GERENCIALISMO, ESTADO E AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA:
VALORES EM CONFRONTO
Luciane Terra dos Santos Garcia
Lenilton Batista do Nascimento
Marilow Alessandra Tavares Fernandes
A reforma do Estado, conforme os princípios gerenciais, levou à configuração do
Estado-avaliador que promove formas de regulação da educação assentes na lógica do
mercado. Isso implicou meios de controle sobre o trabalho escolar mais fluidos e na
responsabilização de seus profissionais pelos resultados educacionais. Nesse contexto, a
instituição de sistemas nacionais de avaliação da educação assume importância no
controle sobre o trabalho escolar e na socialização de valores que atendem às atuais
necessidades do sistema capitalista. Assim, esta pesquisa teórica tem por objetivo
analisar de que modo os valores gerenciais difundidos na reforma educacional da
década de 1990 foram incorporados na implementação do Sistema Nacional de
Avaliação da Educação Básica (SAEB), no período de 1990 a 2002. Entende-se que a
implantação do SAEB tem difundido valores como a hierarquização, o individualismo,
a centralização do poder, além de fomentar a concorrência entre as escolas visando
imprimir maior qualidade na educação nacional, entretanto esse último fim não tem sido
alcançado.
Palavras chave: gerencialismo; Estado avaliador; SAEB.
GESTION, ÉTAT ET ÉVALUATION DE L’ENSEIGNEMENT FONDAMENTAL:
VALEURS EN CONFLIT
La réforme de l’État, en fonction des principes de gestion, a conduit à la configuration
d’un État évaluateur, qui promeut des formes de régulation de l’éducation qui
s’appuient sur la logique du marché. Cela a mené à des moyens de contrôle du travail
scolaire plus souples et à la responsabilisation des professionnels quant aux résultats de
l’enseignement. Dans ce contexte, l’instauration de systèmes nationaux d’évaluation de
l’éducation prend de l’importance au niveau du contrôle du travail scolaire et de la
socialisation de valeurs qui répondent aux besoins actuels du système capitaliste. Ainsi,
cette recherche théorique a pour but d’analyser la façon dont les valeurs de gestion
préconisées par la réforme éducative des années 1990 ont été incorporées dans la mise
en place du Système National d’Évaluation de l’Enseignement Fondamental (SAEB),
entre 1990 et 2002. Nous percevons que l’implémentation du SAEB a diffusé des
valeurs telles que la hiérarchisation, l’individualisme, la centralisation du pouvoir, tout
en promouvant la concurrence entre les écoles de façon à offrir une meilleure qualité
d’enseignement national, toutefois, ce dernier objectif n’a point été atteint.
Mots-clés: gestion; État évaluateur; SAEB.
CONTEXTUALIZANDO A DISCUSSÃO
Este trabalho tem como objetivo analisar de que modo os valores gerenciais,
difundidos na reforma educacional da década de 1990, foram incorporados na
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implementação do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB), no
período de 1990 a 2002. Isso porque a escola pública tem se constituído historicamente
em privilegiado espaço de construção de valores sociais, tornando as reformas
educativas um meio de difundir o projeto social e educativo que forças conservadores,
atuando em âmbito transnacional, pretendem difundir globalmente.
Para tanto, estruturamos este artigo em três partes: na primeira, descrevemos
brevemente o atual contexto histórico que suscita as mudanças educacionais; na
segunda, analisamos o desenvolvimento do gerencialismo bem como os princípios e os
valores que orientaram a formação do Estado Avaliador e a reforma educacional; por
fim, refletimos acerca do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica como
instrumento de regulação da educação brasileira e como de socialização de valores.
O atual contexto socioeconômico e político se caracteriza por uma série de
mudanças impulsionadas pela reestruturação produtiva, pelo neoliberalismo e pela
globalização da economia. Em tal contexto, conforme Bruno (2003), o Estado deixa de
ocupar o centro das articulações entre os sindicatos e as empresas e estas ocupam o
vértice das relações de poder. Nesse novo arranjo organizativo das relações capitalistas,
o Estado operacionaliza as decisões dos centros de poder transnacional e as legitima
juridicamente. Assim, os governantes locais perderam, em grande parte, sua autonomia
em elaborar e implementar políticas próprias, submetendo-se (e concordando com) às
orientações das grandes corporações e de seus credores.
