Andarilhando pelas ruas de porto alegre: “uma viagem pelos territórios da cidade” Adriana Des Essarts Trinidad1 Todos estes que aí estão Atravancando o meu caminho, Eles passarão. Eu passarinho! Mario Quintana Resumo: O movimento faz parte da sociedade contemporânea, e trilhar o espaço urbano na velocidade do “tempo da fluidez” torna o sujeito um forasteiro na própria cidade. Muitas aventuras surgem nessas peregrinações urbanas, e as descobertas se revelam ao olhar de cada ao perceber novos lugares, espaços e territórios. Devemos levar a nossa sensibilidade e percepção na bagagem e utilizá-las durante essa caminhada, identificando as possibilidades existenciais materializadas no espaço geográfico. Palavras-chave: Cotidiano. Lugar. Território. Territorialidade. Abstract: The move is part of contemporary society, paving the urban space at the speed of the "time flow" makes him a foreigner in the city itself. Many urban adventures appear in these pilgrimages, and the findings are revealed when looking at to see new places, spaces and territories. We take our sensitivity and awareness in the luggage and use them during this journey, identifying the existential possibilities embodied in geographic space. Keywords: Everyday. Place. Territory. Territoriality Em uma tarde tranquila, de sábado de inverno em Porto Alegre, fui surpreendida ao sair da casa de uma amiga, na “Cidade Baixa”. Logo ao abrir o portão, me deparei com “casa um tanto esquisita, feita em cima de um carrinho de papeleiro”. Certo encantamento tomou conta de mim. Fiquei momentaneamente paralisada, observando cada detalhe, não acreditando no que estava vendo. Lembrei-me rapidamente da composição de Vinicius de Moraes, cantada na minha infância na voz de Toquinho, “A casa”: Era uma casa/Muito engraçada/Não tinha teto/Não tinha nada/Ninguém podia/Entrar nela não/Porque na casa/Não tinha chão/Ninguém podia/Dormir na rede/Porque na casa/Não tinha parede/Ninguém podia/Fazer pipi/Porque pinico/Não tinha ali/Mas era feita/Com muito esmero/Na rua dos bobos/Número zero. Mas aquela casa tinha teto e chão e podia-se entrar nela sim! Uma casa feita com tanto esmero, apesar de não ter número e endereço, estava a passear em todos os 1 Mestre em Análise Territorial (UFRGS) e professora de Geografia da Faculdade Cenecista de Osório-Rs e da Universidade de Caxias do Sul. R e v i s t a T e s s i t u r a s G e o g r á f i c a s – F A C O S / C N E C O s ó r i o V o l . 1 - N º 1 – I S S N 2 3 1 7 - 4 4 7 1 – D E Z / 2 0 1 2 35 “lugares”. Os fantasmas foram despertados e meus sonhos de criança desmanchados e uma nova “casa” surgiu a minha frente, não era uma “casa engraçada” como na letra de música, mas uma casa um tanto diferente, de todas as existentes. Uma casa que se movimenta, experimenta e explora novos territórios, espaços e lugares. Nas palavras de Bauman (1999, p.8): “Todos nós estamos, a contragosto, por desígnio ou à revelia, em movimento. Estamos em movimento mesmo que fisicamente estejamos imóveis: a imobilidade não é uma opção realista num mundo em permanente mudança. E, no entanto os efeitos dessa nova condição são radicalmente desiguais”. Na minha condição de espectadora, resolvi me aproximar e logo veio em minha direção o “proprietário”, então falei meio sem graça para romper o silêncio: nunca tinha visto uma “casa” tão criativa como essa! Percebi um leve sorriso e neste instante fui autorizada, simbolicamente a entrar em sua propriedade ou por que não dizer em seu território. Santos (2009, p.84): O território não é apenas o resultado da superposição de um conjunto de sistemas naturais e um conjunto de sistemas de coisas criadas pelo homem. O território é o chão e mais a população, isto é, uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é a base do trabalho, da residência, das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre os quais ele flui. Contemporaneamente, podemos pensar o território ainda, como: “Território será um campo de forças, uma teia ou rede de relações sociais que, à par de sua complexidade interna, define, ao mesmo tempo, um limite, uma alteridade: a diferença entre “nós” (o grupo, os membros da coletividade ou “comunidade”, os insiders) e os “outros” (os de fora, os estranhos, os outsiders)” SOUZA, 1995, p.85. Começamos a conversar e Loreni Alves da Silva, fez questão de mostrar sua carteira de identidade como forma de sacralizar sua existência. A porta da casa foi aberta e sua vida revelada através das histórias de seu cotidiano. Desloca-se diariamente coletando garrafas plásticas, alumínio, ferro e cobre na região metropolitana de Porto Alegre, muitas vezes vai até Santo Antônio da Patrulha para vender material. Conforme Bauman (1999, p.86): A ideia do “estado de repouso”, da imobilidade, só faz sentido num mundo que fica parado ou que assim fosse percebido: num lugar com paredes sólidas, estradas fixas e placas de sinalização bastante firme para enferrujar R e v i s t a T e s s i t u r a s G e o g r á f i c a s – F A C O S / C N E C O s ó r i o V o l . 