OLHAR A CIDADE, OUVIR HISTÓRIAS, REGISTRAR MEMÓRIAS: REFLEXÕES
SOBRE UMA EXPERIÊNCIA DE ENSINO DE HISTÓRIA E EDUCAÇÃO
PATRIMONIAL1
Thaís dos Santos Vinhas2
Helaine Fernanda Souza Santos3
RESUMO
Os debates contemporâneos sobre o Ensino de História têm sinalizado questões referentes à
cultura, memória e identidade em sua intrínseca relação com os processos de aprendizagem
histórica. A mobilização dessas categorias conceituais para o ensino da disciplina vem sendo
utilizada principalmente na abordagem da História Local, articulando os processos educativos
à realidade dos discentes. Na busca pela aproximação entre o vivido e o aprendido,
identificando nos contextos locais a dinâmica do tempo em suas transformações e
permanências, a cidade assume a função de recurso pedagógico, abrindo possibilidades para o
desenvolvimento da cognição histórica situada e para a compreensão dos sistemas de
significados compartilhados na vida cotidiana. Nesse sentido, o presente trabalho apresenta
reflexões sobre um projeto pedagógico desenvolvido na disciplina História e Cultura Local
em uma turma de Ensino Médio Integrado à Educação Profissional (EPI), tendo como
direcionamento a metodologia da Educação Patrimonial. O objetivo da proposta é significar o
ensino de História através da experiência de identificação e investigação de evidências
históricas encontradas no espaço da cidade e que revelam a trajetória histórica do lugar. Os
resultados do projeto têm sinalizado que a utilização da Educação Patrimonial como princípio
e método de ensino para a História possibilita o desenvolvimento de práticas investigavas no
processo educativo, através de uma aprendizagem histórica significativa que articula múltiplas
dimensões de tempo e espaço e problematiza questões como diversidade cultural, memória
social e construções identitárias.
PALAVRAS-CHAVE: Ensino de História. História Local. Educação Patrimonial. Memória.
Identidade.
1 ENSINO DE HISTÓRIA LOCAL E APRENDIZAGEM HISTÓRICA
Reflexões sobre o Ensino de História, na contemporaneidade, tem problematizado
questões referentes ao significado da aprendizagem histórica na educação escolar,
direcionando à experimentação, análise, reflexão e avaliação de diferentes metodologias e
abordagens que, inseridas e desenvolvidas nos processos de escolarização, tem possibilitando
1
Este trabalho foi desenvolvido no âmbito de um projeto de Iniciação à Docência- PIBID/CAPES
Docente da Universidade do Estado da Bahia- UNEB, Campus XVIII, Eunápolis. [email protected]
3
Docente da Rede Estadual de Educação Básica – Bahia. [email protected]
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1
ressignificações de práticas educativas e concepções teóricas sobre a História ensinada, seus
objetivos, formas e funções.
O estreitamento do diálogo entre teoria da História e o ensino da disciplina evidenciou
a especificidade do conhecimento histórico e a necessidade de interlocução entre a produção
historiografia, seus modelos teóricos e pressupostos metodológicos, com o desenvolvimento
da cognição histórica dos discentes no contexto escolar. (RÜSEN, 2010)
Nesse direcionamento, abordagens específicas do campo historiográfico vêm sendo
utilizadas no processo de ensino-aprendizagem da disciplina, com o objetivo de desenvolver a
compreensão sobre os caminhos da elaboração da História enquanto conhecimento, na
dinâmica de construção do saber histórico sistematizado a partir de diferentes fontes
históricas. Dentre as variadas abordagens para produção historiográfica que tem viabilizando
a aproximação com o ensino da disciplina, o recorte circunscrito a uma espacialidade
específica tem aglutinado diferentes práticas investigativas e educativas com ênfase na
História Local.