Em meio a essa confluência de poderes, os Estados reformam seus aparelhos
político-administrativos e de controle social, uma vez que cresce a pressão para que
deixem de produzir bens e serviços e repassem essa função para a iniciativa privada,
transformando-se em reguladores dos interesses definidos externamente. Como
representantes nacionais dos interesses político-econômicos transnacionais, os Estados
realizam reformas nos seus aparelhos educacionais, que variam conforme a posição
socioeconômica e política que os países ocupam no mercado transnacional.
As modalidades de reformas que estão sendo implementadas na atualidade são
marcadas pela redução de gastos com a educação e pela difusão do projeto social
conservador, colocando-se, portanto, distantes de uma concepção de desenvolvimento
humano e de igualdade social. Na América Latina e Caribe, segundo Carnoy (1995;
2002), as reformas educacionais se fundam em imperativos financeiros para reduzir os
gastos públicos, aumentar a eficácia dos recursos disponíveis e a qualidade da educação.
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Essas reformas reduzem a intervenção do Estado na manutenção e na
administração dos serviços educativos, mantendo-se, entretanto, o seu poder decisório.
O Estado assume a função de regulação, que, segundo Freitas, L. (2005), é um termo
construído no interior das políticas públicas neoliberais e denota uma modificação na
sua atuação; pois transfere a regulação para o mercado como parte de um conjunto de
processos por meio dos quais se realiza a privatização do público. Na particularidade da
educação, abre-se espaço para a criação de quase-mercados educacionais, que indica
que “a regulação feita pelo Estado não é contraposta ao mercado, pois a criação e
manutenção do mercado dependem do Estado” (FREITAS, L. 2005, p. 913).
No Brasil, a criação de quase-mercados educacionais vem consolidando uma
nova forma de organizar e gerir o sistema educacional visando atender às demandas
educacionais por meio da descentralização de poderes e de encargos da União para os
governos locais, para a escola e para o mercado. Por outro lado, a ação do Estado
também tem se caracterizado pela interferência nos sistemas e nas instituições escolares,
conforme as orientações de instâncias transnacionais de poder que induzem as reformas
educacionais. Esse Estado tem sido caracterizado como avaliador o que denota novos
parâmetros de regulação da educação segundo princípios e valores gerenciais.
A REFORMA DO ESTADO E A ADMINISTRAÇÃO GERENCIAL DA
EDUCAÇÃO
A crise econômica da década de 1970, nos principais países do sistema
capitalista, expressou a necessidade de o Estado tornar-se mais eficiente substituindo o
modelo burocrático pelo gerencial, visto que a racionalidade burocrática não
responderia aos reclamos de um mundo em constante transformação. Conforme Chanlat
(1990), o gerencialismo teve origem nas atividades comerciais e industriais da segunda
metade do século XIII; contudo, somente a partir dos anos de 1980 tornou-se uma
realidade
social
impulsionada
pelos
imperativos
financeiros
das
economias
globalizadas. Designa tanto um conjunto de práticas e processos para se atingir um
determinado fim quanto os atores que ocupam função de gestão.
A partir da década de 1980, com a vitória do neoliberalismo sobre o Estado
providência, o modelo gerencial ganhou centralidade na Grã-Bretanha, nos Estados
Unidos e no Chile, tendo como foco o corte de gastos no setor social. Segundo Abrúcio
(2005), o gerencialismo não se constitui em um corpo teórico fechado, desenvolvendo-
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se a partir de diversas experiências e reestruturando-se a partir das críticas que lhe são
dirigidas. Segundo o autor, na Inglaterra, no decorrer das décadas de 1980 e 1990, o
gerencialismo aplicado ao Estado evoluiu a partir de três visões da administração
pública: 1) o gerencialismo puro que objetiva reduzir custos dos serviços públicos e
aumentar a sua produtividade a partir da privatização das empresas nacionais, da
desregulamentação e do repasse de atividades do governo para a iniciativa privada e
para a sociedade; 2) o consumerism que introduz o conceito de qualidade nos serviços
públicos para atender às necessidades dos clientes/consumidores por meio do
incremento da competição entre as organizações do setor público, da delegação de
autoridade para os consumidores fiscalizarem os serviços públicos e da avaliação dos
resultados obtidos pelas suas agências e pelos seus programas; 3) por fim, o public
service orientation traz um debate recente que incorpora as potencialidades do modelo
gerencial e introduz conceitos como accontability, transparência, participação, equidade
e justiça, além da defesa da participação dos cidadãos nas decisões locais.
