OS PARÂMETROS SOCIOSSUBJETIVOS NA PRODUÇÃO DO GÊNERO SENTENÇA Érika Karla Almeida da Silva (PIBIC – UFPB) [email protected] Regina Celi Mendes Pereira (Orientadora – UFPB) [email protected] INTRODUÇÃO As práticas de linguagem escrita envolvem dimensões que ultrapassam os limites da materialidade textual. Atualmente, não podemos falar nessas práticas sem remeter aos estudos sobre letramento, gêneros textuais e processos de ensinoaprendizagem nos quais diversas áreas de conhecimento (tais como a psicologia, a linguística e a sociologia) se encontram e se complementam (cf. PEREIRA, 2010). Tendo em vista as questões político-ideológicas e todos os outros implícitos que subjazem aos textos escritos que circulam na sociedade, pretendemos, neste trabalho, refletir acerca do hermetismo da linguagem jurídica, que tanto nos afeta como cidadãos. Temos como objetivo apresentar um recorte da nossa pesquisa de iniciação científica intitulada “Práticas sociais de escrita: a retextualização de gêneros jurídicos”. Trata-se de uma investigação de caráter descritivo e interpretativo, que se utiliza de um corpus de base documental. Definimos as categorias de análise com base nos parâmetros de constituição e avaliação dos textos propostos por Bronckart (1999). São elas: a situação de ação de linguagem, a infraestrutura, os mecanismos de textualização e os mecanismos enunciativos. Essa análise está ancorada na perspectiva teórico-metodológica do Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) que tem como principais teóricos: Bronckart, Schneuwly e Dolz. Adotamos a concepção bakhtiniana de linguagem e o conceito bronckartiano de arquitetura textual. Inicialmente, apresentamos as contribuições teóricas, evidenciando alguns conceitos fundamentais do ISD acerca das concepções de língua, atividade de linguagem, arquitetura textual etc. Em seguida, delimitamos o gênero jurídico tomado como objeto de estudo e estabelecemos as categorias de análise. Partimos, então, para a interpretação dos dados a partir do processo de retextualização dos textos constitutivos do corpus. Por fim, seguem as considerações finais e as referências. Esperamos que as reflexões fomentadas adiante possam contribuir para o redimensionamento do hermetismo da linguagem jurídica, visando uma maior acessibilidade a esse letramento. 1. A PERSPECTIVA TEÓRICO-METODOLÓGICA DO ISD O Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) tem como principais teóricos: Bronckart, Schneuwly e Dolz (que fazem parte do Grupo de Genebra); e recebe influências de Vygotsky, Bakhtin e Habermas. Tais influências conferem a essa perspectiva de estudo sobre as práticas de linguagem uma visão interdisciplinar, uma vez que reúne a linguística, a psicologia e a sociologia. De acordo com Bronckart (2006, p. 10), O ISD aceita todos os princípios fundadores do interacionismo social e contesta, portanto, a divisão atual das Ciências Humanas/Sociais: nesse sentido, não é uma corrente propriamente linguística, nem uma corrente psicológica ou sociológica; ele quer ser visto como uma corrente do humano. Para o autor, as condutas humanas são analisadas como ações humanas significantes (situadas), produtos da socialização. As condutas verbais (que constituem o nosso objeto de investigação) são concebidas como formas de ação específicas (semióticas) e em interdependência com as ações não-verbais. Desse ponto de vista, a linguagem é concebida como um fenômeno interativo, do que decorre a concepção de língua como “uma atividade constitutiva da ação humana e que se constrói, continuamente, nas interações entre os seres humanos”, como bem afirma Pereira (2009, p. 113) em coerência com os princípios teóricos defendidos em nosso projeto. As atividades de linguagem são reguladas pelos gêneros textuais, que funcionam como instrumentos de nossas práticas na sociedade. Segundo Bhatia (2009, p. 178), “os gêneros derivam sua autoridade das convenções, que se baseiam na crença de que todas as formas discursivas, especialmente aquelas usadas em contextos institucionalizados, são socialmente determinadas.” A ação de linguagem tem, portanto, um caráter social. Ela é atribuída a um agente por meio do agir comunicativo, materializando-se numa