GERENCIALISMO, ESTADO E AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA: VALORES EM CONFRONTO Luciane Terra dos Santos Garcia Lenilton Batista do Nascimento Marilow Alessandra Tavares Fernandes A reforma do Estado, conforme os princípios gerenciais, levou à configuração do Estado-avaliador que promove formas de regulação da educação assentes na lógica do mercado. Isso implicou meios de controle sobre o trabalho escolar mais fluidos e na responsabilização de seus profissionais pelos resultados educacionais. Nesse contexto, a instituição de sistemas nacionais de avaliação da educação assume importância no controle sobre o trabalho escolar e na socialização de valores que atendem às atuais necessidades do sistema capitalista. Assim, esta pesquisa teórica tem por objetivo analisar de que modo os valores gerenciais difundidos na reforma educacional da década de 1990 foram incorporados na implementação do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB), no período de 1990 a 2002. Entende-se que a implantação do SAEB tem difundido valores como a hierarquização, o individualismo, a centralização do poder, além de fomentar a concorrência entre as escolas visando imprimir maior qualidade na educação nacional, entretanto esse último fim não tem sido alcançado. Palavras chave: gerencialismo; Estado avaliador; SAEB. GESTION, ÉTAT ET ÉVALUATION DE L’ENSEIGNEMENT FONDAMENTAL: VALEURS EN CONFLIT La réforme de l’État, en fonction des principes de gestion, a conduit à la configuration d’un État évaluateur, qui promeut des formes de régulation de l’éducation qui s’appuient sur la logique du marché. Cela a mené à des moyens de contrôle du travail scolaire plus souples et à la responsabilisation des professionnels quant aux résultats de l’enseignement. Dans ce contexte, l’instauration de systèmes nationaux d’évaluation de l’éducation prend de l’importance au niveau du contrôle du travail scolaire et de la socialisation de valeurs qui répondent aux besoins actuels du système capitaliste. Ainsi, cette recherche théorique a pour but d’analyser la façon dont les valeurs de gestion préconisées par la réforme éducative des années 1990 ont été incorporées dans la mise en place du Système National d’Évaluation de l’Enseignement Fondamental (SAEB), entre 1990 et 2002. Nous percevons que l’implémentation du SAEB a diffusé des valeurs telles que la hiérarchisation, l’individualisme, la centralisation du pouvoir, tout en promouvant la concurrence entre les écoles de façon à offrir une meilleure qualité d’enseignement national, toutefois, ce dernier objectif n’a point été atteint. Mots-clés: gestion; État évaluateur; SAEB. CONTEXTUALIZANDO A DISCUSSÃO Este trabalho tem como objetivo analisar de que modo os valores gerenciais, difundidos na reforma educacional da década de 1990, foram incorporados na 2 implementação do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB), no período de 1990 a 2002. Isso porque a escola pública tem se constituído historicamente em privilegiado espaço de construção de valores sociais, tornando as reformas educativas um meio de difundir o projeto social e educativo que forças conservadores, atuando em âmbito transnacional, pretendem difundir globalmente. Para tanto, estruturamos este artigo em três partes: na primeira, descrevemos brevemente o atual contexto histórico que suscita as mudanças educacionais; na segunda, analisamos o desenvolvimento do gerencialismo bem como os princípios e os valores que orientaram a formação do Estado Avaliador e a reforma educacional; por fim, refletimos acerca do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica como instrumento de regulação da educação brasileira e como de socialização de valores. O atual contexto socioeconômico e político se caracteriza por uma série de mudanças impulsionadas pela reestruturação produtiva, pelo neoliberalismo e pela globalização da economia. Em tal contexto, conforme Bruno (2003), o Estado deixa de ocupar o centro das articulações entre os sindicatos e as empresas e estas ocupam o vértice das relações de poder. Nesse novo arranjo organizativo das relações capitalistas, o Estado operacionaliza as decisões dos centros de poder transnacional e as legitima juridicamente. Assim, os governantes locais perderam, em grande parte, sua autonomia em elaborar e implementar políticas próprias, submetendo-se (e concordando com) às orientações das grandes corporações e de seus credores. Em meio a essa confluência de poderes, os Estados reformam seus aparelhos político-administrativos e de controle