Esses ajustes aplicados ao modelo gerencial cujas ideias provêm da esfera
privada visam adequá-lo para aplicação na gestão pública, não substituindo
completamente o padrão weberiano. É certo que os serviços públicos precisam adaptarse ao novo contexto sócio histórico e responder às demandas que lhes são postas. Não
se deve esquecer, entretanto, as suas especificidades visto que tem como objetivo prover
serviços de qualidade para toda a população, o que extrapola a noção de consumidor
que reduz a garantia de serviços àqueles que podem arcar com os seus custos.
Da mesma forma, a qualidade dos serviços públicos também não pode ser
alcançada pelo incentivo à concorrência que implica a co-existência de vencedores e de
vencidos. Uma vez que a qualidade do serviço público deve estender-se a todos, isso
implica possibilitar o crescimento coletivo assegurando o caráter democrático da
participação na construção das políticas públicas, em especial, nas educacionais.
Os serviços prestados pela esfera privada estão distantes de um caráter
democrático que garanta direitos iguais para todos os cidadãos; por isso, mesmo que em
sua evolução o gerencialismo incorpore, no discurso, conceitos como participação,
justiça e equidade estes aparecem, de fato, com sentido bastante limitado. A
participação se reduz a decidir quanto a melhor forma de implementar as políticas em
âmbito local e não a defini-las. Seguindo essa mesma lógica, os defensores do
gerencialismo acreditam que a construção da justiça e da equidade social pode ser
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alcançada mediante a garantia do mínimo de serviços destinados à população mais
pobre, o que desmente o sentido da igualdade social.
Em grande medida as mudanças na administração pública em diferentes Estados
foram legitimadas pela difusão de um sentimento contrário à burocracia estatal e
favorável à iniciativa privada, considerada como um ideal a ser seguido nos serviços
públicos. Castro (2007) afirma que a reforma gerencial caracteriza-se “[...] pela busca
da eficiência, pela redução e pelo controle dos gastos e serviços públicos, bem como
pela demanda de melhor qualidade e pela descentralização administrativa, concedendose, assim, maior autonomia às agências e departamentos”.
A partir da década de 1990, essas ideias influenciaram as reformas do Estado
brasileiro e, em particular, da educação no intuito de melhorar a qualidade dos serviços
públicos. Na visão liberal de Bresser-Pereira (1998 p. 80), o crescimento do Estado e as
modificações recentes de suas funções mostraram a ineficiência do modelo burocrático
que não responde mais aos impositivos da gestão que requer posturas “[...] mais ágeis,
descentralizadas, mais voltadas para o controle de resultados”, com a participação da
sociedade no controle da gestão dos serviços públicos.
As reformas do Estado brasileiro orientadas pelo modelo gerencial, entretanto,
não ocorreram de forma imediata, mas confrontando-se com outros modelos que
orientaram historicamente a gestão pública no país, como o patrimonialismo e o
burocrático. Assim, apesar do vigor das ideias gerenciais na orientação da reforma do
Estado brasileiro, a sua implantação não acontece em toda a plenitude e ainda são
contestadas por diversos grupos sociais dentre os quais os que acreditam que essas
reformas precisam fundar-se na consolidação dos princípios democráticos.
A exemplo das reformas que o Estado vem implementando na administração
pública em geral, também se coloca a necessidade de o Estado imprimir reformas no
campo educacional. Entendemos que em grande medida isso se deve ao fato de que,
conforme Gramsci (1991), o Estado difunde valores valendo-se da ação do direito e da
escola, cooperando, desse modo, para criar certa concepção de civilização e de
cidadania. Sendo assim, no atual contexto histórico em que se pretende construir
mudanças socioeconômicas a partir de um projeto globalizado de educação e de
sociedade torna-se necessário implementar reformas educacionais que socializem
valores que atendam às atuais necessidades do capital.
Assim, a reforma que o Estado vem implementando na área educacional visa
substituir valores burocráticos como a hierarquização das funções e das pessoas, a
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centralização do poder e o individualismo, por valores como a eficiência, a eficácia, a
qualidade e o trabalho coletivo requeridos pelas transformações socioeconômicas em
curso. Esses valores não são necessariamente novos, mas se tornaram centrais em
função das políticas neoliberais de mercado e das orientações gerenciais.