entidade empírica, o texto. Este é organizado segundo uma arquitetura interna composta, conforme Bronckart (1999), por três camadas: infraestrutura textual, mecanismos de textualização e mecanismos enunciativos. A infraestrutura do texto comporta os tipos de discurso e de sequências que o caracterizam. Essa camada corresponde ao nível mais profundo da arquitetura textual, envolvendo diversas formas de planificação: organização do conteúdo temático, articulações entre os tipos de discurso, esquematizações etc. Os mecanismos de textualização, por sua vez, dizem respeito a três elementos: a conexão, a coesão nominal e a coesão verbal. Essas estruturas linguísticas contribuem para o estabelecimento da coerência temática, possibilitando uma relação coesa entre os enunciados. Já os mecanismos enunciativos estabelecem os posicionamentos enunciativos (vozes) e as modalizações, que se referem à dimensão configuracional do texto, contribuindo com os aspectos de sua coerência pragmática. De acordo com a função que expressam, as modalizações podem ser classificadas em: lógicas (julgamentos sobre o valor de verdade das proposições enunciadas), deônticas (avaliações pautadas em valores sociais), apreciativas (julgamentos subjetivos) e pragmáticas (avaliações referentes à capacidade de ação e à intenção do agente). Em consonância com o nosso aporte teórico, tomamos, então, a escrita como objeto de análise em seus diferentes aspectos: contexto de produção e critérios de apreensão do texto escrito. 2. GÊNERO JURÍDICO EM FOCO: SENTENÇA CRIMINAL Definimos como objeto de estudo deste trabalho o gênero sentença, especificamente as sentenças criminais. E tomamos como foco de análise os seguintes aspectos: seus parâmetros de produção, sua arquitetura textual e seus elementos constitutivos. Nesse sentido, entra em jogo todo o contexto de produção, bem como o conjunto de estruturas linguísticas, vozes e modalizações que constituem esse gênero jurídico. Foram lidas diversas sentenças a fim de nos familiarizarmos com a infraestrutura e outros mecanismos textuais comuns a esse gênero jurídico. Organizamos, então, um corpus contendo cinco amostras, dentre as quais se encontra a sentença do caso Isabella Nardoni que teve grande repercussão social. No processo de seleção, levamos em consideração o conteúdo da sentença, a fim de termos condições de situar aspectos concernentes à situação da ação de linguagem tomada como parâmetro de produção textual. A sentença é um gênero jurídico cuja função social é dar um veredicto a uma ação impetrada. Tendo em vista seu caráter jurídico, podemos dizer que ela deve se apoiar essencialmente nas representações do mundo objetivo (referente aos parâmetros do ambiente) e do mundo social (referente à organização da tarefa regulada por normas); e não na representação do mundo subjetivo (referente aos conhecimentos acumulados na caracterização do individual) (cf. HABERMAS, 1989). Isso não significa dizer que as marcas subjetivas não possam estar presentes nesses gêneros, afinal tem-se um sujeito na qualidade de enunciador. De maneira geral, pretendemos analisar os parâmetros de produção do texto jurídico (especificamente das sentenças criminais) e definir suas principais características. Dessa forma, procuramos elucidar o hermetismo e a inacessibilidade desse gênero, investigando formas alternativas de reproduzir o discurso materializado nas sentenças. 3. O PROCESSO DE RETEXTUALIZAÇÃO E AS CATEGORIAS DE ANÁLISE Demos início, num primeiro momento, ao processo de retextualização dos gêneros jurídicos por acreditarmos que essa atividade é de suma importância, uma vez que aprofunda nossa compreensão acerca dos textos e nos permite fazer uma categorização mais criteriosa dos elementos linguísticos e discursivos. Logo nos primeiros contatos com os textos, percebemos o quanto é obscura e hermética a linguagem jurídica. E começamos a discutir, a tecer reflexões acerca do que justifica essa prática de linguagem. A preocupação com esse hermetismo é bem antiga, tanto que, com o intuito de aproximar o judiciário da sociedade, foi lançada em agosto de 2005 pelo presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) a Campanha pela Simplificação da Linguagem