social, uma vez que cresce a pressão para que deixem de produzir bens e serviços e repassem essa função para a iniciativa privada, transformando-se em reguladores dos interesses definidos externamente. Como representantes nacionais dos interesses político-econômicos transnacionais, os Estados realizam reformas nos seus aparelhos educacionais, que variam conforme a posição socioeconômica e política que os países ocupam no mercado transnacional. As modalidades de reformas que estão sendo implementadas na atualidade são marcadas pela redução de gastos com a educação e pela difusão do projeto social conservador, colocando-se, portanto, distantes de uma concepção de desenvolvimento humano e de igualdade social. Na América Latina e Caribe, segundo Carnoy (1995; 2002), as reformas educacionais se fundam em imperativos financeiros para reduzir os gastos públicos, aumentar a eficácia dos recursos disponíveis e a qualidade da educação. 3 Essas reformas reduzem a intervenção do Estado na manutenção e na administração dos serviços educativos, mantendo-se, entretanto, o seu poder decisório. O Estado assume a função de regulação, que, segundo Freitas, L. (2005), é um termo construído no interior das políticas públicas neoliberais e denota uma modificação na sua atuação; pois transfere a regulação para o mercado como parte de um conjunto de processos por meio dos quais se realiza a privatização do público. Na particularidade da educação, abre-se espaço para a criação de quase-mercados educacionais, que indica que “a regulação feita pelo Estado não é contraposta ao mercado, pois a criação e manutenção do mercado dependem do Estado” (FREITAS, L. 2005, p. 913). No Brasil, a criação de quase-mercados educacionais vem consolidando uma nova forma de organizar e gerir o sistema educacional visando atender às demandas educacionais por meio da descentralização de poderes e de encargos da União para os governos locais, para a escola e para o mercado. Por outro lado, a ação do Estado também tem se caracterizado pela interferência nos sistemas e nas instituições escolares, conforme as orientações de instâncias transnacionais de poder que induzem as reformas educacionais. Esse Estado tem sido caracterizado como avaliador o que denota novos parâmetros de regulação da educação segundo princípios e valores gerenciais. A REFORMA DO ESTADO E A ADMINISTRAÇÃO GERENCIAL DA EDUCAÇÃO A crise econômica da década de 1970, nos principais países do sistema capitalista, expressou a necessidade de o Estado tornar-se mais eficiente substituindo o modelo burocrático pelo gerencial, visto que a racionalidade burocrática não responderia aos reclamos de um mundo em constante transformação. Conforme Chanlat (1990), o gerencialismo teve origem nas atividades comerciais e industriais da segunda metade do século XIII; contudo, somente a partir dos anos de 1980 tornou-se uma realidade social impulsionada pelos imperativos financeiros das economias globalizadas. Designa tanto um conjunto de práticas e processos para se atingir um determinado fim quanto os atores que ocupam função de gestão. A partir da década de 1980, com a vitória do neoliberalismo sobre o Estado providência, o modelo gerencial ganhou centralidade na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos e no Chile, tendo como foco o corte de gastos no setor social. Segundo Abrúcio (2005), o gerencialismo não se constitui em um corpo teórico fechado, desenvolvendo- 4 se a partir de diversas experiências e reestruturando-se a partir das críticas que lhe são dirigidas. Segundo o autor, na Inglaterra, no decorrer das décadas de 1980 e 1990, o gerencialismo aplicado ao Estado evoluiu a partir de três visões da administração pública: 1) o gerencialismo puro que objetiva reduzir custos dos serviços públicos e aumentar a sua produtividade a partir da privatização das empresas nacionais, da desregulamentação e do repasse de atividades do governo para a iniciativa privada e para a sociedade; 2) o consumerism que introduz o conceito de qualidade nos serviços públicos para atender às necessidades dos clientes/consumidores por meio do incremento da competição entre as organizações do setor público, da delegação de autoridade para os consumidores fiscalizarem os serviços públicos e da avaliação dos resultados obtidos pelas suas agências e pelos seus programas; 3) por fim, o public service orientation traz um debate recente que incorpora as potencialidades do modelo gerencial e introduz conceitos como accontability, transparência, participação, equidade e justiça, além