Considerando a polissemia inerente à concepção do termo local e as perspectivas de
diferentes recortes, o campo da historiografia tem sinalizado para a compreensão desse
conceito na dimensão do espaço construído historicamente por determinados grupos
humanos, que ao compartilharem uma experiência coletiva, desenvolvem uma consciência de
pertencimento ao local, reconhecendo-o como lócus de vivências significativas permeadas
pela memória do grupo, expressa em materialidades e expressões que evidenciam a trajetória
histórica do lugar. Assim, mais do que definir as fronteiras por escalas físicas, a História
Local inclina-se para o reconhecimento do lugar na perspectiva do sentido histórico que ele
possui para os sujeitos que compartilham o mesmo espaço, podendo ser ele um bairro, uma
vila, uma aldeia, uma cidade:
Nesse sentido, a história local é entendida aqui como uma modalidade de estudos
históricos que, ao operar em diferentes escalas de análises, contribui para a
construção de processos interpretativos sobre as diferentes formas de como os atores
sociais se constituem historicamente. Ou seja, interessa-se pelos modos de viver,
coletivos e individuais, dos sujeitos e grupos sociais situados em espaços que são
coletivamente construídos. (TOLEDO, 2010, p. 751).
Entretanto, a definição dessa abordagem como categoria analítica da História deve se
caracterizar, principalmente, pela capacidade de estabelecer conexões entre diferentes
contextos espaciais e temporais. Nesse sentido, o local é ponto de partida para a leitura e
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compreensão de realidades em múltiplas dimensões, compreendendo os espaços localmente
situados como pertencentes e interligados a escalas espaciais maiores, como a regional,
nacional e global.
É importante observar que uma realidade local não contém, em si mesma, a chave de
sua própria explicação, pois os problemas culturais, políticos, econômicos e sociais
de uma localidade explicam-se, também, pela relação com outras localidades, outros
países e até mesmo, por processos históricos mais amplos. (SCHMIDT; CAINELLI,
2004, p 112)
Por permitir pesquisa e reflexão da relação construída socialmente entre indivíduos,
grupo de convívio, sua localidade e o mundo, a História Local possibilita o repensar das
práticas e dos valores, proporcionando mudanças no modo de entender a si mesmo, às
relações sociais e a própria História.
Como prática para o ensino, a História Local tem orientado reflexões sobre o sentido
do conhecimento histórico para a compreensão da realidade imediata dos sujeitos, a partir de
um processo de deslocamento do olhar sobre acontecimentos e processos históricos em uma
lógica generalizante e desenvolvendo o entendimento de que a História não está cristalizada
em tempos e espaços específicos, mas como ação humana, se constitui na fluidez do tempo
que perpassa as múltiplas espacialidades, nos inúmeros locais onde o sujeito vive, atua e
constrói realidades. Para tanto, as práticas educativas desenvolvidas a partir dessa diretriz
devem organizar procedimentos de ensino-aprendizagem que possibilitem que o discente
desenvolva a habilidade de analisar criticamente sua própria realidade social, que fomente
processos de construção de sua consciência histórica e abra caminhos para a compreensão do
mundo real.
Trata-se de uma forma de abordar a aprendizagem, a construção e a compreensão do
conhecimento histórico com proposições que podem ser articuladas com os
interesses do aluno, suas aproximações cognitivas, suas experiências culturais e com
a possibilidade de desenvolver atividades diretamente vinculadas à vida cotidiana.
(SCHMIDIT; CAINELLI, 2004, p. 113)
Assim, a experiência pedagógica analisada nesse trabalho buscou articular a
aprendizagem a partir da observação da realidade imediata dos discentes, com o objetivo de
significar a compreensão histórica na lógica da investigação, análise, levantamento e
identificação de fontes, mobilizando conceitos, métodos e categorias analíticas específicas da
História. Para tanto, teve como diretriz estabelecer relações entre diferentes tempos e
memórias que constituem um espaço urbano, reconhecendo a pluralidade de histórias que
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permeiam a construção social e cultural de um lugar, como também as evidências que revelam
a trajetória histórica da cidade que, revestidas de sentido, podem configurar o patrimônio
cultural e as representações identitárias dos diferentes grupos que compartilham o mesmo
espaço.
Nesse direcionamento, evidencia-se ainda a importância do ensino de História Local
para o reconhecimento dos referenciais identitários dos sujeitos envolvidos no processo de
ensino-aprendizagem, em sua pluralidade de expressões. No mundo globalizado, onde
vivemos o culto ao efêmero e temos acesso aos padrões culturais dos mais variados, o lugar é
o espaço onde essa multiplicidade de expressões culturais e identitárias pode ser percebida de
uma forma mais complexa, encaminhando, através dos processos de aprendizagem, para uma
compreensão da diferença não no sentido da negação do outro, mas do respeito à diversidade
como direito dos diferentes grupos humanos que vão elaborando, no decurso do tempo, suas
formas de ser, ver e estar no mundo.