Jurídica. Contudo, verificamos que o apelo por tal simplificação não foi atendido. Nas faculdades, é ensinado o Direito Romano, o que talvez justifique o fato de os graduandos se habituarem aos termos mais rebuscados, muitas vezes registrados na língua latina. Sentimos inicialmente muita dificuldade em proceder a retextualização, pois conforme afirma Marcuschi (2001), para dizer de outro modo algo dito por alguém se faz necessário, antes de qualquer coisa, compreender o que esse alguém disse ou quis dizer. A compreensão deve, então, ser o primeiro passo do processo de retextualização e merece atenção especial, uma vez que pode ser a fonte de muitos problemas no plano da coerência de tal processo. De acordo com Marcuschi (2001, p. 74), o processo de retextualização é caracterizado especialmente pelas regras de transformação que “se fundam em estratégias de substituição, seleção, acréscimo, reordenação e condensação” de palavras (e não de ideias), o que acarreta mudanças acentuadas no texto-base. Retextualizar foi também nossa forma de interpretar os textos jurídicos, tendo em vista a simplificação da linguagem. Analisamos os parâmetros de produção desses textos e definimos suas características linguístico-discursivas, bem como outros aspectos constitutivos do gênero em estudo. Apresentamos a seguir algumas das discussões levantadas, no que diz respeito às quatro categorias de análise já definidas. 3.1 Situação de ação de linguagem Pelos textos lidos, constatamos que ocorre o uso excessivo e desnecessário de termos técnicos do Direito. Há inclusive o emprego de siglas (comuns em contexto jurídico) sem nenhuma referência dentro do texto aos vocábulos aos quais correspondem. Não se tem em vista, portanto, o leitor comum. Podemos dizer que o interlocutor em foco, no caso do gênero sentença, é o advogado. Segundo Bhatia (2009, p. 179), os gêneros são “o meio através do qual os membros de comunidades profissionais ou acadêmicas comunicam-se entre si.” Desse ponto de vista, a linguagem empregada estaria adequada ao contexto, pois o magistrado escreve para quem entende do assunto. No entanto, pensando no propósito comunicativo desse gênero jurídico, consideramos importante a prática de uma escrita inclusiva, de modo que as pessoas envolvidas no processo possam ter acesso a essa leitura e sejam capazes de compreender (de forma autônoma) o que está sendo dito pelo juiz. É relevante mencionar que, ao longo das leituras (de diferentes gêneros jurídicos), percebemos um maior rebuscamento e obscuridade da linguagem nos textos produzidos pelo magistrado. Sendo assim, notamos um tom de preponderância no falar difícil do juiz como uma auto-afirmação do magistrado perante a sociedade e possivelmente perante o próprio advogado. Colocamos abaixo um trecho de uma das sentenças de nosso corpus que evidencia bem o hermetismo da linguagem jurídica: Ante o exposto, julgo extinta a punibilidade do réu, qualificado na petição inicial do crime do artigo 129, caput e determino o arquivamento do feito. P. RI e cumpra-se. Sem Custas. Após o Trânsito em Julgado, arquivem-se com as cautelas de estilo e proceda com a baixa na distribuição, com urgência, pois é processo da categoria da meta 2 do CNJ. Discutindo sobre os possíveis meios de tornar o texto mais compreensível, tivemos a ideia de construir um “Glossário Jurídico” dos termos e/ou expressões mais específicas encontradas em cada texto. Apresentamos (como construção inicial) o seguinte glossário para o trecho acima: Baixa na distribuição: diz respeito ao arquivamento do processo. Caput: designa a cabeça do artigo de lei quando este contiver incisos e/ou parágrafos. CNJ: Conselho Nacional de Justiça. Extinta a punibilidade: a punibilidade ou a capacidade de ser punido é extinta por motivos previstos no artigo 107 do Código Penal. O delito não deixa de existir, mas o infrator não pode ser punido por motivos previstos em lei. Petição inicial (também denominada petição exordial): é a peça inicial do processo, na qual o autor formula o seu pedido. Assim, a resposta do réu e a sentença proferida pelo juiz terão por base o conteúdo apresentado na petição inicial, que especificará os limites da lide. Note-se que o magistrado não