1 em um website, com a vantagem, para ambos, de transferir‐se a demanda por uma cópia da receita para o computador. Quando se considera esse novo tipo de evento (consultar o website e imprimir a receita) nota‐se que os significados aparentes permanecem praticamente inalterados. Já quanto aos significados performativos e organizacionais, há importantes alterações possibilitadas e apoiadas pelo novo tipo de mediação técnica que, por sua vez, permite/demanda um outro agenciamento entre as modalidades. Do ponto de vista organizacional, a primeira alteração importante é a desvinculação tempo entre a demonstração visual do preparo – que pode ser obtida na TV em algum dia anterior, ou on demand no próprio site – e o registro escrito da receita, que agora pode ser feito automaticamente pelo computador. A segunda é que a informação apresentada através de cada modalidade pode ser obtida separadamente, através de janelas que se pode justapor para exibir simultaneamente ou ordenar seqüencialmente para consultar seguindo um percurso individual. A segmentação dos conteúdos aparentes já não se dá mais em função dos intervalos comercias (que estão, contudo, presentes na forma de banners), mas do espaço da tela. Abrem‐se, então, possibilidades de combinação não usuais entre módulos como, por exemplo, a exibição simultânea do preparo da receita X em vídeo (em uma janela) e da receita Y por escrito (em outra). Se a oferta de informações continua a mesma, as demandas por atenção e pela cópia já não têm o valor performativo de ameaça: trata‐se agora de uma promessa, pois a receita estará estocada remotamente, em um servidor, que não será afetado por uma eventual pane no computador/impressora local. Por essa razão, o posicionamento do internauta/telespectador frente ao conteúdo pode ser outro. Não se trata mais de registrá‐lo fielmente. Pode‐se agora tomá‐la para comparar, copiar e colar, reordenar, editar, enviar por e‐mail, modificar e publicar em um blog etc. Há tempo e recursos automáticos para fazer com ela mais do que um registro de procedimentos e quantidades, embora a teoria não nos possa dizer, por si só, o que resultará dessa abertura. A hipermodalidade, em outras palavras, faz o convite para o novo, o inusitado na vida do telespectador, coloca‐o na fronteira. Mas cruzar o limite para uma outra prática, retroceder ou manter‐se na aí, é com o sujeito. 4.3 OUTRAS CONEXÕES Assim como as donas de casa observadas no telecentro, R., uma mulher de meia idade, faxineira, estudante da segunda série da Educação de Jovens e Adultos em São Paulo, costumava utilizar a Internet para obter receitas do programa TV culinária, da Rede Gazeta. Mais tradicional do que o mencionado em 4.1, e exibido em um canal de menor prestígio, esse programa era apresentado por uma idosa, falante de uma variedade popular do português, e que adotava um estilo informal (pouco monitorado) de narrar/explicar o preparo do prato. Sua fala era entrecortada de perguntas que fazia aos produtores através de seu ponto eletrônico, de momentos em que cantarolava para acompanhar a música de fundo e, por vezes, os conteúdos aparentes dessa modalidade fluíam em descompasso com os da demonstração visual. Havia, obviamente, nesse programa, o mesmo tipo de conteúdo aparente e de agenciamento entre modalidades descrito em 4.1. Mas a atividade tal como desempenhada pela apresentadora tratava de afrouxar os significados organizacionais e de voltar os performativos para uma maior proximidade entre os interlocutores. Também neste caso, o ditado culinário fora abolido, e, assim como no caso anterior, uma telespectadora, R., havia se interessado pela Internet por esse motivo, embora situada em um outro contexto e com propósitos distintos dos das mulheres do telecentro. R. informou que tinha por hábito utilizar o computador no escritório em que trabalhava, quando tinha chance, para imprimir receitas disponibilizadas no website do programa 12 . Declarou, para surpresa do entrevistador, que não as guardava ou catalogava, mas as imprimia apenas para, mais tarde, transcrevê‐las em um caderno que tencionava deixar de herança para as netas, já àquela altura mais escolarizadas do que ela. Sua fala deixou transparecer que o tal caderno tinha um grande valor simbólico para ela, superior, sem dúvida, ao