1 - N º 1 – I S S N 2 3 1 7 - 4 4 7 1 – D E Z / 2 0 1 2 36 com o tempo. Não se pode “ficar parado” em areia movediça. Nem nesse nosso mundo moderno final ou pós-moderno - um mundo com pontos de referência sobre rodas, os quais têm o irritante hábito de sumir de vista antes que se possa ler toda a sua instrução, examiná-la e agir de acordo. Nunca se separa da casa, serve de moradia e local de trabalho, escritório, além de ser um meio de transporte onde sua própria energia movimenta e mantém este território móvel. Para circular pelas ruas e estradas alguns símbolos foram adaptados como forma de sinalização e comunicação estabelecendo uma linguagem entre o mundo de cá e o de lá. Mundos com velocidades diferentes, o espaço e o tempo se confundem, em meio à “pressa dos veículos ao se deslocarem pela Freeway2 ou mesmo pelas ruas e avenidas da grande metrópole. Como aponta Santos (2009, p.84): “Criam-se, paralelamente, incompatibilidade entre velocidades diversas; e os portadores das velocidades extremas buscam induzir os demais atores a acompanhá-los, procurando disseminar as infra-estruturas necessárias à desejada fluidez nos lugares que consideram necessários para a sua atividade. Há, todavia, sempre, uma seletividade nessa difusão, separando os espaços da pressa daqueles outros propícios à lentidão, e dessa forma acrescentando ao processo de compartimentação nexos verticais que superpõem a compartimentação horizontal, característica da história humana até a data recente”. Nas horas de lazer transforma a sucata em arte, faz trabalhos com fios de cobre, garrafas pet e tricô com pregos. Um homem que a inventividade é o seu motor, ressignificando sua forma de viver. Cansado de dormir embaixo dos viadutos, praças e principalmente fugir das drogas, resolveu construir a casa, como uma forma de proteger-se dos perigos da rua. Para Santos (2009, p.132): “Miseráveis são os que se confessam derrotados. Mas os pobres não se entregam. Eles descobrem cada dia formas inéditas de trabalho e de luta. Assim, eles enfrentam e buscam remédio para suas dificuldades. Nessa condição de alerta permanente, não têm repouso intelectual. A memória seria sua inimiga. A herança do passado é temperada pelo sentimento de urgência, essa consciência do novo que é, também um motor do conhecimento”. Loreni fez questão de abrir as portas de sua casa e mostrar cada detalhe. Logo foi dizendo: esta casa é para uma pessoa, tenho uma cama e um espaço para cozinhar, nos fundos está reservado um local para armazenar as sucatas que serão 2 Estrada de alta velocidade, com muitas pistas. R e v i s t a T e s s i t u r a s G e o g r á f i c a s – F A C O S / C N E C O s ó r i o V o l . 1 - N º 1 – I S S N 2 3 1 7 - 4 4 7 1 – D E Z / 2 0 1 2 37 vendidas. Nas laterais da casa um tanque, estendedor de roupas, uma bacia e garrafões com água para higienização. E para completar som ambiente distribuído em caixinhas de som nas laterais da casa. Milton Santos (1999, p.259): “Por isso a cidade grande é um enorme espaço banal, o mais significativo dos lugares. Todos os capitais, todos os trabalhos, todas as técnicas e formas de organização podem aí se instalar, conviver, prosperar. Nos tempos de hoje, a cidade grande é o espaço onde os fracos podem subsistir”. Figura 1- Loreni e sua casa móvel É em nosso cotidiano que observamos os outros e a nós mesmos e nos ligamos ao mundo. Mas é preciso conectar o nosso olhar aos movimentos do lugar, utilizando nossa sensibilidade e razão na captura da “alma dos lugares”. Num mundo de desencontros, efemeridades e mudanças as incertezas e os desafios são cada vez mais presentes e novas relações espaciais são construídas e reinventadas. O lugar é um referencial do cotidiano, apresentando diferentes dimensões do mundo vivido. Conforme Suertegaray, (2000, p.26), comentando as ideias de Santos: “... o lugar expressa relações de ordem objetiva em articulação com as relações subjetivas, relações verticais resultando do poder hegemônico, imbricadas com relações horizontais de coexistência e resistência. Daí a força do lugar no contexto atual da Geografia”. R e v i s t a T e s s i t u r a s G e o g r á f i c a s – F A C O S / C N E C O s ó r i o V o l . 