Apesar do discurso contrário, entendemos que o individualismo também é um
valor gerencial, pois, embora se preconize o trabalho coletivo como fator de incremento
da qualidade da educação e de melhoria das condições de trabalho nas escolas, para que
esses objetivos sejam atingidos fomenta-se a competição. Esta tem como consequência
separar os que lutam entre si pelos mesmos fins, fomentando, assim, o individualismo.
Além disso, em substituição à centralização de poderes que caracteriza o modelo
burocrático, é esperado que as pessoas tornem o trabalho escolar eficiente e eficaz por
meio de estratégias como a descentralização de poderes e de encargos para os sistemas
escolares e para outros campos na sociedade civil. A descentralização de uma série de
encargos para os sistemas educacionais e para as escolas modifica a concepção de
controle do trabalho escolar sem que, de fato, se descentralize o poder decisório. Dessa
forma, o Estado mantém-se forte na indicação das políticas educacionais, descentraliza
a execução destas e avalia o trabalho escolar, os profissionais da educação e a
aprendizagem dos alunos para verificar se as propostas foram alcançadas.
Segundo o gerencialismo, essa articulação (des)centralização a partir de um
fluxo contínuo de informação emprestaria maior flexibilidade à ação do Estado. Nesse
sentido, a concepção de Estado Avaliador traduz a direção das mudanças que se
pretende construir na educação, conforme a lógica do mercado. Na concepção de
Afonso (2005, p. 49), essa expressão demonstra que “[...] o Estado vem adotando um
ethos competitivo, neodarwinista, passando a admitir a lógica do mercado, através da
importação para o domínio público de modelos de gestão privada, com ênfase nos
resultados ou produtos dos sistemas educativos”.
A partir dessa lógica, que alia os preceitos do Estado Mínimo neoliberal no que
se refere ao financiamento da área social e os princípios do gerencialismo, se consolida
uma nova forma de regulação da educação. No momento em que a responsabilidade
com a educação se descentraliza, não para concretizar preceitos democráticos na
educação conforme defendem os educadores críticos, mas para diminuir os gastos com
o setor, cresce a necessidade de modificar o controle sobre o trabalho escolar.
A esse respeito, Bruno (2003, p. 37) explica que a lógica é manter as unidades
escolares “[...] conectadas por laços mais ou menos frouxos ao núcleo central da
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organização, que exerce o controle global através da definição dos canais de
comunicação e informação e da distribuição de recursos”. Dessa forma, comenta a
autora, os mecanismos de controle tornam-se relativamente invisíveis e a hierarquia
assume a aparência de participação e de autonomia, de modo a possibilitar o
desenvolvimento da capacidade reflexiva dos trabalhadores e obter a sua cooperação na
implementação das políticas. Dessa forma, ainda conforme Bruno (2003, p. 40), o
[...] controle exercido pela organização focal (Ministério da Educação, por
exemplo, ou Secretarias, ou ainda por empresas, no caso das parcerias), passa
a realizar-se basicamente através da distribuição de recursos, da definição e
do controle dos meios de acompanhamento e avaliação dos resultados, do
estabelecimento dos canais de distribuição das informações, da definição de
padrões gerais de funcionamento das unidades escolares, que estabelecem os
limites em que elas devem operar e promover as adaptações necessárias para
o bom funcionamento do sistema educativo como um todo.
Nesses parâmetros, o controle exercido por meio da avaliação externa às escolas
se baseia na divulgação de informações que interligam Estado, escola e sociedade e não
tem como objetivo incrementar a autonomia escolar na construção de uma educação de
qualidade. Uma vez que a liberação de recursos está condicionada à implantação das
propostas governamentais, isso leva a que as escolas implementem os mesmos projetos,
desconsiderando suas especificidades e capacidade de propor caminhos próprios pela
construção e implementação de seu projeto educativo.
Além disso, a instituição de formas de avaliação do trabalho educativo assente
na lógica do mercado, levou o Estado a implementar uma série de testes estandardizados
que facilitam a medição e a comparação de resultados obtidos pelos sistemas e unidades
escolares. Isso porque, além da descentralização de poderes e encargos educacionais e
do controle gerencial das ações nessas esferas, a reforma do aparelho educacional
estatal também tem como eixo a ideia de responsabilização pública.