valor utilitário das próprias receitas. A multimodalidade inerente à própria escrita quirográfica, e viabilizada pela mediação da página e da caneta, já guardava em si possibilidades de significado performativo que ela tencionava utilizar: a proximidade/afetuosidade com o destinatário, a oferta de um serviço pessoal, a implicação do escrevente (sua caligrafia pessoal) na materialidade do texto etc. Faltava‐lhe, contudo, reunir um conjunto (adequado ao gênero escrito) de significados aparentes (palavras ortograficamente representadas) e organizacionais que a fala da apresentadora não fornecia, assim como a possibilidade de estabilizar esses significantes pelo tempo necessário para a atividade de copiar, algo que a mediação unidirecional da TV não lhe podia oferecer. Daí o interesse pela receita impressa da Internet. Não é implausível afirmar, com base nesse relato, que utilizar o website do programa para imprimir receitas permitia a R. conectar letramentos distintos (o escolar, o paroquial e o digital) de modo a fortalecer uma identidade letrada emergente – condizente com seu ingresso no EJA, e necessária para a sua “inclusão” na própria família. Como toda rede, essa possibilitava a R. alocar/acessar recursos distintos nos espaços normativos mais propícios em cada caso. Através dela, R. rearranjou as diversas modalidades funcionalmente para atender a uma perspectiva particular, ligada a uma prática cultural desprezada pelo centro das duas outras CPs de que participava perifericamente. Fez‐se protagonista em um espaço fronteiriço e, assim, excluindo‐se, incluiu‐se onde e como desejava. 5. DISCUSSÃO Até que ponto, de que maneiras, e com que finalidades pessoas como R. ou os usuários do telecentro utilizam OFs como esse é uma questão chave para a pesquisa, que não se pode obviamente abordar a partir de um caso único e analisado superficialmente 13 . Contudo, é plausível afirmar, a partir desse exemplo, que os OFs (especialmente os que têm na multimodalidade um trunfo) têm um potencial útil para um tipo de inclusão digital que empodera o sujeito dito excluído em lugar de massificar ou standardizar seus modos de fazer ou os significados que constrói através das 12 É importante citar que R., apesar de pouco escolarizada, utilizava estratégias que lhe permitiam driblar sua falta de familiaridade com a escrita na Internet. Uma delas era utilizar o buscador Google para chegar ao site do programa a partir do nome da apresentadora, bastante mais fácil de digitar do que uma URL. 13 Por essa razão a pesquisa utiliza procedimentos etnográficos tais como seguir sujeitos e textos em diferentes contextos de prática. práticas de que participa. Trata‐se de uma maneira pela qual, parafraseando Canclini (2005), a conexão pode auxiliar a superação da desigualdade sem aniquilar a diferença. Ao obter as receitas na web, R. e as outras mulheres reagiram a mudanças nas políticas de participação e reificação impostas por atores mais poderosos na comunidade que reúne produtores e telespectadores de programas culinários. Tais mudanças, por sua vez, foram impostas indiretamente a estes atores mais centrais por patrocinadores atentos ao comportamento de telespectadores de uma nova geração, que dispõem de novos dispositivos (TV a cabo, Internet etc.), e que cultivam novos hábitos (zapear, navegar na Internet, compartilhar receitas por e‐mail, por exemplo) não compatíveis com gêneros como o ditado culinário. Foi certamente para esses sujeitos, que dispõem de maior capacidade de consumo, que um OF como o website em questão foi projetado: não basta que não troquem de canal (por entediarem‐se com o ditado, ou, por preferirem google it up mais tarde, se assim o desejarem); é preciso recapturá‐los nos novos meios através dos quais fazem suas opções de consumo. Mas esses OFs, uma vez disponibilizados em um espaço híbrido tal qual a WWW, estão abertos também a outras comunidades e outras práticas, nas as quais a multi(trans‐, hiper‐)modalide continua a oferecer meios de tradução, transformação e inclusão/exclusão. Retome‐se, então, a afirmação de Gal et al (op. cit.) de que os OFs estão sempre postos em relação recíproca com as identidades sociais e as infra‐estruturas sociais das comunidades que os compartilham. Não seria o caso de R. um exemplo a ilustrar