poderá decidir além, aquém ou fora do pedido formulado pelo autor na inicial. P.R.I.: Publique-se Registre-se. Intime-se. Sem custas: significa que o processo judicial não acarreta despesas para as partes (pessoas envolvidas no processo). Trânsito em julgado: diz-se que o processo foi transitado em julgado quando proferida sentença que não poderá mais ser modificada, por ter passado o prazo determinado para todos os eventuais recursos permitidos, ou por não caber sobre ela quaisquer recursos. Colocamos abaixo um trecho de outra sentença, com o intuito de exemplificar o emprego dos termos em latim nos textos jurídicos; e, logo em seguida, apresentamos as definições desses termos de acordo com Santos (2001): Irroga-lhes a persecutio criminis de fls. 02 ut 03, a prática de delitos sob o nomem juris de latrocínio e ocultação de cadáver cometido em detrimento de M.P.C.. Persecutio criminis: “(Lê-se: persecúcio críminis.) Literalmente: perseguição do crime. Comentário: A expressão, no âmbito jurídico, significa: perseguição judiciária ao crime; delito à infração penal.” Ut: “(Lê-se: út.) Como; assim como.” Nomen júris: “(Lê-se: nómem iúris.) O nome de direito, isto é, a denominação legal definindo um ato, um fato ou um instituto jurídico.” 3.2 Infraestrutura As sentenças são geralmente estruturadas em três partes: relatório, fundamentação e decisão. O relatório situa o que aconteceu, qualificando os réus e apresentando um resumo do fato que desencadeou o processo. Nessa parte, são bastante utilizadas as sequências narrativas. A fundamentação, por sua vez, é o espaço em que o juiz fundamenta (através do conjunto de provas) a quem ele vai ceder o direito. São utilizadas, para tanto, sequências argumentativas. É comum encontrarmos nesse espaço a jurisprudência e algumas citações de artigos, leis, códigos etc.. Já a decisão, também chamada dispositivo, corresponde ao julgamento e se constrói em geral por meio de sequências expositivas e injuntivas. 3.3 Mecanismos de textualização É comum encontrarmos nos textos jurídicos frases que se estendem por um parágrafo inteiro, com dezenas de vírgulas, condicionais, apostos etc.. Identificamos problemas de pontuação e na referenciação de pronomes, e sentimos falta de elementos de gradação e conexão nos textos em análise. Tudo isso faz com que a linguagem seja bastante truncada, confusa, dificultando a compreensão e exigindo, em alguns casos, que o leitor volte algumas vezes no texto em busca da conexão das ideias. Selecionamos, dentre as sentenças analisadas, três trechos que exemplificam problemas dessa natureza, e, abaixo de cada exemplo, apresentamos uma possibilidade de retextualização. Exemplo 1: Cuida-se de ação penal proposta pelo Ministério Público em face de José Marcos Francisco Santana, qualificado na petição criminal, pela prática do tipo incurso no art. 121 ‘’caput”c/c art 14, II, do Código Penal. Aduz que no dia 15/03/97, por volta das 18hs o réu desferiu próximo a uma casa de prostituição do setor oeste de Almas-TO, 02(dois), tiros em George Nunes de Alcântara. Retextualização 1: Trata-se de ação penal proposta pelo Ministério Público (MP) contra José Marcos Francisco Santana, qualificado na petição criminal pela prática do delito tipificado no art. 121 ‘’caput”c/c art 14, II, do Código Penal (CP). Apresenta que no dia 15/03/97, por volta das 18hs, próximo a uma casa de prostituição do setor oeste de Almas-TO, o réu disparou 02 (dois) tiros contra George Nunes de Alcântara. É interessante observar nesse trecho o emprego da expressão “em face de” (usada em situações comuns do cotidiano como equivalente a “diante de”) que, no texto jurídico, possui um significado bastante diferente do usual (“em face de” = contra). Exemplo 2: A instrução criminal se realizou em duas assentadas, onde foram auscultadas as testemunhas arroladas pelo Órgão Ministerial, e, pela defesa foi ouvida primeiramente a testemunha Francisca Rodrigues da Silva, e, na segunda audiência, as testemunhas Edimar Rodrigues da Silva e Justo Ferreira da Silva, sendo ainda neste ato ouvida como testemunha do Juízo a pessoa de Raimundo de Souza Parente. Retextualização 2: A instrução criminal se realizou em duas sessões, onde foram ouvidas as