1 - N º 1 – I S S N 2 3 1 7 - 4 4 7 1 – D E Z / 2 0 1 2 38 As relações capitalistas contemporâneas determinam novas maneiras de experimentar o tempo e o espaço e consequentemente surgem a cada momento novas formas do homem territorializar-se numa perspectiva mais simbólica e subjetiva. A capacidade humana de viver e se relacionar com o mundo se tornam relativas, emerge novas apropriações territoriais mais flexíveis e novas formas de vidas. A expectativa de vida dos territórios é curta, a mobilidade supera a estabilidade, tudo se desagrega, dissolve-se rapidamente. A destruição caminha junto com a criação, o homem busca em suas experiências cotidianas uma nova condição territorial. De certa forma, observa-se, no cotidiano, que a relação entre os indivíduos e o mundo passa a denominar uma nova forma de conceituar o lugar. Milton Santos (1999, p.259) aponta como transitório o papel das cidades, completando: “Palco da atividade de todos os capitais e de todos os trabalhos, ela pode atrair e acolher as multidões de pobres expulsos do campo e das cidades médias pela modernização da agricultura e dos serviços. E a presença dos pobres aumenta e enriquece a diversidade socioespacial, que tanto se manifesta pela produção da materialidade em bairros e sítios tão contrastantes, quanto pelas formas de trabalho e de vida. Com isso, aliás, tanto se ampliam a necessidade e as formas de trabalho, como as possibilidades e as vias da intersubjetividade e da interação”. Em meus deslocamentos diários pelas ruas de Porto alegre, alguns episódios urbanos vêm atraindo minha atenção e fica difícil não associar a Geografia. De maneira inesperada inúmera cenas vieram ao meu encontro e instantaneamente minhas emoções e sentimentos permitiram embarcar em uma viagem de aventura e descobertas dos múltiplos territórios do cotidiano. Mario Quintana, reproduz em seu poema: A verdadeiramente arte de viajar, as minhas andanças pela cidades: A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa, Como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo. Não importa que os compromissos, as obrigações, estejam ali... Chegamos de muito longe, de alma aberta e o coração cantando! (QUINTANA) Minha câmara sempre ligada! Captando as imagens e observando todos os acontecimentos por onde passava. Uma sensação esquisita, como se nunca desligasse a câmera e meu olhar estivesse alerta a tudo. Mesmo ao retornar do trabalho por volta da meia noite, nas proximidades da rodoviária, mais especificamente na Rua Voluntários da Pátria, percebi um fluxo intenso de carrinhos de papeleiros e muitos deles estacionados em baixo do viaduto, territorializando-se R e v i s t a T e s s i t u r a s G e o g r á f i c a s – F A C O S / C N E C O s ó r i o V o l . 1 - N º 1 – I S S N 2 3 1 7 - 4 4 7 1 – D E Z / 2 0 1 2 39 por ali. Logo percebi, em apenas uma quadra, três centrais de recebimento de sucatas e uma delas 24h, pensões, bares, casas de prostituição e principalmente venda de drogas, fortificando aquele espaço. Na aparência, o cenário de decadência, sombrio, representado pelos casarios abandonados e pessoas vagando com seus carrinhos de sucatas, como fossem fantasmas. Um local que perdeu seu valor e hoje é disputado por indivíduos também excluídos, que dão um novo valor ao local. Alguns questionamentos invadiram meus pensamentos: Será, este espaço, tão degrado quanto estou imaginando? É real ou estou apenas projetando meus sentimentos? Como agem? Quais são os códigos, acordos utilizados para manter-se neste lugar? Como o espaço é gerenciado? Que tipo de relações sociais se estabelece e qual a relação delas com o território? Existe autonomia, competição ou solidariedade entre os indivíduos? Lá estava novamente a caminhar pelo centro da cidade. Não posso ficar sem dar uma passadinha pelo Mercado Público e circular pelas suas bancas especializadas, olhando os produtos, o colorido das frutas, o cheiro das ervas mates e medicinais, os peixes e carnes expostos nos balcões. No Largo Glênio Peres, espaço entre a Prefeitura, Mercado Público e a Praça XV, a multidão em descompasso, encontra no caminho um verdadeiro palco, onde se manifesta a cultura popular através de músicas, teatro, malabares, mágicas, poesias e pregações religiosas. Ouvi uma música ao longe, difundindo-se pelo Largo. Avistei um grupo de índios equatorianos que dançavam embalados ao som de músicas místicas, mixadas e com alguns efeitos especiais. A sensação era como estivessem em um espaço sagrado, evocando seus deuses. R e v i s t a T e s s i t u r a s G e o g r á f i c a s – F A C O S / C N E C O s ó r i o V o l . 