cabalmente essa afirmação? Não teria o website, a despeito de todas as previsões e provisões ali feitas pelos designers e produtores do programa para atender (ou impor) certas políticas de participação e certas formas de reificação, fornecido a mudança na infra‐estrutura de que R. necessitava para fazer sua própria inclusão em uma outra CP, descartada, a princípio, pelos poderosos? Como já ressalvado, esse tipo de análise se presta, no atual estágio da pesquisa, apenas a um refinamento das hipóteses e da fundamentação teórica, sendo necessários mais dados e outros arranjos empírico‐metodológicos para que se possa de fato apresentar resultados. Mesmo assim, nada se perde em formular provisoriamente algumas implicações dessas hipóteses para a Educação. É disso que tratam as considerações finais. 6. POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO É bastante aceita hoje, até no senso comum, a necessidade de que a escola se engaje com a questão da multimodalidade, quer seja no sentido mais imediatamente acessível da inserção curricular de gêneros multimodais que a escola normalmente despreza, mas que são altamente relevantes hoje, tais como infográficos ou videogames, quer seja no sentido mais complexo de uma proposta de ensino de multiletramentos (COPE;KALANTZIS, 2000). Há, contudo, mesmo em países que dispõem de sistemas escolares mais bem equipados, tratados e avaliados que o nosso, uma carência de recursos técnicos, metalingüísticos e metodológicos congruentes com a maior complexidade que a multi(trans‐, hiper‐)modalidade implica para a o dia‐a‐dia da educação, para a produção de materiais didáticos e para a formação de professores. O que se pode propor, a partir da teoria aqui esboçada e das análises preliminares expostas, é que talvez valha a pena investigar‐se, e eventualmente produzir‐se coletivamente, na escola, alguns objetos fronteiriços capazes de estabelecer pontes, ou espaços híbridos, entre práticas mais tradicionais, fundamentais para o funcionamento institucional da escola e dos currículos, práticas sociais mais específicas de cada comunidade, que estruturam e fortalecem as identidades locais/pessoais, e práticas mais transgressivas ou cosmopolitas, que fomentem a capacidade crítica e a disposição para um exercício mais pleno e responsável da cidadania em tempos de capitalismo globalizado. Um desses objetos, reivindicado por autores como Lemke (1998) e Kress (2000), seria justamente uma gramática pedagógica voltada para um letramento escolar que tome a multi(trans‐, hiper‐)modalidade como recurso produtivo, voltado para a abertura dos sentidos (e portanto, da conscientização crítica) e para a expressão de significados mais precisos, mais complexos e menos standardizados (e portanto mais adequados à expressão identitária e à complexidade dos domínios acadêmicos e de participação política hoje). Mas, para que não se caia também aí no equívoco de muitas outras gramáticas pedagógicas, é preciso que a multi(trans‐, hiper‐)modalidade seja tomada para além da sua dimensão sistêmica. Há que se engajar com seu uso (PRIOR, 2005), e, nesse uso, que se construir ou identificar outros objetos e outras práticas fronteiriças, que permitam aos sujeitos incluírem‐se excluindo‐se, tornando‐se, em outras palavras, protagonistas de suas próprias redes. Embora se tenha mencionado aqui, prioritariamente, textos e letramentos digitais como exemplos de OFs, o conceito é amplo o bastante para abarcar casos como o de uma floresta, proposto por Wenger (1998), na qual ambientalistas, lenhadores, biólogos e esportistas buscam maneiras de coordenar seus pontos de vista, sem que haja imposição ou naturalização das categorias entre eles. E crucial notar, portanto, que um OF vale menos pela sua capacidade de automatizar a atividade e reduzir os significados a um denominador comum do que pela sua abertura para a transformação mútua das práticas e dos significados que ele conecta. Nesse sentido, a escola, com a devida conscientização das pessoas e valorização dos artefatos e das práticas multimodais que nela já existem, talvez pudesse mesmo ser comparada à floresta de que fala Wenger, e, estendendo um pouco a metáfora ecológica, ver ampliada a sustentabilidade do que nela se faz. 7. 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