testemunhas listadas pelo Órgão Ministerial. Pela defesa, foi ouvida primeiramente a testemunha Francisca Rodrigues da Silva, e, na segunda audiência, as testemunhas: Edimar Rodrigues da Silva e Justo Ferreira da Silva. Ainda neste ato, foi ouvida, como testemunha requerida pelo juiz, a pessoa de Raimundo de Souza Parente. Exemplo 3: A ilustrada defesa do denunciado, realizada pelo zeloso Defensor Público com exercício de atribuições perante este Juízo, na pessoa do Dr. Leonardo Oliveira Coelho, em seu arrazoado de fl. 135/150, postulou, num primeiro momento, pela absolvição do acusado, e, alternativamente no caso de lhe ser imputada a autoria dos fatos, a isenção da pena com fundamento no § 1º do artigo 28, CPB, pelo fato do mesmo estar embriagado, e/ou não sendo este o entendimento, a redução de 2/3 da pena, com base no § 2º, do artigo 28, CPB, e, ainda na hipótese de uma condenação seja a pena fixada em seu mínimo legal, lavando-se em conta as circunstâncias judiciais favoráveis, bem como a atenuante genérica prevista no artigo 66, do CPB. Retextualização 3: A ilustrada defesa do denunciado, realizada pelo zeloso Defensor Público com exercício de atribuições perante este Juízo, na pessoa do Dr. Leonardo Oliveira Coelho, em seu arrazoado de fl. 135/150, postulou, num primeiro momento, pela absolvição do acusado, e, alternativamente, no caso de lhe ser imputada a autoria dos fatos, a isenção da pena com fundamento no § 1º do artigo 28, CPB, pelo fato de o mesmo estar embriagado. Não sendo este o entendimento, postula-se a redução de 2/3 da pena, com base no § 2º, do artigo 28, CPB. E, ainda na hipótese de uma condenação, que a pena seja fixada em seu mínimo legal (pena mínima do artigo), lavando-se em conta as circunstâncias judiciais favoráveis, bem como a atenuante genérica (condição que diminui a pena) prevista no artigo 66, do CPB. 3.4 Mecanismos enunciativos Constatamos, com base no corpus de nossa pesquisa, uma incidência maior de modalizações apreciativas, que revelam uma visão e/ou avaliação mais subjetiva do autor. Apresentamos abaixo alguns trechos de sentenças nos quais podemos observar nitidamente essas marcas de subjetividade: (...) se o réu tivesse intenção de matar, por ser uma pessoa simples e do campo, dificilmente erraria e seria caso de óbito certo. A vulnerabilidade do réu, que alega estar enfermo e com parafusos nos braços e pernas, em nenhum instante foi sequer apontada na fase policial; o que é um fato estranho, pois no calor dos fatos, há 10 (dez) anos atrás, no meu ver, seria uma das primeiras alegações de qualquer cidadão comum que estivesse em desvantagem física com inimigo (...) Salta aos olhos a ausência de intenção de matar, havendo tão somente a agressividade condenável, porém natural, de pessoas que se embriagam ao ponto de não conseguirem revelar como ocorreram fatos ou agressões que perpetraram ou sofreram. Ser neutro e parcial é uma questão de dever jurídico do magistrado. Só assim ele irá prezar pela justiça. De acordo com Pereira (2009, p. 126), “quando enunciamos, estamos sempre nos posicionando em relação aos fatos do mundo, regulados por normas e valores, mas também submetidos as nossas próprias avaliações à luz dos objetivos pretendidos e das capacidades que nos são atribuídas socialmente.” A materialidade linguística reside propriamente nas escolhas efetuadas pelo enunciador, nas quais, apesar do condicionamento exercido pela estrutura composicional do gênero (que prevê a presença de outras vozes), deixa latentes suas marcas de subjetividade. Nessa perspectiva, tomamos como um dos problemas de pesquisa a observação das marcas de subjetividade presentes nos textos em análise, refletindo até que ponto essas marcas comprometem a funcionalidade do gênero sentença. De maneira geral, podemos dizer que as marcas identificadas não comprometem a decisão do magistrado. CONSIDERAÇÕES FINAIS O trabalho permitiu-nos analisar os parâmetros de produção e a materialidade textual das sentenças criminais, identificando seus elementos constitutivos e definindo suas características linguístico-discursivas. Os resultados indicam que não se tem em vista o leitor, ocorrendo, por exemplo, o uso excessivo e desnecessário de