Na concepção de Cabral Neto (2009), essa responsabilização visa melhorar os
serviços públicos por meio de um sistema de controle da ação governamental, que
acontece a posteriori, marcado pela participação da sociedade na definição das metas e
dos índices de desempenho assim como na avaliação dos serviços prestados nessa
esfera. Sendo assim, os resultados das avaliações promovidas pelo Estado devem ser
divulgados para toda a população a fim de que fiscalizem o trabalho escolar e avaliem a
competência dos professores conforme os resultados obtidos pelos alunos.
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A implantação de avaliações externas da educação brasileira tanto responde a
demandas internas quanto externas, embora denote perspectivas diversas. Para as forças
conservadoras que impulsionam a reforma da educação, a avaliação externa é uma
forma de controlar a ação educativa e responsabilizar os educadores pelos resultados
dessa ação. Essa avaliação, entretanto, foi reconhecida pelos educadores críticos como
meio capaz de orientar a definição de políticas bem como o planejamento e
concretização da ação educativa que possibilitem a construção de uma educação de
qualidade reconhecida socialmente.
Apesar da mobilização desses educadores, as avaliações da educação em âmbito
nacional têm seguido as orientações de agências de poder transnacionais que orientaram
a reforma da educação brasileira. Essa reforma acontece conforme um projeto de
educação globalizado que conjugam a ação de instâncias globais e regionais e que, a
despeito das resistências locais, orientam a construção do projeto de avaliação externa
construído em âmbito nacional.
CONSOLIDAÇÃO DO SISTEMA NACIONAL DE AVALIAÇÃO DA
EDUCAÇÃO BÁSICA: MARCOS POLÍTICOS, LEGAIS E SEUS LIMITES
A ênfase emprestada à constituição de mecanismos de avaliação na recente
reforma educacional brasileira denota a intenção de instituir formas sutis de controle dos
sistemas educacionais e de seus profissionais bem como de incrementar a qualidade dos
serviços oferecidos nesses sistemas. Nesse sentido, Freitas (2007, p. 99) analisa que o
Estado brasileiro, por meio de um conjunto de “medida-avaliação-informação” põe em
prática “[...] uma importante via da regulação estatal da educação básica brasileira.
Nesse processo, foi sendo explicitado o ‘novo’ papel regulador do Estado, no qual
monitoramento (acompanhamento), controle, avaliação e indução foram enfatizados”.
Dessa forma, o Planejamento político-estratégico do Ministério da Educação e
do Desporto (BRASIL, 1995), desenvolvido para o período de 1995 a 1998, demonstra
os parâmetros de ação desse órgão de gestão federal da educação brasileira. Conforme o
documento, o ministério deixaria de ser um órgão de execução para assumir a função de
formular e articular políticas públicas, para tanto indicaria prioridades bem como
modificaria a legislação vigente com vistas a imprimir qualidade ao ensino do país.
Assumindo os preceitos do gerencialismo, o referido documento (BRASIL,
1995) afirma que o papel do MEC seria o de financiar projetos e ações, avaliar, cobrar
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resultados e mostrar a todos o que está acontecendo. Seguindo essa lógica, institui como
um de seus princípios desenvolver um sistema de informação, baseado em mecanismos
de avaliação definidos de forma centralizada, cujos dados estariam à disposição de toda
a sociedade. Esse princípio foi traduzido em metas, dentre as quais, a que visa aprimorar
o sistema de avaliação da educação básica já existente.
Conforme expresso no Plano de Governo, era necessário modificar o arcabouço
legal que orientava a educação no país, de modo que a responsabilidade da União em
avaliar todos os níveis de ensino, está explícita no artigo 9º da Lei 9.394, de 20 de
dezembro de 1996 (BRASIL, 2000a), o qual estabelece que:
Art. 9º. A União incumbir-se-á de: [...]
V. coletar, analisar e disseminar informações sobre a educação;
VI. assegurar processo nacional de avaliação do rendimento escolar no
ensino fundamental, médio e superior, em colaboração com os sistemas de
ensino, objetivando a definição de prioridades e a melhoria da qualidade de
ensino; [...]
§2º. Para o cumprimento do disposto nos incisos V a IX, a União terá acesso
a todos os dados e informações necessários de todos os estabelecimentos e
órgãos educacionais.