da defesa da participação dos cidadãos nas decisões locais. Esses ajustes aplicados ao modelo gerencial cujas ideias provêm da esfera privada visam adequá-lo para aplicação na gestão pública, não substituindo completamente o padrão weberiano. É certo que os serviços públicos precisam adaptarse ao novo contexto sócio histórico e responder às demandas que lhes são postas. Não se deve esquecer, entretanto, as suas especificidades visto que tem como objetivo prover serviços de qualidade para toda a população, o que extrapola a noção de consumidor que reduz a garantia de serviços àqueles que podem arcar com os seus custos. Da mesma forma, a qualidade dos serviços públicos também não pode ser alcançada pelo incentivo à concorrência que implica a co-existência de vencedores e de vencidos. Uma vez que a qualidade do serviço público deve estender-se a todos, isso implica possibilitar o crescimento coletivo assegurando o caráter democrático da participação na construção das políticas públicas, em especial, nas educacionais. Os serviços prestados pela esfera privada estão distantes de um caráter democrático que garanta direitos iguais para todos os cidadãos; por isso, mesmo que em sua evolução o gerencialismo incorpore, no discurso, conceitos como participação, justiça e equidade estes aparecem, de fato, com sentido bastante limitado. A participação se reduz a decidir quanto a melhor forma de implementar as políticas em âmbito local e não a defini-las. Seguindo essa mesma lógica, os defensores do gerencialismo acreditam que a construção da justiça e da equidade social pode ser 5 alcançada mediante a garantia do mínimo de serviços destinados à população mais pobre, o que desmente o sentido da igualdade social. Em grande medida as mudanças na administração pública em diferentes Estados foram legitimadas pela difusão de um sentimento contrário à burocracia estatal e favorável à iniciativa privada, considerada como um ideal a ser seguido nos serviços públicos. Castro (2007) afirma que a reforma gerencial caracteriza-se “[...] pela busca da eficiência, pela redução e pelo controle dos gastos e serviços públicos, bem como pela demanda de melhor qualidade e pela descentralização administrativa, concedendose, assim, maior autonomia às agências e departamentos”. A partir da década de 1990, essas ideias influenciaram as reformas do Estado brasileiro e, em particular, da educação no intuito de melhorar a qualidade dos serviços públicos. Na visão liberal de Bresser-Pereira (1998 p. 80), o crescimento do Estado e as modificações recentes de suas funções mostraram a ineficiência do modelo burocrático que não responde mais aos impositivos da gestão que requer posturas “[...] mais ágeis, descentralizadas, mais voltadas para o controle de resultados”, com a participação da sociedade no controle da gestão dos serviços públicos. As reformas do Estado brasileiro orientadas pelo modelo gerencial, entretanto, não ocorreram de forma imediata, mas confrontando-se com outros modelos que orientaram historicamente a gestão pública no país, como o patrimonialismo e o burocrático. Assim, apesar do vigor das ideias gerenciais na orientação da reforma do Estado brasileiro, a sua implantação não acontece em toda a plenitude e ainda são contestadas por diversos grupos sociais dentre os quais os que acreditam que essas reformas precisam fundar-se na consolidação dos princípios democráticos. A exemplo das reformas que o Estado vem implementando na administração pública em geral, também se coloca a necessidade de o Estado imprimir reformas no campo educacional. Entendemos que em grande medida isso se deve ao fato de que, conforme Gramsci (1991), o Estado difunde valores valendo-se da ação do direito e da escola, cooperando, desse modo, para criar certa concepção de civilização e de cidadania. Sendo assim, no atual contexto histórico em que se pretende construir mudanças socioeconômicas a partir de um projeto globalizado de educação e de sociedade torna-se necessário implementar reformas educacionais que socializem valores que atendam às atuais necessidades do capital. Assim, a reforma que o Estado vem implementando na área educacional visa substituir valores burocráticos como a hierarquização das funções e das pessoas, a 6 centralização do poder e o individualismo, por valores como a eficiência, a eficácia, a qualidade e o trabalho coletivo requeridos pelas transformações socioeconômicas em curso. Esses valores não são necessariamente novos, mas se tornaram centrais em função das políticas neoliberais de