1 - N º 1 – I S S N 2 3 1 7 - 4 4 7 1 – D E Z / 2 0 1 2 40 Figura 2 - Terriorialização dos índios Aos poucos a música foi me seduzindo e por alguns instantes me desterritorializei e imaginei estar em plena Cordilheira dos Andes. Mas, a mobilidade real, não era a minha e sim a deles, que vivenciavam naquele momento um novo território. Desterritorializam-se, perdendo o vínculo territorial original e reterritorializam-se, construindo uma rede descontínua por diferentes espaços. O desejo de viver e reproduzir-se, impõem uma nova forma de territorializar-se. Os lugares mais distantes ficam mais perto de nós, uma nova consciência de ser no mundo é experimentada. Novamente citando Santos (2009, p.172): “Criam-se, para todos, a certeza e, logo depois, a consciência de ser mundo e estar no mundo, mesmo se ainda não alcançamos em plenitude material ou intelectual. O próprio mundo e instala nos lugares, sobretudo as grandes cidades, pela presença maciça de uma humanidade misturada, vinda de todos os quadrantes e trazendo consigo interpretações variadas e múltiplas, que ao mesmo tempo se chocam e colaboram na produção renovada do entendimento e da crítica da existência”. Muitas pessoas estavam assistindo ao espetáculo, conforme as performances eram realizadas e as músicas apresentadas, começavam a vender CDs de músicas andinas. Uma esfera mágica envolvia o povo. O território transforma-se em um espaço de sociabilidade, construído a partir da territorialidade musical. R e v i s t a T e s s i t u r a s G e o g r á f i c a s – F A C O S / C N E C O s ó r i o V o l . 1 - N º 1 – I S S N 2 3 1 7 - 4 4 7 1 – D E Z / 2 0 1 2 41 Figura 3 – Espaço de sociabilidade O território da cidade nutre-se e alimenta-se da novidade, da criatividade, apresentando uma grande efemeridade e mobilidade, transformar-se nas mais diferentes formas de territorialidades, expressas no espaço. A cotidianidade nos assedia constantemente refletindo, nos lugares, a permanente e complexa fragmentação do mundo moderno. A construção e destruição dos territórios refletem uma necessidade de os indivíduos manterem laços, mesmo que de forma efêmera, com os lugares em que vivem, buscando assim uma alternativa de sobrevivência. Pode-se enfatizar sobre estas considerações, a renovação constante do conceito de território na Geografia. A este conceito associam-se novos significados e interpretações das ações do homem no espaço, ampliando as possibilidades de investigação. Vivencia-se uma nova dimensão do território. As imagens, registradas pela minha câmera nas ruas da cidade, é a melhor prova viva da nova condição do espaço geográfico. Seriam as imagens, Microterritorialidades? Multiterritorialidades? Transterritorialidades? Nasce, portanto uma nova forma de Geografia, com escalas diferentes de análise. O território está sempre se refazendo no campo social, econômico e político. Muitas vezes, nossa câmera, tem dificuldades de registrar as cenas, os eventos são de R e v i s t a T e s s i t u r a s G e o g r á f i c a s – F A C O S / C N E C O s ó r i o V o l . 1 - N º 1 – I S S N 2 3 1 7 - 4 4 7 1 – D E Z / 2 0 1 2 42 grande fugacidade, “pulsam” e desmaterializam-se e aparecem instantaneamente em outros lugares. Uma Geografia não tão visível, mas instigante, permitindo uma leitura, a partir dos desencaixes do mundo, contribuindo para a compreensão das complexas relações espaciais da contemporaneidade. Referências BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. SANTOS, Milton. A natureza do espaço. Técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1997. ______. Por uma outra globalização. 17. ed. Rio de Janeiro: Record, 2008. SOUZA, M.J. O território: sobre espaço e poder autonomia e desenvolvimento. In: CASTRO, I.E; GOMES, P.C.C; CORREA, R.L. Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,1995. SUERTEGARAY, D. M. A. et al. Ambiente e lugar no urbano. A grande Porto Alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2000. R e v i s t a T e s s i t u r a s G e o g r á f i c a s – F A C O S / C N E C O s ó r i o V o l . 1 - N º 1 – I S S N 2 3 1 7 - 4 4 7 1 – D E Z / 2 0 1 2 43