A nova forma de regulação da educação nacional via avaliação está expressa no
Plano Nacional de Educação (2000-2010), que mostra que a aferição da educação
nacional tem como objetivo “[...] a melhoria da qualidade do ensino em todos os níveis”
(BRASIL, 2000b, p. 34). Para tanto, estabelece como prioridade o desenvolvimento
[...] de sistemas de informação e de avaliação em todos os níveis e
modalidades de ensino, inclusive educação profissional, contemplando
também o aperfeiçoamento dos processos de coleta e difusão dos dados,
como instrumentos indispensáveis para a gestão do sistema educacional e
melhoria do ensino (BRASIL, 2000b, p. 36, grifos do autor).
Assim, o desenvolvimento de sistemas de informação e de avaliação aparece
como condição para que se reverta o quadro histórico de baixa qualidade da educação
básica, demonstrada por altos índices de reprovação e repetência nesse nível de ensino.
No plano discursivo, entende-se que a coleta de dados desenvolvida em âmbito nacional
possibilitaria o (re)planejamento da ação educativa e o (re)direcionamento das políticas
educacionais. Discussões desse tipo, travadas desde o final da década de 1980, vêm
legitimando a instituição da avaliação nacional, parecendo, então, a resposta aos anseios
da sociedade que demanda maior qualidade na educação.
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Nesse sentido, Freitas (2007) demonstra que uma série de fatores colaborou para
que o Estado brasileiro adotasse a avaliação como forma de regulação da educação
básica: 1) a constatação de certa “perda de qualidade” do ensino público estatal no
período da ditadura militar; 2) a centralidade assumida pelo planejamento nesse período,
compreendido como fator capaz de promover o desenvolvimento nacional; 3) a
realização de pesquisas desenvolvidas por universidades públicas; 4) a realização de
projetos financiados em convênio com o Banco Mundial, — como Programa de
Educação Básica para o Nordeste (Projeto Nordeste) —, os quais mostraram a
necessidade de avaliar as políticas e estratégias estatais e regionais como um todo.
A discussão acerca da avaliação da educação básica no Brasil, conforme a
referida autora (2007), se desenvolveu em dois períodos distintos: o primeiro, que vai de
1988 a 1994, no qual os governos federais, de José Sarney a Itamar Franco, se
esforçaram para mostrar a importância da avaliação nacional, por meio de debates com
gestores, técnicos, professores e universidades públicas; o segundo momento refere-se
ao governo de Fernando Henrique Cardoso, de 1995 a 2002, em que se consolidou o
SAEB bem como os principais textos legais que corporificaram a reforma educacional.
Nesses períodos, foram realizadas sucessivas alterações metodológicas no sistema
avaliativo, conjugando-o com iniciativas de medida e de informação, mantendo-se
contato com iniciativas de outros países.
Em 1988, final do governo de José Sarney, se iniciaram as primeiras
experiências de avaliação nacional das escolas públicas com a implantação do Sistema
Nacional de Avaliação das Escolas Públicas – SAEP. Em 1992, esse sistema foi
reformulado originando o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica – SAEB,
que, desde a sua implantação, funcionou por meio de medidas provisórias até que a Lei
9.131, de 24 de novembro de 1995 (BRASIL, 1995); o regulamentou.
O SAEB avalia a aprendizagem dos alunos da 4ª e da 8ª série (ou 5º e 9º ano de
escolaridade) do ensino fundamental e da 3ª série do ensino médio das escolas de todas
as unidades federadas. A prova escrita é realizada por amostragem de alunos, nas áreas
de Língua Portuguesa e Matemática, tendo como referência os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN) bem como consultas sobre currículos das redes estaduais e municipais
dessas áreas. Nestas, procura-se associar informações atinentes aos conteúdos
curriculares com as competências e as habilidades correspondentes às séries avaliadas.
Além dos dados relativos à aprendizagem, o sistema ainda traz informações
sobre as características dos alunos, dos profissionais e das condições das escolas.
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Questiona-se acerca do nível socioeconômico e dos hábitos de estudos dos alunos, do
perfil e condições de trabalho dos profissionais bem como das instalações,
equipamentos e materiais disponibilizados nas escolas. Por meio desses dados, esperase monitorar a eficácia das políticas educacionais tendo em vista o incremento da
qualidade do ensino. A esse respeito, Pestana (1999, p. 58) considera que a
[...] implantação do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica –
SAEB vem contribuindo de forma significativa para a criação de uma cultura
de avaliação no país. Também vem possibilitando a consolidação de amplo
leque de informações sobre a qualidade do ensino no Brasil e sobre os fatores
que incidem nas mudanças dessa qualidade. Mas não se pode deixar de
reconhecer que ainda há um longo caminho a ser percorrido, uma vez que a
avaliação não é atividade apenas técnica mas, sobretudo, uma atividade
política e administrativa.