mercado e das orientações gerenciais. Apesar do discurso contrário, entendemos que o individualismo também é um valor gerencial, pois, embora se preconize o trabalho coletivo como fator de incremento da qualidade da educação e de melhoria das condições de trabalho nas escolas, para que esses objetivos sejam atingidos fomenta-se a competição. Esta tem como consequência separar os que lutam entre si pelos mesmos fins, fomentando, assim, o individualismo. Além disso, em substituição à centralização de poderes que caracteriza o modelo burocrático, é esperado que as pessoas tornem o trabalho escolar eficiente e eficaz por meio de estratégias como a descentralização de poderes e de encargos para os sistemas escolares e para outros campos na sociedade civil. A descentralização de uma série de encargos para os sistemas educacionais e para as escolas modifica a concepção de controle do trabalho escolar sem que, de fato, se descentralize o poder decisório. Dessa forma, o Estado mantém-se forte na indicação das políticas educacionais, descentraliza a execução destas e avalia o trabalho escolar, os profissionais da educação e a aprendizagem dos alunos para verificar se as propostas foram alcançadas. Segundo o gerencialismo, essa articulação (des)centralização a partir de um fluxo contínuo de informação emprestaria maior flexibilidade à ação do Estado. Nesse sentido, a concepção de Estado Avaliador traduz a direção das mudanças que se pretende construir na educação, conforme a lógica do mercado. Na concepção de Afonso (2005, p. 49), essa expressão demonstra que “[...] o Estado vem adotando um ethos competitivo, neodarwinista, passando a admitir a lógica do mercado, através da importação para o domínio público de modelos de gestão privada, com ênfase nos resultados ou produtos dos sistemas educativos”. A partir dessa lógica, que alia os preceitos do Estado Mínimo neoliberal no que se refere ao financiamento da área social e os princípios do gerencialismo, se consolida uma nova forma de regulação da educação. No momento em que a responsabilidade com a educação se descentraliza, não para concretizar preceitos democráticos na educação conforme defendem os educadores críticos, mas para diminuir os gastos com o setor, cresce a necessidade de modificar o controle sobre o trabalho escolar. A esse respeito, Bruno (2003, p. 37) explica que a lógica é manter as unidades escolares “[...] conectadas por laços mais ou menos frouxos ao núcleo central da 7 organização, que exerce o controle global através da definição dos canais de comunicação e informação e da distribuição de recursos”. Dessa forma, comenta a autora, os mecanismos de controle tornam-se relativamente invisíveis e a hierarquia assume a aparência de participação e de autonomia, de modo a possibilitar o desenvolvimento da capacidade reflexiva dos trabalhadores e obter a sua cooperação na implementação das políticas. Dessa forma, ainda conforme Bruno (2003, p. 40), o [...] controle exercido pela organização focal (Ministério da Educação, por exemplo, ou Secretarias, ou ainda por empresas, no caso das parcerias), passa a realizar-se basicamente através da distribuição de recursos, da definição e do controle dos meios de acompanhamento e avaliação dos resultados, do estabelecimento dos canais de distribuição das informações, da definição de padrões gerais de funcionamento das unidades escolares, que estabelecem os limites em que elas devem operar e promover as adaptações necessárias para o bom funcionamento do sistema educativo como um todo. Nesses parâmetros, o controle exercido por meio da avaliação externa às escolas se baseia na divulgação de informações que interligam Estado, escola e sociedade e não tem como objetivo incrementar a autonomia escolar na construção de uma educação de qualidade. Uma vez que a liberação de recursos está condicionada à implantação das propostas governamentais, isso leva a que as escolas implementem os mesmos projetos, desconsiderando suas especificidades e capacidade de propor caminhos próprios pela construção e implementação de seu projeto educativo. Além disso, a instituição de formas de avaliação do trabalho educativo assente na lógica do mercado, levou o Estado a implementar uma série de testes estandardizados que facilitam a medição e a comparação de resultados obtidos pelos sistemas e unidades escolares. Isso porque, além da descentralização de poderes e encargos educacionais e do controle gerencial das ações nessas esferas, a reforma do aparelho educacional estatal também tem como eixo a ideia de responsabilização pública. Na concepção de Cabral Neto (2009), essa responsabilização visa melhorar os serviços públicos por meio de um sistema de controle da ação governamental, que acontece a posteriori, marcado pela participação da sociedade na definição das metas e dos índices de desempenho assim como na avaliação dos serviços prestados nessa esfera. Sendo assim, os resultados das avaliações promovidas pelo Estado devem ser divulgados para toda a população a fim de que fiscalizem o trabalho escolar e avaliem a competência dos professores conforme os resultados obtidos pelos alunos. 