termos técnicos do Direito. Através do processo de retextualização, foi possível chegar a textos que podem servir como uma modalidade variante à linguagem jurídica, a fim de tornar essa linguagem mais clara, compreensível, pensando num leitor comum. Considerando o quanto o hermetismo da linguagem jurídica nos afeta como cidadãos, acreditamos que nossa pesquisa pode contribuir para a ampliação desse domínio discursivo, visando à acessibilidade do texto jurídico. REFERÊNCIAS BHATIA, Vijay K. A análise de gêneros hoje. In: BEZERRA, B. G.; BIASERODRIGUES, B.; CAVALCANTE, M. M. (orgs.). Recife: Edupe, 2009. BAZERMAN, Charles. Escrita, Gênero e Interação Social. (Org.) HOFFNAGEL, Judith; DIONÍSIO, Angela. São Paulo: Cortez, 2007. BRONCKART, Jean-Paul. Atividades de linguagem, textos e discursos. São Paulo: Educ, 1999. ___________. Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano. São Paulo: Mercado de Letras, 2006. ___________. A atividade de linguagem em relação à língua – homenagem à Ferdinand de Saussure. In: GUIMARÃES, A. M. de M.; MACHADO, A. R; COUTINHO, A. (orgs.). O interacionismo sociodiscursivo – questões epistemológicas e metodológicas. São Paulo: Mercado de Letras, 2007, p. 19-42. HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2001. PEREIRA, Regina Celi Mendes. Do social ao psicológico: os caminhos que conduzem à materialização do texto escrito. In: PEREIRA, R. C. M.; ROCCA, M. Del Pilar. (orgs.). Linguística Aplicada: um caminho com diferentes acessos. São Paulo: Contexto, 2009. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 2009. SANTOS, Washington dos. Dicionário jurídico brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. VYGOTSKY, Lev Semyonovitch. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984 [1930]. ___________. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1987 [1934]. ANEXO PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DO TOCANTINS COMARCA DE ALMAS Processo nº 072/99 Autor: Justiça Pública Réu: JOSÉ MARCOS FRANCISCO SANTANA Advogado: Jose Antônio Fernandes Miranda SENTENÇA Cuida-se de ação penal proposta pelo Ministério Publico em face de Jose marcos Francisco Santana, qualificado na petição criminal, pela pratica do tipo incurso no art. 121 ‘’caput”c/c art 14, II, do Código Penal. Aduz que no dia 15/03/97, por volta das 18hs o réu desferiu próximo a uma casa de prostituição do setor oeste de Almas-TO, 02(dois), tiros em George Nunes de Alcântara. Alega que o que motivou o delito foi ciúmes de Iraci, suposta amante do réu.Denuncia recebida em 25/02/1999. Defesa previa conforme o novo do CPP às fls . 78 em que o réu alega a excludente de ilicitude da legitima defesa e que o réu não teve intenção de matar o réu, apenas de se defender e após o disparo da arma de fogo desistiu voluntariamente de efetuar novos disparos de fogo. Aponto, ademais, que não havia testemunha ocular do crime. Instrução (fls 83/90), em que foi ouvida apenas uma testemunha da acusação (fls. 83/84). O MP pugnou pela desclassificação do delito para o de crime de lesão corporal, caput, considerando que a instrução processual foi carente de provas. Entendeu que não é caso de pronúncia e que diante da perícia de fls 11/13 ficou evidenciado o crime de lesão corporal, do tipo penal previsto no art 129, caput do CP. A defesa, no seu turno, propõe a tese da legitima defesa, pois o réu estava enfermo e a vitima estava com uma faca ameaçando-o de morte na data do fato típico. Eis o breve relato dos autos. Decido. Não há registro de preliminares apontadas pelas partes. Passo a analise da tese da legitima defesa e após a alegação do pedido de desclassificação formulado pelo MP. A vitima não compareceu a instrução processual, mas declarou às fls. 14 que o réu disparou 02(dois) tiros numa distancia de 03( três) metros. Ficou esclarecido no IQP que o revolver utilizado no delito era de calibre 38, e com capacidade para 06(seis) tiros, mas não registrou-se no caderno inquisitorial se havia no cartucho 04 (quatro) cartuchos intactos. O crime foi cometido sem testemunha ocular , circunstância evidenciada tanto no IQP quanto na instrução criminal. Às fls 31/32 o réu em interrogatório policial disse que foi encurralado por George com