No contraponto entre o global e o local, emerge, persistentemente, diferentes grupos
sociais auto afirmando suas particularidades étnicas, sexuais, religiosas, políticas, entre outras,
frente à perspectiva homogeneizante das sociedades. Nesse contexto, fica evidente que os
processos educativos não devem mascarar as diferenças e silenciar um coro de vozes que
reclamam seu lugar na história e que frequentam, inclusive, em suas diversidades e
particularidades, os espaços da sala de aula.
A importância da História Local e Regional está, assim, no fato de que, enquanto a
historia generalizante destaca as semelhanças, homogeneizando o amálgama das
vivências dos locais, a história elaborada com base nas realidades particulares dos
locais trabalha com a diferença, com a multiplicidade. (BARBOSA, 1999, pg. 127)
A observação de um tempo que flui, constituindo a realidade a partir da ação humana,
requer um exercício do olhar que leve a perceber paisagens comuns do nosso cotidiano como
evidência histórica e que nos permite ler o tempo em múltiplas perspectivas. Nesse sentido,
exercita-se também a sensibilidade do ouvir, do sentir, do descobrir, do pesquisar, abrindo
possibilidades de encontros com outras fontes históricas como a memória oral, fotografias,
documentos pessoais e públicos, jornais, dentre outros, como também com outras tramas da
História que um olhar mais generalizante não consegue captar.
A experiência vivenciada no âmbito da disciplina História e Cultura Local, ministrada
para um curso de Ensino Médio Técnico em Hospedagem na modalidade EPI, teve como
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ponto de partida possibilitar aos discentes ressignificar percepções sobre a cidade em que
vivem, reconhecendo, a partir de um processo investigativo, as evidências históricas
existentes na localidade e que são referência da história, memória e cultura da cidade,
podendo ser consideradas como patrimônio cultural.
Tendo como aporte metodológico as diretrizes da Educação Patrimonial, as ações
estiveram centradas em exercícios de identificação, seleção, observação, pesquisa e
sistematização de saberes que foram se constituindo ao longo do processo de aprendizagem,
resultando no reconhecimento de diferentes espaços, muitas vezes invisibilizados, que
representam a própria historicidade do lugar.
O reencontro com o outro, a percepção da diferença na unidade da cidade, a
descoberta do que não era percebido, o reconhecimento de si na construção histórica do lugar,
dentre outras percepções identificadas e vivenciadas no decorrer da experiência sinalizaram a
relevância de tomar a realidade dos discentes como um caminho para a aprendizagem da
História, conectando o tempo vivido à lógica de compreensão e desvelamento dos contextos
de experiências em que os discentes encontram-se inseridos.
2 REFLEXÕES SOBRE UMA PROPOSTA DE ENSINO-APRENDIZAGEM EM
HISTÓRIA
O Ensino de História centrado na abordagem da História Local apresenta-se como
importante possibilidade para a configuração de uma prática educativa que articula diferentes
métodos, recursos e fontes no processo de aprendizagem histórica, incentivando uma postura
investigativa tanto do professor, quanto dos discentes. Reconhecendo que são múltiplos os
objetos de ensino-aprendizagem e que eles se encontram em diferentes espaços da localidade
e para além dos muros da escola, torna-se comum, em atividades que tomam a realidade
imediata do aluno como recurso pedagógico, que os processos de ensino-aprendizagem
encaminhem para exercícios de descobertas, reconhecimento do entorno, identificação,
levantamento e análise de diferentes fontes históricas, investigação e sistematização das
experiências vivenciadas no decurso das ações, articulando os processos educativos ao espaço
onde vivem os discentes.
Na busca pela aproximação entre o vivido e o aprendido, identificando nos contextos
locais a dinâmica do tempo em suas transformações e permanências, a experiência pedagógica
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analisada nesse trabalho teve como recorte espacial a cidade de Eunápolis, localizada no
extremo sul da Bahia, lócus de vivência dos sujeitos envolvidos no projeto.
Com o objetivo de significar o ensino de História propondo a interrelação
aprendizagem e realidade dos discentes, a cidade assumiu a função de recurso pedagógico,
abrindo possibilidades para o desenvolvimento da cognição histórica situada e para a
compreensão dos sistemas de significados compartilhados na vida cotidiana.
O ponto de partida para as ações do projeto foi a realização de uma atividade em sala
de aula, que teve como proposta identificar o conhecimento prévio dos discentes sobre as
categorias conceituais que seriam trabalhadas no projeto e sua interrelação com a localidade
em que vivem. Nessa ação diagnóstica pode-se constatar que, por ser uma cidade
relativamente nova - a construção da localidade teve início na década de 1940 e o local só se
transformou em município no final da década de 1980 –, os discentes tiveram dificuldades em
articular as categorias conceituais com a localidade em que vivem.
Ao analisar as narrativas dos discentes sobre o conceito de História, percebe-se uma
concepção que cristaliza a História como a representação de um tempo passado. A dinâmica
da História enquanto a construção cotidiana que revela a ação do homem no tempo e no
espaço, e congrega os tempos passado, presente e futuro não foi evidenciada pelos discentes.
Sobre o conceito de cultura, alguns discentes relataram que não reconheciam
características culturais na cidade, pois não havia na localidade teatro, museu ou cinema, em
uma ideia de cultura expressa apenas em lugares específicos. Entretanto, houve a sinalização,
por parte de outros discentes, de que havia algumas expressões culturais existentes na cidade,
como uma folia de Reis que é realizada em um bairro periférico da localidade, e as
festividades de comemoração da festa junina de São Pedro, evento de grande porte realizado
no município.
Em relação ao patrimônio cultural eunapolitano, foi praticamente unânime a
concepção de que não existe patrimônio cultural na localidade, percepção assentada na
perspectiva de patrimônio relacionada aos critérios de monumentalidade, materialidade e
antiguidade.
As ideias prévias dos discentes sobre conceitos fundamentais para o desenvolvimento
do projeto foram a ponte estabelecida para o processo de ressignificação de percepções
comuns sobre a história, a cultura e o patrimônio cultural da localidade. A partir desse
momento, as atividades foram direcionadas para a discussão e problematização desses
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conceitos, apresentando perspectivas sobre História na concepção de que é a disciplina que
não se preocupa apenas com o passado, mas com a dinâmica da ação do homem no tempo, o
que pressupõe a interligação entre as três temporalidades. O homem do presente tem
necessidade de voltar o olhar para o tempo ido na tentativa de melhor compreender o seu
tempo e até mesmo para perspectivar o futuro (BLOCH, 2002; KOSELLECK, 2006;
RÜSEN, 2006).
Na ampliação da ideia de cultura, discutiu-se o conceito na perspectiva de que o
decurso histórico de constituição das sociedades se dá a partir da vivência e interação do
homem com seus semelhantes e com o meio natural. Nesse processo, os indivíduos elaboram
um complexo sistema de signos e significados para direcionar às suas ações. Ao se fixarem
em um espaço e organizarem a vida social, criam um conjunto de elementos simbólicos que
conduzem e dão sentido à existência humana. Esse conjunto de elementos desenvolvidos na
vida social ao longo do tempo caracteriza-se como a cultura dos diferentes grupos sociais.
(GEERTZ, 1989)
Construída a partir de um processo acumulativo das vivências compartilhadas na vida
em sociedade, a cultura revela as diversas formas de apreensão da realidade em diferentes
tempos e espaços, e se apresenta através das crenças, sentimentos, percepções de mundo que
muitas vezes se materializam nos vestígios que são deixados por esses grupos em sua
trajetória histórica. Esse amplo universo de aspectos que constituem o legado de um povo
denomina-se patrimônio cultural.
Nesse sentido, reconhecer, nos espaços da cidade, a diversidade de evidências que
indicam o processo histórico e cultural da localidade foi fundamental para o desenvolvimento
do projeto. Assim, após as discussões conceituais foi sugerido que a turma, organizada em
grupos, observasse a cidade e identificasse alguma evidência que revelasse a caminhada
histórica, social e cultural da localidade e que pudesse configurar como patrimônio cultural de
Eunápolis. Essa ação resultou na seleção de quatro espaços que seriam trabalhados pelos
grupos no decorrer do projeto: a Igreja Católica (Matriz), o Espaço de Cultura Viola de Bolso,
a comunidade cigana Calon e o Bar do Paraíba. Vale ressaltar que a escolha do bar se justifica
porque ele permanece com as mesmas características e estrutura de sua primeira construção
no início da década de 1980, resistindo, como evidência histórica, ao processo acelerado de
desenvolvimento urbano e à especulação imobiliária, sendo o único estabelecimento de
madeira localizado na principal área comercial da cidade. Outra questão é que o interior do
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bar contém um acervo fotográfico da trajetória histórica do estabelecimento, que deixa
entrever a própria história do município.
Após a identificação das evidências históricas, iniciou-se um trabalho de pesquisa
centrado na Educação Patrimonial, que consiste em um:
processo permanente e sistemático de trabalho educacional centrado no Patrimônio
Cultural como fonte primária de conhecimento e enriquecimento individual e
coletivo. A partir da experiência e do contato direto com as evidências e
manifestações da cultura, em todos os seus múltiplos aspectos, sentidos e
significados, o trabalho da Educação Patrimonial busca levar as crianças e adultos a
um processo ativo de conhecimento, apropriação e valorização de sua herança
cultural, capacitando-os para um melhor usufruto destes bens, e propiciando a
geração e a produção de novos conhecimentos, num processo contínuo de criação
cultural. (HORTA et al, 1999 p.06)
A orientação metodológica que foi utilizada como parâmetro para a realização das
atividades se baseou no Guia Básico de Educação Patrimonial, elaborado no ano de 1999 pela
equipe do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), onde afirma que:
A Educação Patrimonial consiste em provocar situações de aprendizado sobre o
processo cultural e seus produtos e manifestações, que despertem nos alunos o
interesse em resolver questões significativas para a sua própria vida, pessoal e
coletiva. (HORTA et al, 1999 p.08)
A metodologia da Educação Patrimonial permite tomar os bens patrimoniais ou as
evidências de história e cultura de uma determinada localidade como fonte primária de
conhecimento, ou seja, o patrimônio é o ponto de partida para o levantamento de informações
e sistematização de saberes sobre a evidência selecionada, sua historicidade e relação com o
espaço em que se encontra. Na proposta de desenvolvimento desse método, define-se o
objeto de estudo, bens materiais ou imateriais, e a partir de então se desenvolve um trabalho
investigativo através de perguntas, levantamento de informações e reflexões, buscando
sistematizar o conhecimento sobre o patrimônio estudado.
Com base nas diretrizes da Educação Patrimonial, cada grupo realizou atividades
relacionadas a cada etapa da proposta metodológica, subdividida nas seguintes ações:
-
Observação: Identificação, no espaço da cidade, de evidências materiais e/ou
imateriais que representam a história e a cultura do lugar. Justificativa da escolha da
evidência, correlacionando a seleção com a possibilidade do objeto analisado ser
considerado patrimônio cultural da localidade. Essa etapa incentivou os discentes a
perceberem melhor a cidade, e ficou evidente que mesmo tendo que escolher um
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espaço ou expressão de história e cultura, outras evidências foram identificadas, sendo
que alguns discentes inclusive relataram que nunca tinham percebido determinado
espaço em sua historicidade e relevância para a compreensão da construção histórica
do local.
-
Registro: Aproximação da evidência, buscando compreender a percepção inicial dos
discentes, dirigida pelos seguintes questionamentos: o que eu sei, como eu vejo, como
percebo, o que eu acho. Nessa etapa, foi realizada uma atividade que teve como
objetivo desenvolver o “exercício do olhar”, e consistia na observação e registro do
que era percebido através de diferentes ângulos e distâncias. A ideia era que
começassem a observação e os registros a partir de uma distância maior e fossem se
aproximando e registrando o que viam de diferente da observação anterior, quais
detalhes percebiam. Os registros podiam ser escritos, fotográficos ou em forma de
desenhos. A análise dessa ação possibilitou perceber como a aproximação com o
patrimônio foi despertando o interesse dos discentes a partir das descobertas que iam
fazendo: um pequeno detalhe, uma frase escrita na parede, uma fotografia tornaram-se
pistas para interpretar o patrimônio. Com isso, discutiu-se sobre a relevância do
conhecimento para o processo de re-conhecimento da evidência como indício da
história local.
-
Exploração: Realização de atividades investigativas que consistiam em levantamento
iconográfico, realização de entrevista oral, confronto de informações e dados
levantados. Consideramos que foi a etapa mais demorada e complexa do projeto, pois
envolveu o desenvolvimento de atividades que os discentes não dominavam e alguns
alunos tiveram alguma resistência em realizar, principalmente no processo de
sistematização das informações levantadas. Foi nesse contexto que trabalhos inerentes
à produção historiográfica foram experimentados e vivenciados pelos discentes, como
o uso de fontes primárias, a realização de entrevista oral, o registro dos dados
levantados. Como atividade final, cada grupo gravou os relatos de diferentes sujeitos
que foram entrevistados no decorrer das atividades, produzindo um vídeo sobre o
patrimônio estudado. Essa ação possibilitou uma sistematização da experiência, ao
mesmo tempo em que se constitui um registro da história, memória e cultura local.
-
Apropriação: Discussão sobre os sentidos do aprendizado e como eles perceberam, a
partir da experiência, os conceitos trabalhados em sua interrelação com o local em que
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vivem. Nessa etapa foi possível identificar como parte significativa dos discentes se
apropriou dos conceitos e conseguiu articular esse entendimento com a realidade em
que vivem. Foi nessa etapa também que o conceito de memória e identidade, em sua
intrínseca relação com o patrimônio cultural, foi melhor problematizado.
A experiência realizada na disciplina possibilitou a ressignificação da compreensão
dos conceitos de história, cultura e patrimônio cultural, como também discutiu questões
referentes à memória e identidade e sua relação com o conhecimento e re-conhecimento do
patrimônio cultural da localidade. Ao perceber a importância das evidências históricas,
existentes em âmbito público, enquanto marcas do passado que sobrevivem no tempo e no
espaço e revelam a trajetória humana em suas formas de ver, perceber e conceber a vida, os
discentes tiveram a possibilidade de reconhecer e valorizar as referências culturais locais
como representativas da memória histórica do lugar e expressão da identidade de diferentes
grupos que compartilham, em suas diferenças e especificidades, o mesmo espaço.
As discussões encaminharam também para o entendimento de que o que configura um
bem como patrimônio cultural é a referência de sentido que ele tem para os diferentes grupos
sociais, é a capacidade que tem de suscitar a memória individual e coletiva dos atores sociais
que vivenciam o espaço, fazendo com que se identifiquem com as diferentes expressões da
história e cultura existentes na localidade.
Os resultados do trabalho evidenciaram ainda a importância da educação no processo
de valorização e preservação do patrimônio cultural da localidade, possibilitando construir
conhecimento acerca do patrimônio em si, como também das sociedades que o criaram, do
tempo histórico em que eles foram produzidos, dos fins e objetivos de sua produção e a
relação que possuem com os diferentes sujeitos, percebendo ainda as transformações e
permanências características do caminhar das sociedades ao longo do tempo e que podem ser
percebidas na dinâmica de permanências e transformações do espaço.
3 PARA FINALIZAR, ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
As discussões apresentadas nesse trabalho constituem uma reflexão inicial sobre uma
proposta pedagógica que se encontra em andamento, portanto, ainda em processo de tessitura
dos seus sentidos e significados para todos os sujeitos envolvidos na experiência.
Com o objetivo de desenvolver ações de ensino-aprendizagem referenciadas na
realidade dos discentes, optou-se pela abordagem da História Local, tendo como recorte
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espacial a cidade onde os sujeitos envolvidos no projeto residem. Umas das constatações
relevantes identificadas no desenvolvimento da proposta é que uma das questões centrais que
se coloca para o desenvolvimento de um trabalho com a História Local, no contexto da
educação básica, é a necessidade do docente organizar ou até mesmo produzir seus
referenciais didático-pedagógicos, uma vez que não é comum encontrar material didático
disponível sobre a história e cultura de uma determinada localidade. Assim, o trabalho inicial
do professor deve se centrar em uma prática investigativa que possibilite a organização e
sistematização de informações que serão trabalhadas em sala de aula, ao mesmo tempo em
que identifica diferentes fontes e recursos que podem estimular a aprendizagem.
Ao final da primeira etapa do projeto, analisada nesse artigo, percebeu-se que a
utilização da Educação Patrimonial como princípio e método de ensino para a História Local
possibilita o desenvolvimento de práticas investigavas no processo educativo, através de uma
aprendizagem histórica significativa que articula múltiplas dimensões de tempo e espaço e
problematiza questões como diversidade cultural, memória social e construções identitárias,
ao mesmo tempo em que evidencia a importância do conhecimento para o re-conhecimento e
valorização do patrimônio cultural das distintas sociedades.
Espera-se que com a experiência o discente consiga identificar, na sua vida prática, os
múltiplos lugares e as diversas expressões de memória, história, cultura e identidade
existentes no local e que configuram, de acordo com o sentido que tem para a comunidade, o
patrimônio cultural de Eunápolis.
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