8 A implantação de avaliações externas da educação brasileira tanto responde a demandas internas quanto externas, embora denote perspectivas diversas. Para as forças conservadoras que impulsionam a reforma da educação, a avaliação externa é uma forma de controlar a ação educativa e responsabilizar os educadores pelos resultados dessa ação. Essa avaliação, entretanto, foi reconhecida pelos educadores críticos como meio capaz de orientar a definição de políticas bem como o planejamento e concretização da ação educativa que possibilitem a construção de uma educação de qualidade reconhecida socialmente. Apesar da mobilização desses educadores, as avaliações da educação em âmbito nacional têm seguido as orientações de agências de poder transnacionais que orientaram a reforma da educação brasileira. Essa reforma acontece conforme um projeto de educação globalizado que conjugam a ação de instâncias globais e regionais e que, a despeito das resistências locais, orientam a construção do projeto de avaliação externa construído em âmbito nacional. CONSOLIDAÇÃO DO SISTEMA NACIONAL DE AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA: MARCOS POLÍTICOS, LEGAIS E SEUS LIMITES A ênfase emprestada à constituição de mecanismos de avaliação na recente reforma educacional brasileira denota a intenção de instituir formas sutis de controle dos sistemas educacionais e de seus profissionais bem como de incrementar a qualidade dos serviços oferecidos nesses sistemas. Nesse sentido, Freitas (2007, p. 99) analisa que o Estado brasileiro, por meio de um conjunto de “medida-avaliação-informação” põe em prática “[...] uma importante via da regulação estatal da educação básica brasileira. Nesse processo, foi sendo explicitado o ‘novo’ papel regulador do Estado, no qual monitoramento (acompanhamento), controle, avaliação e indução foram enfatizados”. Dessa forma, o Planejamento político-estratégico do Ministério da Educação e do Desporto (BRASIL, 1995), desenvolvido para o período de 1995 a 1998, demonstra os parâmetros de ação desse órgão de gestão federal da educação brasileira. Conforme o documento, o ministério deixaria de ser um órgão de execução para assumir a função de formular e articular políticas públicas, para tanto indicaria prioridades bem como modificaria a legislação vigente com vistas a imprimir qualidade ao ensino do país. Assumindo os preceitos do gerencialismo, o referido documento (BRASIL, 1995) afirma que o papel do MEC seria o de financiar projetos e ações, avaliar, cobrar 9 resultados e mostrar a todos o que está acontecendo. Seguindo essa lógica, institui como um de seus princípios desenvolver um sistema de informação, baseado em mecanismos de avaliação definidos de forma centralizada, cujos dados estariam à disposição de toda a sociedade. Esse princípio foi traduzido em metas, dentre as quais, a que visa aprimorar o sistema de avaliação da educação básica já existente. Conforme expresso no Plano de Governo, era necessário modificar o arcabouço legal que orientava a educação no país, de modo que a responsabilidade da União em avaliar todos os níveis de ensino, está explícita no artigo 9º da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 2000a), o qual estabelece que: Art. 9º. A União incumbir-se-á de: [...] V. coletar, analisar e disseminar informações sobre a educação; VI. assegurar processo nacional de avaliação do rendimento escolar no ensino fundamental, médio e superior, em colaboração com os sistemas de ensino, objetivando a definição de prioridades e a melhoria da qualidade de ensino; [...] §2º. Para o cumprimento do disposto nos incisos V a IX, a União terá acesso a todos os dados e informações necessários de todos os estabelecimentos e órgãos educacionais. A nova forma de regulação da educação nacional via avaliação está expressa no Plano Nacional de Educação (2000-2010), que mostra que a aferição da educação nacional tem como objetivo “[...] a melhoria da qualidade do ensino em todos os níveis” (BRASIL, 2000b, p. 34). Para tanto, estabelece como prioridade o desenvolvimento [...] de sistemas de informação e de avaliação em todos os níveis e modalidades de ensino, inclusive educação profissional, contemplando também o aperfeiçoamento dos processos de coleta e difusão dos dados, como instrumentos indispensáveis para a gestão do sistema educacional e melhoria do ensino (BRASIL, 2000b, p. 36, grifos do autor). Assim, o desenvolvimento de sistemas de informação e de avaliação aparece como condição para que se reverta o quadro histórico de baixa qualidade da educação básica, demonstrada por altos índices de reprovação e repetência nesse nível de ensino. No plano discursivo, entende-se que a coleta de dados desenvolvida em âmbito nacional possibilitaria o (re)planejamento da ação educativa e o (re)direcionamento das políticas educacionais. Discussões desse tipo, travadas desde o final da década de 1980, vêm legitimando a instituição da avaliação nacional, parecendo, então, a resposta aos anseios da sociedade que demanda maior qualidade na educação. 10 Nesse sentido, Freitas (2007) demonstra que uma série de fatores colaborou para que o Estado brasileiro adotasse a avaliação como forma de regulação da educação básica: 1) a constatação de certa “perda de qualidade” do ensino público estatal no período da ditadura militar; 2) a centralidade assumida pelo planejamento nesse período, compreendido como fator capaz de promover o desenvolvimento nacional; 3) a realização de pesquisas desenvolvidas por universidades públicas; 4) a realização de projetos financiados em convênio com o Banco Mundial, — como Programa de Educação Básica para o Nordeste (Projeto Nordeste) —, os quais mostraram a necessidade de avaliar as políticas e estratégias estatais e regionais como um todo. A discussão acerca da avaliação da educação básica no Brasil, conforme a referida autora (2007), se desenvolveu em dois períodos distintos: o primeiro, que vai de 1988 a 1994, no qual os governos federais, de José Sarney a Itamar Franco, se esforçaram para mostrar a importância da avaliação nacional, por meio de debates com gestores, técnicos, professores e universidades públicas; o segundo momento refere-se ao governo de Fernando Henrique Cardoso, de 1995 a 2002, em que se consolidou o SAEB bem como os principais textos legais que corporificaram a reforma educacional. Nesses períodos, foram realizadas sucessivas alterações metodológicas no sistema avaliativo, conjugando-o com iniciativas de medida e de informação, mantendo-se contato com iniciativas de outros países. Em 1988, final do governo de José Sarney, se iniciaram as primeiras experiências de avaliação nacional das escolas públicas com a implantação do Sistema Nacional de Avaliação das Escolas Públicas – SAEP. Em 1992, esse sistema foi reformulado originando o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica – SAEB, que, desde a sua implantação, funcionou por meio de medidas provisórias até que a Lei 9.131, de 24 de novembro de 1995 (BRASIL, 1995); o regulamentou. O SAEB avalia a aprendizagem dos alunos da 4ª e da 8ª série (ou 5º e 9º ano de escolaridade) do ensino fundamental e da 3ª série do ensino médio das escolas de todas as unidades federadas. A prova escrita é realizada por amostragem de alunos, nas áreas de Língua Portuguesa e Matemática, tendo como referência os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) bem como consultas sobre currículos das redes estaduais e municipais dessas áreas. Nestas, procura-se associar informações atinentes aos conteúdos curriculares com as competências e as habilidades correspondentes às séries avaliadas. Além dos dados relativos à aprendizagem, o sistema ainda traz informações sobre as características dos alunos, dos profissionais e das condições das escolas. 11 Questiona-se acerca do nível socioeconômico e dos hábitos de estudos dos alunos, do perfil e condições de trabalho dos profissionais bem como das instalações, equipamentos e materiais disponibilizados nas escolas. Por meio desses dados, esperase monitorar a eficácia das políticas educacionais tendo em vista o incremento da qualidade do ensino. A esse respeito, Pestana (1999, p. 58) considera que a [...] implantação do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica – SAEB vem contribuindo de forma significativa para a criação de uma cultura de avaliação no país. Também vem possibilitando a consolidação de amplo leque de informações sobre a qualidade do ensino no Brasil e sobre os fatores que incidem nas mudanças dessa qualidade. Mas não se pode deixar de reconhecer que ainda há um longo caminho a ser percorrido, uma vez que a avaliação não é atividade apenas técnica mas, sobretudo, uma atividade política e administrativa. De fato, como mostra a autora, a instituição das avaliações nacionais tem contribuído para a formação de uma cultura de avaliação no país, posto que diferentes estados também vêm implementando seus próprios sistemas em consonância com o nacional. Entretanto, é preciso compreender que a avaliação sistêmica da educação está para além do levantamento de dados e da indicação dos responsáveis pelo atual estado da educação nacional. Isso porque a divulgação dos resultados sem uma ampla discussão sobre as condições das escolas públicas e que se estabeleça um compromisso coletivo com a sua mudança, em larga medida, tem servido para culpabilizar os profissionais da educação. Desconsidera-se, então, todo um processo histórico de descompromisso com a educação básica e de desvalorização de seus profissionais. Além disso, a divulgação dos resultados educacionais de escolas públicas e privadas no SAEB, tem levado a que estas sejam hierarquizadas conforme o seu desempenho. Com isso, espera-se que as unidades de ensino concorram entre si e que os profissionais das instituições públicas, que obtiverem baixos índices de rendimento assumam sozinhos a responsabilidade de revertê-los. Para tanto, deve-se tomar como parâmetro as escolas privadas, consideradas modelos de eficiência, eficácia e produtividade. Essa comparação dos resultados, sem considerar a especificidade dessas instituições, tem colaborado para legitimar um discurso que propõe a privatização das instituições públicas. A avaliação externa ainda tem assumido o papel de controlar o que é ensinado nas escolas públicas brasileiras, conforme os parâmetros curriculares definidos nacionalmente. Para Freitas (2007, p. 147), a instituição de um currículo nacional aliado 12 ao sistema nacional de avaliação possibilita a ação de “[...] um Estado-educador empenhado na difusão de determinados conhecimentos, valores e visões de mundo, signos e símbolos da cultura hegemônica [...]” conforme um projeto globalizado de educação. Isso tem colaborado para homogeneizar o que é ensinado nas escolas, a despeito de suas especificidades, pois a adoção desses referenciais tornou-se obrigatória para as instituições que desejam melhorar seus índices nas avaliações externas. Apesar da avaliação externa às escolas ser considerada uma condição para a construção de uma educação de qualidade, após mais de uma década de implantação do SAEB, essa prerrogativa ainda se encontra distante de ser alcançada. Conforme analisa Vieira (2009), os dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica – SAEB –, relativos à 4ª série do ensino fundamental, no período de 1995 a 2005, demonstram um decréscimo no rendimento dos alunos, principalmente no período de 1995 a 2001, tanto em Língua Portuguesa quanto em Matemática. Coincidentemente ou não, esse é o período em que o modelo gerencial assumiu maior vigor na orientação das políticas educacionais brasileiras e, em especial, das políticas de avaliação da educação nacional. A política neoliberal de investimento mínimo na área educacional e as gerenciais de controle, de responsabilização dos profissionais da educação e de fomento à concorrência entre as instituições não tem possibilitado o incremento da qualidade da educação básica nacional. Apesar disso, tem reforçado antigos e novos valores como a hierarquização, o individualismo, a centralização do poder e a concorrência entre as instituições. É necessário ampliar os espaços de participação da população e, principalmente, dos educadores nos debates acerca dos resultados da educação, das condições históricas de trabalho nas escolas públicas, da definição de qualidade que se pretende construir na educação do país, enfim do papel do Estado e da sociedade nesse processo. Esse debate deve ter por fim propor mudanças, assumidas coletivamente, que possibilitem compartilhar responsabilidade no planejamento, implementação e avaliação das ações educativas. Deve-se reconhecer a importância da construção de parâmetros de avaliação da educação básica nacional que, de fato, direcione o processo de construção de uma qualidade educacional no país que, para além de atender aos requisitos econômicos de determinadas instâncias nacionais e transnacionais de desenvolvimento do ser humano em toda a sua complexidade. 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