uma faca e numa distancia de 14(quatorze) metros efetuou os disparos de fogo. A testemunha vital Sra. Alcimar F.R. dos Santos para o deslinde do processo é falecida, mas na fase inquisitorial testemunhou que o réu disparou dois tiros à queima –roupa numa distancia de 2 (dois) metros e que a vitima não tinha qualquer arma. Alegou, ainda, que o crime ocorreu após calorosa discussão motivada por ciúmes na frente de uma casa de prostituição. Às fls 71, no dia 09/09/2008 o réu foi citado para responder esta ação penal. Vislumbro que não há nos autos qualquer prova de que o réu agiu em legitima defesa e as testemunhas do inquérito refutam o “animus” do agente – vontade de defender-se. Não ficou sequer esclarecido se possível Legítima defesa ficasse demonstrada de quem partiu a ameaça injusta; ainda com a ressalva de que ninguém viu faca alguma sendo utilizado pela vitima em ameaça ao acusado. O que pareceu ficar provado é que o motivo do crime foi decorrente de ciúmes; apesar do réu ter querido desmentir esse fato em juízo, as demais provas dos autos evidenciaram o contrario ( testemunha do IQP , a própria confissão do réu na fase policial e a única testemunha do juízo). A vulnerabilidade do réu, que alega estar enfermo e com parafusos nos braços e pernas, em nenhum instante foi sequer apontada na fase policial; o que é um fato estranho, pois no calor dos fatos, há 10 (dez) anos atrás, no meu ver, seria uma das primeiras alegações de qualquer cidadão comum que estivesse em desvantagem física com inimigo ,em situação precária de “ perigo de vida, narraria na Delegacia de Polícia ’. Dessa forma, excluo a tese da legitima defesa por não estar configurado os requisitos objetivos e subjetivos do artigo 23 do CP pois o réu não provou em juízo que se defendeu moderadamente e com os meios necessários em seu alcance diante de uma agressão injusta e atual. Entretanto, considero que não é caso de animus para configurar homicídio pois o animus provado foi “ apenas para ferir a vitima”. A vitima, apesar de ausente na instrução criminal, confessou em harmonia com a testemunha falecida que o autor estava há menos de 03 metros de sua presença e o 1º tiro foi de raspão e o 2º inexitoso. O juízo criminal de Almas –TO é uno, motivo pelo qual declaro-me competente para a analise do crime de lesão corporal do artigo 129, caput, conforme os fatos narrados na denuncia e nos termos do artigo 418 do CPP; passo ao julgamento. A autoria do crime é certa conforme confirmação do réu em juízo de ter efetuado os disparos de fogo e o “animus” decorre do próprio fato , pois se o réu tivesse intenção de matar, por ser uma pessoa simples e do campo dificilmente erraria e seria caso de óbito certo. A materialidade do crime está provada no laudo de fls. 11/13 e no testemunha de mais na fase policial. Segundo entendimento doutrinário de Alberto Silva Franco e Rui Stocco o fato elencado é prova para aferir o animus do delito e entendo que é caso de crime de lesão corporal, pois nesses autos ficou provado que o réu não tinha intenção de matar a vitima, na medida que: “ o critério reitor para distinguir claramente esse momento deve ser o da busca da identificação da vontade consciente do Sujeito Ativo, ou seja, do dolo, bem como a aferição da existência do maior numero possível de elementos objetivos, que possam indicar a sede e a natureza das lesões sofridas pela vitima e a eficiência dos meios ou modos de execução”( vide fls. 625 Codigo Penal interpretado, 8ª edição, Editora Revista dos Tribunais, ano 2007). Entretanto, forçoso reconhecer, de ofício, a prescrição punitiva, com base no artigo 61, CCP c/c artigos 107, IV, CP e artigo 109, VI CP, pois a denúncia foi recebida em fevereiro de 1999 e já se passaram mais de 10 (dez) anos sem outra causa que interrompesse a prescrição. Ante o exposto, julgo extinta a punibilidade do réu, qualificado na petição inicial do crime do artigo 129, caput e determino o arquivamento do feito. P. RI e cumpra-se. Sem Custas. Após o Trânsito em Julgado , arquivem-se com as cautelas de estilo e proceda com a baixa na distribuição, com urgência, pois é processo da categoria da meta 2 do CNJ. Almas, 14 de agosto de 2009. Luciana Costa Aglantzakis Juíza de Direito