De fato, como mostra a autora, a instituição das avaliações nacionais tem
contribuído para a formação de uma cultura de avaliação no país, posto que diferentes
estados também vêm implementando seus próprios sistemas em consonância com o
nacional. Entretanto, é preciso compreender que a avaliação sistêmica da educação está
para além do levantamento de dados e da indicação dos responsáveis pelo atual estado
da educação nacional. Isso porque a divulgação dos resultados sem uma ampla
discussão sobre as condições das escolas públicas e que se estabeleça um compromisso
coletivo com a sua mudança, em larga medida, tem servido para culpabilizar os
profissionais da educação. Desconsidera-se, então, todo um processo histórico de
descompromisso com a educação básica e de desvalorização de seus profissionais.
Além disso, a divulgação dos resultados educacionais de escolas públicas e
privadas no SAEB, tem levado a que estas sejam hierarquizadas conforme o seu
desempenho. Com isso, espera-se que as unidades de ensino concorram entre si e que os
profissionais das instituições públicas, que obtiverem baixos índices de rendimento
assumam sozinhos a responsabilidade de revertê-los. Para tanto, deve-se tomar como
parâmetro as escolas privadas, consideradas modelos de eficiência, eficácia e
produtividade. Essa comparação dos resultados, sem considerar a especificidade
dessas instituições, tem colaborado para legitimar um discurso que propõe a
privatização das instituições públicas.
A avaliação externa ainda tem assumido o papel de controlar o que é ensinado
nas escolas públicas brasileiras, conforme os parâmetros curriculares definidos
nacionalmente. Para Freitas (2007, p. 147), a instituição de um currículo nacional aliado
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ao sistema nacional de avaliação possibilita a ação de “[...] um Estado-educador
empenhado na difusão de determinados conhecimentos, valores e visões de mundo,
signos e símbolos da cultura hegemônica [...]” conforme um projeto globalizado de
educação. Isso tem colaborado para homogeneizar o que é ensinado nas escolas, a
despeito de suas especificidades, pois a adoção desses referenciais tornou-se obrigatória
para as instituições que desejam melhorar seus índices nas avaliações externas.
Apesar da avaliação externa às escolas ser considerada uma condição para a
construção de uma educação de qualidade, após mais de uma década de implantação do
SAEB, essa prerrogativa ainda se encontra distante de ser alcançada. Conforme analisa
Vieira (2009), os dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica – SAEB –,
relativos à 4ª série do ensino fundamental, no período de 1995 a 2005, demonstram um
decréscimo no rendimento dos alunos, principalmente no período de 1995 a 2001, tanto
em Língua Portuguesa quanto em Matemática.
Coincidentemente ou não, esse é o período em que o modelo gerencial assumiu
maior vigor na orientação das políticas educacionais brasileiras e, em especial, das
políticas de avaliação da educação nacional. A política neoliberal de investimento
mínimo na área educacional e as gerenciais de controle, de responsabilização dos
profissionais da educação e de fomento à concorrência entre as instituições não tem
possibilitado o incremento da qualidade da educação básica nacional. Apesar disso, tem
reforçado antigos e novos valores como a hierarquização, o individualismo, a
centralização do poder e a concorrência entre as instituições.
É necessário ampliar os espaços de participação da população e, principalmente,
dos educadores nos debates acerca dos resultados da educação, das condições históricas
de trabalho nas escolas públicas, da definição de qualidade que se pretende construir na
educação do país, enfim do papel do Estado e da sociedade nesse processo. Esse debate
deve ter por fim propor mudanças, assumidas coletivamente, que possibilitem
compartilhar responsabilidade no planejamento, implementação e avaliação das ações
educativas. Deve-se reconhecer a importância da construção de parâmetros de avaliação
da educação básica nacional que, de fato, direcione o processo de construção de uma
qualidade educacional no país que, para além de atender aos requisitos econômicos de
determinadas
instâncias
nacionais
e
transnacionais
de
desenvolvimento do ser humano em toda a sua complexidade.
REFERÊNCIAS
poder,
favoreça
o
13
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GERENCIALISMO, ESTADO E AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO