PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Antonio Carlos Verzola
O poder de polícia e a atividade sancionatória nos
mercados financeiro e de capitais
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
como exigência parcial para obtenção de título de
MESTRE em Direito Administrativo pela Pontifícia
Universidade
Católica
de São
Paulo, sob a
orientação do Professor Doutor Silvio Luis Ferreira
da Rocha
SÃO PAULO
2008
ÍNDICE
I
- INTRODUÇÃO ................................................................
II
- EVOLUÇÃO DO ESTADO E PODER DE POLÍCIA
p. 01
1. Criação e desenvolvimento do Estado..............................
p. 08
2. Poder de Polícia.................................................................
p. 21
III - ATOS VINCULADOS E ATOS DISCRICIONÁRIOS..........
p. 31
IV - DISCRICIONARIEDADE
1. Notas introdutórias............................................................
p. 36
2. Fundamento Geral..............................................................
p.
41
3. Grau de intensidade dos comandos normativos...............
p.
49
4. Atos discricionários públicos e privados..........................
p. 53
5. Conceitos jurídicos indeterminados..................................
p.
60
6. Técnicas de redução/controle da discricionariedade......
p.
70
V
- PROCESSOS ADMINISTRATIVOS SANCIONATÓRIOS
1. Poder de polícia do Banco Central do Brasil.....................
p.
90
2. Poder de polícia da Comissão de Valores Mobiliários.....
p.
98
3. Apontamentos sobre a ausência de sintonia entre teoria
e prática .............................................................................. p. 105
VI - REGIMES ESPECIAIS
1. Noções introdutórias.........................................................
p. 162
2. Decretação/cessação: ato discricionário ou vinculado?.
p. 173
3. Sanções “ex lege”.............................................................
p. 188
VII - CONCLUSÕES ...............................................................
p. 198
VIII – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................
p. 204
RESUMO
A dissertação tem por objeto examinar o exercício do poder de
polícia por parte da Administração Pública, tendo como referencial o manejo da
competência discricionária, confrontado-o com os limites legalmente postos e o
entendimento que lhe é conferido pela doutrina administrativa. Isto porque,
muito embora se reconheça à Administração Pública, nos casos em que a lei
lhe autorize, a possibilidade de se valer de uma certa margem de subjetivismo
em suas manifestações, mediante o emprego de critérios de conveniência e
oportunidade, jamais pode ela se colocar à margem do ordenamento jurídico.
Em vista disso, seus atos sempre estarão sujeitos às regras e princípios que
orientam a atividade administrativa e estabelecem os limites do Estado em
relação ao cidadão. O trabalho, depois de analisar, de maneira genérica, os
temas correlatos à questão central, particulariza a abordagem, centrando-a no
poder de polícia próprio do Banco Central do Brasil e da Comissão de Valores
Mobiliários, na condução de processos administrativos sancionatórios,
instaurados por um ou por outro daqueles entes públicos, nas suas respectivas
esferas de competência, bem como na decretação de regimes especiais por
aquele primeiro, em face de instituições sob sua supervisão. O estudo, num
primeiro momento, oferece uma visão teórica a respeito da matéria e, a seguir,
traz um painel ilustrativo do aspecto prático da atividade reguladora daquelas
entidades, nos mercados financeiro e de capitais, respectivamente. Com
suporte na legislação brasileira e na doutrina nacional e estrangeira, o estudo
permite concluir que não existe uma sintonia entre o que estabelecem os
comandos legais sobre a matéria ou o que preceitua a respectiva doutrina e as
posturas assumidas pelos administradores públicos, quando atuam sob
alegado exercício de competência discricionária. No mais das vezes, a
Administração Pública, nessas situações, entende ser detentora de poder mais
amplo do que o legalmente conferido e faz uso de valorações subjetivas não
abrangidas pela autorização legal. Essa não correspondência ou ausência de
sintonia revela-se evidente no que se relaciona com os princípios gerais, sejam
aqueles inerentes ao Direito genericamente considerado, ou mesmo aqueles
outros próprios do regime jurídico-administrativo.
ABSTRACT
This dissertation aims at examining the exercise of the Police Power by
the Public Administration, taking the discretionary competence as a reference,
by confronting such Police Power with the legally posed limits and the
qualification that is invested to it by the administrative doctrine. That is so
because, even though the Public Administration is acknowledged to be liable of
using a certain margin of subjectivism in its manifestations, where the law
grants it, through the use of convenience and opportunity criteria, it should
never be placed at the edge of the legal system. Thence, its actions will be
always subjected to the rules and principles that guide the administrative activity
and establish the State limits regarding the citizen. After generically analyzing
the correlate issues to the main point, the work particularizes the approach, by
centering it in the Police Power that is intrinsic to the Brazilian Central Bank and
the Federal Securities Commission, in the leading of sanctioning administrative
proceedings, either established by one or another, out of those public entities, in
their respective legal environment, as well as in the enactment of special
systems by the foremost, facing institutions under its supervision. At a first
instance, the study offers a theoretical view in relation to the subject, and then it
brings an illustrative panel of the practical aspect of those entities regulating
activity in the financial and capital markets. Accordingly. grounded on the
Brazilian Law and on the national and foreign doctrines, the study can lead to
the conclusion that there is no wavelength on what the legal actions on the
subject should determine and on what the respective doctrine and the attitude
taken by public administrators should rule, when acting under alleged exercise
of discretionary competence. In other occasions of such situations, the Public
Administration understands it has a broader power than the legally entitled
power and uses subjective assessments that are not comprised by legal
authorization. Such an absence of correspondence or lack of synchronicity
becomes evident in connection with the general principles, either those that are
inherent to the generically considered exercise of Law, or even those other
ones that are pertaining to the juridical and administrative system.
I –INTRODUÇÃO
Desde logo, cabe esclarecer que a referência ao vocábulo
sancionatória, constando do título do trabalho, adjetivando o substantivo atividade,
pretende deixar marcado o caráter punitivo que lhe é emprestado em meio
àqueles que se ocupam do estudo da matéria e que militam, de alguma forma,
nesta área de atuação profissional, fazendo uso costumeiro do neologismo.
Por certo, no rigor semântico, o correto seria o uso da expressão
sancionadora, a qual porém não tem a conotação que se deseja imprimir ao trato
da questão, posto que essa palavra é ordinariamente empregada no sentido de
fazer menção a algo a que se deu conformidade, que foi objeto de aprovação,
sentidos estes que não são contemplados no caso.
Feita essa observação, deve ser dito que o trabalho que ora se
apresenta parte do pressuposto de que existem balizas normativas que norteiam a
atividade administrativa no que se refere ao exercício de competência
discricionária, notadamente quando da prática de atos próprios do poder de
polícia, assumindo a posição de que este é apenas uma faceta do próprio
desenvolvimento da função administrativa, que dela não se diferencia, posto que
submetido ao mesmo regime jurídico-administrativo.
De maneira ainda mais particular, a dissertação postula tratar do
exercício do chamado poder de polícia no âmbito dos mercados financeiro e de
capitais, na sua vertente sancionatória, a qual se manifesta tanto nos processos
administrativos punitivos instaurados e conduzidos, respectivamente, pelo Banco
Central do Brasil e pela Comissão de Valores Mobiliários, quanto nos regimes
especiais decretados por aquele primeiro, submetendo as instituições sujeitas ao
seu poder regulador e que se encontrem sob crises de liquidez a um tratamento
jurídico diferenciado, nos termos das normas de regência.
Também serão discutidas algumas posturas assumidas pela
instância administrativa recursal responsável pelo reexame de decisões proferidas
nos processos administrativos decididos em primeira instância, qual seja, o
Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional.
A centralização da abordagem naqueles entes públicos se deve
unicamente ao fato de, por força de sua atividade profissional, o autor estar em
contato mais próximo com os mesmos e acreditar que, de resto, a postura
assumida por aquelas entidades reguladoras de mercado e por aquele colegiado
reflete, por óbvio, o comportamento de outras estruturas da mesma espécie e,
certamente, da Administração Pública como um todo.
Todas as pessoas jurídicas de direito público que, em diferentes
ambientes, exercem poder de polícia, bem como os órgãos administrativos
dotados de poder judicante, encontram-se inseridos em um mesmo contexto
organizacional e cultural, o qual é forçosamente marcado pelo estágio evolutivo
da própria Administração Pública, no que diz respeito às relações entre
administração e administrado ou, por outra, entre Estado e cidadão.
Em virtude mesmo do estágio atual daqueles relacionamentos, tendo
presente o notável esforço doutrinário desenvolvido no sentido de situá-los em
conformidade com o direito positivo, de forma a colocá-los ao abrigo do regime
jurídico inerente ao Estado de Direito, é que o trabalho procurará demonstrar,
observados os limites próprios de uma dissertação, servindo-se de exemplos
pontuais, se existe ou não uma sintonia entre o pensamento doutrinário e a
atuação da Administração Pública.
Por força de sua inerente e estreita ligação com o exercício do poder
de polícia, a questão relativa ao exercício de competência discricionária ocupará
importante posição no desenvolvimento da dissertação, a qual se preocupou em
precisar o seu entendimento e deixar evidenciados os seus contornos e limites.
2
Assim, no enfrentamento dos temas propostos, será dada a devida
relevância ao tema, na medida em que, como referido, é inerente à pratica dos
atos administrativos originados do exercício do poder de polícia, particularmente
no seu aspecto sancionatório, envolvendo processos administrativos da espécie
de que se trata e a decretação dos regimes especiais dos quais se cuida nessa
análise.
Não obstante nos casos de exercício de competência discricionária,
mormente quando no exercício do poder de polícia, a Administração Pública possa
pautar suas decisões tendo como referência os critérios de conveniência e
oportunidade, em que é inerente uma reconhecida parcela de apreciação
subjetiva, existem limitações que devem ser observadas e que são amplamente
reconhecidas em sede doutrinária.
Procurar-se-á demonstrar que o tratamento a ser conferido pelo
administrador público, relativamente à competência discricionária que lhe é
deferida pelo legislador, deve ser contido, posto que a discricionariedade é sempre
relativa, tendo em vista os limites legalmente traçados, seja por meio da própria
norma concedente, seja no âmbito do regime jurídico-administrativo, pelo que
inexiste, em qualquer hipótese, a possibilidade de exercício pleno e absoluto
daquela faculdade legal.1 Nesse sentido, é desprovida de legitimidade a prática de
1
Celso Antônio Bandeira de Mello, Revista trimestral de Direito Público, 25/ 1999, Malheiros, São
Paulo, p. 14/17: “É visível, outrossim, que a discricionariedade é sempre e inevitavelmente relativa.
E é relativa em diversos sentidos. Veja-se: é relativa no sentido de que, em todo e qualquer caso, o
administrador estará sempre cingido – não importa se mais ou menos estritamente – ao que haja
sido disposto em lei, já que a discrição supõe comportamento intra legem e não extra legem (...).
É relativa no sentido de que, seja qual for o âmbito de liberdade conferido, só dirá respeito àqueles
tópicos que a lei haja remetido à apreciação do administrador e não a outros tópicos concernentes
ao ato, mas sobre os quais a norma já haja resolvido de maneira a não deixar margem para
interferência do agente. (...). A discricionariedade é relativa, ainda, no sentido de que, por ampla ou
estrita que seja, a liberdade outorgada só pode ser exercida de maneira consonante com a busca
da finalidade legal em vista da qual foi atribuída a competência (...). A discricionariedade, também
é relativa no sentido de que a liberdade deferida pela lei só existe na extensão, medidas ou
modalidades que dela resultem. (...). É relativa, ademais, no sentido de que a liberdade acarretada
pela circunstância de haver a lei se servido de expressões vagas, fluidas ou imprecisas não pode
ser utilizada de maneira a desprender-se do campo significativo mínimo que tais palavras
recobrem, isto é, das chamadas “zonas de certeza positiva” e “certeza negativa” nem do significado
social imanente nas palavras legais das quais resultou tal liberdade (...). Finalmente, a
3
atos
administrativos
conveniência
e
com
fundamento,
oportunidade,
exclusivamente,
dissociados
das
em
fronteiras
critérios
de
explícita
ou
implicitamente demarcadas pelo ordenamento jurídico.
No que se refere às sanções administrativas impostas em virtude do
desfecho de processos administrativos punitivos, considerando que podem os
mesmos ser conduzidos no âmbito de ambas as instituições acima aludidas,
respeitadas as suas respectivas esferas de competência, serão alvo de exame as
condutas de um e de e outro ente público, postas em confronto tanto em relação
ao conjunto normativo que se lhes aplica, quanto no que diz respeito ao acervo
doutrinário pertinente.
Naquilo que diz respeito às sanções administrativas oriundas da
submissão, pelo Banco Central do Brasil, de instituição submetida a seu poder de
polícia, a um dos regimes jurídicos especiais legalmente previstos, obviamente
serão alcançadas pelo exame somente as condutas observadas por aquele ente
autárquico, pontuadas e colocadas em comparação com a doutrina sobre a
matéria, bem como trazendo à apreciação o posicionamento judicial a respeito.
De início, a abordagem elabora algumas notas acerca do processo
de institucionalização e evolução do Estado, percorrendo as fases históricas
vividas
ao
longo
dessa
trajetória,
buscando
localizar
o
surgimento
e
desenvolvimento de regras tendentes a estabelecer a devida limitação à atividade
estatal, notadamente no que se refere à questão da discricionariedade,
Logo a seguir, tendo em vista tratar-se de seara onde viceja em
grande medida o exercício de competência discricionária e na qual se abre intensa
polêmica acerca dos limites à intervenção estatal na órbita de interesses privados,
discricionariedade é relativa, no sentido de que, ainda quando a lei haja, em sua dicção,
ensanchado certa margem de liberdade para o agente, tal liberdade poderá esmaecer ou até
mesmo esvair-se completamente diante da situação em concreto na qual deva aplicar a regra.”
4
são apresentados o fundamento, a definição e a extensão do denominado poder
de polícia.
No
passo
adiante,
cuida-se
de
oferecer
os
conceitos
de
discricionariedade e de vinculação para, em momento a seguir, examinar o
fundamento da discricionariedade, abordando o grau de intensidade dos
comandos normativos e estabelecendo a nota distintiva entre os atos
discricionários públicos e os privados.
Na seqüência, o exame é centrado no aspecto relativo aos conceitos
jurídicos indeterminados para, logo após, tratar da evolução das técnicas de
redução e de controle da discricionariedade.
Em capítulo posterior, as atenções são dirigidas ao tratamento
dispensado aos processos administrativos sancionatórios no âmbito do Banco
Central do Brasil, ocasião em que, no intuito de ilustrar a convivência com o tema,
tratou-se de apresentar, ainda que em linhas gerais, um painel do regramento
normativo próprio deste instrumento de exercício de poder de polícia.
Na seqüência, foi enfocado o modo pelo qual são conduzidos os
processos administrativos instaurados pela Comissão de Valores Mobiliários,
oportunidade em que também é apresentado o arcabouço legal e regulamentar
que orienta a atuação daquela autarquia.
Ainda nessa parte do trabalho é dado destaque à Lei 9.784/99, que
regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, bem
como se discorre a respeito da aplicação de princípios de direito penal aos
processos administrativos punitivos e, ainda, são trazidas informações a respeito
da instância administrativa recursal competente para o julgamento dos recursos
interpostos contra as decisões de primeira instância.
5
Finalizando quanto a essa parte, e intentando proporcionar uma
visão comparativa acerca do questionamento proposto, são trazidos à apreciação
alguns apontamentos teóricos e práticos relacionados ao tratamento dispensado
aos processos administrativos sancionatórios.
Inaugura-se, no capítulo superveniente, a condução da questão sob
a vertente específica dos denominados regimes especiais decretados pelo Banco
Central do Brasil, e que submetem as instituições sob sua supervisão a tratamento
jurídico diferenciado do ordinariamente imposto às sociedades que enfrentam
crises de liquidez.
Nesse momento, pretende-se elucidar a questão relativa ao aspecto
normativo do instituto, discorrendo sobre os diplomas legais que estabelecem as
diferentes espécies de regimes especiais, seguidos de comentários sobre seus
principais dispositivos.
Depois disso, são feitas algumas indagações a propósito dos
regimes de que se trata, particularmente quanto à natureza discricionária ou
vinculada dos atos administrativos instauradores dos mesmos, bem como no que
atina ao caráter sancionatório ou não de algumas restrições de direitos que se
seguem à decretação dos aludidos regimes especiais.
Também são examinadas algumas questões de ordem prática
relacionadas ao encerramento daqueles regimes excepcionais e, mais uma vez,
faz-se presente o questionamento acerca da natureza vinculada ou discricionária
que deve orientar as decisões do ente regulador no sentido de dar continuidade ou
por fim às situações da espécie, considerada a persistência ou não dos motivos
que ensejaram a decretação dos regimes.
Para tanto, são consideradas ao longo dessa dissertação as
posições manifestadas por doutrinadores brasileiros e estrangeiros que se
6
dedicaram ao exame do tema e que identificaram, em meio ao próprio
ordenamento jurídico, limites impostos pelo legislador ao outorgar aos agentes
públicos a possibilidade de exercer um certo grau de subjetivismo no
desenvolvimento da função administrativa.
7
II –EVOLUÇÃO DO ESTADO E PODER DE POLÍCIA
1. Criação e desenvolvimento do Estado
O processo de institucionalização do Estado teve seu início por volta
do século XV, tendo como cenário as cidades italianas, onde surgiu a expressão
stato, pretendendo designar uma organização jurídico-política e o seu respectivo
domínio de atuação, já então se revelando o seu aspecto soberano, no sentido de
ser um poder bastante por si mesmo e independente de outras entidades da
espécie.2
Anteriormente a isso, ainda não havia sido desenvolvido o conceito
de soberania, próprio do Estado que, para tanto, teve que se impor em relação a
outros centros de dominação, dentre eles a Igreja, o Império Romano e as
instituições feudais.3
Para Cassagne,4 a característica essencial que distingue o Estado de
outras comunidades, de acordo com a concepção aristotélica é a sua autosuficiência, no sentido de que não precisa nem depende de outra comunidade
para a realização de seus fins.
2
Maysa Abrahão Tavares Verzola, Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade de São
Paulo, Departamento de Direito do Estado, A Sanção no Direito Administrativo Brasileiro, São
Paulo, 2008, p.10.
3
Fernando Andrade de Oliveira, O poder do Estado e o exercício da polícia administrativa, Revista
de Direito Público 29/2000. Malheiros, São Paulo, p. 71: “Relatam os tratadistas que, na
antiguidade, ainda era desconhecido o conceito de soberania, isto é, o fenômeno da oponibilidade
do poder estatal a outros poderes. O Estado moderno, radicalmente diferente do antigo – escreve
Georg Jellinek – afirmou sua existência como soberano na Idade Média, combatendo e vencendo,
sucessivamente, três outros centros de poderes: a Igreja, que pretendia mantê-lo a seu serviço, o
Império Romano, que não concedia ‘aos Estados particulares mais valor que o das províncias’ e,
finalmente, o dos grandes senhores e corporações feudais, que se consideravam independentes.
Essa soberania do Estado, no campo do Direito interno – acrescenta Hans Kelsen – designa o
supremo poder sobre homens e agrupamentos humanos que os integram, a sua onipotência
jurídica. ‘Dá-se a esse poder o nome de supremacia de competência, entendendo-se sob esse
conceito a possibilidade de uma ordem determinar, por si mesma, em todos os sentidos, os objetos
da sua regulação. Possibilidade que não provém da autorização de uma ordem superior,
determinante do âmbito real, espacial e temporal da ordem inferior, nem se trata de ordem
particular, frente à ordem total, única soberana”.
4
Derecho Administrativo I – Tercera Edicion Actualizada, Abeledo-Perrot, Buenos Aires, 1992, p.33.
8
O poder correlato a essa instituição deve ser entendido, segundo
Heller,5 como um centro de decisão política, cuja dominação se faz por meio do
direito, o qual torna possível uma maior previsibilidade na orientação e
organização das situações de poder, o qual não prescinde da legitimidade, de
forma a garantir o seu reconhecimento voluntário.
O aspecto relativo às características que permeiam a instituição
denominada Estado interessam sobremaneira ao desenvolvimento desse estudo,
particularmente sob o prisma do exercício do poder que lhe é inerente e da sua
estreita correlação com o trato da discricionariedade.
O exercício do poder e, por via de conseqüência, da própria
discricionariedade, naquilo que respeita aos variados graus que podem demarcálos, encontram os seus limites na própria legitimidade da relação de dominação
entre os que comandam e os que se submetem ao comando ou, de outro modo,
entre os que governam e os que são governados.
Já dizia Kelsen,6 ao empreender considerações a respeito do tema
sobre a vertente sociológica, que “a tentativa mais bem-sucedida de uma teoria
sociológica do Estado talvez seja a interpretação da realidade social em termos de
“dominação”, segundo a qual “o Estado é definido como um relacionamento em
que alguns comandam e governam, e outros obedecem e são governados”.
No entanto, como assevera o mesmo autor, “considera-se a
dominação legítima apenas se ocorrer em concordância com uma ordem jurídica
cuja validade é pressuposta pelos indivíduos atuantes; e essa ordem é ordem
jurídica da comunidade cujo órgão é o “governante do Estado”. Em outra
passagem, registra Kelsen que “o Estado é uma sociedade politicamente
5
6
Teoría Del Estado. Trad. Luiz Tobio, Fondo de Cultura Económica, México, 2002, p. 308/09.
Teoria Geral do Direito e do Estado, Martins Fontes, São Paulo, 2000, p. 268/73.
9
organizada porque é uma comunidade constituída por uma ordem coercitiva, e
essa ordem coercitiva é o Direito”.
Prossegue
asseverando
que
“a
dominação
que
tem,
sociologicamente, o caráter de “Estado”, apresenta-se como criação e execução
de uma ordem jurídica, ou seja, uma dominação interpretada como tal pelos
governantes e governados” e advertindo que “a sociologia tem de registrar a
existência dessa ordem jurídica como um fato nas mentes dos envolvidos, e se a
sociologia interpretar a dominação como uma organização do Estado, então a
própria sociologia deve admitir a validade dessa ordem”.
Em vista disso, conclui Kelsen: “mas se o Estado é um sistema de
normas, então a vontade e a conduta do indivíduo tendem a entrar em conflito
com essas normas, e só pode surgir o antagonismo entre o “ser” e o “dever ser”,
que é um problema fundamental de toda a teoria e prática social”.
Segundo Cassagne,7 o princípio que unifica e outorga coerência à
organização estatal é o da autoridade, que se mantém por intermédio do poder, o
qual atua com o fim de assegurar a ordem social fundamentalmente através da lei,
que sempre dever ser justa, conforme a natureza e de acordo com os costumes
do país. Segundo o autor, o poder do Estado não é absoluto, pois é limitado pela
lei natural, e não se localiza em um indivíduo ou conjunto de indivíduos, mas sim
na própria personalidade do Estado, na qual reside de forma exclusiva.
Numa visão positivista, a qual assumimos, é de se enfatizar que a
relativização do poder do Estado, aventada por Cassagne como sediada no
ideário do direito natural, é derivada das próprias limitações constitucionalmente
estabelecidas pelos modernos Estados Democráticos de Direito e, por isso
mesmo, mais facilmente reconhecíveis e dotadas de efetividade jurídica.
7
Ob.cit. p. 34.
10
Discorrendo acerca do exercício do poder no âmbito dos diversos
modelos de Estado adotados ao longo dos tempos, Maria Sylvia Zanella di Pietro8
apresenta criterioso estudo abordando a questão relativa aos limites de atuação
da Administração Pública no Estado de Polícia e no Estado de Direito, situando
em cada um daqueles contextos históricos o tratamento conferido à legalidade e à
discricionariedade.
De acordo com Merkl, citado pela autora, a característica distintiva
entre os dois modelos de organização jurídico-política reside na constatação de
que “o Estado de Polícia se apresenta como aquele Estado cuja administração se
acha legalmente incondicionada, enquanto o Estado de Direito oferece uma
administração legalmente condicionada”.
O Estado moderno, em sua gênese, é assim rotulado como sendo o
Estado de Polícia, marcado pelo poder absoluto do monarca, cuja vontade
suprema se impunha, representado pela máxima the king can do no wrong.
Nesse período histórico, informa a autora que, nas palavras de
Vinício Ribeiro, “o príncipe vai utilizar a sua ausência de limites não para o seu
engrandecimento pessoal, mas com a intenção de se tornar o possesso da idéia
de progresso do seu país”, sendo que “(...) os súditos ficavam à mercê do
príncipe, não dispondo de qualquer medida judicial a ele oponível”, como também
noticia Marcelo Figueiredo.9
8
Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988, 2ª ed., Atlas, São Paulo, 2001, p.
17/64.
9
Estudos de Direito Público em homenagem a Celso Antônio Bandeira de Mello. Marcelo
Figueiredo e Valmir Pontes Filho, Malheiros, São Paulo, 2006, p. 427: “Nesse período não há falar
em legalidade administrativa. Como sabemos, o poder público é exercido pelo rei ou príncipe em
pessoa e em seu nome e no do Estado, ao mesmo tempo, por funcionários subordinados ao rei.
Em face dos súditos o poder do príncipe não tinha limites jurídicos. Havia uma presunção de
competência a favor dos poderes públicos incorporados na pessoa do rei. O poder Judicial, a
Justiça Civil e Criminal, conquanto estivesse organizado em tribunais, não detinha o monopólio da
jurisdição, já que o rei poderia, em última análise, imiscuir-se em todos os seus assuntos, não raro
avocando causas e processos conforme seu interesse. Desse modo, acabava por decidir
pessoalmente como, quando e da maneira que melhor entendesse o que era o Direito, ou, ainda,
podia determinar a um tribunal como se pronunciar”.
11
A fim de combater esse absolutismo monárquico, conforme reporta
aquela eminente doutrinadora, “elaborou-se (...) a teoria do fisco, em consonância
com a qual o patrimônio público não pertence ao príncipe nem ao Estado, mas ao
fisco, que teria personalidade de direito privado, diversa da personalidade do
Estado, associação política, pessoa jurídica de direito público, com poderes de
mando, de império”, de forma que “o primeiro submetia-se ao direito privado, e,
em conseqüência, aos tribunais; o segundo regia-se por normas editadas pelo
príncipe, fora da apreciação dos tribunais”.
Consequentemente, um conjunto de situações jurídicas passou a ser
regida pelo direito civil, tornando as respectivas relações, portanto, sindicáveis, de
modo que “os tribunais passaram a reconhecer, em favor do indivíduo, a
titularidade de direitos adquiridos contra o fisco, todos eles fundamentados no
direito privado”.
No entanto, um outro bloco de relações continuava sob o domínio da
lei editada pelo príncipe, não sujeito a controle judicial, pelo que a dualidade
estabelecida não veio a efetivamente delimitar o poder do monarca, mas apenas
provocou o seu abrandamento.
Assim, esse sistema ao menos trouxe para o âmbito da apreciação
judicial parte da atividade do Estado, submetendo-a à lei e arrefecendo o império
do arbítrio discricionário do monarca, que até então não encontrava qualquer
limitação legal relativamente à sua atuação.
Em sua fase seguinte, qual seja, o período do Estado Liberal de
Direito, registra Di Pietro que o Estado Moderno alcançou o estágio do
denominado Estado de Direito, fundado com base nos princípios da legalidade,
da igualdade e da separação de poderes, visando resguardar não somente os
direitos individuais relativos às relações entre particulares, mas também os
pertinentes aos liames em que presentes aqueles e o próprio Estado, o que veio a
12
coincidir com o próprio surgimento do constitucionalismo, como também menciona
Marcelo Figueiredo.10
Nessa configuração, de um lado ocorreu a substituição do desejo do
monarca como fonte de produção legal, pela noção da lei como resultante da
vontade geral e, de outro lado, cometeu-se ao Direito a incumbência de promover
a garantia das liberdades individuais, o que veio a determinar que a legitimação do
exercício do poder necessariamente tivesse como origem a própria lei, conceito
esse estampado, em 1789, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.11
Anota o já citado Marcelo Figueiredo12 que “ninguém duvida de que o
princípio da legalidade, em sua concepção forte e original, tenha surgido com toda
sua força e pujança nessa época” e que “a noção de poderes pessoais é
substituída – muito devido a Rousseau – pelos poderes advindos da lei”, sendo
que “é a lei a fonte do poder democrático”.
Foi exatamente nesse ambiente mutante, como lembra Di Pietro, que
veio à luz o Direito Administrativo, assumindo independência em relação ao direito
10
Ob. cit. p. 429: “Embora não haja contraposição entre Estado Liberal e Estado Constitucional,
alguns autores entendem que ambos são movimentos paralelos, baseados sobre fundamentos
idênticos; ou; ainda, que o primeiro é o precursor do segundo. Nos Estados Unidos da América do
Norte encontramos um ambiente ideal para o desenvolvimento do regime constitucional escrito. A
idéia de uma lei constitucional superior às ordinárias – todos sabemos – é antiga, e encontrada em
Aristóteles. Também da velha Inglaterra somos devedores de idéia de uma lei constitucional.
Cromwell, em 1652, promulgava o Instrument of Government, que em seus 42 artigos declarava
nulas as leis ordinárias contrárias às suas disposições”.
11
Rafael Munhoz de Mello, Revista Trimestral de Direito Público, 30/2000, A sanção administrativa
e o princípio da legalidade, Malheiros, São Paulo, 151/52: “Como foi acima afirmado, ínsita à idéia
de Estado de Direito é a submissão dos entes estatais à lei. Com efeito, o Estado de Direito surge
justamente no momento em que a observância da ordem jurídica torna-se obrigatória para o
próprio Estado. Daí afirmarem os doutrinadores que o princípio da legalidade é a mais importante
característica do Estado de Direito, ‘que o qualifica e lhe dá identidade própria’. Trata-se, nas
palavras de Brewer-Carías, da ‘construción jurídica más importante del Estado de derecho’. Sendo
assim, a importância do princípio da legalidade para o direito administrativo é imensurável, pois tal
ramo jurídico é, também, conseqüência do advento do Estado de Direito. De fato, antes da
submissão do ente estatal à legalidade não havia que se falar em direito administrativo, ao menos
no modo como a expressão é hoje entendida. Pode-se afirmar, assim, que o direito administrativo
é fruto da Revolução Francesa, marco histórico que identifica o surgimento do Estado de Direito”.
12
Ob. cit. p. 428.
13
comum e ganhando autonomia por meio de normas de direito público aplicáveis à
Administração Pública.
Lembra a autora que, muito embora o princípio da legalidade
representasse a idéia central inspiradora do Estado de Direito, àquela época o
mesmo apresentava uma compostura restritiva, na medida em que ao Estado,
ainda como resquício do velho regime, reconhecia-se um círculo de agir intitulado
de discricionário e que se situava livre de vinculação e fora do alcance de qualquer
controle judicial. Isso se devia à idéia então difundida de que, a exemplo do Poder
Judiciário, a Administração Pública, no exercício de sua atividade dita executiva,
tinha a missão de executar a lei, o que levou a uma conceituação de ato
administrativo próxima àquela da sentença judicial, ou seja, uma manifestação da
Administração visando aplicar a lei a um caso concreto.
Aponta a doutrinadora que “daí resulta a necessidade de
compatibilizar essa idéia de discricionariedade com o princípio da legalidade
administrativa” cuja “conseqüência foi que esse último era entendido de forma
muito mas liberal do que a atualmente concebida”, já que “a administração podia
fazer não só o que lei expressamente autorizasse, como também tudo aquilo que
a lei não proibisse”. Nessa linha, a discricionariedade, então, podia ser entendida
não como um poder jurídico, mas um poder político, posto que possível de ser
manejada pela Administração em todos aqueles espaços não abrangidos pela lei.
Em sua próxima etapa, no século XIX, verificada a insuficiência dos
princípios que nortearam o liberalismo e, ao mesmo tempo, ancorado nas idéias
de socialização e de fortalecimento do Poder Executivo, veio à lume o chamado
Estado Social de Direito, quando se identifica a admissão de uma certa
participação do Poder Executivo no processo normativo, na medida em que o
14
legislador editava standards que demandavam complementação por normas infralegais produzidas pelo Executivo, como reportado por José Carlos Francisco.13
Paralelamente a essa sobrecarga passada à Administração Pública
ocorreu um crescimento do Direito Administrativo, posto que o Estado, além de ter
reclamada a sua atuação nos campos social e econômico, passou a intervir de
maneira crescente no arco das liberdades individuais, mediante a limitação ao
exercício de direitos ou mesmo por meio da atuação direta em áreas antes
reservadas à atividade privada, como referido por San Tiago Dantas.14
Assim, conforme a autora já citada, “o direito administrativo criou
princípios e institutos que derrogaram em grande parte postulados básicos do
13
Limites Constitucionais à função regulamentar e aos regulamentos, Tese de doutorado,
Faculdade de Direito da USP, Orientador Prof. Dr. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, São Paulo,
abril de 2003, p. 272/73: “Vimos anteriormente que nos séculos XVIII e XIX ainda sob forte
influência da lógica liberal de separação dos poderes, cogita-se que ao Executivo deveria ser
conferida liberdade ou discricionariedade para a escolha de suas ações, razão pela qual o sentido
extraído pela administração dos comandos da constituição e das leis não estaria sujeito a controle
jurídico, mas tão somente à fiscalização moral e política. Visando à proteção das liberdades
públicas e à definição dos limites de ação estatal, a administração estava vinculada à lei, mas o
governo (compreendido como Chefia do Executivo) seria dotado de discricionariedade, cujos atos
seriam excluídos da apreciação jurisdicional em razão da separação de funções e de poderes (jus
politiae). Porém, também vimos que a separação dos poderes sempre teve o sentido de controle e
equilíbrio entre eles, justificando a anulação de atos do poder Executivo pelo Legislativo e pelo
Judiciário quando eivados de vícios, particularmente quanto à legalidade e constitucionalidade,
motivo pelo qual a impossibilidade de controle jurídico mesmo dos atos discricionários foi vencida
rapidamente, ainda no período liberal. Já com o Estado Social, quando mais se exige do Executivo
e das leis em razão da consecução de fins econômicos e sociais, sabemos que as previsões legais
passaram a ser mais amplas, servindo de orientação geral para flexibilizar as ações da
administração pública em face da realidade cambiante e técnica. Nesse quadro de idéias é que
vimos a fixação de preceitos programáticos na ordem constitucional para definir o sentido de justiça
social a ser buscado pelas leis e pelos atos dos Poderes Públicos, exigindo-se do Legislativo a
definição do núcleo essencial dos temas pela reserva absoluta e admitindo-se maior participação
do Executivo no processo normativo, ao mesmo tempo em que se ampliam os sistemas de
controle. Todavia, por mais esforços que tenham sido empreendidos, a necessária mobilidade na
administração pública ainda assim exige que as leis transfiram ao Executivo uma boa dose de
liberdade na tomada de decisões, seja quando exercem a função regulamentar, seja quando
praticam atos administrativos de efeito concreto, definida como discricionariedade”.
14
Problemas de Direito Positivo, Forense, Rio, 1956. Igualdade perante a lei e Due process of law,
Forense, Rio, 1953, p. 48, grafia original: “Entre essas medidas novas, requeridas pelo
desenvolvimento sempre crescente do Estado, achavam-se tôdas aquelas que visam ‘a melhoria
das condições sociais e econômicas da sociedade em geral’, cujo complexo dinâmico os autores
soem designar pela expressão public welfar. A crescente intervenção do Estado na vida
econômica, para orientar, coordenar, estimular e reprimir iniciativas, constitucionalmente se
exprime numa dilatação do poder de polícia, o qual estende sua esfera de ação até os negócios
privados, na medida em que eles se refletem no campo do interesse público”.
15
individualismo jurídico”, consoante também registrado por Marcelo Figueiredo,15
bem como “o poder de polícia também experimentou notável ampliação” fazendose presente em áreas não pertinentes à segurança, bem como impondo
obrigações em vários segmentos, passando assim a ser considerado como um
meio de limitação, pelo Estado, ao exercício dos direitos individuais em prol do
interesse coletivo, característica esta já vislumbrada por Ramón F. Vasquez,16 na
metade do século passado.
Nesse quadro, o princípio da legalidade, sob a influência do
positivismo jurídico, passou a incidir sobre toda a atividade administrativa,
consolidando o entendimento de que a Administração Pública só pode fazer aquilo
que lhe permite a lei, conforme enfatiza Celso Antônio Bandeira de Mello,17 de
modo que a própria discricionariedade exigia explicação e fundamento no bojo do
sistema jurídico, assumindo assim os contornos de um poder carente de
justificação legal para o seu exercício.
15
Ob. cit. p. 434: “No contexto do Estado Social de Direito, não por acaso, a ‘doutrina dos
princípios’ floresce com toda força. Isso porque a complexidade do Estado e da sociedade
contemporânea, ambos fenômenos de massa, plurais, desencadearam a necessidade de que a
experiência jurídica produzisse canais de comunicação normativa mais abertos – os princípios – de
modo a acomodar essa gama enorme de interesses e aspirações, abrindo, assim, o raio normativo
no maior ângulo possível, fixando-lhe, é certo, o seu conteúdo central (...). De fato, os princípios
passaram a desempenhar um papel muito mais dinâmico em relação à aplicação da legalidade –
inclusive na Administração. Isso porque as regras são, normalmente, relatos objetivos, descritivos
de determinadas condutas e aplicáveis a um conjunto delimitado de situações. Respondem à
lógica do tudo-ou-nada. Já os princípios, com sua natural abertura normativa, podem com
facilidade abrigar várias regras. Ou, noutro giro, às vezes a aplicação de uma única regra pode
ceder espaço para a aplicação de um princípio, de conteúdo e alcance mais amplo – digamos, um
princípio geral.”
16
Poder de Policía, Segunda Edición, Buenos Aires, 1957, p. 35, tradução livre: “O dito até aqui
demonstra a considerável amplitude do conteúdo do Poder de Polícia, por mais que seu exercício
não esteja isento das restrições exigidas por respeito à Constituição. Tão extraordinário é seu
alcance que, com a evolução social e política produzida nas sociedades modernas, tem alcançado
insuspeitada aplicação, abarcando até matérias vinculadas ao mais íntimo da vida privada das
pessoas.”
17
Discricionariedade e Controle Jurisdicional, Malheiros, São Paulo, 2ª ed., 7ª tiragem, 2006, p.
10/11: “Assim, deve-se, desde logo, começar por frisar que o próprio do Estado de Direito, como se
sabe, é encontrar-se, em quaisquer de suas feições, totalmente assujeitado aos parâmetros da
legalidade. Inicialmente, submisso aos termos constitucionais, em seguida, aos próprios termos
propostos pelas leis,e, por último, adstrito à consonância com os atos normativos inferiores, de
qualquer espécie, expedidos pelo poder Público. Deste esquema, obviamente, não poderá fugir
agente estatal algum, esteja ou não no exercício de ‘poder’ discricionário. A grande novidade do
Estado de Direito certamente terá sido subjugar totalmente a ação do Estado a um quadro
normativo, o qual se faz, assim, impositivo para todos – Estado e indivíduos”.
16
Passo seguinte, mercê das conseqüências funestas deixadas pelo
positivismo formalista e o resultado desfavorável apresentado pelo Estado Social
no que respeita aos valores apregoados pelo liberalismo, consoante acentua Di
Pietro, surge o Estado Democrático de Direito, atendendo aos reclamos pela
volta ao Estado de Direito, o que veio a ser alcançado principalmente por meio da
participação do povo no processo político e pela realização de justiça social.
Anota a autora o caráter evolutivo da mudança ocorrida, citando José
Afonso da Silva,18 ao mesmo tempo em que deixa marcado que essa nova
concepção de Estado Democrático de Direito foi adotada, dentre outras, pela
Constituição alemã de 1949, pela espanhola de 1978, pela portuguesa de 1976 e,
ainda, pela nossa constituição promulgada em 1988.
Para Juarez Freitas,19 “o Estado Constitucional, numa de suas mais
expressivas dimensões pode ser traduzido como o Estado das escolhas
administrativas legítimas”, e “assim considerado, nele não se admite a
discricionariedade pura, intátil,
sem limites,
pois,
“faz-se
cogente, sem
condescendência, enfrentar todo e qualquer “demérito” ou antijuridicidade das
escolhas públicas, para além do limite adstrito a aspectos meramente formais”.
Segundo
o
tratadista,
“toda
discricionariedade
exercida
legitimamente, encontra-se, sob determinados aspectos, vinculada aos princípios
constitucionais, acima das regras concretizadoras”, e, “nessa ordem de idéias,
quando o administrador público age de modo inteiramente livre, já deixou de sê-lo.
18
“a igualdade do Estado de Direito, na concepção clássica, se funda num elemento puramente
formal e abstrato, qual seja a generalidade das leis. Não tem base material que se realize na vida
concreta. A tentativa de corrigir isso, no entanto, não foi capaz de assegurar a justiça social nem a
autêntica participação democrática do povo no processo político, de onde a concepção mais
recente do Estado Democrático de Direito, como Estado de legitimidade justa (ou Estado de justiça
material), fundante de uma sociedade democrática qual seja a que instaura um processo de efetiva
incorporação do povo nos mecanismos de controle das decisões, e de sua real participação nos
rendimentos da produção”.
19
Discricionariedade Administrativa e o direito fundamental à boa administração pública, Malheiros,
São Paulo, 2007, p. 9/10.
17
Tornou-se arbitrário. Quer dizer, a liberdade apenas se legitima ao fazer aquilo
que os princípios constitucionais, entrelaçadamente, determinam”.
Nesse novo cenário, esclarece Di Pietro que “o princípio da
legalidade vem agora expressamente previsto na Constituição entre aqueles a que
se obriga a Administração Pública direta, indireta ou fundacional (...)”, sem no
entanto significar que “o constituinte tenha optado pelo mesmo formalismo
originário do positivismo jurídico”.
Ressalta também que “preocupam-se os doutrinadores em realçar a
importância dos princípios gerais do direito como fonte do direito administrativo” e
que “todos esse valores são dirigidos ao legislador, ao magistrado e ao
administrador público”, asseverando ainda que “a discricionariedade administrativa
– como poder jurídico que é – não é limitada só pela lei, em sentido formal, mas
pela idéia de justiça, com todos os valores que lhe são inerentes, declarados a
partir do preâmbulo da Constituição”.
Esclarece a autora que atualmente, entre nós, por força do fenômeno
da globalização, verifica-se um certo retorno, ainda brando, ao neoliberalismo,
bem como em virtude do princípio da subsidiariedade e da própria reforma
administrativa.
Nessa nova concepção, “os direitos fundamentais do homem já não
constituem apenas uma barreira à atuação do Estado”, pois “cabe a esse
promover, estimular, criar condições para que o indivíduo se desenvolva
livremente e igualmente dentro da sociedade; para isso é necessário que se criem
condições para a participação do cidadão no processo político e no controle das
atividades governamentais”.
Naturalmente, esse novo ambiente, conforme explicita a autora,
provocou reflexos no direito administrativo, os quais podem ser percebidos, de um
18
lado, pela aderência ao mesmo de novos institutos e princípios e, de outro, como
pretendem os neoliberais fundamentalistas, difunde-se a idéia de que o Direito
Administrativo vem se constituindo em óbice às suas idéias.
Esse alegado empecilho resultaria do próprio princípio da legalidade,
o que levaria aquele grupo a postular um regime de direito privado para certas
situações ou mesmo um regime jurídico-administrativo mais flexível que redunde
em maior liberdade de atuação por partes das autoridades administrativas.
Percebe-se, segundo Di Pietro, um claro embate por mudanças no
Direito Administrativo, buscando, ao mesmo tempo, relativizar a estrita legalidade
e aumentar a margem de discricionariedade, especialmente por meio da aplicação
da denominada discricionariedade técnica, tendo como objetivo principal escapar
ao controle jurisdicional.
Entretanto, enfatiza a administrativista que “o princípio da legalidade
continua presente na Constituição, tal como previsto na redação original” e, “em
conseqüência, a discricionariedade continua sendo um poder jurídico, ou seja, um
poder limitado”.
Corrobora o posicionamento acima o entendimento expressado por
Susana Lorenzo20, no sentido de que a atuação discricionária da Administração só
existe por disposição expressa da lei, que lhe outorga aspectos sempre
particulares de uma relação para complementá-la e lhe dar eficácia jurídica e que,
por isso, o princípio da legalidade não é afetado.
Ainda
de
acordo
àquela
tratadista,
a
maior
ou
menor
discricionariedade surgirá, como diz Sayagués, dos textos constitucionais ou
20
Sanciones Administrativas, Julio César Faiza – Editor, Montevideo, 1996, p. 15.
19
legais, sem prejuízo de que a Administração, no exercício de seus poder
regulamentar, possa estabelecer seus próprios limites de discricionariedade.
Em outra passagem, Di Pietro acrescenta ainda que “a legalidade é
estrita quando se trata de impor restrições ao exercício de direitos individuais e
coletivos e em relação àquelas matérias que constituem reserva de lei, por força
de exigência constitucional”, e que “em outras matérias, pode-se falar em
legalidade em sentido amplo, abrangendo os atos normativos baixados pelo Poder
Executivo e outros entes com função dessa natureza, sempre tendo-se presente
que no direito brasileiro não têm fundamento os regulamentos autônomos”,
Pondera que “o grau de discricionariedade continua a depender da
forma como a competência legislativa é atribuída ao legislador”, e que “a
discricionariedade continua a ser poder jurídico, porque exercida nos limites
fixados pela lei, sendo ainda limitada por inúmeros princípios previstos de forma
implícita ou explícita na Constituição como moralidade, razoabilidade, interesse
público”.
Por fim, enfatiza que “qualquer outra interpretação significa a perda
da segurança jurídica essencial para proteger os direitos do cidadão em face do
poder público”.
20
2. Poder de Polícia
Naquilo que toca ao denominado poder de polícia, cabe asseverar
que o seu exercício, por parte das pessoas jurídicas de direito público qualificadas
implícita ou explicitamente como órgãos reguladores de mercados, têm como
fundamento de validade, em termos gerais, a idéia central que abrange a
totalidade do ordenamento jurídico, no sentido de que os direitos subjetivos não
têm caráter absoluto.21
Em vista disso, a fruição dos direitos subjetivos por parte dos seus
titulares não pode se revelar abusiva, sob pena de situar-se além do que seria
necessário para o atendimento de suas finalidades e interesses e, assim, invadir
esferas de direitos alheios e vir a ser a ser abrangida pelo campo da ilicitude.
Nesse sentido é a própria interpretação a contrario sensu do disposto
no art. 160, do revogado Código Civil, quando enunciava que não constituem atos
ilícitos os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito.
O vigente Código Civil, cujas disposições se espraiam para as
demais províncias do Direito, veio a tornar mais claro o entendimento a respeito ao
estabelecer, em seu artigo 187, que “também comete ato ilícito o titular de um
direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim
econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
Na mesma linha já se colocava a própria Constituição Federal, em
vários incisos do seu artigo 5º, os quais estabelecem expressas limitações ao
exercício de uma série de direitos e de liberdades individuais, seja no tocante à
propriedade, ao exercício de profissões, aos direitos políticos ou de reunião,
21
Antonio Carlos Verzola, Dos marcos legais impostos ao exercício do direito de punir por parte da
administração pública. in Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, RT, São Paulo,
Ano 9, nº 32, abril-junho de 2006, p. 87/88.
21
dentre outros, limitando a sua utilização às fronteiras da normalidade, de modo a
não desbordar do terreno da licitude.
Em sede de Direito Público, e mais especificamente na seara do
Direito Administrativo, essa proibição de abuso ou essa necessidade de
moderação no exercício dos direitos traduz-se na imposição legal de conformação
dos interesses individuais ao interesse público e deriva da supremacia deste em
relação àqueles, vindo a ser tratada pelos doutrinadores sob a rubrica denominada
poder de polícia.
Para Celso Antônio Bandeira de Mello,22 “rigorosamente falando, não
há limitações administrativas ao direito de liberdade e ao direito de propriedade –
é a brilhante observação de Alessi – uma vez que estas simplesmente integram o
desenho do próprio perfil do direito. São elas, na verdade, a fisionomia normativa
dele”.
Segundo Maria Silvia Zanella di Pietro,23 “a autoridade não pode
renunciar ao exercício das competências que lhe são outorgadas por lei; não pode
deixar de punir quando constate a prática de ilícito administrativo; não pode deixar
de exercer o poder de polícia para coibir o exercício dos direitos individuais em
conflito com o bem estar coletivo; não pode deixar de exercer os poderes
decorrentes da hierarquia (...). Cada vez que ela se omite no exercício de seus
poderes, é o interesse público que está sendo prejudicado”.
A propósito, Caio Tácito24 afirma que “não há direito público subjetivo
absoluto no Estado Moderno. Todos se submetem, com maior ou menor
intensidade, à disciplina do interesse público, seja em sua formação ou em seu
exercício”.
22
Curso de Direito Administrativo, 22ª ed., Malheiros, São Paulo, 2007, p. 784.
Direito Administrativo, 15ª edição, Atlas, 2003, p.70.
24
Direito Administrativo, Saraiva, 1975, p. 141.
23
22
Em outra obra de sua autoria,25 sustenta que “a Administração
Pública, dotada de uma margem reconhecida de discricionariedade, em benefício
do interesse geral, encontra na regra de competência, explicitada na lei que
qualifica o exercício da autoridade, a extensão do poder de agir”.
A seguir, enfatiza que “dissemos, em outra oportunidade, que não é
competente quem quer, mas quem pode, segundo a norma de direito”, e que “ao
contrário da pessoa jurídica de direito privado que, como regra, tem a liberdade de
fazer aquilo que a lei não proíbe, o administrador público somente poder fazer
aquilo que a lei autoriza expressa ou implicitamente”.
Ainda segundo Caio Tácito, “em seu conceito clássico o poder de
polícia é simples processo de contenção dos excessos do individualismo” e
“consiste, em suma, na ação da autoridade pública para fazer cumprir por todos os
indivíduos, o dever de não perturbar” .
Numa breve síntese histórica a respeito da matéria, Nelson Eizirik26
informa que “a noção de poder de polícia remonta à Antiguidade, quando
significava “ordenamento político do Estado ou cidade”, e que ”após a ampliação
de seu sentido na Idade Média, tal noção atingiu seu apogeu no fim do período
absolutista, época em que o Estado realizava intromissão opressiva na vida dos
particulares”. Ainda conforme o autor, “a restrição de seu sentido adveio da
Revolução Francesa e da Declaração de Virgínia, quando ganharam força os
direitos fundamentais do homem, principalmente aqueles em face do Estado”.
Explicitando o seu significado, Hely Lopes Meirelles27 preceitua que
“a cada restrição de direito individual – expressa ou implícita em norma legal –
corresponde equivalente poder de polícia administrativa à Administração Pública,
para torná-la efetiva e fazê-la obedecida. Isto porque esse poder se embasa,
25
Revista de Direito Administrativo, nº 227, jan/mar 2002, p. 40.
Mercado de Capitais - Regime Jurídico, Renovar, Rio de Janeiro, 2008, p. 257/58.
27
Direito Administrativo Brasileiro. 26ª ed.. 2001, Malheiros, p. 125.
26
23
como já vimos, no interesse superior da coletividade em relação ao direito do
indivíduo que a compõe”.
Sobre a questão, Odete Medauar28 entende tratar-se de tema que
“diretamente se insere na encruzilhada liberdade-autoridade, Estado-indivíduo,
que permeia o direito administrativo e o direito público, revelando-se muito
sensível à índole do Estado e às características históricas, políticas e econômicas
dos países”.
Posto isso, percebe-se que a maioria dos autores, ao se reportarem
à atividade da Administração Pública de realizar, mediante atos administrativos,
abstratos ou concretos, a adequação de interesses individuais ao interesse
coletivo, tratam do tema empregando a denominação poder de polícia. Não
obstante isso, essa locução é objeto de ampla discussão no ambiente doutrinário,
podendo-se dizer, até, que a sua utilização reflete mera resignação a um
arraigado costume, despido de rigor técnico, como indica o entendimento
majoritário.
Assim o é na medida em que um considerável grupo de
doutrinadores não reconhece a existência de um conjunto normativo próprio
daquilo que se convencionou chamar de poder de polícia, como é o caso de Lúcia
Valle Figueiredo,29 ao concluir, com apoio em Gordillo30 e em José Roberto
Dromi,31 pela “inexistência de regime jurídico determinado para as “medidas de
polícia”, quer legislativas ou executivas, distinto do resto da atividade estatal”.
28
Direito Administrativo Moderno, 5ª ed., 2001, RT, p. 387.
Curso de Direito Administrativo, 2ª Ed. 1995, RT, p.195/96.
30
Cf. Agustín A Gordillo, tradução livre: “De plano, é de recordar que o aditamento de ‘poder’ é
equivocado, porquanto o poder estatal é um só, e já se viu que a chamada divisão de três poderes
consiste, por um lado, em uma divisão de funções (funções legislativa, administrativa, jurisdicional),
e por outro em uma separação de órgãos (órgãos legislativo, administrativo e jurisdicional). Em tal
sentido o poder de polícia não seria em absoluto um órgão do Estado, senão em uma espécie de
faculdade ou melhor uma parte de alguma das funções mencionadas”. (Tratado de Derecho
Administrativo, t. 2, XII-I, XII-2).
31
Cf. José Roberto Dormí, tradução livre: “As limitações administrativas, como pressuposto legal,
encaixam dentro da mecânica operativa do regime da Administração sem necessidade de recorrer
a outro poder, como o de polícia, que nao tem lugar dentro da tríade tradicional e dogmática que
29
24
Filiando-se àquela corrente doutrinária, Carlos Ari Sundfeld32
considera inevitável a eliminação da própria idéia de poder de polícia e igualmente
reportando-se a Gordillo informa que “seu argumento central, afora a origem
viciada do conceito, reside na sua inocuidade, visto isolar algo que, em tudo e por
tudo, corresponderia ao exercício de qualquer função administrativa: a aplicação
da lei”.
Por outro lado, um outro expressivo universo de doutrinadores
discorda da própria utilização da expressão poder de polícia, dentre estes se
alinhando José Cretella Júnior,33 ao lembrar que originada “da jurisprudência
norte-americana a denominação police power passa aos trabalhos doutrinários,
americanos e ingleses, tendo sido aceita, em breve, pelos juristas de todos os
países em que se cultiva o direito público”, e acentua que sob o aspecto da
técnica jurídica, a mencionada expressão é imperfeita, sendo passível de
profundos reparos (...)”, como também adverte Marçal Justen Filho”.34
Por sua vez, Celso Antônio Bandeira de Mello35 considera equívoca
a expressão poder de polícia, a exemplo dos autores antes citados, por conduzir a
consagra a Constituição (Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário), e que mais, suas
formas de exteriorização são as mesmas da função administrativa (por exemplo, atos
administrativos de sanção, orden, autorização, permissão, etc.), toda vez que a chamada ‘polícia’
não é mais que uma parte da função administrativa sem autonomia jurídica nenhuma”.
(Prerrogativas y Garantias Administrativas, 1ª parte, p. 121).
32
Direito Administrativo Ordenador, Malheiros, São Paulo, 1997, 1ª ed., 2ª tir. p. 11/12: “À crítica de
Gordillo se opôs a resposta de que investira contra noção ultrapassada: bastaria esclarecer a
necessidade de o poder de polícia traduzir sempre uma atividade sublegal. Mas ainda assim
permanece a pergunta: porque isolar, empregando expressão reconhecidamente perigosa, algo
que não seria distinto de outras atuações administrativas, por traduzir apenas aplicação da lei?”
33
Curso de Direito Administrativo, 17ª ed., 2000, Forense, p. 537.
34
Curso de Direito Administrativo. Saraiva, São Paulo, 2005.p. 385: “Com a evolução dos modelos
políticos, a intervenção conformadora estatal deixou de ser apenas repressiva e passou a
compreender imposições orientadas a promover ativamente condutas reputadas como desejáveis.
Esse conjunto de competências é indicado pela expressão ‘poder de polícia’, que se caracteriza
por não ser orientada a fornecer utilidades materiais. O poder de polícia compreende competências
legislativas e administrativas. Tal como ressalta toda a doutrina, a expressão poder de polícia
administrativa é inadequada, como será adiante exposto, mas sua utilização é mantida em vista da
tradição”.
35
Curso de Direito Administrativo, 16ª ed., Malheiros, São Paulo, 2003, p.708: “Além disso, a
expressão ‘poder de polícia’ traz consigo a evocação de uma época pretérita, a do ‘Estado de
Polícia’, que precedeu ao Estado de Direito. Traz consigo a suposição de prerrogativas dantes
25
lamentáveis e temíveis confusões e também endossa o posicionamento de
Agustín Gordillo, no sentido de banir a expressão do vocabulário jurídico,
lembrando ainda que a sua evocação, nos dias atuais, revela-se dissociada do
Estado Democrático de Direito.
Apesar disso, mesmo em face das relevantes ponderações lançadas
em sede doutrinária, tanto no que diz respeito à impropriedade da expressão
poder de polícia, quanto no que atina ao não reconhecimento de um regime
jurídico que lhe seja peculiar, de modo a distinguir aquela espécie de atividade na
seara do Direito Administrativo e no círculo da própria função administrativa, os
estudiosos do assunto reverenciam a tradição formada pelo uso da denominação
e, ainda que sob protesto, resignam-se a abordar a questão sob aquele título.
Diante disso, é sob tal nomenclatura que em nível doutrinário, e, por
vezes, em meio ao próprio direito positivo, seja entre nós ou mesmo no direito
comparado, que são desenvolvidos e oferecidos o fundamento, o conceito, as
formas de atuação e os próprios limites a serem observados pela Administração
Pública no exercício do denominado poder de polícia.
Quanto ao conceito de poder de polícia, é de se notar que o próprio
Código Tributário Nacional36, de forma não usual, veio a positivá-lo, sendo que,
doutrinariamente, é clássica a definição de Marcelo Caetano37 de que “poder de
polícia” é o modo de atuar da autoridade administrativa que consiste em intervir no
existentes em prol do ‘príncipe’ e que se faz comunicar inadvertidamente ao Poder Executivo. Em
suma: raciocina-se como se existisse uma ‘natural’ titularidade de poderes em prol da
Administração e como se dela emanasse intrinsecamente, fruto de um abstrato ‘poder de polícia’.
Daí imaginar-se algumas vezes, e do modo mais ingênuo, que tal ou qual providência – mesmo
carente de supedâneo em lei que a preveja – pode ser tomada pelo Executivo por ser
manifestação de ‘poder de polícia’.”
36
“Art. 78: Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou
disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou a abstenção de fato, em
razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à
disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de
concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e
aos direitos individuais ou coletivos”.
37
Princípios Fundamentais de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, 1977, p. 339.
26
exercício das atividades individuais suscetíveis de fazer perigar interesses gerais,
tendo por objeto evitar que se produzam, ampliem ou generalizem os danos
sociais que a lei procura prevenir”. Por certo, a definição reproduzida carece de
uma abordagem contemporânea, a fim deixar marcado que essa possibilidade de
intervenção da administração pública está condicionada à necessária atribuição de
competência legal que lhe dê fundamento.
Na senda da abrangente definição legal, o professor Edimur Ferreira
38
de Faria
aponta que “poder de polícia” é a atribuição legal conferida à
Administração Pública para, no exercício de suas competências (regrada ou
discricionária), promover a fiscalização do exercício do direito de propriedade e de
liberdade, com vistas a evitar abusos em prejuízo da coletividade ou do Estado.
Para isso, pode valer-se de seus meios próprios, nos limites da lei, para coibir atos
lesivos e impor sanções previstas em lei”.
Uma rápida incursão entre os demais estudiosos da matéria, alguns
deles já referidos neste trabalho, permite afirmar que o conceito por cada um deles
oferecido passa, necessariamente, pela indicação dos sujeitos presentes nas
relações pertinentes ao poder de polícia apontando, de um lado, a Administração
Pública, titular do indelegável exercício da atividade, e, de outro, o administrado,
como destinatário das ações daquela e, ainda, pela menção ao objeto da
mencionada atividade, qual seja, o interesse público, por via da limitação ao
exercício dos direitos e das liberdades.
Além daqueles elementos indispensáveis à identificação da atividade
e, portanto, ao seu próprio conceito, observa-se que por vezes são acrescidas às
definições produzidas pelos doutrinadores tanto a menção aos instrumentos de
que se vale a Administração Pública no exercício da atividade, quanto a referência
às formas de sua atuação, ou mesmo a alusão aos limites a serem observados
por parte do ente estatal que desenvolve a atividade.
38
Curso de Direito Administrativo Positivo, 4ª ed., 2001, Del Rey, ps. 200/01.
27
É digna de registro a definição elaborada por Celso Antônio Bandeira
de Mello39 que, com a precisão habitual, além de indicar aqueles elementos de
presença obrigatória para marcar e validar as atividades de polícia administrativa,
indica os instrumentos que a materializam, dá o seu fundamento de validade e
deixa evidenciadas as suas formas de atuação.
Assim, aquele mestre conceitua a polícia administrativa como sendo
“a atividade da Administração Pública, expressa em atos normativos ou concretos,
de condicionar, com fundamento em sua supremacia geral e na forma da lei, a
liberdade e propriedade dos indivíduos, mediante ação ora fiscalizadora, ora
preventiva, ora repressiva, impondo coercitivamente aos particulares um dever de
abstenção (“non facere”) a fim de conformar-lhes os comportamentos aos
interesses sociais consagrados no sistema normativo”.
Naquilo que diz respeito à sua extensão ou, melhor ainda, às
possíveis e legítimas formas de atuação da Administração Pública, ao dar
consecução ao poder de polícia cuja competência lhe foi atribuída, cumpre
assinalar, inicialmente, conforme expresso no conceito acima reproduzido, que
aquelas formas se manifestam pela produção ou mesmo pela execução de atos
normativos abstratos, de alcance geral e, também de atos concretos, específicos e
determinados em relação aos seus destinatários.
Importante deixar assinalado que, em quaisquer daquelas hipóteses,
a Administração Pública está se dirigindo à conduta dos administrados, pessoas
naturais ou jurídicas, que desenvolvam atividades sujeitas ao poder de polícia,
consoante legalmente estabelecido, no sentido de autorizar o exercício das
mesmas, promover a sua fiscalização e, eventualmente, impor as sanções que se
fizerem devidas, em estrita observância à legislação de regência.
39
Ob.cit. p. 724.
28
Por força disso, é de se concluir que o poder de polícia exteriorizase, primeiramente, por uma atuação de caráter estático e preventivo, marcada
pelo estabelecimento de condições para o exercício de um determinado direito ou
de fruição de uma certa liberdade, cujo atendimento vem a se configurar
pressuposto
para
a obtenção
da respectiva
autorização
por
parte
da
Administração Pública, como exigido de uma companhia de seguros ou de uma
instituição financeira, que só a partir de então poderão vir a ter existência legal,
como preceitua o artigo 45, do Código Civil vigente.
Em um segundo momento, de natureza já dinâmica, manifesta-se o
poder de polícia pela indispensável submissão da atividade do administrado à
fiscalização da Administração Pública, titular do correlato poder de polícia, no
sentido de verificar a observância do arcabouço jurídico posto para o exercício
daquela atividade, como ocorre com aquelas entidades mencionadas no tópico
anterior.
Por fim e, diante de situações que assim o demandem, o poder de
polícia se apresenta sob a sua forma repressiva, por meio de ações concretas,
consubstanciadas em atos de constrição e de restrição de direitos, materializadas
em sanções administrativas das mais diferentes espécies, como se explicitará
adiante, o que, a exemplo das outras formas de atuação acima expostas, vem a
constituir a essência inerente ao poder de polícia, qual seja, promover a
adequação dos interesses privados ao interesse público.
Tais formas de atuação antes comentadas são, em suma, os meios
pelos quais a Administração Pública torna efetivo aquilo que se convencionou
denominar de poder de polícia e sobre isso há uniformidade na abordagem
doutrinária, como se extrai, a título de menção exemplificativa, do posicionamento
de Toshio Mukai40 acerca deste aspecto.
40
Direito Administrativo Sistematizado, Saraiva, 1999, ps. 97/98: “A polícia administrativa atua de
maneira preventiva, por meio de normas limitadoras da conduta daqueles que utilizam bens ou
exercem atividades que possam afetar a coletividade. Assim, o Poder Legislativo edita leis, e os
29
órgãos executivos expedem regulamentos e instruções fixando as condições e requisitos para o
uso da propriedade e o exercício das atividades que devam ser policiadas. Após as verificações de
compatibilidade entre as atividades pretendidas e a lei, é outorgado o respectivo alvará de licença
ou autorização, ao qual se segue a fiscalização competente. O poder de polícia também atua na
fiscalização das atividades e bens sujeitos ao controle da Administração. Essa fiscalização resumese à verificação da normalidade do uso do bem ou da atividade policiada. Caso constatada
qualquer irregularidade ou infringência legal, o agente fiscalizador deverá advertir verbalmente o
infrator ou lavrar o competente auto de infração, no qual registrará a sanção cabível que,
oportunamente, será executada pela Administração, ressalvados os casos punidos com multa, que
só poderão ser executados pela via judicial. De outro lado, além dessas condutas genéricas, a
Administração manifesta seu poder de polícia por injunções concretas, como as de apreensão de
alimentos deteriorados, fechamento de estabelecimento comercial irregular, interdição de hotel
utilizado para exploração de lenocínio, guinchamento de veículo que obstrua a via pública. Esta
(...) forma de manifestação, embora atinja pessoas ou grupos determinados, não deixa de ser fruto
de uma imposição genérica e indeterminada a todos os particulares. Ocorre que apenas os que
ultrapassarem os limites de seus direitos estarão sujeitos à atuação repressiva da polícia
administrativa”.
30
III – ATOS VINCULADOS E ATOS DISCRICIONÁRIOS
A Administração Pública, no exercício da função administrativa buscando sempre a realização do interesse público, consoante lhe é legalmente
exigido - atua praticando atos administrativos, fazendo uso dos correlatos
poderes/deveres que lhe são atribuídos pelo ordenamento jurídico, os quais se
apresentam sob duas distintas formas.
Lembra Celso Antônio Bandeira de Mello41 que “é clássica a
distinção entre atos expedidos no exercício de competência vinculada e atos
praticados no desempenho de competência discricionária” e que “sobre esse tema
já se verteram rios de tinta”.
Explica que “haveria atuação vinculada e, portanto, um poder
vinculado, quando a norma a ser cumprida já predetermina e de modo completo
qual o único possível comportamento que o administrador estará obrigado a tomar
perante casos concretos cuja compostura esteja descrita pela lei, em termos que
não ensejam dúvida alguma quanto ao seu objetivo reconhecimento”.
Complementa
discricionária
afirmando
que
“opostamente,
haveria
atuação
quando, em decorrência do modo pelo qual o Direito regulou a
atuação administrativa, resulta para o administrador um campo de liberdade em
cujo interior cabe interferência de uma apreciação subjetiva sua quanto à maneira
de proceder nos casos concretos, assistindo-lhe, então, sobre eles prove na
conformidade de uma intelecção, cujo acerto será irredutível à objetividade e ou
segundo critérios de conveniência e oportunidade”.
41
Discricionariedade e Controle Jurisdicional, Malheiros, São Paulo, 2ª ed., 7ª tiragem, 2006, p.
9/11.
31
Após alertar que “a despeito do muito que já escreveu sobre o
assunto ainda há espaço para que muito mais se escreva, pois há tópicos
importantes que precisam ser visitados ou revisitados”, Celso Antônio afirma que
“deve-se, desde logo, começar por frisar que o próprio do Estado de Direito, como
se sabe, é encontrar-se em quaisquer de suas feições totalmente assujeitado aos
parâmetros da legalidade”.
Segundo o autor, “inicialmente, submisso aos termos constitucionais,
em seguida aos próprios termos propostos pelas leis, e, por último, subscrito à
consonância com os atos normativos inferiores, de qualquer espécie, expedidos
pelo Poder Público”, e, assim, “desse esquema obviamente não poderá fugir
agente estatal algum, esteja ou não no exercício de “poder discricionário”.
Dito isso, resulta que, por vezes, a lei prevê de maneira completa as
condições ou pressupostos que deverão orientar a prática do ato pelo
administrador, não lhe reservando qualquer possibilidade de apreciação subjetiva,
vinculando-o aos estritos termos do enunciado legal, conforme assevera Celso
Antônio Bandeira de Mello.42
Desse modo, diante do exercício de competência vinculada, a
Administração Pública, ao praticar o ato administrativo, fica adstrita a realizar a
única conduta possível estabelecida na norma de regência e nos estritos
parâmetros fixados pela mesma, como indica o posicionamento de Diógenes
Gasparini.43
42
Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Malheiros, 2003, p. 820: “A lei, todavia, em certos
casos, regula dada situação em termos tais que não resta para o administrador margem alguma de
liberdade, posto que a norma a ser implementada prefigura antecipadamente, com rigor e
objetividade absolutos os pressupostos requeridos para a prática do ato e o conteúdo que este
obrigatoriamente deverá ter uma vez ocorrida a hipótese legalmente prevista. Nestes lanços diz-se
que há vinculação e, de conseguinte, que o ato a ser expedido é vinculado.”
43
Direito Administrativo, São Paulo, Saraiva, 2000, p. 86: “Vinculados são os atos administrativos
praticados conforme o único comportamento que a lei prescreve à Administração Pública. A lei
prescreve se, como e quando deve a Administração Pública agir ou decidir. A vontade da lei só
estará satisfeita com esse comportamento, já que não permite à Administração Pública qualquer
outro. Esses atos decorrem do exercício de uma atribuição vinculada ou, como prefere boa parte
32
Nessas situações, como frisa Seabra Fagundes44, “a Administração
exerce competência estrita, ou seja, quando pratica o ato vinculado, já encontra
esgotado o conteúdo político (mérito) do processo de realização da vontade
estatal”, de vez que, acrescenta aquele autor, “a medida assim tomada já foi
objeto de análise e de solução optativa anteriores pelo legislador”, pelo que “o
administrador apenas torna efetiva a solução pré-assentada”.
Em outras ocasiões, de modo diverso, em virtude principalmente de
especificidades próprias do fato objeto da norma, o legislador remete à apreciação
subjetiva do agente público algumas das condições de exercício do poder que
atribui à Administração, como também lembra mencionado Celso Antônio
Bandeira de Mello.45
Assim, conforme observa José Carlos Francisco46, “em linhas gerais,
a discricionariedade consiste em opções conferidas pela norma jurídica à
autoridade administrativa, em face do que há possibilidade de escolha de uma
dentre duas ou mais alternativa contidas de forma expressa ou implícita na norma,
valendo-se de conveniência e oportunidade na análise”.
Acrescenta o autor que “a discricionariedade está sempre localizada
na norma superior (constituição ou lei) que autoriza o ato inferior, afirmando a
precedência de um em relação ao outro, e em vez de enfraquecer a importância
da lei no ordenamento jurídico, a liberdade relativa por ela atribuída à autoridade
dos autores, do desempenho do poder vinculado, em cuja prática a Administração Pública não tem
qualquer margem de liberdade.”
44
Revista de Direito Administrativo, Vol. 23, janeiro-março 1951, p. 7.
45
Ob. cit. p. 821: “Reversamente, fala-se em discricionariedade quando a disciplina legal faz
remanescer em proveito e a cargo do administrador uma certa esfera de liberdade, perante o quê
caber-lhe-á preencher com o seu juízo subjetivo, pessoal, o campo de indeterminação normativa a
fim de satisfazer no caso concreto, a finalidade da lei (...). Essa forma é exatamente a de disciplinar
certa matéria sem manietar o administrador. Isto porque a lei pretende que seja adotada em cada
caso concreto unicamente a providência capaz de atender com precisão a finalidade que a
inspirou.”
46
Ob. cit. p. 274.
33
administrativa permite a ela (lei) mais permanência e versatilidade, maximizando
sua eficácia social, efetividade e autoridade”.
Para Celso Antônio Bandeira de Mello,47 a discricionariedade “é a
margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo
critérios
consistentes
de
razoabilidade,
um,
dentre
pelos
menos
dois
comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever
de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por
força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento,
dela não se possa extrair, objetivamente, uma solução unívoca para a situação
vertente”.
Segundo informa Seabra Fagundes48, nestes casos está-se diante
de exercício de atividade discricionária do legislador que, por abstenção voluntária
ou mesmo em virtude da impossibilidade de abranger as múltiplas realidades
supervenientes oferece, seja ao Poder Administrativo ou ao Poder Judiciário,
enquanto órgãos executores, uma certa margem de exercício de discrição.
Esclarece o mesmo Seabra Fagundes49 que a discrição remetida ao
administrador e ao juiz é de caráter residual, posto que “onde e quando se
manifeste, em toda a sua plenitude, a discrição do Poder Legislativo, já não
haverá opções confiadas aos Poderes Executivo e Judiciário no processus de
expressão
da vontade
estatal”, considerando que “exaurindo
a lei
as
possibilidades de escolha, não resta senão cumpri-la, individualizando a solução
por ela predeterminada”
47
Ob. cit. p. 48.
Ob. cit. p. 7: “No exercer, porém, a sua atividade discricionária, o legislador não esgota as
possibilidades de opção peculiares ao exercício da atividade estatal. Às vezes, por abstenção
voluntária, outras, as mais dentre elas, pela impossibilidade de abranger satisfatoriamente, no
contexto dos cânones preestabelecidos, as múltiplas realidades supervenientes.”
49
Ob. cit. p. 8.
48
34
Nessa linha, o exercício de competência discricionária pressupõe a
outorga ao agente público de uma certa margem de apreciação subjetiva,
mediante o adequado uso dos critérios de conveniência e oportunidade, inclusive
relativamente à decisão de praticar ou não o ato, tendo em vista o interesse
público envolvido, conforme acentua Maria Sylvia Zanella Di Pietro.50
A propósito da afirmação feita, no sentido de se outorgar ao agente
público uma certa liberdade de agir, vale lembrar, conforme Eduardo Garcia de
Enterría51, que o legislador, ao deferir aquela faculdade à Administração Pública,
remete à sua apreciação subjetiva apenas algumas das condições de exercício
daquela competência, ou seja, alguns de seus elementos, e nunca todos eles,
como expressamente menciona o autor.
Assim, como deixa registrado o doutrinador, trata-se, no caso de
outorga de competência discricionária, de uma remissão parcial e não total feita
pelo legislador ao juízo subjetivo da Administração Pública.
50
Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988, Atlas, São Paulo, 2001, p. 10:
“Ocorre, no entanto, que o legislador, não tendo condições de prever e avaliar todas as situações
possíveis, é obrigado a deixar certa margem de liberdade para a Administração apreciar os casos
concretos segundo critérios próprios e escolher, entre várias alternativas, aquela que lhe pareça
mais adequada para a proteção do interesse público.”
51
Curso de Derecho Administrativo, Civitas Edicciones, Madrid, 12ª ed., Civitas, p. 461/62,
tradução livre: “(…) ou bem, ao contrário, definindo-a, porque não pode deixar de fazê-lo, em
virtude das exigências de explicitude e especificidade da potestade que atribui à Administração,
algumas das condições de exercício de dita potestade, remete à estimação subjetiva da
Administração o restante de ditas condições (…). Por último, a existência de uma medida nas
potestades discricionárias, é capital. Também temos observado que a remissão da lei ao juízo
subjetivo da Administração não pode ser mais que parcial, e não total. Isso é uma simples
aplicação do princípio da mensurabilidade de todas as competências públicas ou de sua
necessária limitação, que mais atrás se expôs, mas encontra neste âmbito da discricionariedade
um interesse destacado. Com efeito, se resulta que o poder é discricionário enquanto que é
atribuído como tal pela lei à Administração, resulta que esta lei terá tido que configurar
necessariamente vários elementos de dita potestade e que a discricionariedade, entendida como
liberdade de apreciação pela Administração, só pode se referir a alguns elementos, nunca a todos,
de tal potestade.”
35
IV – DISCRICIONARIEDADE
1. Notas introdutórias
A propósito da discricionariedade, é oportuno comentar algumas
anotações da lavra de Regina Helena Costa52, espelhando alguns dos
entendimentos doutrinários a respeito do tema e que deixam evidentes, de um
lado, a comprovação da própria existência de marcos a serem observados no
exercício de competência discricionária e, de outro, a diversidade de opinião no
que respeita a quais seriam ou, por outro modo, onde estariam localizados tais
marcos.
Aponta a autora que “para Queiró os limites da discricionariedade
são os da própria lei, isto é, o limite é a legalidade e só a legalidade”, aduzindo
que “sem contestar a veracidade dessa assertiva, os doutrinadores têm procurado
melhor precisar esses limites”.
Menciona ainda que “Oswaldo Aranha Bandeira de Mello assevera
que os limites dos poderes discricionários “se encontram nos motivos
determinantes do ato jurídico e no fim com que é praticado, tendo em vista a
preocupação do seu agente e a razão de ser do próprio instituto jurídico”.
Informa a autora também que Renato Alessi “apresenta limites
formais e substanciais à discricionariedade administrativa”, sendo que “os
primeiros estão nas prescrições relativas à forma e à formalidade da atividade
discricionária, bem como à competência e, os segundos, constituem-se na
indicação do grau mínimo de interesse publico cuja concreção explica o poder
discricionário de ação conferido à Administração”.
52
Conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade administrativa, Revista da Procuradoria
Geral do Estado de São Paulo, junho de 1988, p. 87/88.
36
Já Celso Antônio Bandeira de Mello, registra a autora, “aponta como
limitações ao exercício da atividade administrativa os motivos e a finalidade
indicada na lei, bem como a causa do ato, entendida esta como a relação de
adequação entre os pressupostos do ato e o seu objeto, tendo em vista aquela
finalidade”.
Destaca Regina Helena Costa que esse último doutrinador
“acrescenta que, por paradoxal que pareça, os mesmo fatores que podem gerar
imprecisão – os pressupostos legais justificadores do ato e a finalidade normativa
– engendram igualmente os pontos de demarcação da discricionariedade”.
Diante desse painel ilustrativo do pensamento doutrinário sobre o
assunto, a autora manifesta sua opinião entendendo que “genericamente, pode-se
dizer que a baliza, o parâmetro da atuação discricionária reside, exatamente, no
respeito ao princípio da razoabilidade da solução adotada”.
Aduz que ”quando da apreciação dos fatos justificadores do ato, há
que verificar a proporcionalidade entre estes e o ato administrativo a ser
praticado”. A questão da proporcionalidade exigida nos atos administrativos em
geral e, particularmente, naqueles pertinentes ao exercício do poder de polícia,
está diretamente relacionada ao correlato princípio da proibição de excesso, o
qual rechaça a possibilidade de atitudes desmedidas por parte da Administração
Pública.53
Tecendo comentários específicos a respeito da questão, Silvânio
Covas e Adriana Laporta Cardinali54 entendem que “dessa forma, o princípio da
53
Rafael Munhoz de Mello, Sanção administrativa e o princípio da legalidade, Revista Trimestral de
Direito Público, 30/2000, Malheiros, São Paulo: “Por força do princípio da proibição do excesso, as
medidas adotadas pelo Estado devem ser proporcionais aos fatos que estão em sua origem e
adequadas aos fins que lhes correspondem. Trata-se, pois, de uma questão de medida ou
desmedidas para alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens dos
fins”.
54
O Conselho de Recursos do Sistema Financeiros Nacional: Atribuições e Jurisprudência,
Quartier Latin, São Paulo, 2008, p. 108.
37
razoabilidade também se insere no da legalidade; a liberdade que possui o Poder
Publico nos atos discricionários não lhe é concedida para a adoção de
comportamentos desarrazoados”.
Segundo os autores, “a margem de liberdade existe para atender ao
sentido da lei, não abrigando intelecções induvidosamente desarrazoadas, ao
menos quando caiba outro entendimento”, pois, “um ato administrativo inválido,
por contrariar a finalidade legal, deve ser controlado judicialmente”, o que vem
sendo implementado, confome noticiam Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari55.
Nessa linha, Luis Roberto Barroso56 ressalta que “o princípio da
razoabilidade e da proporcionalidade sempre teve o seu campo de incidência mais
tradicional no âmbito da atuação do Poder Executivo” e que “estudado
precipuamente na área do direito administrativo, ele funcionava como limite da
legitimidade do exercício do poder de polícia e da interferência dos entes públicos
na vida privada”.
Informa que para Agustín Gordillo “a decisão “discricionária” do
funcionário será ilegítima, apesar de não agredir nenhuma norma concreta e
expressa, se é ‘irrazoável’, o que poder ocorrer, principalmente quando: a) não dê
os fundamentos de fato ou de direito que a sustentam: ou b) não leve em conta os
fatos constantes do expediente ou públicos e notórios ou se funde em fatos ou
55
Processo Administrativo, Malheiros, São Paulo, 2001, p. 63: “A jurisprudência, inclusive e
especialmente nos Tribunais Superiores, também já assimilou e aplica o princípio da razoabilidade
no controle judicial dos atos administrativos. Merece destaque decisão do Superior Tribunal de
Justiça (REsp. 21.923-5-MG) na qual o Relator Min. Humberto Gomes de Barros, afirma estar certo
de que ‘no estágio atual do direito administrativo, o Poder Judiciário não se poderia furtar à
declaração de nulidade de absurdos evidentes’. Também o Supremo Tribunal federal tem-se valido
do princípio da razoabilidade com muita freqüência. Não é o caso de se transcrever o texto das
decisões, mas, pelo menos, cabe referir alguns acórdãos cujos respectivos Ministros Relatores se
fundamentaram precipuamente na razoabilidade – Min. Marco Aurélio: HC 77.003-4-RE 211.043-4,
RE 148.095-5-MS, RE 226.461-9-CE, RE 192.568-0-PI e AgRg em RE 205.535-2-RS; Min. Moreira
Alves: Repr. 1.077-RJ (RTJ 112/34); Min. Celso de Mello: ADin 1.158-8-AM e Min. Sepúlveda
Pertence: ADin 855-2-PR e HC 76.060-4-SC”.
56
Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito constitucional, Cadernos de
Direito Constitucional e Ciência Política, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, RT, Ano 6, nº
23, p. 72.
38
provas inexistentes; ou c) não guarde um proporção adequada entre os meios que
emprega e o fim que a lei deseja alcançar, ou seja, que se trate de uma medida de
desproporcionalidade excessiva em relação ao que se quer alcançar”.
Para Floriano Azevedo Marques,57 a “teoria da discricionariedade
decorre da própria construção do direito público no Estado de Direito, na qual a lei
tem um papel central, ou seja, o exercício da autoridade, do poder político, do
poder extroverso, necessariamente decorre da lei e essa lei não só autoriza a
atuação do poder extroverso como dá contornos, limites, competências e meios
para a atuação desse poder”.
Acrescenta ainda que “parece-me claro que a discricionariedade é
algo que está intimamente ligado ao princípio da legalidade”, acentuando que
“mas, mais do que isso me parece claro que é impossível se discutir
discricionariedade fora do princípio da legalidade, porque a discricionariedade
seria aquela margem que, originada na lei, vai um pouco além da dicção legal” e
que “ao mesmo tempo que a discricionariedade depende da lei, ela serve para
plurabilizar a peremptoriedade do princípio da legalidade”.
Discorrendo especificamente acerca do princípio da legalidade no
âmbito de processos administrativos, Odete Medauar58 observa que “no vínculo
legalidade-processo administrativo, este representa uma das garantias do
princípio da legalidade, porque significa atuação parametrada da autoridade
administrativa, em contraposição à atuação livre, em tese, mais suscetível de
arbítrio”.
Enfatiza que “mesmo que exista uma parcela de discricionariedade
em alguma fase do processo administrativo, o conhecimento dos mecanismos
57
Discricionariedade Administrativa e Controle Judicial da Administração, Processo Civil e
Interesse Público, O processo como instrumento de defesa social, Carlos Alberto de Salles,
Organizador, Co-edição Editora RT, São Paulo, Associação Paulista do Ministério Público, p. 190.
58
A processualidade no Direito Administrativo, RT, São Paulo, 1993, p. 88.
39
decisionais e dos fatos da situação, inerentes à processualidade, possibilitam
direcioná-la às verdadeiras finalidades da atuação”.
40
2. Fundamento geral
Nesse particular, cabe lembrar que a atuação discricionária resulta
necessariamente de uma autorização normativa e, portanto, em termos gerais, as
condutas assumidas com base na permissão legal devem conter-se nos
quadrantes estabelecidos pelo ordenamento jurídico, levando-se em conta
principalmente a finalidade que inspirou a elaboração da norma permissiva.
Corroborando o entendimento acima, Celso Antônio Bandeira de
Mello
59
assevera que a lei nunca dispensa o atendimento ao fim por ela visado,
independentemente, no caso da Administração Pública, de os atos por ela
praticados se revestirem de características vinculadas ou discricionárias, já que
seria despropositado pretender-se por qualquer distinção entre uns e outros, tendo
em vista a necessidade de ser observado o fim colimado pela norma.
Acerca da limitação estabelecida pelas próprias normas, levando-se
em conta a obrigatoriedade imposta ao agente público de fidelidade aos fins
legalmente estabelecidos, Victor Nunes Leal60 pondera quanto à finalidade dos
atos administrativos (discricionários ou vinculados), que ela está sempre expressa
ou implícita na lei. Por isso, entende que o fim legalmente objetivado,
necessariamente representado por um interesse público, também constitui um
59
Legalidade – Discricionariedade – Seus limites e controle, Revista de Direito Público, nº 86, AbrilJunho de 1988 – ano XXI, p. 44: “Em ambos os casos – vinculação ou discrição – evidentemente
a lei reclama que seja exata e plenamente atendido seu escopo. Ou seja, seu propósito é o de que
o bem jurídico que o anima se realize com perfeição. Seria um completo absurdo presumir que nas
hipóteses de vinculação a lei deseja que sua finalidade se cumpra e que nas situações de discrição
abona antecipadamente uma providência inapta, excessiva ou insuficiente para atender de modo
cabal aos seus objetivos, contentando-se com uma solução sofrível ou – pior ainda – com uma
solução qualquer cuja aceitabilidade repousaria tão-só no fato de haver sido eleita por
administrador atuando no exercício de competência discricionária. É óbvio que conclusão desta
ordem chocar-se-ia às abertas tanto contra as exigências do Estado de Direito, quanto contra a
própria índole da discricionariedade, conforme se esclarece de pronto. A outorga de discrição vem
a ser, precisamente, o meio pelo qual a lei busca assegurar-se de que sua aplicação far-se-á
sempre de maneira a atender-lhe a finalidade de modo perfeito. É que a satisfação exata, precisa,
de um certo escopo, ante a realidade polifacélica dos fatos e circunstâncias da vida, demandará
providências distintas, conforme a fisionomia peculiar, a coloração própria, das situações que se
apresentem e demandem a aplicação da regra.”
60
Problemas de Direito Administrativo, Forense, Rio, p. 279 e 285.
41
aspecto vinculado dos atos discricionários, suscetíveis, portanto, de apreciação
jurisdicional.”
Pontifica que “se a administração pública, no uso do seu poder
discricionário, não atende ao fim legal a que está obrigada, entende-se que
abusou do seu poder”, já que “o fim legal é, sem dúvida, um limite ao poder
discricionário”, e que, “por isso mesmo, sustentam os autores mais abalizados que
existe ai uma violação da lei, um ato ilícito”.
Conseqüentemente, as condutas assumidas pelos sujeitos de direito,
públicos ou privados, inspiram-se, justificam-se e têm como fundamento de
validade, em termos gerais, a idéia central que envolve todo o ordenamento
jurídico e que se traduz na noção de que os direitos subjetivos não têm caráter
absoluto e o seu exercício, por parte daqueles que são os seus titulares, não pode
se revelar abusivo, como postula Antônio José Brandão61.
Caso assim não venha a ocorrer a própria fruição do direito subjetivo,
por parte de seu titular, ela poderá situar-se além do que seria necessário para o
atendimento de suas finalidades e interesses e, assim, invadir esferas de direitos
alheios e vir a ser a ser abrangida pelo campo da ilicitude.
61
Revista de Direito Administrativo, Vol. 25, julho-setembro – 1951, p. 463/64, grafia original: “Ora
bem: a intenção de sujeitar o exercício dos próprios direitos subjetivos à medida legal deles não
possui natureza exclusivamente jurídica: revela, também, natureza moral. Se assim não fôsse, a
legalidade do exercício do direito consistiria na mera conformidade exterior às exigências da lei,
abstração feita do vínculo jurídico interno entre o fim metajuridico, as modificações da ordem
jurídica e a conduta. Quer dizer: o exercício efetivo do direito não concretizaria em si a proporção
entre os três elementos, figurada em abstrato pela lei; seria, por conseguinte, um exercício
arbitrário, medido pelo capricho do respectivo titular (...). Pelo exercício abusivo do direito subjetivo
penetra a imoralidade no mundo jurídico, perturbando a ordem jurídica, na sua finalidade última. À
Ripert, na sua excelente monografia La Règle Morale dans les Obligations Civiles, não escapou
isto, e, a paginas 163, escreveu: ‘A teoria do abuso do direito foi inteiramente inspirada na moral e
a sua penetração no domínio jurídico obedeceu a propósito determinado. Trata-se, com efeito, de
desarmar o pretenso titular de um direito subjetivo e, por conseguinte, de encarar de modo diverso
direitos objetivamente iguais, pronunciando um espécie de juízo de caducidade contra o direito que
tiver sido imoralmente exercido. O problema não é, pois, um problema de responsabilidade civil,
mas de moralidade no exercício dos direitos.”
42
Discorrendo a respeito desse aspecto, Fernando Andrade de
Oliveira62 anota que “todavia, como pondera Guido Zanobini, “a idéia de limite
surge do próprio conceito de direito subjetivo: tudo que é juridicamente garantido é
também juridicamente limitado. Função inerente à garantia jurídica é a tutela de
um interesse com o precípuo escopo de assegurar a sua satisfação enquanto
compatível com os interesses de outros sujeitos, que também devem ser
reconhecidos e tutelados”.
No seu entender, “´para que um direito subjetivo possa ser
cabalmente protegido, é preciso que seja previamente definido e, assim,
conhecido em toda a sua extensão. A definição de um direito, por sua vez,
logicamente, importa a sua limitação, na medida justa para coexistir com outros
direitos,
no
mesmo
sentido,
limitados.
E
todos
ainda
suportando
os
condicionamentos ditados pela exigência de cumprimento dos fins públicos”.
Arremata asseverando que “em suma, é juridicamente inconcebível
a existência de direitos subjetivos ilimitados e incondicionados e sequer há direitos
universamente reconhecidos como absolutos (...)”.
Examinando o tema sob o ângulo do abuso de poder ou excesso de
poder, resultante dos atos praticados pelos entes públicos, Themístocles Brandão
Cavalcanti63 professa que tais sujeitos exercem competência limitada, posto que,
nas suas relações com os administrados, estes são titulares de direitos subjetivos
que podem ser contrapostos à Administração Pública.
62
O poder do Estado e o exercício da polícia administrativa, Revista Trimestral de Direito Publico,
29/2000, Malheiros, São Paulo, p. 88/89.
63
Do Poder Discricionário, Revista de Direito Administrativo, p. 441: “Abuso de poder ou excesso
de poder será aquele exercido sem fundamentos legais ou acima dos limites fixados pela lei. Toda
autoridade administrativa tem a sua competência limitada, pela natureza ou função ou pela própria,
de forma específica e determinada. É que nas relações entre a autoridade e os indivíduos, estes
têm, em seu favor, um conjunto de direitos e prerrogativas individuais, que se podem contrapor à
administração ou ao poder público. São os chamados direitos subjetivos ou na expressão de
Duguit, as situações jurídicas subjetivas.”
43
Abordando a questão, sob a ótica específica do exercício do poder
discricionário pela Administração Pública e visando realçar a sua submissão à lei,
Victor Nunes Leal64 sublinha o caráter abusivo da atividade administrativa quando
vai além dos limites que foram demarcados pela norma que outorgou ao agente
público a correspondente competência discricionária.
A respeito, Oswaldo Aranha Bandeira de Mello65 afirma que “a teoria
do abuso do direito é uma decorrência da relatividade dos direitos subjetivos em
face do conceito de justiça, que deve dominar a ordem social, ínsita na norma,
formalmente disposta, que objetiva resguardar o bem jurídico de outrem, contra
qualquer dano (...)”.
Na mesma passagem, conclui que, “por conseguinte, o exercício
abusivo de direito se inclui entre uma das muitas variedades de atos ilícitos, como
ato anti-social, com a ruptura, por um desses fundamentos, do equilíbrio dos
interesses estabelecidos pela ordem jurídica, no condicionamento da harmonia
social”.
Em passagem luminar a respeito do tema, Perelman66 leciona que
“toda vez que um direito ou poder qualquer, mesmo discricionário, é concedido a
64
Revista de Direito Administrativo, Vol. 23, janeiro-março-1951, p.12: “Sem dúvida a atividade
chamada discricionária se submete à lei. Tem por esta demarcadas as divisas do seu exercício,
submete-se às linhas mestras por ela fixadas. Dentro, porém, dessas divisas ou linhas, é livre (e
aqui está a própria essência da discricionariedade), exercitar-se sob a influência apenas de razões
políticas. É nesse plano de insujeição da atividade administrativa a normas propriamente jurídicas,
que discrição e mérito se identificam. Por outro lado, em corolário do que vem de se expor, a
apreciação jurisdicional da competência discricionária só se dá quando dela abusa o funcionário
administrativo, quando age exorbitando da esfera de ação livre que lhe deixa a lei. E tanto vale
dizer, quando o funcionário supõe ou quer fazer supor que está tomando medidas de mérito, mas,
na verdade age em campo diverso daquele que ao mérito traçou a lei. O que nesse caso se
analisa não é o exercício da competência discricionária em substância, ou seja, o mérito no seu
conteúdo, mas sim o excesso no uso daquela, a prática do ato além ou fora do âmbito pretraçado à
discrição, e. portanto, ao mérito. O que se analisa é um abuso de competência, que este é sempre
um aspecto legal. Não se declara que o ato é bom ou mau, melhor ou pior; mas apenas que, tal
como praticado, representa um abuso do poder de livre ação conferido à autoridade administrativa,
poder que poderia ser utilizado largamente dentro de certos limites e nunca além deles.”
65
Princípios Gerais de Direito Administrativo, Forense, Vol. I, Introdução, 2ª ed., 1979, p. 478/79.
66
Ética e Direito, Martins Fontes, São Paulo, 1996, p. 429.
44
uma autoridade ou a uma pessoa de direito privado, esse direito ou esse poder
será censurado se for exercido de forma desarrrazoada”, de vez que “esse uso
inadmissível do direito será qualificado tecnicamente de formas variadas, como
abuso de direito, como excesso ou desvio de poder, como iniquidade ou má-fé,
como aplicação ridícula ou inadequada de disposições legais, como contrário aos
princípios gerais do direito comum a todos os povos civilizados.
Logo a seguir, Perelman frisa que “pouco importam as categorias
jurídicas invocadas” pois “o que é essencial é que, num Estado de Direito, quando
um poder legítimo ou um direito qualquer é submetido ao controle judiciário, ele
poderá ser censurado se for exercido de forma desarrazoada, portanto
inaceitável”.
Confirmando as assertivas acima, o nosso Código Civil, na sua Parte
Geral, em seu artigo 187, estabelece que “também comete ato ilícito o titular de
um direito que ao exercê-lo excede manifestamente os limites impostos pelo seu
fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
Importante também relembrar a esse respeito que, na mesma linha, a
nossa Constituição Federal, em vários incisos do seu artigo 5º, prevê expressas
limitações ao exercício de uma série de direitos e de liberdades individuais, seja
no tocante à propriedade, ao exercício de profissões, aos direitos políticos ou de
reunião, dentre outros, confinando a sua utilização às fronteiras da normalidade,
de modo a não desbordar do terreno da licitude.
A propósito especificamente da questão relativa à discricionariedade,
interessante notar que, para os normativistas Merkl e Kelsen, existiriam no sistema
jurídico apenas normas e suas relações entre elas e, nesse contexto, o primeiro
entende que o poder discricionário não seria específico da Administração e
existiria em função do processo geral de formação do Direito.
45
Para Merkl, as normas seriam os elementos únicos do sistema que
se caracterizam por partir do geral para o particular, caminhando do abstrato,
como no caso da Constituição, até os atos administrativos e decisões judiciais,
estas aplicadas de forma direta ao caso concreto.
Desse modo, o poder discricionário encontraria justificativa no fato
incontroverso de que o legislador, posto na condição obrigatória de editar
comandos gerais e abstratos, não poderia prever o universo e a complexidade das
situações da vida em sociedade.
Diante disso, ao destinatário da norma jurídica, especialmente a
Administração, seria outorgada a necessária discricionariedade para aplicar ao
caso concreto, valendo-se dos critérios de conveniência e oportunidade, a norma
identificada no ato administrativo discricionário.
Nessa direção, Floriano Azevedo Marques67 registra que “na
concepção clássica dos administrativistas a discricionariedade era aquela margem
de liberdade que o administrador teria para eleger um dentre mais de um
comportamento possível”, e que “nesta acepção clássica, esta margem viria
prevista na lei com vistas ao atingimento, no caso concreto, das finalidades legais
que justificam a competência do agente público”.
67
Discricionariedade Administrativa e Controle Judicial da Administração, Processo Civil e
Interesse Público, O processo como instrumento de defesa social, Carlos Alberto de Salles,
Organizador, Co-edição Editora RT, São Paulo, Associação Paulista do Ministério Público: “A
discricionariedade consta da teoria do direito público desde sempre. Ela decorre – isso nós
encontramos em todos os livros de direito administrativo – quer da lassidão do texto legal (da
dificuldade de precisão inerente ao uso da linguagem que, por si só, é imprecisa), quer da
expressa autorização do legislador que, consciente da impossibilidade de prever todos os
comportamentos, contempla uma margem de opção para o administrador atuar ou não atuar no
caso presente. A teoria da discricionariedade decorre da própria construção do direito público no
Estado de Direito, na qual a lei tem um papel central, ou seja, o exercício da autoridade, do poder
político, do poder extroverso, necessariamente decorre da lei e essa lei não só autoriza a atuação
do poder extroverso como dá contornos, limites, competências e meios para a atuação desse
poder. Parece-me claro que a discricionariedade é algo que está intimamente ligado ao princípio
da legalidade.”
46
Tal posicionamento encontra forte resistência em Hauriou, para
quem o sistema normativo denominado Direito não é formado tão somente pelas
normas e suas inter-relações, mas sim de normas e de pessoas chamadas de
sujeitos de direito, as quais se submetem às normas que, por sua vez, cumprem a
função de determinar limites externos que modificam ou impedem as iniciativas e
vontades de seus destinatários.
Por força disso, entende o doutrinador francês que a Administração
Pública, como sujeito de direito, ao promover a edição do ato administrativo,
também exprime sua vontade, pelo que, quando a mesma exerce competência
discricionária, esta figura como a vontade e iniciativa da Administração Pública
que não foram objeto de limitação pela norma, equivalendo-se, assim, à
autonomia da vontade no âmbito do direito privado.
Hauriou68 compara a Administração Pública à administração de uma
empresa privada, e a justificativa para a existência da discricionariedade residiria
no fato de que a administração, na figura do Estado, também é um sujeito de
direito e o agente público atuaria como o dirigente de uma empresa privada,
guiando seus atos discricionários pelo parâmetro da oportunidade.
Informa Antônio José Brandão69 que o poder público, segundo
Hauriou, “a fim de desempenhar a função administrativa – manutenção da ordem
e gestão de serviços – é “instituído” no quadro de uma vasta empresa, cuja
estrutura tem a informá-la, como idéia de obra a realizar, a idéia do serviço
público”.
Nas suas próprias palavras, ao responder ao questionamento sobre
eventual supressão do poder discricionário, assevera que “a resposta a essa
questão que se apresenta, além disso, em termos semelhantes ao plano do direito
68
69
O poder discricionário e sua justificativa, RDA 19-27.
Ob. cit. p. 58.
47
privado, deve ser extraída do reconhecimento de que as administrações públicas,
como os indivíduos, são os chefes de empresa e têm direito, por esse motivo, à
auto-determinação e à apreciação da oportunidade”.
Não nos parece acertada a posição tomada por Hauriou, posto
considerarmos perigosa a pretendida aproximação entre direito privado e direito
público, da maneira em que formulada, não se nos afigurando como válida a
utilização de um autoritário conceito de chefia com a intenção de respaldar ou
justificar a própria existência da discricionariedade.
Evidentemente, que o estágio atual do Direito, no que toca às
relações entre Estado e indivíduo, já desenvolveu formas com suficiente
fundamento jurídico para justificar o exercício de competência discricionária e de
contê-la nos limites legalmente traçados, as quais estão devidamente marcadas
em sede de direito constitucional e mesmo no âmbito do próprio regime jurídicoadministrativo.
48
3. Grau de intensidade dos comandos normativos
Preliminarmente, cumpre realçar que os destinatários das normas do
Direito, pessoas naturais ou jurídicas, públicas ou privadas, têm os seus
comportamentos circunscritos pelas molduras dos elementos descritos nos
preceitos legais reguladores das condutas teoricamente previstas, e que
expressam aquilo que a sociedade entendeu como sendo desejável, em certo
espaço temporal70.
As normas jurídicas, no entanto, nem sempre esgotam em seus
enunciados deônticos o modo de agir dos indivíduos e em muitos casos sequer
impõem como obrigatória uma única conduta, deixando às pessoas, por vezes, a
possibilidade de agir ou de não fazê-lo e ainda apontando, em certos casos,
diferentes comportamentos conformáveis ao direito posto.
É em virtude dessa plasticidade jurídica que, no âmbito da Teoria
Geral do Direito, as normas jurídicas vêm a ser classificadas como: “i) de
imperatividade absoluta ou impositivas, e ii) de imperatividade relativa ou
dispositivas”, como ensina Maria Helena Diniz71.
70
Rafael Munhoz de Mello, Revista Trimestral de Direito Público, 30/2000, Malheiros, São Paulo, p.
142: “O Direito é uma ordem normativa, e, como tal, é um conjunto de normas que regulam
condutas, com o objetivo de conformá-las a valores tidos com relevantes pelo grupo social. Tratase, assim, de uma ordem social, cuja função, do ponto de vista psicológico, ‘consiste em obter uma
determinada conduta, por parte daquele que a esta ordem está subordinado, fazer com que essa
pessoa omita determinadas ações consideradas como socialmente – isto é, em relação às outras
pessoas – prejudiciais, e, pelo contrário, realize determinadas ações consideradas socialmente
úteis’.”
71
Teoria Geral do Direito Civil, Edit. Saraiva, São Paulo, 2002, 18ª ed., p. 34: “1) de imperatividade
absoluta ou impositivas, também chamadas absolutamente cogentes ou de ordem pública. São as
que ordenam ou proíbem alguma coisa (obrigação de fazer ou de não fazer) de modo absoluto.
São as que determinam, em certas circunstâncias, a ação, a abstenção ou o estado das pessoas,
sem admitir qualquer alternativa, vinculando o destinatário a um único esquema de conduta (...). 2)
de imperatividade relativa ou dispositivas, que não ordenam, nem proíbem de modo absoluto;
permitem ação ou abstenção ou suprem a declaração de vontade não existente.”
49
Como ilustra a civilista, as normas de imperatividade absoluta
obrigam o sujeito de direito a um único comportamento a ser realizado, ao passo
que aquelas outras dotadas de imperatividade relativa e que são denominadas de
dispositivas, permitem ao seu destinatário uma ação ou abstenção ou suprem
eventual não declaração de vontade.
Como exemplo das primeiras normas, a doutrinadora cita o art.
1.526, do Código Civil, o qual estabelece o modo de habilitação para o casamento
e menciona, quanto às segundas, a possibilidade conferida aos nubentes de
estipular, quanto aos seus bens, o que melhor lhes aprouver.
A propósito, Carlos Roberto Gonçalves72 assevera, quanto às
normas cogentes, que as mesmas “se impõem de modo absoluto, não podendo
ser derrogadas pela vontade dos interessados”, acrescentando que “a
imperatividade absoluta de certas normas decorre da convicção de que
determinadas relações ou estados da vida social não podem ser deixados ao
arbítrio individual, o que acarretaria graves prejuízos para a sociedade”.
Relativamente às normas não cogentes, manifesta-se no sentido de
que essas “não determinam nem proíbem de modo absoluto determinada conduta,
mas permitem uma ação ou abstenção, ou suprem declaração de vontade não
manifestada”.
Por sua vez, Caio Mário da Silva Pereira73, abordando a classificação
das leis do modo como acima aludido, comenta que “tem esse critério em vista a
distribuição das leis quanto à obrigatoriedade de que são dotadas, conforme
estatuam um comando de que ninguém pode escapar (ius cogens), ou estipulem
normas que podem ser afastadas pelo ajuste dos interessados”.
72
Direito Civil Brasileiro, Saraiva, São Paulo, 2003, p. 33/34.
Instituições de Direito Civil, Vol. I, Introdução ao Direito Civil, Teoria Geral do Direito Civil,
Forense, Rio de Janeiro, 2004, p. 106.
73
50
Dessa maneira, e ainda que por razões não formalmente idênticas, é
de se concluir que as normas jurídicas dirigem-se aos seus destinatários com
maior ou menor grau de impositividade, seja no que se refere às relações de
direito privado, seja no que diz respeito às relações de direito público, como
referido.
Em
sede
de
direito
privado,
esses
diferentes
níveis
de
obrigatoriedade dos comandos normativos são referidos na teoria geral do direito,
com base na classificação das leis naquelas modalidades mencionadas, como leis
imperativas e leis dispositivas74, ao passo que na seara própria de Direito Público,
especificamente no campo do Direito Administrativo, o estudo da matéria é
desenvolvido sob as denominações de discricionariedade e vinculação.
Mesmo em sede de teoria geral do direito privado, interessante é a
posição de Francesco Carnelutti75, que adota aquela classificação típica de direito
público, enfatizando que “discricionariedade nada mais é do que liberdade na
regulação do conflito de interesses a que a situação respeita”.
Prossegue afirmando que “a antítese entre discricionariedade e
vinculação só se manifesta no campo das fontes subordinadas” e que
“discricionário ou vinculado pode, pelo contrário, ser, quer o poder jurisdicional ou
administrativo, quer o direito subjetivo público ou privado”.
74
Fernando Andrade de Oliveira, O poder do Estado e o exercício da polícia administrativa,
Revista Trimestral de Direito Público, 29/2000, p. 86: “Observa Eduardo Espínola que se o fim do
Direito Privado é limitar a ação dos indivíduos, esse fim é atingido por meio diferentes. Tal ação
pode ser rigorosamente traçada pela norma jurídica, cabendo os interessados livremente entrar, ou
não, nas relações reguladas. Mas se o fazem ‘têm de se submeter indeclinavelmente às
prescrições da lei’. Outras vezes a norma faz prevalecer os seus preceitos, se não manifestada a
vontade dos interessados, sendo-lhes permitido dispor de outro modo, ou prescreve que apenas
produzirás efeitos e ‘desenvolverá sua força obrigatória só depois de se manifestar a vontade
individual’. Daí a importante divisão das leis em ‘coativas ou absolutas’ (jus cogens) e ‘não
coativas, supletivas ou dispositivas ‘(jus dispositivum, jus supletivum). Nas primeiras, a sanção se
manifesta em virtude da própria força obrigatória da lei; nas segundas depende do concurso da
vontade (expressa ou tácita) do indivíduo.”
75
Teoria Geral do Direito, São Paulo, Lejus, 1999, p. 350.
51
Do exposto, resulta que a norma jurídica, ao regular matérias de
direito público ou mesmo de direito privado, concede por vezes, aos seus
destinatários, a possibilidade de exercer um certo grau de subjetividade nos
comportamentos
a
serem
assumidos,
o
que
vem
a
ser
denominado,
respectivamente, de exercício de poder discricionário e de manifestação do
princípio da autonomia da vontade.
52
4. Atos discricionários públicos e privados
Releva notar que há um diferencial característico e que determina
uma fundamental diferença entre o postulado da autonomia privada da vontade
nas relações entre pessoas privadas e o exercício de competência discricionária,
nas situações em que está presente a Administração Pública.
No primeiro caso, há uma considerável permissividade no que
respeita ao principio da autonomia privada da vontade, o que faculta aos sujeitos,
observadas as fronteiras legais, determinar a conduta que melhor atenda aos seus
interesses nitidamente privados.
Já no segundo caso, mesmo presente a autorização legal para que a
Administração Pública atue discricionariamente, o seu limite no exercício do direito
conferido encontra uma clara barreira que reside na absoluta e indispensável
necessidade de atendimento do interesse público, o qual predomina em relação
ao interesse privado.
Consoante Afonso Rodrigues Queiro,76 “a essência do direito privado
está na autonomia da vontade dos respectivos sujeitos; a essência do direito
público, do direito administrativo in specie, está na obrigação para os respectivos
agentes de realizarem os interesses que as leis lhe entregam para que deles
curem”.
76
A teoria do “Desvio de Poder” em Direito Administrativo, Revista de Direito Administrativo, Vol.
VI, outubro-1946, p. 52, grafia original: “Atinge esse fim, fundado nesta norma. Não sem intenção
dizemos que esta é a essência, quer dizer, o que há de irredutível em qualquer norma de direito
administrativo: esta supõe sempre um agente, um órgão e atribui-lhe uma função, ou seja, atribuilhe alguns interesses específicos, um ou alguns fins concretos, uma ou algumas atividades
determinadas. Interêsse, fim, atividade, ato, são têrmos que se identificam, e são a matéria que a
norma de direito circunscreve e individualiza. Ora bem. Esta soma de funções, de fins, que a lei
atribui a cada órgão, marca as situações de fato em que esses órgãos devem agir.”
53
Como acentua Victor Nunes Leal77, “o fim de qualquer ato
administrativo, discricionário ou não, é, sem dúvida, o interesse coletivo; no caso
dos atos vinculados, êsse interesse já foi definido pelo legislador, cujas
prescrições impõem, necessariamente, determinada conduta do administrador; em
caso de incidência do poder discricionário, é, entretanto, à própria administração
que incumbe discernir onde está o interesse coletivo, com base nos princípios
gerais informadores do ordenamento jurídico positivo”.
O princípio da supremacia do interesse público é o próprio
fundamento último do Direito Administrativo, e desenvolveu-se no sentido de
proteção dos direitos individuais e no da sua preponderância propriamente dita,
premissas essas que devem estar presentes desde a elaboração legislativa até a
execução em concreto da lei por parte da Administração Pública.
Vale ressaltar ainda que o interesse público não é, necessariamente,
o interesse da Administração Pública, posto que essa não é a titular do interesse
público, mas tão somente a guardiã incumbida de protegê-lo, não podendo dele
dispor, já que não lhe pertence.
Por força disso, é indiscutível que cabe ao Estado a persecução do
interesse público, objetivando sempre a busca do bem comum, satisfazendo as
demandas de interesse coletivo, daí afirmar Hector Jorge Escola78 que o interesse
público é o conceito que dá sustentação e fundamento ao próprio Direito
Administrativo, podendo esse ramo da ciência do Direito ser definido, de acordo
ao autor, como o direito do Interesse público.
Em vista da extraordinária importância de que se reveste o conceito
de interesse público, considerada a sua característica de elemento legitimador e
razão de ser de toda a atividade administrativa, faz-se necessário aclarar o seu
77
Problemas de Direito Público, Forense, Rio, p. 284/85.
El interés público como fundamento del derecho administrativo, Depalma, Buenos Aires, 1989, p.
261.
78
54
conteúdo e o entendimento que lhe é conferido em sede doutrinária, tendo em
vista a própria fluidez do conceito e a ausência de definição legal a respeito, o que
é justificável, posto nos parecer que não é essa uma função do direito positivo.
Para tanto, cumpre desde logo assinalar que não seria possível
verificar o atendimento desse alegado interesse público, tido como de obrigatória
observância pela Administração Pública, caso não fosse ele dotado de uma certa
concretude, pois, como alerta o mesmo Escola, “o interesse público não é um
conceito carente de conteúdo concreto; pelo contrário, tal conteúdo deve ser
reconhecível e determinável, consistindo em uma coisa ou um bem que é
perceptível para qualquer componente da sociedade”.
Dessa forma, lembra Aline Maria Dias Bastos:79 “tem-se, pois, de um
lado, o interesse público geral, que a Administração Pública deve perseguir; de
outro lado, o interesse público específico, ou seja, a exigência pela lei de uma
causa específica de interesse público, para poder exercitar determinada
competência ou justificar uma medida concreta (...)”, pelo que “a Administração
deve alegar, provar e motivar em cada caso a ocorrência dessa específica causa
de interesse público legitimado, sem que seja suficiente invocar sua posição geral
de gestora ordinária desse interesse”.
Para Renato Alessi80, existe uma distinção entre interesse público
primário e interesse público secundário, com o que concorda Celso Antônio
Bandeira de Mello,81 ao ponderar que “interesse público primário é o pertinente à
sociedade como um todo e só ele pode ser validamente objetivado, pois este é o
interesse que a lei consagra e entrega à compita do Estado como representante
do corpo social”.
79
Conceitos jurídicos indeterminados: discricionariedade ou vinculação? Dissertação apresentada
à Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,
Orientador: Prof. Doutor Edmir Netto de Araújo, São Paulo, 2002.
80
Sistema Istituzionale del Diritto Ammnistrativo Italiano, Dott Antonino Giufré, Milão, 1953, p.
15/52, 197/198.
81
Curso de Direito Administrativo, 13ª ed., Malheiros, São Paulo, 2001, p. 70.
55
Continua esclarecendo que “interesse secundário é aquele que atina
tão-só ao aparelho estatal enquanto entidade personalizada e que por isso mesmo
pode lhe ser referido e nele encarnar-se pelo simples fato de ser pessoa”.
A propósito do conceito de interesse público, Alice Gonzáles
Borges
82
o entende como “um somatório de interesses individuais coincidentes em
torno de um bem da vida que lhes significa um valor, proveito ou utilidade de
ordem moral ou material, que cada pessoa deseja adquirir, conservar ou manter
em sua própria esfera de valores”.
Ainda para a autora, “esse interesse passa a ser público, quando
dele participam e compartilham um tal número de pessoas, componentes de uma
comunidade determinada, que o mesmo passa a ser também identificado como
interesse de todo o grupo, ou, pelo menos, como um querer valorativo
predominante da comunidade”.
Ao par disso, deve também deve ser considerado que o conceito em
questão é de caráter dinâmico, sofrendo mutações em virtude de elementos
temporais ou circunstanciais, de vez que, como anota Lúcia Valle Figueiredo,83 “o
conceito de interesse público, como pragmático que é, terá conotações diversas,
dependendo da época, da situação econômica, das metas a atingir, etc...”.
Há também que se estabelecer uma distinção entre interesse público
e interesse comum, de vez que aquele nem sempre coincide com este, na medida
em que geralmente são conflitantes, particularmente no caso de estados
pluralistas, como é o brasileiro.
82
Interesse público: um conceito a determinar. Revista de Direito Administrativo nº 205, jul/set de
1996, Rio de Janeiro, p. 114.
83
Curso de Direito Administrativo, 3ª ed., Malheiros, São Paulo,1998, p. 34.
56
Em sendo assim, o que deve a Administração buscar não é a
satisfação dos interesses de todos os cidadãos, mas sim atuar de forma a
beneficiar uma coletividade de pessoas que tenham interesses comuns, mesmo
que esses não correspondam ao somatório dos interesses individuais.
Como asseveram Silvânio Covas e Adriana Laporta Cardinali,84 “sem
dúvida, a finalidade última de qualquer ato administrativo deve ser o interesse
público, aquilo que é almejado pela coletividade, e não o interesse pessoal do
agente público”, posto que, conforme aqueles autores, “o princípio da legalidade
preleciona que o agir da Administração Pública deva atender à finalidade da lei em
sentido formal, em seu caráter genérico e abstrato”, já que “toda lei visa a um
determinado fim público, cuja identificação exsurge de cada caso (por exemplo,
saúde pública, higidez do Sistema Financeiro Nacional, etc.)”.
Assim posto, releva notar que o interesse público se caracteriza por
ser uma noção absolutamente contrária à de interesse individual e, conforme
acentua Celso Antônio Bandeira de Mello,85 “todo o sistema de Direito
Administrativo, a nosso ver, se constrói sobre os mencionados princípios da
supremacia do interesse público sobre o particular e indisponibilidade do interesse
público pela Administração”.
A esse respeito, Edmir Netto de Araújo86 aponta que “o princípio da
supremacia do interesse público relaciona-se à noção de puissance publique, e
fundamenta-se nas próprias idéias iniciais da entidade ‘Estado’, em que os
membros de certa coletividade abdicam, como diz Hobbes, em seu ‘Leviatã’, de
parte de sua liberdade integral em favor de um comando disciplinador para a vida
dessa mesma comunidade”.
84
Ob. cit. p. 110/11.
Ob. cit. p. 28.
86
Os princípios administrativos na Constituição de 1988, Revista da Procuradoria Geral do Estado
de São Paulo nº. 34, dez/1990, p. 135.
85
57
Abordando a questão relativa à amplitude que deve ser conferida ao
espaço de aplicação do interesse público, o mesmo autor87 antes referido observa
que “mesmo nos atos discricionários, o que ocorre não é o livre consentimento do
agente indivíduo, mas uma faculdade concedida ao administrador para decidir
sobre a oportunidade ou conveniência da prática de certos atos, mas sempre
referentes ao interesse público e à sua própria competência, pois, a finalidade é
elemento vinculado dos atos administrativos”.
Concluindo, Edmir Netto de Araújo se posiciona no sentido de que
“ato administrativo praticado sem interesse público que inspire seus motivos e
caracterize sua finalidade, ou contra o interesse público, não tem objeto lícito, e,
portanto, não tem validade”.
Necessário também se faz proceder à distinção entre interesse
público, interesse coletivo e interesse difuso, sendo o primeiro aquele de um grupo
de indivíduos cujos interesses se atrelam em virtude de um móvel comum,
advindo de um vínculo jurídico definido que os congrega, mas que é impossível de
ser fruído individualmente, com exclusividade, e é também de disponibilidade
relativa, como ensina Lúcia Valle Figueiredo.88
No que se refere ao interesse difuso, o mesmo se caracteriza por
não ter uma base jurídica comum que una os sujeitos, posto que são interesses
metaindividuais, indivisíveis e indisponíveis, não se fazendo presente um titular
identificável desse interesse e que poderia dele dispor.
Diante disso, resta evidente que o interesse público pode ser ou não
diretamente identificado na lei e, caso o seja, não há espaço de discricionariedade
para a Administração Pública e, ao contrário, não sendo possível identificá-lo,
caberá o recurso aos critérios de conveniência e oportunidade, a fim de perseguir
87
88
Do negócio jurídico administrativo, RT, São Paulo, 1992, p. 87/88.
Direito difusos e coletivos, Saraiva, São Paulo, 1989, p. 12/14.
58
a realização do interesse público, que pode ou não coincidir com o interesse da
Administração, com o interesse comum ou com o interesse coletivo ou difuso.
59
5. Conceitos jurídicos indeterminados
A
questão
relativa
aos
conceitos
jurídicos
indeterminados,
considerada a sua importância para o exame da questão de que se trata, merece
análise em título à parte, inclusive mostrando o próprio posicionamento de Enterría
a respeito do assunto, a fim de que se traga à discussão o entendimento
doutrinário pertinente, com vistas a propiciar o entendimento da matéria em toda a
sua extensão e dificuldade.
Percebe-se com alguma freqüência que os conceitos jurídicos
indeterminados têm sido objeto de equivocada utilização nos domínios da
Administração Pública, posto que em virtude da alegada fluidez dos mesmos,
firmou-se o entendimento de que estaria o agente público autorizado a completálos com absoluto subjetivismo, negando-lhes qualquer possibilidade de apreciação
objetiva.
No entanto, não tem sido esse o entendimento conferido à matéria
por ao menos parte de autorizada interpretação doutrinária a qual, apoiada na
doutrina alemã, sustenta que muito embora os conceitos da espécie não possam
ser rigorosamente quantificados ou determinados, não seria possível, quando de
sua aplicação, postular pela sua inserção no âmbito da atividade discricionária.
Nesse particular, Celso Antônio Bandeira de Mello89, analisando o
posicionamento explicitado acima, observa que para aquela corrente tais
conceitos, que ele denomina de imprecisos, “à vista das situações do mundo real
ganhariam consistência e univocidade, de tal sorte que, perante os casos
concretos, sempre se poderia reconhecer se em uma dada situação é ou não
‘urgente’; se o interesse posto em causa é ou não ‘relevante’, se existe ou não um
perigo ‘grave’ e assim por diante”.
89
Discricionariedade e controle jurisdicional, Malheiros, São Paulo, 2006, 2ª ed., 7ª tiragem, p. 22.
60
Prosseguindo na sua abordagem sobre a questão, informa que
aquela linha de pensamento doutrinária pretende “que a questão suscitada por tais
conceitos é meramente uma questão de ‘interpretação’, definível, como qualquer
outra, pelo Poder Judiciário e não uma questão de discricionariedade, a qual
supõe certa margem de liberdade decisória para o administrador”.
Conforme Enterría,90 por se referirem tais conceitos a pressupostos
concretos e não a coisas imprevistas e contraditórias, a aplicação dos mesmos
não comporta várias soluções, mas uma única, já que a situação objetivada pela
norma acontece ou deixa de acontecer, como exemplificativamente a existência
ou não de boa-fé, ou mesmo se houve ou não improbidade e, ainda, se o preço é
justo ou não.
Nessa trilha, conclui o autor91 que a indeterminação é uma
característica própria unicamente do enunciado da norma que não deve ser
estendida à aplicação do conceito, considerando que nesse âmbito admite-se
somente uma solução justa em cada caso, a qual se alcança por meio de uma
atividade de cognição objetiva e, portanto, não resultante simplesmente da
vontade do aplicador da norma.
Não se pretende com isso, como assinalado por Enterría92, afirmar
que exista uma única conduta capaz de receber, entre todas aquelas possíveis, a
90
Ob. cit. p. 465, tradução livre: “A lei utiliza conceitos de experiência (incapacidade para o
exercício de suas funções, premeditação, força irresistível) ou de valor (boa-fé, standard de
conduta do bônus pater familias, justo preço) porque as realidades referidas não admitem outro
tipo de determinação mais precisa. Mas ao estar se referindo a supostos concretos e não a
vaguidades imprecisas ou contraditórias, é claro que a aplicação de tais conceitos ou a
qualificação de circunstâncias concretas não admite mais que uma solução: ou se dá ou não se dá
o conceito; ou há boa-fé ou não; ou o preço é justo ou não o é; ou se está faltando à probidade ou
não se faltou. Tertium non datur.”
91
Ob. cit. p. 465, tradução livre: “Isso é o essencial do conceito jurídico indeterminado: a
indeterminação do enunciado não se traduz em uma indeterminação das aplicações do mesmo, as
quais só permitem uma ‘unidade de solução justa’ em cada caso, a que se chega mediante uma
atividade de cognição, objetivável portanto, e não de vontade.”
92
Ob. cit. p. 465/66, tradução livre: “Convém notar a esse respeito,para evitar um mal entendido
bastante freqüente sobre o que se costuma construir as críticas ulteriores, que essa ‘unidade de
solução justa’ a que nos referimos não significa que haja uma só e única conduta capaz de
61
qualificação indicada pelo conceito, mas sim que em um determinado caso
concreto o comportamento questionado é ou não de boa-fé, já que impossível ser
as duas coisas ao mesmo tempo.
A diferença marcante entre a discricionariedade e os conceitos
jurídicos indeterminados estaria precisamente no momento da aplicação da
norma, posto que quando do exercício da primeira há uma pluralidade de soluções
justas, ao passo que diante de conceitos indeterminados só é possível uma única
solução juridicamente aceitável.
Assim, à discricionariedade, no entendimento conferido à questão
pelo doutrinador93, é inerente uma liberdade de escolha entre alternativas
igualmente justas, em virtude do fato de que a decisão respectiva se fundamenta
ordinariamente em critérios extrajurídicos, como a aferição de oportunidade ou
mesmo em virtude de razões econômicas, os quais não são referidos na lei e, por
isso, são remetidos ao juízo subjetivo da Administração Pública.
Diversamente ocorre no caso dos conceitos jurídicos indeterminados,
os quais se traduzem em situações de aplicação da lei, expressamente indicadas,
pelo que deve haver a subsunção das circunstâncias reais a uma categoria legal,
o que afasta a possibilidade de exercício de discricionariedade.
merecer, entre todas as possíveis, a qualificação a que o conceito aponta. O que se quer dizer
exatamente é que em um caso dado a concreta conduta objeto de juízo ou é de boa-fé ou não o é,
o que remete a uma ‘apreciação por juízos disjuntivos’, na expressiva fórmula alemã, já que não se
pode ser as duas coisas ao mesmo tempo, como é evidente.”
93
Ob. cit. p. 466/67, tradução livre: “A discricionariedade é essencialmente uma liberdade de
eleição entre alternativas igualmente justas, ou, se assim se prefere, entre indiferentes jurídicos,
porque a decisão se fundamenta normalmente em critérios extrajurídicos (de oportunidade,
econômicos, etc.), não incluídos na lei e remetidos ao juízo subjetivo da Administração. Ao
contrário, a aplicação de conceitos jurídicos indeterminados é um caso de aplicação da lei, posto
que se trata de subsumir em uma categoria legal (configurada,não obstante sua imprecisão, de
limites, com a intenção de adotar um suposto concreto) circunstâncias reais determinadas,
justamente por isso é um processo regulado, que se esgota no processo intelectivo de
compreensão da realidade no sentido de que o conceito legal indeterminado pretendeu, processo
em que não interfere nenhuma decisão de vontade do aplicado, como é próprio de quem exercita
uma potestade discricionária.”
62
Isso é que viria a permitir ao julgador, diante do caso concreto,
valorar se a solução tomada seria a única justa permitida pela lei, o que não se faz
possível no caso de exercício de atividade discricionária, se esta se produziu em
respeito aos limites da remissão legal deferida à apreciação subjetiva da
Administração Pública.
Posto isso, na visão do autor,94 conceitos como urgência, ordem
pública, preço justo, calamidade publica, medidas adequadas ou proporcionais,
incluídas a necessidade pública, utilidade pública e até interesse publico, não
permitem, quando de sua aplicação, uma pluralidade de soluções justas, mas sim
somente uma em cada caso, resultante da aplicação de juízos disjuntivos.
Interessante também notar que, de acordo com Enterria,95 na
estruturação de qualquer conceito indeterminado pode ser identificado um núcleo
fixo que o mesmo denomina de zona de certeza positiva, uma zona intermediária
ou de incerteza e, finalmente, uma zona de certeza negativa.
Assim concebida pelo autor96 a estrutura do conceito jurídico
indeterminado, a dificuldade de verificar a solução justa localizar-se-ia exatamente
na zona de imprecisão, denominada de “hallo” conceitual, não se fazendo
presente dificuldade alguma no que respeita às zonas de certeza positiva ou
negativa.
94
Ob. cit. p. 468, tradução livre: “Assim, conceitos com urgência, justo preço, calamidade pública,
medidas adequadas ou proporcionais, incluindo necessidade pública, utilidade pública e até
interesse público, não permitem em sua aplicação uma pluralidade de soluções justas, senão uma
só solução em cada caso, a que concretamente resulte de essa ‘aplicação por juízos disjuntivos’
das circunstâncias concorrentes a que antes aludimos.”
95
Ob. cit. p. 468, tradução livre: “De pronto há que se notar que na estrutura de todo conceito
indeterminado é identificável um núcleo fixo (Begrifkern) ou ‘zona de certeza’ configurada por
dados prévios e seguros, uma zona intermediária ou de incerteza ou ‘zona cinzenta’ (Begriffhof),
mais ou menos precisa e, finalmente, uma ‘zona de certeza negativa’, também certa quanto à
exclusão do conceito.”
96
Ob. cit. p. 468, tradução livre: “Suposta esta estrutura do conceito jurídico indeterminado, a
dificuldade de precisar a solução justa se concentra na zona de imprecisão ou ‘vão’ conceitual,
mas tal dificuldade desaparece nas zonas de certeza, positiva ou negativa (...).”
63
Utilizando como referência o conceito de preço justo, o autor
espanhol exemplifica, relativamente à zona de certeza positiva, que o valor de
uma casa poderia situar-se na casa dos dez milhões de pesetas, o que
representaria o preço mínimo, segundos as estimativas comuns.
A seu turno, a zona de imprecisão se localizaria em algo entre dez e
quinze milhões e, por último, a zona de certeza negativa equivaleria a valor
superior a quinze milhões.
Invocando a doutrina alemã que, como informa Enterría97, foi a
responsável pela elaboração acerca do tema, há um reconhecimento no sentido
de que é inafastável uma margem de apreciação subjetiva, no que respeita à zona
de imprecisão, sem que isso, contudo, venha a deslocar a questão para o campo
da discricionariedade.
Colocado o problema dessa forma, consoante afirma o próprio
autor,98 o aprofundamento no exame da técnica dos conceitos indeterminados
conduz a um estreitamento do espaço reservado à discricionariedade, provocando
importante redução em sua esfera de utilização.
Assumindo posição não tão extremada, Celso Antônio Bandeira de
Mello99 entende, no que se refere aos conceitos indeterminados, “seria excessivo
considerar que as expressões legais que os designam, ao serem confrontadas
com o caso concreto, ganham, em todo e qualquer caso, densidade suficiente
para autorizar a conclusão de que se dissipam por inteiro as dúvidas sobre a
aplicabilidade ou não do conceito por elas recoberto”.
97
Ob. cit. p. 469.
Ob. cit. p. 470, tradução livre: “Através desse aprofundamento na técnica dos conceitos jurídicos
indeterminados a idéia de discricionariedade tende a se reduzir de forma importante, como é
óbvio.”
99
Ob. cit. p. 22.
98
64
Assim, entende Celso Antônio Bandeira de Meelo100 que nem
sempre isso será possível, já que em incontáveis situações poderia se constatar a
existência de mais de uma interpretação razoavelmente admissível e, por isso,
não seria permitido afirmar, com foros de absolutismo, que um eventual
entendimento
divergente
do
que
se
tenha
tido
seria
necessariamente
desconsiderado, ou seja, reputado como incorreto.
Semelhante é o pensamento de Afonso Rodrigues Queiró101, para
quem “pode dizer-se, como Bernatzik a respeito dos conceitos vagos (...), mas
sem aceitar a sua construção, que, na sua execução, existe ‘um limite além do
qual nunca terceiros podem verificar a exatidão ou a não exatidão da conclusão
atingida’. Segundo o autor, entende ainda Bernatzik que “pode dar-se que
terceiros sejam de outra opinião, mas não podem pretender que só êles estejam
na verdade, e que os outros tenham uma opinião falsa”, já que “sobre êles, a
generalidade das pessoas não forma senão casualmente o mesmo juízo”,
Para Celso Antônio Bandeira de Mello102, determinadas noções como
“pobreza”, “velhice”, “notável saber”, “boa ou má reputação”, “urgência”,
“tranqüilidade pública”, “como quaisquer outras suscetíveis de existir em graus e
medidas variáveis – ensejarão, em certos casos, objetiva certeza de que ‘in
concreto’, foram bem ou mal reconhecidos”.
Porém, prossegue o professor103, ocorrerá “isto em alguns casos,
não porém em todos”, posto que “em dadas situações, nas paradigmáticas ou
típicas, poder-se-á dizer, em nome de uma verdade objetivamente convinhável,
que alguém induvidosamente é pobre ou que é velho, ou então, que não o é (e
100
Ob. cit. p.22: “Algumas vezes isso ocorrerá. Outras não. Em inúmeras situações, mais de uma
intelecção será razoavelmente admissível, não se podendo afirmar, com vezos de senhoria da
verdade, que um entendimento divergente do que se tenha será necessariamente errado, isto é,
objetivamente reputável como incorreto.”
101
Ob. cit. p. 63.
102
Ob. cit. p. 22/23.
103
Ob. cit. p. 23.
65
assim por diante no exemplário referido), porém, em outras tantas, mesmo
recorrendo-se a todos os meios mais além aduzidos para delimitar o âmbito de
uma expressão vaga, ter-se-á de reconhecer que não se poderia rechaçar como
necessariamente falsa nenhuma dentre duas opiniões conflitantes sobre o mesmo
tópico”.
Afirma o doutrinador104 que: “em suma: muitas vezes – exatamente
porque o conceito é fluido – é impossível contestar a possibilidade de conviverem
intelecções diferentes, sem que, por isto, uma delas tenha de ser havida como
incorreta, desde que quaisquer delas sejam igualmente razoáveis”, e, assim,
conclui o autor, “eis porque não é aceitável a tese de que o tema dos conceitos
legais fluidos é estranho ao tema da discricionariedade”.
O campo de discussão é por demais extenso e comporta várias
correntes doutrinárias e, mesmo centrando a análise naquelas duas anteriormente
expostas, é possível antever o elemento comum a todas as outras demais
opiniões e que se situa exatamente na tensão entre interpretação, como proposto
por Enterría, e discricionariedade, possível ao menos em determinadas situações,
como defendido por Celso Antônio Bandeira de Mello.
A propósito desse debate, Maria Sylvia Zanella de Pietro105 cita
Regina Helena Costa que “apela para o princípio da razoabilidade, para concluir
que em determinados casos, mesmo quando haja possibilidade de opção entre
duas ou mais alternativas, é possível, no caso concreto, chegar-se a uma única
solução válida; referido princípio tem o condão de nortear a apreciação subjetiva
do agente para uma solução que seria aceitável pela comunidade”.
104
105
Ob. cit. p. 23.
Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988, Atlas, São Paulo, 2001, p. 118.
66
Especificamente
acerca
da
tensão
entre
interpretação
discricionariedade, a mesma Maria Sylvia Zanella Di Pietro106 registra
e
que
“quando se instaurou o Estado de Direito, a Administração passou a sujeitar-se à
lei, mas uma lei que precisava ser interpretada. Reconhecia-se tanto ao Judiciário
como à Administração, o poder de interpretar a lei antes de sua aplicação”.
A partir daí, segundo a autora107, surgiu, “dentro da linha de
Bernatzik, a idéia de que determinados conceitos utilizados pela lei, por serem
vagos, são ininterpretáveis, gerando, para a Administração, a liberdade de fazer
uma apreciação subjetiva diante dos fatos concretos, liberdade essa que
corresponderia precisamente ao poder discricionário”.
De acordo com a opinião de Maria Sylvia Zanella Di Pietro108, “não é
necessário muito esforço para perceber que tal doutrina melhor se afeiçoa a um
tipo de governo autoritário, já que reconhece maior poder para a Administração e
menor para o Judiciário, ao qual se nega a possibilidade de apreciar aqueles atos
emanados do poder discricionário”.
Aponta ainda a mesma autora109 que “em linha diversa colocam-se
os que, segundo a doutrina de Tezner, entendem que todos os conceitos vagos
são passíveis de interpretação, não implicando discricionariedade para a
Administração” o que representa, conforme acima exposto, o entendimento que
Enterría confere à questão.
Existiria ainda, como informa Maria Sylvia Zanella Di Pietro110, uma
posição intermediária, na qual “situam-se aqueles que reconhecem poder
discricionário para a Administração Pública em face dos conceitos indeterminados;
todavia, essa discricionariedade não importa livre apreciação. A autoridade
106
Ob. cit. p. 120.
Ob. cit. p. 120.
108
Ob. cit. p. 120.
109
Ob. cit. p. 121.
110
Ob. cit. p. 121.
107
67
administrativa deve utilizar todos os métodos possíveis de exegese para alcançar
o
interesse
público
que
o
legislador
quis
proteger
ao
conferir-lhe
discricionariedade. Esta começa onde termina a interpretação”.
Diante desse mosaico de idéias a respeito do assunto, é possível e
até necessário, ao menos em tese, adotar-se uma posição favorável a um ou outro
entendimento, sem que se pretenda, por óbvio, referendá-la como a mais
acertada, mas apenas com o objetivo de se definir por uma linha doutrinária
dotada de razoável consistência jurídica.
Nesse propósito, não nos anima o alinhamento ao lado da posição
defendida por Enterría, posto não acreditarmos de maneira absoluta que a
questão se resuma aos domínios da interpretação e que, em qualquer caso,
sempre existirá uma única solução consentânea com o direito.
Assim, preferimos encampar a lição de Celso Antônio Bandeira de
Mello, posto que nos parece fora de dúvida que, em determinados casos,
apresentem-se como aceitáveis, sob o ângulo jurídico, mais de uma solução para
um determinado caso concreto posto à decisão da Administração Pública, o que
levaria a admitir, ainda que confinada a determinados balizamentos, alguma
margem para o exercício da discricionariedade.
Deve ser dito, por um lado, que a filiação doutrinária acima
manifestada não invalida a afirmação antes trazida à colação, da lavra de Enterría,
um dos expoentes da doutrina oposta, no sentido de que o aprofundamento da
discussão acerca dos conceitos indeterminados conduz, necessariamente, a um
estreitamento das possibilidades de exercício de competência discricionária.
Por outro lado, também cabe deixar marcado que, apesar do
reconhecimento de que em determinados casos restará à Administração Pública,
quando da aplicação em concreto dos conceitos indeterminados, algum espaço
68
que permita o exercício da discricionariedade, conforme a tese professada, dentre
outros, por Celso Antônio Bandeira de Mello, isso não significa que a decisão
possa ficar à livre e completa apreciação dos agentes públicos, também como
acima já referido.
Ainda assim, será sempre possível exigir-se que a decisão produzida
leve em conta alguns elementos dotados de ao menos uma certa dose de
objetividade, tendo em vista o atendimento do interesse público pretendido pela
norma, o que será atingido, por exemplo, mediante o emprego do princípio da
razoabilidade, como proposto por Regina Helena Costa e acima já referido, em
passagem citada por Maria Sylvia Zanella Di Pietro.
Em
virtude
de
todo
o
exposto,
é
de
se
concluir
que,
independentemente da corrente doutrinária que se pretenda adotar, o que resta
claro, principalmente como meio de preservar os direitos do administrado em face
do Estado, é que o exercício de competência discricionária jamais prescinde, por
completo, da observância de certos limites, reconhecidos em sede doutrinária e
jurisprudencial, por força, inclusive, de preceitos expressos ou implicitamente
estabelecidos pelo próprio ordenamento jurídico.
69
6. Técnicas de redução/controle da discricionariedade
A fim de evitar que o exercício de competência discricionária se
apresentasse abusivo e viesse assim a revelar contornos de arbitrariedade,
levando a Administração Pública a prevalecer em relação ao administrado
mediante o uso da força e do autoritarismo, é que surgiram variadas técnicas
objetivando conter a discricionariedade nos marcos legais que lhe são inerentes,
reduzindo as hipóteses de sua própria utilização ou mesmo submetendo-a,
quando fosse o caso, ao crivo do Poder Judiciário.
Assim, de acordo com Luciano Ferreira Leite,111 “somente se pode
cogitar, portanto, de um Estado Democrático de Direito se presente a submissão
de seus órgãos ao seu próprio ordenamento, ao lado da observância das
liberdades fundamentais conferidas aos administrados (...)”, enfatizando ainda
aquele autor que “o Estado de Direito caracteriza-se, portanto, pela vedação às
autoridades, obstaculizando-lhes atuação arbitrária contra os cidadãos”.
Nesse mesmo sentido, recorda Antonio Carlos de Araújo Cintra,112
reportando-se ao direito norte americano, que “é oportuno ainda acrescentar que o
Judiciário americano não hesita em controlar o próprio exercício do poder
discricionário do administrador, considerada a discricionariedade como a liberdade
de escolher entre várias condutas possíveis ou a inação”, e que, “para isso, está
autorizado
pelo
Federal
Administrative
Procedure
Act
e
leis
estaduais
111
Interpretação e Discricionariedade, São Paulo, RCS Edit, 2006, p.17/18: “Verifica-se, destarte, à
luz das normas constitucionais, conforme exposto, que o Estado, como pessoa jurídica de Direito
Público, é destinatário das normas (leis obrigatórias e proibitivas) por ele próprio editadas. Está
sempre sujeito ao controle de validade na produção das normas infralegais que expede, na medida
em que prevê o ordenamento jurídico positivo, os mecanismos processuais acima referidos a
serem acionados perante o Poder Judiciário. Este, com absoluta neutralidade e imparcialidade, é o
órgão institucional que possui a competência outorgada pela Constituição para se pronunciar sobre
a validade dos atos administrativos e a constitucionalidade das leis.”
112
Dissertação de concurso à livre docência de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, 1978, p. 178.
70
correspondentes, admitindo-se a revisão se o poder discricionário foi empregado
de forma arbitrária, caprichosa ou abusiva".
Nesse sentido, Kelsen113 deixa estabelecido que “o propósito de uma
norma constitucional que concede uma liberdade ou direito individual é
precisamente o de impedir que os órgãos do Poder Executivo sejam autorizados
por uma lei simples a ultrapassar os limites da esfera de interesse determinada
pela ‘liberdade’ ou ‘direito’”.
Buscando o delineamento histórico daquelas técnicas de controle
referidas ao início desse tópico, Enterría114 lembra que, no seu entendimento
inicial, a discricionariedade era assimilável aos então denominados atos de
império, os quais se situavam à margem de qualquer possibilidade de controle
jurisdicional, submetendo os administrados unicamente à vontade do Estado.
Recorda
Enterría
que
o
marco
inicial
propondo
conter
a
discricionariedade nos lindes juridicamente demarcados teve o seu surgimento na
França, já no primeiro terço do século XIX, por meio do recurso que veio a ser
denominado de “excesso de poder”, que visou regular ou controlar, ainda que sob
alguns aspectos, os atos administrativos.
Nesse contexto, ainda conforme Enterría115, admitia-se aquela
espécie de recurso nas situações em que se vislumbrava a existência de um vício
de incompetência por parte do órgão que veio a praticar o ato.
Passo seguinte, o próprio Conselho de Estado francês empenhado,
como acentua Enterría,116 na ampliação daquelas técnicas de controle, passa a
113
Teoria Geral do Direito e do Estado, São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 379.
Ob.cit. p.471/72, tradução livre: “O assédio à imunidade judicial da discricionariedade resume
um dos capítulos mais importantes da evolução do Direito Administrativo. A discricionariedade é
inicialmente equiparada aos ‘atos de império’,categoria oposta à dos ‘atos de gestão’, e a respeito
da mesma não se admite recurso contencioso administrativo pelas razões que bem nos constam.”
115
Ob. cit. p. 472.
114
71
equiparar o vício de forma ao vício de competência, fundado na premissa de que a
atribuição de competência à Administração Pública é feita precisamente no
sentido de que a mesma deva, quando de seu exercício, fazê-lo de modo a ter em
mira uma causa determinada nos termos em que legalmente veio a ser
estabelecido.
Como consequência natural do posicionamento antes referido, e
trilhando sempre a senda evolucionista no que respeita à matéria, chegou-se,
como registra o doutrinador,117 ao descobrimento e formulação da técnica do
desvio de poder, que veio a ser a terceira via de incursão na esfera isenta de
discricionariedade.
Nesse estágio, acentuou-se a idéia de que a liberdade de escolha da
decisão outorgada ao órgão da Administração Pública não compreendia uma
implícita autorização para que o mesmo se afastasse do fim considerado pela
norma que lhe deferiu aquela potestade.
Depois disso, já ao fim do século, como também deixa consignado
Enterría118, o recurso se estende para toda violação direta ou indireta da lei,
generalizando-se a aplicação da via excepcional então reservada ao excesso de
poder, permitindo-se inclusive o acesso à via ordinária, o que veio a tornar
possível inclusive a impugnação dos atos de gestão, valorizando assim as
relações jurídico-administrativas.
Numa etapa posterior, ainda de acordo com a abordagem
desenvolvida por Enterría,119 o recurso é estendido ao controle dos fatos que
foram levados em consideração pela Administração Pública por ocasião da prática
116
Ob. cit. p. 472.
Ob. cit. p. 472.
118
Ob. cit. p. 472.
119
Ob. cit. p. 472.
117
72
do ato, o que era até então impossível de ser questionado na via judicial, baseado
na premissa de que isso viria a ofender o princípio da separação dos poderes.
Acrescenta ainda aquele mesmo autor que o controle jurisdicional
dos fatos, particularmente no que diz respeito à qualificação jurídica dos mesmos,
permitiu o acesso ao problema de fundo, por parte do Conselho de Estado. A
partir de então, admitiu-se examinar a correta utilização, por parte da
Administração Pública, de conceitos tais como o de boa ordem, segurança,
salubridade, trazendo assim para o campo possível de apreciação jurisdicional
algo que se considerava não sindicável, posto que estaria abrangido pela
discricionariedade administrativa.120
Informa também Enterria121 que a aplicação dos princípios gerais do
Direito, como técnica de redução da discricionariedade administrativa, aconteceria
algum tempo depois, por força de um julgado de 1954, do Conselho de Estado,
exigindo que a Administração, em qualquer caso, indicasse de forma precisa as
razões de fato e de direito capazes de justificar uma decisão discricionariamente
adotada.
Finalmente, aponta o autor,122 que em virtude de um outro julgado
ocorrido em 1971, passou a ser utilizada a técnica de se efetuar um balanço entre
custos e benefícios, servindo-se para tanto do princípio da proporcionalidade,
firmando-se a partir de então o entendimento de que em suas ações, ou na prática
de seus atos, o Estado deveria considerar o grau de invasão nos interesses
privados e verificar se tais inconvenientes de ordem social não seriam excessivos
face ao interesse público perseguido.
120
Ob. cit. p. 472.
Ob. cit. p. 472/73.
122
Ob. cit. p. 473.
121
73
Em seara de direito constitucional, Luiz Roberto Barroso123 assinala
que o princípio da proporcionalidade, “conhecido, também, como “princípio da
menor ingerência possível, consiste ele no imperativo de que os meios utilizados
para o atingimento dos fins visados sejam os menos onerosos para o cidadão” e
que isso nada mais é do que “a chamada proibição do excesso”.
Informa o autor, ainda acerca do princípio da proporcionalidade,
reportando-se à sua formulação pela doutrina alemã, que do mesmo se extraem
os “requisitos (a) da adequação, que exige que as medidas adotadas pelo Poder
Público mostrem-se aptas a atingir os objetivos pretendidos; (b) da necessidade
ou exigibilidade, que impõe a verificação da inexistência de meio menos gravoso
para o atingimento dos fins visados; e (c) da proporcionalidade em sentido estrito,
que é a ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido, para constatar se
é justificável a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos”.
Lembra também Luiz Roberto Barroso, em outra passagem do
mesmo trabalho, que “o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade sempre
teve o seu campo de incidência mais tradicional no âmbito de atuação do Poder
Executivo” e que “estudado precipuamente na área do direito administrativo, ele
funcionava como medida de legitimidade do exercício do poder de polícia e da
interferência dos entes públicos na vida privada”.
Retomando a perspectiva histórica traçada por Enterría, o mesmo
acentua que este seria o último reduto da arbitrariedade administrativa que o
Conselho de Estado estaria combatendo e que este trabalho vem sendo levado
adiante com uma admirável sutileza, posto que não pretende aquela corte
administrativa, propositadamente, elaborar uma teoria geral a respeito do tema, a
fim de conservar em seu poder os frutos de uma política jurisprudencial.
123
Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no Direito Constitucional, Revista dos
Tribunais, Ano 6, nº 23, - abril-junho de 1998, p. 72/73.
74
Evidentemente, todo esse processo de criação e de evolução das
técnicas de redução e de controle do exercício da discricionariedade, surgidas por
obra do Conselho de Estado francês, espalharam-se para outros países e
influenciaram fortemente na construção de seus regimes jurídico-administrativos e
vieram a determinar a formação de uma jurisprudência consentânea com o ideário
francês, a propósito da necessidade de se possibilitar o exame judicial quando
diante de arbitrariedades que o justificassem.
Assim, com maior ou menor intensidade ou velocidade, como
registrado pelo autor, relativamente ao direito espanhol, aquelas idéias acabaram
por determinar a formação, em sede de direito comparado, de um arcabouço legal
mínimo positivando o entendimento acerca da necessidade de delimitar as
possibilidades de exercício do poder discricionário, de modo a evitar agressões à
esfera de interesses privados.
Talvez mais importante que isso, ocorreu, no âmbito jurisdicional, a
sedimentação de um universo de decisões que se apresentam em absoluta
sintonia com as teorias desenvolvidas originariamente no direito francês, refletindo
a idéia central ali construída e desenvolvida no sentido de tornar sindicável a
discricionariedade, nas situações em que o seu exercício viesse a se revelar
abusivo.
Como observa Enterria124, a primeira redução do dogma da
discricionariedade decorreu da constatação de que em todo ato discricionário é
possível reconhecer a existência de elementos regrados concernentes à própria
existência e extensão daquele poder, relativos à competência, à forma, aos
procedimentos, à finalidade, ou ao tempo, de maneira a afastar qualquer
justificativa acerca de eventual abdicação de controle sobre ditos elementos.
124
Ob.cit. p. 475.
75
Assim, de acordo com o autor, o exercício da discricionariedade só
pode realizar-se validamente caso sejam respeitados os elementos regrados do
ato, o que vem a permitir o controle externo quanto à legitimidade na produção
dos atos discricionários.
Em relação àqueles elementos regrados, especial destaque é
conferido pelo autor125 no que respeita ao fim ou finalidade do ato, a partir da
constatação de que toda atividade administrativa é dirigida à realização de um
objetivo estabelecido expressa ou implicitamente e a sua eventual não
observância vem dar ensejo ao desvio de poder.
Nesse sentido são as agudas observações de Victor Nunes Leal,126
contidas nas afirmações de que “o ato administrativo – ensina a doutrina do desvio
de poder – só será legítimo se coincidir com a finalidade prevista ou definida,
expressa ou implicitamente, na regra de competência” e de que “exorbitando
dessa previsão ou definição, que há de ser específica (pois a possível implicitude
não se confunde com a inadmissível falta de especialidade), o ato será ilegal”.
Ao se afastar da finalidade que condiciona o exercício do poder
discricionário, o ato praticado pela Administração Pública deixa de ser legítimo, no
dizer daquele autor127. Conseqüentemente, dá ensejo à sua anulação, de vez que
os poderes outorgados aos entes públicos não são abstratos, pelo que não se
prestam à utilização para qualquer finalidade, mas são funcionais e, portanto,
concedidos tendo em vista o alcance de uma finalidade específica.
125
Ob. cit. p. 475.
Reconsideração do tema do abuso do poder, Revista de Direito Administrativo, p. 459: “O fim
legal é, sem dúvida, um limite ao poder discricionário. Portanto, se a opção administrativa
desatende a essa finalidade, deve-se concluir que extrapolou da sua zona livre, violando uma
prescrição jurídica expressa por implícita, o que a transpõe, por definição, para uma zona
vinculada.”
127
Ob. cit. p. 475.
126
76
A respeito da finalidade do ato, Raúl Bocanegra Sierra128 alerta sobre
a necessidade de que toda atividade administrativa esteja orientada para a
realização de um fim público ou de interesse público e que essa finalidade dever
ser buscada na norma que atribuiu a competência.
Esclarece que a finalidade é expressamente indicada pela norma ou
então pode ser deduzida de seu conteúdo e deve ser cumprida, na medida em
que ela é o próprio objeto da potestade atribuída à administração e que se efetiva,
no caso concreto, por meio do ato administrativo.
Adverte Enterría129 que não é exigido para a caracterização do
desvio de poder que o agente público, ao praticar o ato, objetive o atendimento de
um interesse privado, bastando que o fim almejado, ainda que se revista de
natureza pública, seja diverso daquele previsto na norma.
Considera ainda que o vício de desvio de poder é um vício de estrita
legalidade e que é controlável pela verificação do cumprimento do fim
concretamente assinalado pela norma, e esse controle se realiza por meio de
critérios jurídicos estritos e não de regras morais, posto que está sob análise a
legalidade administrativa e não a moralidade do agente ou mesmo da
Administração130.
É exatamente por isso, continua o autor131, que o desvio de poder
não se reduz à constatação de que o agente não buscou um fim privado quando
da prática do ato, mas sim à certificação quanto a uma eventual divergência entre
a efetiva finalidade colimada pela lei e aquela que foi objetivada pelo agente
128
Lecciones sobre el lacto administrativo, Thomson Civitas, Madrid, Segunda Edición, 2004, p. 74.
Ob. cit. p. 476, tradução livre: “Para que se produza desvio de poder não é necessário que o fim
perseguido seja um fim privado, um interesse particular do agente ou autoridade administrativa
(assim, por exemplo, uma finalidade persecutória ou de vingança).
130
Ob. cit p. 476/77.
131
Ob. cit. p. 477.
129
77
público, circunscrevendo-se a analise à perquirição quanto à identidade ou
divergência entre os fins desejados pela lei e os almejados pela Administração.
Igual matiz marca o entendimento de Queiro,132 ao recordar
passagem de monografia de Michoud, na qual este afirma que “o administrador, a
seus olhos, comete uma ilegalidade, não apenas quando age num interêsse
privado, mas também quando age em vista de um interêsse coletivo diferente
daquele que tinha o dever de prosseguir.”
No sentir do autor, “ai também o limite é um limite de legalidade,
porque resulta de regras legais precisas, que são as regras de competência”, e
“se, conforme a feliz expressão de Hauriou, cada poder administrativo está
limitado à prossecução de seu fim próprio, então é que não lhe é permitido dispor
da sua competência para a obtenção de um fim que nela não está contido”.
A seu turno, acrescenta Enterría133 que a grande dificuldade
suscitada por essa forma de controle situa-se no campo da prova, não se podendo
exigir sua plenitude, na medida em que o ato viciado certamente não deixará
evidenciado se o fim que o inspirou é distinto daquele previsto na norma.
No entanto, consciente dessa dificuldade, entende Enterría134 que,
apesar de não bastarem para tanto as meras presunções, é suficiente a convicção
132
A teoria do “desvio de poder” em direito administrativo, Revista de Dieito Administrativo, Vol. VI,
janeiro-março – 1947, p. 75.
133
Ob. cit. p. 477, tradução livre: “Em qualquer caso, é evidente que a dificuldade maior que
comporta a utilização da técnica do desvio de poder é a da prova da divergência de fins que
constitui sua essência. Facilmente se compreende que esta prova não pode ser plena, já que não
é presumível que o ato viciado confesse expressamente que o fim que o anima é outro distinto
daquele assinalado pela norma.”
134
Ob. cit. p. 477, tradução livre: “Consciente dessa dificuldade, assim como a exigência de um
excessivo rigor probatório privaria totalmente à virtualidade a técnica do desvio do poder, a
jurisprudência costuma afirmar que para que se possa declarar a existência desse desvio ‘é
suficiente a convicção moral que se forme no Tribunal’ (...), à vista dos atos concretos que em cada
caso resultem provados, se bem que não bastam ‘as meras presunções nem suspeitas
interpretações do ato de autoridade e da oculta intenção que o determina’.”
78
moral formada pelo Tribunal diante dos fatos concretos que em cada caso
resultem provados.
Acerca da questão relativa à prova, Raúl Bocanegra Sierra135 admite
a sua obtenção de forma indireta, por meio de indícios racionais que possam
despertar no juiz do contencioso a convicção de que o ato administrativo
apresenta um desvio de finalidade.
Ainda particularmente quanto ao aspecto probatório, Queiró136
defende que “nada mais há a fazer do que observar o ato no seu conteúdo e na
sua motivação, e verificar se existe uma violação objetiva da norma que marca as
finalidades da atividade administrativa, a demonstrar que “a autoridade não tomou
a decisão determinada pelo fim que a lei teve em vista ao atribuir-lhe a
competência”.
Ainda se reportando a Queiró, em seu trabalho abordando o tema do
“desvio de poder”, interessante consignar que o tratadista reconhece que “em
teoria, seria mais lógica mesmo a doutrina segundo a qual essa vinculação ao
objeto e ao fim legais – isto é, ao interesse público e ao fim público – se pode
entender como própria de toda a atividade administrativa: todos os atos
administrativos têm de ser praticados pela autoridade competente e sem motivos
de moral administrativa reprováveis”.
Isso ocorreria “não porque em todos eles haja uma margem de poder
discricionário, mas porque todos os atos administrativos têm de completamente
observar a lei e a moral administrativa – a primeira tal como os tribunais a
interpretam, a segunda como os tribunais a definem”.
135
136
Ob. cit. p. 75.
Ob. cit. p. 76.
79
O autor,137 ao tecer considerações sobre a existência de limitação à
discricionariedade, pondera que diante de limites que sejam ao mesmo tempo
discricionários e jurisdicionais, além dos próprios limites naturais, a realidade é
que o poder discricionário termina, no que se refere às autoridades
administrativas, aquém daquilo que seria natural, sendo que a discricionariedade
que lhes é subtraída passa a ser exercida pela administração contenciosa.
Assim, conclui ponderando que a discricionariedade “tem uma
dimensão natural, que pode ser reduzida pelos vários sistemas positivos,
mediante
a
criação
de
determinadas
limitações:
essas
limitações
são,
materialmente, de natureza hierárquica-administrativa interna; formalmente,
jurisdicionais” e que “um desse limites é uma das formas de desvio de poder, no
sistema administrativo português”.
Apesar de todas essas considerações, Enterria138 deixa registrado
que mesmo na França observa-se um declínio na utilização dessa forma de
controle, o que deve ser debitado não a uma perda de confiança na sua
efetividade, mas sim ao surgimento de técnicas outras que se apresentam com
maior poder de penetração.
A segunda forma de controle da discricionariedade tem como
referência os fatos determinantes para a prática do ato administrativo, e a respeito
da matéria cabe lembrar o sempre oportuno ensinamento de Oswaldo Aranha
Bandeira de Mello,139 ao registrar que a atividade estatal está circunscrita a
determinados limites jurídicos e que “esses limites dos poderes discricionários se
encontram nos motivos determinantes do ato jurídico, e no fim com que é
137
Ob. cit. p. 80, grafia original: “Verdadeiramente deve-se dizer que onde começam os limites
acaba o que é limitado: se há propriamente uma limitação ao mesmo tempo discricionária e
jurisdicional do poder discricionário além dos seus limites naturais, então isso significa que o poder
discricionário termina realmente para as autoridades administrativas ativas mais aquém do que
poderia naturalmente terminar: êsse, porém, que lhes tiram, vai para a administração contenciosa;
muda de titular.”
138
Ob. cit. p. 478.
139
Ob. cit. p. 473.
80
praticado, tendo em vista a preocupação do seu agente e a razão de ser do
próprio instituto”.
Prossegue o eminente tratadista afirmando que “por conseguinte,
não se tolera motivo determinante estranho ao interesse coletivo e nem
preocupação da autoridade pública em conflito com ele” e ainda que “por outro
lado, não basta seja praticado o ato tendo em vista o interesse coletivo, outrossim,
se impõe a consideração do interesse coletivo específico, objeto do instituto
jurídico a que se refere o ato”.
Por força disso, conclui Bandeira de Mello que “portanto, mesmo os
atos administrativos praticados pela Administração Pública no exercício de seus
poderes discricionários encontram os limites acima apontados”, pelo que “não
podem transpô-los, sob pena de envolver exercício abusivo de direito”.
A
respeito
dessa
espécie
de
controle
do
exercício
da
discricionariedade, que tem como referência os fatos que determinaram a atuação
da Administração Publica, Enterría140 assinala que toda outorga de competência
discricionária fundamenta-se em uma realidade de fato que assume a condição de
pressuposto necessário para o seu exercício.
Esse pressuposto, ainda de acordo com o autor, deve encontrar
correspondência com a realidade, cuja valoração poderá casualmente ser objeto
de uma faculdade discricionária, ao passo que a sua ocorrência não pode ficar ao
arbítrio de uma apreciação subjetiva da Administração Pública, pelo simples fato
de que não existem milagres nessa área, cabendo apenas e tão somente verificar
se algo veio ou não a acontecer.
Isso porque, arremata o tratadista, a realidade é sempre única, não
podendo ser ou não ser ao mesmo tempo ou ser simultaneamente de uma
140
Ob. cit. p. 478.
81
maneira e de outra, o que, por outras palavras, é corroborado por Celso Antônio
Bandeira de Mello141, ao asseverar que “uma vez enunciados pelo agente os
motivos em que se calçou, ainda quando a lei não haja expressamente imposto a
obrigação de enunciá-los, o ato só será válido se estes realmente ocorreram e o
justificavam”.
Essa idéia aparentemente elementar, diz Enterría142, só veio a ser
devidamente levada em consideração após a edição de lei que, contrariamente ao
entendimento ate então dominante no direito francês, esclareceu que a jurisdição
contenciosa administrativa é de natureza revisora quando requer a existência
prévia de um ato administrativo, sem que isso venha a significar que seja
impertinente a produção de provas,
Em virtude dessa norma é que se passou a admitir a possibilidade de
produção de prova quando existia desconformidade em relação aos fatos que
seriam importantes a juízo do órgão jurisdicional para a solução do conflito posto à
sua apreciação, passando a ser admitida, inclusive, a realização de diligências
julgadas pertinentes pelo Tribunal, ainda que depois de concluída a fase
probatória.
Isso veio a viabilizar um controle pleno, segundo ainda Enterria143, da
efetiva correspondência com a realidade dos fatos alegados pela Administração
ao elaborar seus atos e, assim, verificar a correta utilização dos poderes
discricionários por parte dos agentes públicos, que só podem exercitá-los quando
se produzem concretamente as circunstâncias de fato previstas nas normas
atributivas de ditas potestades.
141
Curso de Direito Administrativo, Malheiros, São Paulo, 16ª ed., 2003, p. 370.
Ob. cit. p. 478/79.
143
Ob. cit. p. 479.
142
82
Após citar e comentar uma série de decisões judiciais a respeito do
tema, o doutrinador144 procura encarecer a importância dessa forma de controle
da discricionariedade, na medida em que aqueles pronunciamentos jurisdicionais
vieram a consolidar entendimento que deixou no passado alguns posicionamentos
que se contentavam, no que respeita à aferição da ocorrência dos fatos alegados
pela Administração, com simples alegações por essa produzidas, baseadas em
meros informes.
Como
conseqüência
dessa
nova
postura
jurisprudencial,
foi
definitivamente aclarado o equívoco que marcava anteriores decisões, restando
evidente que tanto a existência quanto as características dos fatos que foram
determinantes em relação à atuação da Administração Pública não se inserem no
âmbito da discricionariedade, e o controle judicial se lhes aplica em qualquer caso,
consoante expressa o autor.145
Mas não é apenas a isso que se presta o controle a respeito da
exatidão ou da efetiva realidade dos fatos enquanto pressupostos necessários
para a legitimidade do exercício do poder discricionário pois, como ensina
Enterría,146 abriu-se também a possibilidade de verificar a qualificação jurídica
emprestada aos mesmos pela Administração Pública.
O autor,147 nessa passagem, estabelece relativamente à mencionada
qualificação jurídica uma distinção que leva em conta, de um lado, quando a
mesma é realizada com base em conceitos legais e, de outro, quando considera a
qualificação efetuada em função da oportunidade e não da legalidade.
No primeiro caso, entende o autor que se trata de um problema
estrito de qualificação legal como, por exemplo, ao se concluir acerca da
144
Ob. cit. p. 480/81.
Ob. cit. p. 481.
146
Ob. cit. p. 481/82.
147
Ob. cit. p. 482.
145
83
existência ou não de uma infração e qual seria esta em concreto, pelo que, nesse
caso, não há que se falar em um poder discricionário para tanto concedido à
Administração Publica.
Já
no
segundo
caso,
reconhece
o
autor
que
há
uma
discricionariedade possível de ser exercida pelo agente público, resultante de uma
remissão legal conferida pela norma para que ele exerça um juízo de apreciação
acerca da oportunidade, por ocasião da prática do ato administrativo.
Num terceiro momento, surgiu o controle exercido por meio dos
princípios gerais do Direito, valendo ressaltar que em virtude do apurado
e
adequado tratamento doutrinário que lhes vem sendo conferido, o que também
tem marcado a atuação de instâncias jurisdicionais, já vai sendo relegada ao
esquecimento, ao menos naquilo que se refere aos domínios antes referidos, a
errada compreensão que se atribuía àquela espécie normativa, por um tempo
vista como um ideal que poderia ou não ser concretizado e, por isso mesmo,
desprovida da necessária força obrigatória.
Como relata Marino Pazzaglini Filho,148 “em passado recente, os
princípios constitucionais eram tidos como meras normas programáticas,
destituídas de imperatividade e aplicabilidade incontinenti”. Segundo o autor,
“presentemente, os princípios constitucionais ostentam denso e superior valor
jurídico, ou melhor, são normas jurídicas hegemônicas às demais regras do
sistema jurídico, de eficácia imediata e plena imperatividade, vinculantes e
coercitivas para os Poderes Públicos e para a Coletividade”.
Nesse sentido, Cármen Lúcia Antunes Rocha149 ressalta que “a
norma que dita um princípio constitucional não se põe à contemplação, como
148
Princípios Constitucionais reguladores da Administração Pública, Agentes Públicos,
Discricionariedade Administrativa, Extensão da Atuação do Ministério Público e do Controle do
Poder Judiciário, Atlas, São Paulo, 2007, p. 11.
149
Princípios Constitucionais da Administração Pública, Del Rey, Belo Horizonte, 1994, p. 23.
84
ocorreu em períodos superados do constitucionalismo, põe-se à observância do
próprio Poder Público do Estado e de todos os que à sua ordem se submetem e
da qual participam”.
Continua pontuando que “sendo a Constituição uma lei, não se pode
deixar de concluir que todos os preceitos que nela se incluem, expressa ou
implicitamente, são leis, normas jurídicas postas à observância insuperável e
incontornável da sociedade estatal”.
É inegável a importância que deve ser atribuída aos princípios gerais
do Direito, a partir da constatação de que o ordenamento jurídico é composto pelo
gênero denominado norma e este, por sua vez, comporta a divisão em duas
espécies: regras e princípios jurídicos.
Observa Canotilho150, desenvolvendo abordagem a propósito da
importância dos princípios, que os mesmos “podem desempenhar uma função
argumentativa, permitindo, por exemplo, denotar a ratio legis de uma disposição
(...) ou revelar normas que não são expressas por qualquer enunciado legislativo,
possibilitando aos juristas, sobretudo aos juízes, o desenvolvimento, integração e
complementação do direito”.
Conforme amplo entendimento doutrinário, a não obediência a um
princípio geral de Direito, seja expresso ou mesmo implicitamente dedutível do
próprio ordenamento, vem a se revelar mais nociva que o não atendimento a uma
regra de direito, na medida em que, dado o seu caráter nuclear, a ofensa a um
certo princípio acaba por se refletir em desatendimento a um conjunto de regras.
Em vista disso é possível perceber a extraordinária importância que
assume a questão relativa aos princípios gerais do Direito, quando estes são
150
Direito Constitucional, Almedina, Coimbra, 1995, 6ª ed., p. 167.
85
utilizados como meio de aferir a correção no exercício do poder discricionário por
parte da Administração Pública.
É incontroverso o fato de que a lei, nos casos em que outorga à
Administração Pública a possibilidade de exercer certa medida de apreciação
subjetiva, não lhe atribui a faculdade de se colocar à margem do ordenamento
jurídico, sendo assim forçoso concluir que a sua atuação continuará a ser
obrigatoriamente orientada pelas normas jurídicas, especialmente pelos princípios
gerais do Direito.
Sobre o assunto, é oportuna, mais uma vez, a lição de Enterría,151
quando, ao tratar do controle da discricionariedade por meio dos princípios gerais
do Direito, pontifica que a norma que outorgou à Administração tal poder de agir
não derrogou para a mesma a totalidade da ordem jurídica, a qual, com seu
componente essencial, continua vinculando a Administração.
Ampliando o discurso sobre a importância de que se revestem os
princípios gerais do Direito, Enterría152 acentua que os mesmos oferecem vários
outros critérios que devem ser levados em conta no momento de se examinar, em
sede judicial, a legitimidade do exercício da discricionariedade pela Administração
Pública.
Explicitando a assertiva feita, o tratadista153 considera que os
princípios gerais não são de modo algum uma abstrata e indeterminada invocação
de justiça ou da consciência moral ou mesmo da discricionariedade do julgador,
mas sim uma expressão da justiça material tecnicamente estabelecida para a
solução de problemas jurídicos concretos.
151
Ob. cit. p. 482.
Ob. cit. p. 482.
153
Ob. cit. p. 483.
152
86
Deixa claro que os princípios gerais de Direito são efetivamente
normas jurídicas que podem e devem ser concretamente consideradas na solução
de conflitos jurídicos, não se tratando de meros ideais de justiça cuja aplicação
restaria colocada ao sabor dos aplicadores do direito, seja em sede administrativa,
seja em sede judicial.
Complementa o doutrinador154, deixando assentado que o controle
da discricionariedade, por via da utilização dos princípios gerais do Direito, não
pode se reduzir a uma forma de substituição do critério da Administração pelo do
juiz,
posto que isso
viria apenas
a deslocar o
problema
para
uma
discricionariedade judicial em lugar da administrativa.
Assevera ainda que se trata, na realidade, da necessidade de
aprofundamento no tocante à decisão judicial, de modo a se encontrar uma
explicação objetiva que venha a expressar um princípio geral.155
Atendo-se especificamente a alguns dos princípios, interessante
anotar que o autor chama a atenção para o princípio da boa-fé, alertando que o
mesmo há de inspirar não só os atos da administração como também os dos
administrados.
Referindo-se particularmente ao princípio da igualdade, recorda que
as intervenções da Administração Pública devem ser efetuadas da maneira menos
restritiva possível em relação à liberdade individual, em respeito à expressa
proibição constitucional de qualquer ação arbitrária por parte da Administração
Pública.
A respeito da utilização dos princípios como ferramenta jurídica
destinada a frear a discricionariedade ou mesmo de promover a sua
154
155
Ob. cit. p. 483.
Ob. cit. p. 483.
87
sindicabilidade, Maria Sylvia Zanella di Pietro156 anota que “muitas teorias e
princípios de origem pretoriana foram incorporados pela doutrina do direito
administrativo estrangeiro e, por intermédio deste, ao direito brasileiro, e,
consagrados, em grande parte, pelo direito positivo, inclusive, agora, pela
Constituição”.
Após deixar assentado que atualmente o controle judicial alarga-se
por via do acolhimento de vários princípios de origem pretoriana, aquela autora
tece algumas considerações a propósito da importância e do entendimento a
serem
conferidos
a
princípios
espeficamente
endereçados
à
atividade
administrativa, como os da razoabilidade, proporcionalidade e da moralidade, e,
ainda, encarece a importância dos princípios gerais do direito, que vêm a
constituir, também, barreiras ao exercício da discricionariedade administrativa.
Dentre esses últimos, a doutrinadora referida arrola o princípio do
devido processo legal, o da proibição ao enriquecimento sem causa, o da
igualdade dos administrados perante os serviços públicos, o da continuidade dos
serviços públicos e, ainda, o da mutabilidade dos contratos, todos consagradores
de valores permanentes, imutáveis, universais e que, segundo aquela autora,
transcendem o próprio direito positivo e, por isso mesmo, apresentam-se como
limitadores da atividade discricionária.
Finaliza afirmando que “todos esses princípios foram acolhidos
implícita ou explicitamente na Constituição de 1988” e que “eles limitam a
discricionariedade administrativa, norteiam a tarefa do legislador e ampliam a ação
do Poder Judiciário, que não poderá cingir-se ao exame puramente formal da lei e
do ato administrativo, pois terá que confrontá-los com os valores consagrados
como dogmas na Constituição”.
156
Ob. cit. p. 233/234.
88
Acerca dessa discussão, cabe pontuar que a caracterização dos
princípios gerais do direito como marcos limitadores do exercício de competência
discricionária vem sendo reconhecida de maneira uniforme pela doutrina, inclusive
em sede de direito comparado.
Nessa direção é o ensinamento de Javier Barnes Vasques157 que, ao
empreender considerações a respeito dos atributos dos princípios gerais de
direito, aponta os três atributos básicos, comuns a qualquer princípios, como
previstos no Código Civil: i) ser um fundamento do ordenamento jurídico, guia do
legislador e medida da justiça; ii) ser norma orientadora da função interpretativa e,
iiii) constituir um elemento de integração das lacunas da lei.
Em continuação, afirma o mestre espanhol que existe ainda uma
quarta função que deve ser atribuída aos princípios gerais, que é a constituir
limites ao poder discricionário e regulamentar, como reconhecido em recentes
decisões judiciais, restando assim reforçado o seu papel de partes autônomas do
ordenamento jurídico e não de simples elementos interpretativos do direito posto.
A propósito dessa questão, Caio Tácito158 observa que “o
fortalecimento do poder discricionário – do qual o poder de polícia é uma das
manifestações mais atuantes – colocou em destaque a necessidade de
aperfeiçoamento do controle de legalidade de modo a conter, oportunamente, os
excessos ou violências da Administração Pública”.
Pondera aquele mestre que “certamente, a via tradicional de
garantia, no sistema de freios e contrapesos, incumbe, por excelência, ao poder
judiciário, guardião da legalidade e protetor dos direitos e liberdades. Na medida
em que se amplia, como assinalado, o poder maior do Estado, constróem-se
meios mais eficazes para a prática do controle judicial”.
157
158
El procedimiento Administrativo en el Derecho Comparado, Editora Civitas, p.94.
Revista de Direito Administrativo, nº 227, Rio de Janeiro, jan/mar 2002.
89
V – PROCESSOS ADMINISTRATIVOS SANCIONATÓRIOS
1. Poder de polícia do Banco Central do Brasil
Ao Banco Central do Brasil, por força da competência que lhe
conferem as Leis 4.595/64 e a 4.728/65, cabe a supervisão sobre as operações
realizadas no âmbito do sistema financeiro nacional, mais especificamente
aquelas pertinentes ao mercado financeiro e, verificando infração ao disposto
naquelas leis ou em normas infralegais com base nelas editadas, poderá instaurar
processos administrativos sancionatórios contra os infratores com vistas à
imposição das penalidades cabíveis.
A Lei 4.595/64, que criou o Banco Central do Brasil e estruturou, sob
o ponto de vista legal, o sistema financeiro nacional, em seu próprio texto tipifica
alguns ilícitos de natureza administrativa, bem como estabelece a competência
tanto do Conselho Monetário Nacional, órgão de cúpula daquele sistema, quanto
do Banco Central do Brasil, autarquia que, basicamente, está incumbida de zelar
pela execução e fiel cumprimento das decisões do referido conselho.
Dessa forma, tanto o órgão referido quanto a entidade mencionada
têm competências normativas infralegais definidas em lei e que são exercidas, no
âmbito do Conselho Monetário Nacional, por meio da edição de resoluções e, na
esfera do Banco Central do Brasil, por meio de circulares e outras normas daquela
espécie.
Da mesma forma, cabe acrescentar que a Lei 4.728/65, a qual veio a
promover a reforma do sistema bancário, também traz importantes disposições
acerca dos mercados financeiro de capitais que, àquela época subordinavam-se
ao poder de polícia do Banco Central do Brasil, o que veio a ser modificado com a
criação da Comissão de Valores Mobiliários, autarquia a quem cabe, a partir da
90
edição da Lei 6.385/76, a supervisão do mercado de capitais, remanescendo no
âmbito do Banco Central do Brasil a supervisão do mercado financeiro.
Posto isso, vale recordar que as instituições financeiras e demais
sociedades autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil sujeitam-se ao
seu poder de polícia, desde o seu nascimento até a sua extinção, pelo que se
submetem a uma séria de regras que visam, principalmente, resguardar a
estabilidade e solidez do sistema e garantir os interesses dos depositantes,
investidores e demais participantes.
Assim, as instituições que pretendam ingressar no sistema carecem
da devida e prévia autorização, mediante o cumprimento de requisitos de caráter
patrimonial, e, quanto aos seus diretores, exige-se o preenchimento de qualidades
de natureza técnica, além de experiência e ilibada reputação.
Uma vez integrando o sistema, as instituições ficam adstritas à
regular fiscalização, por parte do Banco Central do Brasil, no tempo e modo que
este julgar convenientes, disponibilizando-lhe toda a documentação para tanto
necessária, e, diante da eventual verificação de ilícito administrativo, poderá
aquela
autarquia
instaurar
o
correspondente
processo
administrativo
sancionatório, como já referido.
A título de ilustração, vale citar como exemplo de ilícito administrativo
a concessão, por instituições financeiras, de empréstimos ou adiantamentos a
pessoas físicas ou jurídicas com as quais estejam impedidas de operar, tais como
empresas ligadas ou diretores e seus parentes até um certo grau, consoante
norma que pretende evitar qualquer promiscuidade operacional que possa vir a
comprometer o patrimônio da instituição.
Ainda com o mesmo objetivo, as operações de crédito deferidas por
aquelas instituições sujeitam-se, consoante regulamentarmente exigido, a
91
determinados limites e critérios de segurança, liquidez e diversificação de riscos,
os quais, se não atendidos, poderão vir também a caracterizar ilícitos
administrativos.
De igual maneira, virão a configurar ilícitos administrativos as
situações em que as instituições apresentarem capital ou patrimônio líquido abaixo
dos limites regulamentarmente estabelecidos, o mesmo sucedendo no caso de
comportamentos ou condutas de seus administradores que resultem em prejuízos
decorrentes de má administração.
Também são dignos de menção os ilícitos administrativos de
natureza cambial, tais como a prestação de informação falsa em contratos de
câmbio ou mesmo a classificação incorreta das operações da espécie, os quais
podem ensejar a aplicação de penalidades pecuniárias de considerável
magnitude, posto que referenciadas aos próprios valores das operações, as quais,
via de regra, apresentam expressivo montante.
Dada a importância de que se revestem, em virtude do alto grau de
reprovabilidade e de seus nefastos reflexos sobre o sistema, inclusive sobre o
aspecto da credibilidade, cabe especial menção aos ilícitos administrativos que
tenham origem no não atendimento das normas sobre o combate e a prevenção
aos crimes de lavagem de dinheiro, tipificados na Lei nº. 9.613/98.
Com fundamento na referida lei foram editados normativos infralegais
impondo às instituições financeiras a criação de uma série de controles e regras,
inclusive de natureza cadastral, cujo objetivo é a detecção de eventuais operações
suspeitas realizadas por seus clientes.
Nesse
sentido,
as
instituições
devem
dedicar
atenção
à
movimentação de recursos incompatíveis com o patrimônio ou atividade financeira
de seus clientes, sendo que as próprias regras estabelecidas enumeram situações
92
que, exemplificativamente, demandam uma atuação preventiva por parte de seus
destinatários.
Assim é que, quando verificados comportamentos suspeitos, as
instituições financeiras devem efetuar a devida comunicação ao Banco Central do
Brasil, nos temos da Circular BCB 2.852/98, e, ainda, ao Conselho de Atividades
Financeiras – COAF. Uma vez não procedendo dessa forma, ficarão sujeitas a
processos administrativos sancionatórios, sendo ainda os fatos comunicados ao
Ministério Público Federal, para as providências de sua alçada, tendo em vista a
eventual ocorrência de crimes tipificados principalmente na Lei 7.492/86, que
define os crimes contra o sistema financeiro.
Os processos administrativos sancionatórios, instaurados em virtude
da provável prática de ilícitos administrativos de qualquer natureza, têm origem,
via de regra, em relatórios produzidos pela área de supervisão bancária do Banco
Central do Brasil que, concluindo naquele sentido, apresentará proposta formal de
instauração de processo, da qual constará, dentre outros elementos, o relato
circunstanciado da conduta supostamente ilícita, indicação da norma infringida,
prova material dos fatos e o nome das pessoas que entende serem as
responsáveis.
A proposta antes referida é dirigida a um colegiado institucionalizado
no âmbito interno do próprio Banco Central do Brasil que a examinará e, decidindo
pela procedência, encaminhará os autos ao setor competente para providenciar a
formulação de acusação aos responsáveis, cientificando-lhes da conduta
supostamente ilícita e de seu enquadramento legal, concedendo-lhes prazo de 30
(dias), a partir do recebimento da intimação, para oferecimento de defesa.
Apresentada ou não a defesa por parte dos interessados, o
departamento específico do Banco Central do Brasil, o qual trata exclusivamente
de processos administrativos instaurados, decidirá, em primeira instância
93
administrativa, e mediante manifestação de outro órgão colegiado interno, pela
procedência ou não da acusação efetuada, sugerindo o arquivamento do processo
(absolvição) ou a imposição da penalidade prevista em lei.
Assim, nessas situações, o Banco Central do Brasil, no desempenho
de suas atribuições de fiscalização, vislumbrando a presença de hipotéticos ilícitos
administrativos,
decide
pela
instauração
de
processos
administrativos
sancionatórios, formulando acusação aos supostos infratores, os quais terão a
oportunidade de exercer o contraditório, ainda em sede administrativa, seguindose decisão a respeito. No aspecto procedimental, o regramento próprio dessa
atividade é estabelecido pela Resolução 1.065/85 e normas posteriores.
Os processos da espécie, sujeitos ao duplo grau de jurisdição em
sede administrativa, em relação aos quais venham a ser julgadas procedentes as
acusações formuladas, encerrar-se-ão com imposição de restrições de direitos
que podem flutuar desde uma simples advertência até à inabilitação de
administradores para o exercício de cargo de direção em empresas submetidas à
fiscalização do Banco Central do Brasil, por período de tempo variável em função
da gravidade de que venham a se revestir os ilícitos perpetrados.
As penalidades de que se trata estão devidamente enumeradas,
quando for o caso, no artigo 44 da Lei 4.595/64, o qual também estabelece o
âmbito de aplicação de cada uma daquelas restrições de direito, ao passo que a
Resolução 3.192/04, naquilo que diz respeito à penalidade de multa, define as
hipóteses de sua incidência, considerado o valor máximo de R$ 250.000,00
(duzentos e cinqüenta mil reais).
Em virtude de sua própria natureza, as penalidades por ilícitos
cambiais estão devidamente explicitadas, dentre outras, na Lei 4.131/62, que
disciplina o capital estrangeiro no país, bem como em normas infralegais sobre os
94
diferentes mercados de câmbio, as quais estão consolidadas no RMCCI
(Regulamento do Mercado de Câmbio e Capitais Internacionais).
De seu turno, a já referida Lei 9.613/98 (ocultação de bens e
lavagem de dinheiro), também enumera penalidades de natureza administrativa a
serem impostas, caso verificados ilícitos daquela ordem.
Da decisão proferida, seja ela qual for, caberá recurso, no prazo de
15 (quinze), ao Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, seja o
recurso de ofício, quando resultante da decisão do Banco Central do Brasil que
absolveu o acusado, seja o voluntário, em razão da insatisfação dos penalizados
com a decisão proferida.
O Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional é órgão
que têm como atribuição, dentre outras, o reexame, em segunda instância
administrativa, das decisões prolatadas pelo Banco Central do Brasil e é
composto, de forma paritária, por 8 (oito) conselheiros, sendo 4 (quatro) deles
representantes da Administração Pública Federal e os outros 4 (quatro)
representantes de entidades da iniciativa privada relacionadas a matérias
pertinentes aos mercados financeiro e de capitais.
Uma vez recebidos os recursos por aquele colegiado, os quais terão
efeito suspensivo em relação à decisão de primeira instância, ocorrerá, em sessão
pública, o sorteio, dentre os 8 (oito) conselheiros, de um relator e de um revisor,
sendo os recursos distribuídos a um dos representantes da Procuradoria da
Fazenda Nacional que atuam junto ao órgão, o qual emitirá parecer formal a
respeito das razões apresentadas pelos recorrentes e opinará sobre o acolhimento
ou não das mesmas.
Incluídos os recursos na pauta do Conselho de Recursos do Sistema
Financeiro Nacional, será a mesma publicada no Diário Oficial da União, onde
95
constará a data, o local e horário da sessão pública de julgamento, ocasião em
que os recorrentes, através de seus advogados ou pessoalmente, depois de lido o
relatório do caso, poderão efetuar a pertinente sustentação oral e, em seguida,
ocorrerá a manifestação do representante da Procuradoria da Fazenda Nacional,
seguindo-se a fase de debates e, finalmente, a votação e decisão do colegiado.
Somente terão direito a voto os 8 (oito) conselheiros antes referidos,
sendo que, no caso de empate, o Conselheiro-Presidente, que sempre será o
representante do Ministério da Fazenda, terá voto qualificado e a decisão tomada
torna-se definitiva na instância administrativa, não restando mais possibilidade de
discussão da matéria nesse âmbito.
No entanto, considerando que o nosso ordenamento jurídico adotou
o sistema de jurisdição única, cabendo somente ao Poder Judiciário decidir
conflitos de interesses de forma definitiva, a questão controvertida sempre poderá
ser levada à discussão e decisão naquela instância.
Em outro segmento igualmente próprio do seu poder de polícia,
também é o Banco Central do Brasil que, a seu critério e de forma devidamente
motivada, determina a medida aplicável ou mesmo a saída do sistema de
instituições que, a qualquer momento, nos termos das leis de regência, revelaremse não mais serem portadoras de condições de permanecer nele atuando, como
vinham fazendo, seja por insuficiência patrimonial ou mesmo em virtude de
reiterados descumprimentos das normas que se lhes aplicam.
Nesses casos, por força do peculiar regime jurídico que lhes é
pertinente, as instituições poderão ser submetidas aos regimes de intervenção, de
liquidação extrajudicial ou de administração especial temporária, em qualquer dos
casos decretado pelo Banco Central do
Brasil e sujeito à administração por
pessoas pelo mesmo nomeadas.
96
Uma vez decretada a intervenção ou a liquidação extrajudicial de
instituição submetida ao poder de polícia do Banco Central do Brasil, como efeitos
decorrentes do próprio ato de liquidação, a instituição deixa de operar no mercado
em que atuava e seus administradores, cujos bens são tornados indisponíveis,
são afastados e substituídos por aqueles nomeados pelo órgão regulador.
Diversamente, quando da decretação do Regime de Administração
Especial Temporária (RAET), a instituição continua operando no mercado de
forma regular, mas também os seus administradores terão seus bens tornados
indisponíveis e serão destituídos de seus cargos, sendo nomeado pelo Banco
Central do Brasil um Conselho Diretor que passará a responder pela
administração da empresa.
Em qualquer dos casos acima alinhados, a decretação do regime
implicará na nomeação de uma Comissão de Inquérito, cujo objetivo será a
apresentação, no prazo legalmente assinalado, de relatório no qual deverão ser
apontadas as causas que levaram a instituição àquela situação, o montante dos
prejuízos causados, se for o caso, e informado o nome dos administradores que
exerceram cargos na instituição nos últimos 5 (cinco) anos.
O trabalho produzido, caso sejam realmente constatados prejuízos,
será encaminhado ao Poder Judiciário, precedido de vistas do Ministério Público
Estadual, a fim de subsidiar a devida Ação de Responsabilidade Civil, tendo como
sujeitos passivos aqueles ex-administradores, cujos patrimônios responderão
pelos prejuízos causados que excederem os recursos próprios da instituição
submetida ao regime especial.
Tais regimes excepcionais são disciplinados, no caso dos dois
primeiros, pela Lei 6.024/74 e, no caso do último dos acima mencionados, qual
seja, o Regime de Administração Especial Temporária (RAET), pelo Decreto-Lei
2.321/87.
97
2. Poder de polícia da Comissão de Valores Mobiliários
A Comissão de Valores Mobiliários, autarquia em regime especial,
também é entidade integrante do Sistema Monetário Nacional, cabendo-lhe fazer
cumprir as decisões do Conselho Monetário Nacional, no seu âmbito próprio de
atuação, qual seja, o mercado de capitais.
Assim é que a Comissão de Valores Mobiliários, criada pela Lei
6.385/76, foi investida nas competências que lhe são remetidas pelo artigo 4º
daquela norma e que se resumem, relativamente aos valores mobiliários assim
definidos no referido diploma, a zelar pela regularidade das operações
desenvolvidas no recinto da BM&FBOVESPA, de modo a assegurar e zelar pelos
interesses dos investidores nos diversos segmentos operacionais disponíveis e
que se encontram sob sua tutela.
Também lhe cabe agir no sentido de verificar o fiel cumprimento,
pelas sociedades de capital aberto e de seus administradores, do regime jurídico
que lhes é pertinente, conforme estabelecido pela Lei 6.404/76 e legislação
complementar posterior.
A autarquia é dotada, nos termos de sua lei criadora, de poder
normativo infralegal, marcado pela edição, principalmente, de instruções e
deliberações que têm como destinatárias as sociedades de capital aberto, bem
como os seus administradores e demais participantes do mercado de valores
mobiliários, tais como corretoras de valores e investidores.
O eventual descumprimento das normas de sua esfera de
competência, apurado em virtude de denúncias recebidas ou mesmo em razão do
seu regular exercício de fiscalização, poderá resultar na instauração de processos
administrativos de natureza sancionatória.
98
O descumprimento de normas proibitivas de operações que venham
a caracterizar, no segmento do mercado de valores mobiliários, manipulação de
preços, práticas não eqüitativas, criação de condições artificiais de demanda,
oferta ou preço de valores mobiliários ou, ainda, a realização de operações
fraudulentas, virão a configurar ilícitos administrativos próprios da área de atuação
da Comissão de Valores Mobiliários.
Igualmente caracterizam ilícitos daquela espécie o uso de informação
privilegiada, causando assimetria de conhecimento entre os participantes de
mercado, bem como a não publicação de fato relevante por parte de empresas
que têm ações negociadas em bolsa e que possa, de alguma, forma, influenciar
na cotação das ações e nas decisões de compra e venda daqueles valores
mobiliários.
Ainda exemplificativamente, também são ilícitos de natureza
administrativa o exercício abusivo do poder de controle, bem como a falta do
dever de diligência por parte de administradores de sociedades de capital aberto.
Também no âmbito de atuação da Comissão de Valores Mobiliários,
avultam em importância os ilícitos administrativos por desobediência ás regras de
prevenção e combate aos crimes de lavagem de dinheiro, tipificados na Lei nº.
9.613/98.
A esse respeito, foi editada a Instrução CVM Nº 301, de 16 de abril
de 1999, a qual dispõe sobre a identificação, o cadastro, o registro, as operações,
a comunicação, os limites e a responsabilidade administrativa de que tratam os
incisos I e II, do artigo 10, I e II, do art. 11, e os artigos 12 e 13, da Lei 9.613/98,
referente aos crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores.
O referido normativo tem como destinatárias, dentre outras,
as
sociedades corretoras de valores mobiliários, as quais se sujeitam às obrigações
99
nele impostas que, se descumpridas, darão ensejo à propositura de instauração
de processos administrativos sancionatórios.
Quanto verificados ilícitos administrativos em virtude de infração a
dispositivos de sua área de competência e, diante de situações em que se
apresentem claros os elementos de autoria e materialidade, a Comissão de
Valores Mobiliários poderá, de pronto, instaurar o processo administrativo e
formular a acusação que entende cabível, mediante a lavratura do denominado
Termo de Acusação.
Não se fazendo presentes ditos elementos e, portanto, demandando
a realização de necessária apuração e conseqüente instrução probatória, a
Comissão de Valores Mobiliários nomeará, formalmente, Comissão de Inquérito
que procederá às investigações cabíveis, efetuando os exames devidos e ouvindo
as pessoas que possam contribuir para a elucidação dos fatos, sendo que nessa
fase o inquérito será sigiloso.
Concluído o relatório pela Comissão de Inquérito encarregada da
apuração dos fatos, será apresentará proposta no sentido de instaurar ou não o
processo administrativo, a qual será submetida ao colegiado da Comissão de
Valores Mobiliários, que decidirá a respeito.
Decidindo pela instauração do processo administrativo sancionatório,
os intimados serão responsabilizados e chamados a apresentar suas defesas no
prazo legalmente marcado, sendo-lhes então franqueado o acesso aos autos,
garantindo-se o exercício do contraditório e da ampla defesa.
Cumpre assinalar que, contemporaneamente á apresentação de
suas razões de defesa, o acusado poderá requerer a apresentação de Termo de
Compromisso, conforme facultado pelo § 5º, do inciso VIII, do artigo 11, da Lei
6.385/76.
100
Trata-se de acordo firmado entre as partes, de um lado, a Comissão
de Valores Mobiliários e, de outro, o acusado, que equivale à transação, instituto
de uso corrente em sede de direito civil, que provoca a suspensão do processo,
mediante o compromisso de cumprimento de certas condições previstas na lei e
que pode ser discricionariamente aceito ou não pelo órgão regulador de mercado.
A celebração desse Termo de Compromisso não implica confissão
de culpa nem reconhecimento da ilicitude da conduta objeto do processo
administrativo e, via de regra, traduz-se em indenização paga à Comissão de
Valores Mobiliários pelos custos pertinentes ao processo ou, quando for o caso,
em reparação paga àqueles participantes do mercado que eventualmente tenham
sido prejudicados pelo comportamento recriminado.
Uma vez satisfeitas as obrigações assumidas, o processo será
encerrado sem julgamento e, se não cumpridas as condições avençadas, a
Comissão de Valores Mobiliários dará prosseguimento ao processo, na forma da
regulamentação aplicável.
Não ocorrendo a celebração de Termo de Compromisso, em ambas
as espécies de processos administrativos, seja no caso de Termo de Acusação ou
de
processo
administrativo
sancionador
(PAS),
analisadas
as
defesas
apresentadas, será marcada sessão pública de julgamento, na qual, ouvidos os
acusados, pessoalmente ou através de seus representantes, o Colegiado proferirá
sua decisão.
Vale registrar que o procedimento a ser observado nestes processos
administrativos é disciplinado, atualmente, pela Deliberação CVM Nº 538, de 05
de março de 2008.
101
Decidindo a Comissão de Valores Mobiliários pela procedência da
acusação formulada, poderá impor sanções, na conformidade do previsto no artigo
11, da Lei 6.385/76, as quais podem variar desde uma simples advertência até a
suspensão para o exercício de cargos em instituições do sistema, ou inabilitação
para o exercício dos mesmos cargos, pelo prazo máximo de até 20 (vinte) anos,
ou proibição de atuar ou praticar modalidades de operações ou atividades ou,
ainda, cassação da autorização ou registro previsto na lei de regência.
As penalidades de multa, a seu turno, observarão o valor máximo de
R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) ou, quando for o caso, 50% da operação
irregular ou, ainda, 3 (três) vezes o montante da vantagem econômica obtida ou
da perda evitada em decorrência do ilícito.
Seja qual for a decisão proferida pelo colegiado da Comissão de
Valores Mobiliários, o processo, a exemplo do que ocorre naqueles outros
processos administrativos conduzidos pelo Banco Central do Brasil, poderá ser
objeto de recurso ao Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional.
Se absolvido o acusado, terá lugar o devido recurso de ofício, posto
que determina a lei o necessário reexame pela instância administrativa ad quem,
qual seja, o mesmo Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional,
conforme já referido em passagem anterior e, se condenado o administrado,
poderá o mesmo interpor recurso voluntário junto àquele colegiado.
Oportuno mencionar, por um lado, que o recurso de ofício poderá,
como ordinariamente ocorre nos casos da espécie, ser provido pelo Conselho de
Recursos do Sistema Financeiro Nacional que, reformando a decisão a quo,
poderá decidir pela condenação e conseqüente imposição de penalidade.
Também é importante salientar, por outro lado, que não obstante até
o momento não se tenha registro, no caso de recurso voluntário, de nenhuma
102
decisão que redunde em reformatio in pejus, como é ordinário em sede de direito
punitivo, o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, ainda que em
tese, já se manifestou pela possibilidade jurídica de decisão naquele sentido.
Ainda a propósito do conteúdo normativo incidente sobre os
processos administrativos punitivos, sejam os próprios do Banco Central do Brasil
ou mesmo os específicos da Comissão de Valores Mobiliários, vale informar que
Lei 9.784/99, a qual veio a regular o processo administrativo no âmbito da
Administração Pública Federal, é aplicável ás relações formadas em virtude
daqueles processos e têm se prestado a importante função tanto no sentido de
conferir a devida proteção aos direitos dos administrados, quanto na direção de
orientar a Administração Publica no cumprimento de suas finalidades.
A Lei 9.784/99, cujo objeto são aos processos administrativos
genericamente considerados, dos quais aqueles de natureza sancionatória se
constituem em uma de suas espécies, incorporou ao regime jurídicoadministrativo, uma série de princípios aplicáveis àquelas relações, deixando
expressamente marcadas, em seu texto, disposições acerca dos direitos dos
administrados e dos deveres da Administração Pública.
Além disso, tratou também da parte eminentemente processual e
procedimental, divulgando normas sobre competência, forma, lugar e prova dos
atos processuais, bem como regras relativas à instrução dos processos da
espécie.
Assim, muito embora aquela lei estabeleça em suas disposições
finais o seu caráter subsidiário, posto que, conforme determina, os processos
administrativos específicos continuarão regulados por leis próprias, é considerável
o seu campo de incidência, em razão da vacuidade, em muitos casos, daquelas
normas particulares.
103
Também
deve
ser
mencionado
que
àqueles
processos
administrativos cursados no âmbito daquelas duas autarquias já tantas vezes
referidas, aplicam-se princípios originados do Direito Penal, tendo em vista a
proximidade deste com o Direito Administrativo Punitivo, haja vista a natureza
sancionatória de ambas as matérias.
Nessa linha, há uniforme entendimento doutrinário acerca da
submissão dos processos administrativos sancionatórios a pelo menos alguns dos
princípios próprios do Direito Penal, cabendo destacar os relativos à presunção de
inocência, ao in dubio pro reo e à non reformatio in pejus, dentre outros,
104
3. Apontamentos sobre a ausência de sintonia entre teoria e prática
a - quanto à realização do interesse público
Além das anteriores considerações sobre o interesse público como
vetor máximo que deve orientar o exercício da função administrativa,
compreendidas as atividades próprias do denominado poder de polícia, é oportuno
realçar, nos termos em que preconizado por Silvânio Covas e Adriana Laporta
Cardinali, que “sem dúvida, a finalidade última de qualquer ato administrativo deve
ser o interesse público, aquilo que é almejado pela coletividade, e não o interesse
do agente público”.
Aqueles autores se manifestam no sentido de que “o princípio da
finalidade preleciona que o agir da Administração Pública deva atender à
finalidade da lei em sentido formal, em seu caráter genérico e abstrato. Toda lei
visa a um determinado fim público, cuja identificação exsurge de cada caso (...)”.
Complementam afirmando que “a satisfação do interesse público é a
verdadeira finalidade do ordenamento jurídico brasileiro. Em atenção a esse
postulado, extrai-se que a Lei nº 9.784/99, em seu artigo 2º, parágrafo único,
inciso XIII, objetiva a observância, nos processos administrativos, do princípio da
finalidade, ao exigir a “interpretação da norma administrativa da forma que melhor
garanta o atendimento do fim público a que se dirige. Também o inciso II desse
artigo exige o atendimento a fins de interesse geral”.
As alegações nesse sentido refletem a mudança de postura ocorrida
ao longo do processo histórico de formação e de sedimentação do próprio direito
administrativo, na medida em que o seu estudo que, em tempos outros centravase na idéia de poder, teve o seu eixo de pensamento deslocado para a noção de
dever, sempre voltado para a realização do interesse público ou, por outra,
105
concentrado no exato cumprimento de uma finalidade prévia e normativamente
estabelecida.159
No caso do Banco Central do Brasil, a finalidade que deve nortear o
exercício de suas atribuições é a própria higidez das instituições submetidas à sua
supervisão, de modo a propiciar a estabilidade e a solidez do sistema sob sua
égide, como referido na Resolução CMN 1.065/85, buscando preservar os
interesses de depositantes e investidores o que, de resto e de forma ampliada,
representa o próprio interesse público, considerada a importância que assumem
as instituições financeiras no contexto econômico.
Assim, o Banco Central do Brasil, no exercício do poder de polícia,
consoante competência outorgada pela Lei 4.595/64, caso verificados os
pressupostos indicados na Lei 6.024/74 e no Decreto-Lei 2.321/87, pode vir a
decretar, relativamente às instituições sob sua supervisão, os regimes de
intervenção ou de liquidação extrajudicial, disciplinados naquele primeiro
normativo ou, se entender mais conveniente e oportuno, submetê-las ao regime
de administração especial temporária, previsto no último dos normativos acima
referidos.
A sujeição de uma instituição a qualquer dos regimes excepcionais
referidos provoca, como conseqüências do próprio ato administrativo que decretou
a medida, a perda, pelos administradores, do cargo que até então ocupavam e a
indisponibilidade de seus bens e, no que concerne à própria instituição, no caso
de intervenção ou de liquidação extrajudicial, o seu afastamento do segmento em
159
Adilson Abreu Dallari, Os poderes administrativos e as relações jurídico-administrativas, Revista
Trimestral de Direito Público, 24/1998, Malheiros, São Paulo, p. 64: “Note-se a radical mudança de
rumo: relações jurídicas sempre até então estudadas a partir da idéia de poder, passam a ser
examinadas em função de um dever a cumprir, de uma finalidade que deve ser atingida. Essa
finalidade sempre será alguma coisa previamente qualificada pela lei como sendo um interesse
público. O estudo da história do Direito Administrativo é o exame do caminho percorrido desde uma
concepção centrada no poder até o ponto de equilíbrio entre prerrogativas e sujeições, entre os
poderes e os meios e instrumentos de sua contenção, mas, sempre, tendo como norte a satisfação
do interesse público.”
106
que atuava, o que certamente, por via reflexa, vem também atingir aqueles
primeiros.
Tais situações extraordinárias e as suas apontadas conseqüências,
aliadas a outras previstas nos mesmos normativos já aludidos, dada à extrema
gravidade de que se revestem, particularmente pelo fato de aquelas empresas e
pessoas atuarem em segmentos em que a credibilidade é indissociável,
certamente representam a forma mais radical de atuação no exercício do poder de
polícia próprio do Banco Central do Brasil, objetivando restabelecer a normalidade
daqueles mercados e preservar o interesse público subjacente àquele nicho da
economia.
As restrições de direito antes referidas, sejam em relação à empresa,
sejam em relação aos administradores, concretizadas por ocasião da decretação
de regime especial, têm origem ex lege, caracterizando-se, assim, como efeitos
legais que decorrem diretamente das próprias normas disciplinadoras daqueles
institutos.
O mesmo Banco Central do Brasil, no exercício ainda do seu poder
de polícia sobre as mesmas instituições sujeitas à sua supervisão, em outras
situações, de caráter ordinário, e ainda no desempenho das mesmas atribuições
de fiscalização, pode vislumbrar a presença de hipotéticos ilícitos administrativos,
em relação aos quais não constate gravidade suficiente para se erigir em um dos
pressupostos necessários para a adoção de qualquer das medidas extremas já
anteriormente suscitadas.
Nesses casos, poderá decidir, como aventado em momento anterior,
pela instauração de processos administrativos sancionatórios, formulando
acusação aos supostos infratores, os quais terão a oportunidade de exercer o
contraditório, ainda em sede administrativa.
107
Nos procedimentos dessa espécie, sujeitos ao duplo grau de
jurisdição em sede administrativa, caso julgadas procedentes as acusações
formuladas, poderá o órgão regulador de mercado, consoante já explicitado, impor
restrições de direitos de outra espécie, as quais podem flutuar desde uma simples
advertência até à inabilitação de administradores para o exercício de cargo de
direção em empresas submetidas à fiscalização do Banco Central do Brasil, por
período de tempo variável em função da gravidade ínsita aos ilícitos praticados.
No entanto, ocorre ainda e, de maneira até compulsória, casos de
sobreposição das duas formas de atuação anteriormente aludidas, na medida em
que empresas primeiramente submetidas àqueles regimes especiais e que
tiveram, assim como seus administradores, suas esferas de direitos e de
liberdades severamente afetadas e restringidas, virem a ser também acusados,
em processos administrativos sancionatórios instaurados pelo mesmo Banco
Central do Brasil, em momento seguinte e em virtude dos mesmos fatos que
determinaram aquela forma radical de intervenção.
Tais processos administrativos sanconatórios, nos quais aquelas
pessoas são acusadas, invariavelmente são concluídos com a imposição de uma
daquelas outras restrições de direitos acima indicadas, variando, como referido,
desde uma advertência até à inabilitação para o exercício de cargos de direção
em instituições submetidas ao poder de polícia do Banco Central do Brasil.
Essa dupla ou superposta atuação ocorre, em virtude de, como efeito
legal do regime especial então decretado, o Banco Central do Brasil proceder a
inquérito, conforme determina o artigo 41, da Lei 6024/74, designando a
respectiva Comissão de Inquérito, que deverá, nos termos da lei, apurar as causas
que levaram a sociedade àquela situação, verificar a existência de eventuais
prejuízos e, nesse caso, identificar os administradores que exerceram seus cargos
na empresa, nos últimos cinco anos.
108
Encerrados os seus trabalhos, aquela Comissão de Inquérito, ao lado
de outras providências para fins de responsabilização civil dos envolvidos, na
esfera própria, remete cópia de seu relatório ao mesmo Banco Central do Brasil e
este, ordinariamente, conclui pela existência de supostos ilícitos, desta feita de
natureza administrativa, segundo normalmente informa e, assim, procede à
instauração de processos administrativos sancionatórios, como antes asseverado.
Essa rápida síntese desperta a necessidade de reflexão e de
discussão acerca da legitimidade da sobreposição de procedimentos, como
exposto linhas atrás, face ao regime jurídico aplicável ao exercício do poder de
polícia por parte da Administração Pública, particularmente no que se refere ao
correto exercício da competência discricionária que lhe é atribuída naquelas
diferentes situações antes referidas.
Trata-se, na verdade, de verificar se essa atuação repetida da
Administração Pública, impondo penalidades aos mesmos administrados, em
virtude dos mesmos fatos, sob a invocação da discricionariedade que lhe é
outorgada em uma e outra situação, não extrapola os limites do que seria
necessário para o atendimento do interesse público que lhe incumbe perseguir e
que é, como anteriormente ressaltado, a idéia central e orientadora do exercício
da função administrada, em geral, e do próprio poder de polícia, em particular.
É óbvio que naqueles casos em que é adotada, primeiramente,
aquela forma radical de intervenção da Administração Pública na esfera de
interesses privados, essa medida tem como objetivo preservar o interesse público
inerente, na extensão devida e com a urgência requerida.
Também naqueles outros casos em que, posteriormente, são
instaurados processos administrativos punitivos regularmente instaurados pela
Administração Pública, com o objetivo de apurar a existência ou não de ilícitos
administrativos e no curso dos quais é oferecido o direito de defesa aos acusados,
109
também seria o interesse público o móvel que determinaria a atuação da
Administração Pública.
No entanto, o que se coloca em discussão é se, uma vez
implementadas aquelas gravíssimas medidas restritivas de direito impostas pelo
Poder Público, com a submissão das instituições a um regime especial, com todas
as implicações resultantes, ainda se faria presente algum interesse público
residual que viesse a justificar um novo exercício de competência discricionária,
representado pela instauração de processo administrativo sancionatório.
Indaga-se a respeito da regularidade, no plano legal, da imposição
de
uma
e
de
outra
daquelas
espécies
de
sanções
administrativas,
consecutivamente, em relação às mesmas pessoas e em virtude dos mesmos
fatos, tendo presente o regime jurídico que deve nortear a atividade sancionatória
da Administração Pública, no exercício da competência discricionária que lhe
outorgam as normas pertinentes.
Nesse desiderato, naquilo que respeita ao interesse público
expressamente referido na Lei 9.784/99 como limitador das restrições e sanções
impostas pela Administração Pública, como se depreende do seu art. 2º, é
imperioso notar com Fábio Medina Osório160 que “a base de toda a formação
teórica do Direito Administrativo é o conceito de interesse público, razão de ser
dos poderes administrativos, privilégios, sujeições e, conseqüentemente, limites
aos quais estão submetidas as Administrações Públicas”.
Em vista disso, é forçoso concluir que as ponderações lançadas ao
longo desse estudo, especificamente sobre a questão ora abordada, encerram a
idéia de que a Administração Pública deve, quando da execução das
competências que lhe são deferidas pelo ordenamento jurídico, exercer os
160
Direito Administrativo Sancionador, RT, 2000, ps. 39/40.
110
respectivos direitos que lhe são para tanto atribuídos na exata medida do
estritamente necessário para a tutela do interesse público subjacente.
No caso específico do Banco Central do Brasil, as normas que regem
a sua atuação, relativamente às instituições sujeitas ao seu poder de polícia, têm
como escopo tutelar o interesse público representado pelos valores inerentes à
estabilidade e solidez do Sistema Financeiro Nacional e ao resguardo dos
interesses dos investidores e credores, como acentuado no art. 9º, da Lei 4595/64
e na Resolução 1065/85, do Conselho Monetário Nacional.
Dessa forma, o Banco Central do Brasil, no cumprimento de suas
atribuições legais de proceder à fiscalização das instituições por ele autorizadas a
funcionar, exercendo o correlato poder de polícia que lhe é outorgado, busca
realizar o interesse público representado pelos valores antes mencionados. No
curso de seus trabalhos, percebendo que qualquer daqueles valores restou
agredido, tem à sua disposição o devido aparato legal que lhe possibilita agir de
forma repressiva, implementando as medidas que entender cabíveis.
O instrumental normativo que o legislador coloca ao dispor daquele
órgão regulador de mercado prevê desde a possibilidade de instauração de
processos administrativos punitivos, o que pode provocar as espécies de sanções
já antes comentadas, até a decretação de regimes especiais, o que resultará, de
imediato, naquelas outras sanções administrativas ex lege, conforme também já
exposto.
Percebe-se, pois, que dentre as várias condutas possíveis de serem
adotadas pelo Banco Central do Brasil, verificada a não observância da disciplina
legal pertinente, pelas instituições e por pessoas que exerçam a administração
das mesmas, a medida de caráter extremo e, portanto, mais gravosa para ambos,
é a submissão da empresa a regime especial o que, por si só, já é uma sanção
administrativa.
111
Não bastara isso, como decorrência da decretação daquela medida
radical, os administrados têm os seus bens tornados indispoiveis, são afastados
de seus cargos e, diante dos casos de intervenção e de liquidação extrajudicial, a
própria empresa é retirada do mercado em que atuava, restrições estas que, sob
nossa ótica, materializam severíssimas sanções administrativas, como será
adiante demonstrado.
Ora, num quadro com tal formatação, o Banco Central do Brasil, no
exercício do poder de polícia próprio de tais situações, ao eleger e adotar a
solução extrema de decretação de regime especial em relação à instituição
submetida ao seu poder de polícia, já exerceu aquele “poder” na sua máxima
intensidade e, desse modo, já atendeu ao interesse público que lhe incumbia
zelar, já efetuou a tutela dos valores consagrados nas normas pertinentes e, em
assim sendo, já esgotou a sua possibilidade de atuação.
No entanto, em praticamente todos os casos de decretação de
regimes especiais nos quais os relatórios produzidos pelas respectivas Comissões
de Inquérito apontaram a existência de prejuízos, os mesmos foram também
encaminhados ao próprio Banco Central do Brasil para apuração de eventuais
ilícitos administrativos e acabaram resultando na instauração de processos
administrativos sancionatórios, os quais, via de regra, foram concluídos com
imposição de nova e outra penalidade aos ex-administradores. Normalmente, a
pena aplicável nesses casos é a de inabilitação para o exercício de cargos de
direção em instituições sujeitas ao poder de polícia do Banco Central do Brasil.
Um caso emblemático é o relativo ao Banco Econômico S/A,
submetido ao regime de intervenção em 11.08.95, convertido em liquidação
extrajudicial em 09.08.96 e que resultou, por força do relatório produzido pela
Comissão de Inquérito, constituída por ocasião da decretação daquele primeiro
regime especial, na instauração, pelo mesmo Banco Central do Brasil, de 2 (dois)
112
distintos processos administrativos punitivos, de nºs. Pt. 0001026021 e
0001026436.
Esses processo têm por objeto as mesmas operações que foram
apontadas como causa da decretação do regime especial, apresentam como
sujeitos os mesmos ex-administradores daquela instituição e que, portanto, já
sofreram as penalidades ex-ofício decorrentes da decretação do regime especial,
sendo que vários deles também foram punidos, ainda recentemente, em razão
daqueles processos administrativos posteriormente instaurados, com a penalidade
de inabilitação para o exercício de cargos de administradores de instituições
financeiras.
Não bastara isso, aquele mesmo relatório produzido pela já
mencionada Comissão de Inquérito foi também enviado à Comissão de Valores
Mobiliários que, por sua vez, com base naqueles mesmos fatos e operações, de
idêntica natureza, entendeu pela ocorrência de novos ilícitos, desta feita, segundo
as acusações formuladas, infringentes da legislação societária. Diante disso,
instaurou o Inquérito Administrativo CVM Nº 03/96. Esse terceiro processo
administrativo veio a redundar, também, em outras punições a alguns dos
mesmos ex-administradores do Banco Econômico S/A, ainda hoje em regime de
liquidação extrajudicial.
Vale repisar que a decretação de regime especial de que se trata
decorre de competência discricionária outorgada ao Banco Central do Brasil, por
força das disposições contidas na Lei 6.024/74,161 no caso de intervenção ou de
161
“Art. 1º. As instituições financeiras privadas e as públicas não federais, assim como as
cooperativas de crédito, estão sujeitas, nos termos dessa Lei, à intervenção ou liquidação
extrajudicial, em ambos os casos efetuada e decretada pelo Banco Central do Brasil, sem prejuízo
do disposto nos artigos 137 e 138 do Decreto nº. 2627, de 26 de setembro de 1940, ou à falência,
nos termos da legislação vigente.
Art. 2º - Far-se-á intervenção quando se verificarem as seguintes anormalidades nos negócios
sociais da instituição:
I – a entidade sofrer prejuízos, decorrente de má administração, que sujeite a risco os seus
credores;
113
liquidação extrajudicial e no DL 2.321/87,162 no caso de submissão de instituição
ao Regime de Administração Especial Temporária.
II – forem verificadas reiteradas infrações a dispositivos da legislação bancária não regularizadas
após as determinações do Banco Central do Brasil, no uso das suas atribuições de fiscalização;
III – na hipótese de ocorrer qualquer dos fatos mencionados nos artigos 1º e 2º do Decreto nº
7661, de 21 de junho de 1945 (Lei de Falências), houver possibilidade de evitar-se a liquidação
extrajudicial.
Art. 3º - A intervenção será decretada ex officio pelo Banco Central do Brasil, ou por solicitação dos
administradores da instituição – se o respectivo estatuto lhes conferir esta competência – com
indicação das causas do pedido, sem prejuízo da responsabilidade civil e criminal em que
incorrerem os mesmos administradores, pela indicação falsa ou dolosa.
(...)
Art. 15 – Decretar-se-á liquidação extrajudicial da instituição financeira:
I – ex officio:
a) em razão de ocorrências que comprometam a sua situação econômica ou financeira,
especialmente quando deixar de satisfazer, com pontualidade, seus compromissos ou quando se
caracterizar qualquer dos motivos que autorizem a declaração de falência;
b) quando a administração violar gravemente as normas legais e estatutárias que disciplinam a
atividade da instituição bem como as determinações do Conselho Monetário Nacional ou do Banco
Central do Brasil, no uso de suas atribuições legais;
c) quando a instituição sofrer prejuízo que sujeite a risco anormal seus credores quirografários;
d) quando, cassada a autorização para funcionar, a instituição não iniciar, nos 90 (noventa) dias
seguintes, sua liquidação ordinária, ou quando, iniciada esta, verificar o Banco Central do Brasil
que a morosidade de sua administração pode acarretar prejuízos para os credores;
II – a requerimento dos administradores da instituição – se o respectivo estatuto social lhes conferir
essa competência – ou por proposta do interventor, expostos circunstanciadamente os motivos
justificadores da medida.
§ 1º. O Banco Central do Brasil decidirá sobre a gravidade dos fatos determinantes da liquidação
extrajudicial, considerando as repercussões deste sobre os interesses dos mercados financeiro e
de capitais e, poderá, em lugar da liquidação, efetuar a intervenção, se julgar essa medida
suficiente para a normalização dos negócios da instituição e preservação daqueles interesses.”
162
“Art. 1º. O Banco Central do Brasil poderá decretar regime de administração especial
temporária, na forma regulada por esse decreto-lei, nas instituições financeiras privadas e públicas
não federais, autorizadas a funcionar nos termos da Lei nº. 4.595, de 31 de dezembro de 1964,
quando verificadas:
a) prática reiterada de operações contrárias às diretrizes de política econômica ou financeira
traçadas em lei federal;
b) existência de passivo a descoberto;
c) descumprimento das normas referentes à conta de Reservas Bancárias mantida no Banco
Central do Brasil;
d) gestão temerária ou fraudulenta de seus administradores;
e) ocorrência de qualquer das situações descritas n o artigo 2º, da Lei 6.024, de 13 de março de
1974.
Parágrafo único. A duração da administração especial fixada no ato que a decretar, podendo ser
prorrogada, se absolutamente necessário, por período não superior ao primeiro.
(...)
Art. 3º. A administração especial temporária será executada por um conselho diretor, nomeado
pelo Banco Central do Brasil, com plenos poderes de gestão, constituído de tantos membros
quantos julgados necessários para a condução dos negócios sociais.”
114
Naquilo que se refere à instauração e condução de processos
administrativos punitivos por parte do Banco Central do Brasil, cabe informar que a
correspondente outorga de competência discricionária encontra fundamento nas
disposições da Lei 4.595/64163 e na Resolução CMN 1065/86.164
Assim passados os fatos, confrontados com as normas que se lhes
aplicam, não encontra qualquer justificativa plausível e é desprovida do necessário
amparo legal que venha o órgão regulador, após haver adotado aquela forma
extrema de invasão, ainda que legal, na esfera de direitos dos administrados,
pretender, com base nos mesmos fatos, exercer novamente o seu poder de
polícia, instaurando processos administrativos sancionatórios em relação às
163
“Art. 9º. Compete ao Banco Central do Brasil cumprir e fazer cumprir as disposições que lhe são
atribuídas pela legislação em vigor e as normas expedidas pelo Conselho Monetário Nacional.
Art. 10. Compete privativamente ao Banco Central do Brasil:
(...)
VIII – exercer a fiscalização das instituições financeiras e aplicar as penalidades previstas
(...).
Art. 44. As infrações aos dispositivos dessa Lei sujeitam as instituições financeiras, seus
diretores,membros de conselho de administrativos, fiscais e semelhantes às seguintes
penalidades, sem prejuízo de outras estabelecidas na legislação vigente.”
164
“I – Baixar o anexo Regulamento de aplicação de penalidades às instituições financeiras, seus
administradores, membros de conselhos consultivos, fiscais e semelhantes, gerentes e outras
pessoas que infrinjam as disposições das Leis n. 4.595, de 31.12.64, 4.728, de 14.07.65 e 4.829,
de 05.11.65, bem como de outras normas legais ou regulamentares aplicáveis.
(...)
4.1.1.
1. As disposições deste capítulo regem a ação fiscalizadora do Banco Central, exercida no âmbito
de sua competência legal e regulamentar, determinam o seu alcance, objetivo e atuação,
prescrevem penalidades e medidas aplicáveis a pessoas físicas e jurídicas infratoras, bem como
disciplinam os procedimentos e processos administrativos.
2. A ação fiscalizadora e controladora do Banco Central tem por objetivos principais a estabilidade
e a solidez do Sistema sob sua égide, o aperfeiçoamento dos instrumentos financeiros e das
instituições e o resguardo dos interesses dos investidores e credores.
3. Para atingir esses objetivos, a atuação do Banco Central compreende os seguintes principais
grupos de atividades:
a) acompanhamento da situação econômico-financeira das instituições e dos grupos financeiros;
b) vigilância permanente dos mercados financeiro, cambial e de capitais, bem como das pessoas
físicas e jurídicas que, direta ou indiretamente, neles interfiram, ressalvada a competência da
Comissão de Valores Mobiliários; e
c) verificação dos procedimentos adotados pelas instituições, a fim de fazer cumprir as normas e
regulamentos baixados pelo Conselho Monetário Nacional e pelo Banco Central e a legislação
vigente.
4. A atuação do Banco Central rege-se pelos seguintes princípios básicos:
a) por força de sua ação preventiva e orientadora, poderá alertar a pessoa física ou jurídica
fiscalizada para a falta observada, assinalando-se-lhe, se for o caso, prazo razoável para saná-la.”
115
mesmas pessoas, posto que isso vem a se configurar como exorbitante, na
medida em que não resta mais qualquer interesse público a ser realizado.
Vale acrescentar ainda a absoluta inocuidade dessa postura por
parte da Administração Pública, na medida em que qualquer eventual sanção
imposta em virtude dessa segunda forma de atuação será, necessariamente, de
magnitude inferior a quaisquer daquelas ex lege já sofridas pelos administrados
quando da submissão das empresas que administravam a regime especial
decretado pelo Banco Central do Brasil.
Posto isso, resta evidente que na situação descrita, o exercício de
competência discricionária pelo órgão regulador de mercado, no caso o Banco
Central do Brasil do Brasil, situou-se além do que é exigido para a realização do
interesse público marcado pelo legislador e, portanto, sua atuação carece de
legitimidade.
O tema até aqui versado remete à discussão acerca do caráter
discricionário ou vinculado da atividade sancionatória, ou seja, coloca-se a
indagação sobre se diante de um comportamento administrativamente ilícito,
restando caracterizada uma infração administrativa, a Administração pode ou deve
sancionar a conduta reprovável.
Para uma corrente considerável de doutrinadores e que efetivamente
congrega maior número de adeptos, não tem a Administração Pública a
possibilidade de decidir discricionariamente pela imposição de penalidade quando
verificada a ocorrência de uma conduta administrativamente ilícita,
Assim, realizado o pressuposto ou ocorrida a hipótese descrita no
texto legal, segue-se a obrigatoriedade, por parte da Administração Pública, de
fazer incidir o mandamento contido na mesma norma ou em outra, quando for o
caso, não lhe sendo permitido agir mediante o emprego dos critérios de
116
conveniência e oportunidade ou valer-se de qualquer outra justificativa que venha
a resultar na não imposição de penalidade ao infrator.
Nesse grupo coloca-se Celso Antônio Bandeira de Mello,165 ao
asseverar que “registre-se, por último, que, uma vez identificada a ocorrência de
infração administrativa, a autoridade não pode deixar de aplicar a sanção”, e,
ainda, ponderar que “com efeito, há um dever de sancionar, e não uma
possibilidade discricionária de praticar ou não tal ato”.
Ainda segundo aquele autor, “a doutrina brasileira, mesmo em obras
gerais, costuma enfatizar tal fato em relação ao dever disciplinar, invocando o art.
320 do Código Penal, que tipifica a figura da condescendência criminosa, mas o
dever de sancionar tanto existe em relação às infrações internas quanto em
relação às externas”. A única exceção à regra se daria, entende Celso Antônio
Bandeira de Mello, quando diante de hipóteses que autorizariam a aplicação do
denominado “princípio da insignificância”.
De forma diversa, um reduzido contingente de doutrinadores entende
que não se impõe à Administração Pública um dever inarredável de punir com a
pertinente sanção administrativa sempre que ocorrer infração da mesma natureza,
havendo situações, legalmente amparadas, que viriam a autorizar que a
Administração Pública decidisse pela não aplicação de penalidade.
Desse
pequeno
rol
faz
parte
Marcelo
Madureira
Prates,166
esclarecendo que “ao longo do texto temos insistido em dizer, repetindo, aliás, o
que consta no conceito de sanção administrativa por nós proposto, que a
Administração pode, e não que ela deve, infligir a sanção administrativa, mesmo
quando definitivamente verificado o ilícito correspondente”.
165
166
Ob. cit. p. 829/30.
Sanção Administrativa Geral: Anatomia e Autonomia, Almedina, Coimbra, 2005, p. 69/72.
117
Explana o autor que “na fase de apuração do ilícito administrativo, a
Administração poderá, ou melhor, deverá deixar de iniciar o procedimento
sancionador sempre que dispuser de elementos suficientes sobre a infração
cometida e sobre a respectiva sanção aplicável que lhe indiquem, de pronto, a
existência de outros interesses públicos preponderantes sobre o interesse
sancionador, ou, quando menos, a inconveniência de se movimentar o aparelho
administrativo
em função
da
baixa
reprovação
que
merecerá
o
ilícito
concretamente”.
Em continuidade à sua tese, afirma o doutrinador que “mesmo depois
de confirmado o ilícito em todos os seus elementos e de definida a sanção
administrativa aplicável, a Administração poderá progredir para o exame da
oportunidade e da conveniência da imposição de sanção, se observar a existência
de interesses públicos colidentes com o interesse, igualmente público, de
sancionar aquela ação ilícita”.
Conclui o tratadista que “não se trata, repare-se, de absolver uma
ação comprovadamente ilícita, e sim de não aplicar uma sanção formalmente
devida em face da existência e da preponderância de outros interesses públicos
na hipótese”.
Por fim, alerta que “porém, no domínio administrativo sancionador,
essa tolerância há de ter caráter geral, e nunca singular”, pois “a administração
não pode, à face de situações idênticas, ser tolerante em relação a alguns
administrados infratores, enquanto sanciona outros (...)”.
Muito embora seja minoritária a posição que defende a possibilidade
de discricionariedade quanto à decisão de impor sanção e mesmo tendo em conta
o caráter vanguardista da proposta, entendemos ser a mesma dotada de razoável
fundamento jurídico, o que ampara a sua adoção, sendo, ainda, passível de
comprovação concreta.
118
A esse respeito, vale lembrar que no âmbito do mercado financeiro é
relativamente comum a situação em que uma instituição financeira atuante no
sistema, marcada por importante crise de liquidez, dependendo de financiamentos
de outros agentes ou mesmo do próprio regulador, suscite a necessidade de uma
solução de mercado, evitando-se a medida extrema de decretação de regime
especial.
Nesse casos, essa busca por um desfecho que atenda aos diversos
interesses envolvidos, é ordinariamente estimulada, ainda que informalmente, pelo
Banco Central do Brasil e, em muitas ocasiões, uma outra instituição termina por
adquirir o controle acionário daquela que se encontrava em dificuldades para
permanecer atuando no segmento bancário.
Também não é incomum que, passado algum tempo, o Banco
Central do Brasil, em seus trabalhos de fiscalização, detectando ilícitos
administrativos ocorridos ao tempo em que a empresa era administrada pelos
antigos controladores, instaure o respectivo processo administrativo e imponha
sanção à instituição sucessora.
Os processos da espécie, quando alçados à apreciação, em grau de
recurso, ao Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, tinham
reformadas as decisões de primeira instância, absolvendo-se a instituição
financeira sucessora, sempre que se caracterizava o que veio a ser denominado
de “transferência qualificada do controle acionário”.
Essa caracterização demandava a presença de alguns elementos,
tais como o não conhecimento do ilícito pelo adquirente e, portanto, o seu não
apontamento na due diligence efetuada e, também, alguma demonstração da
participação do Banco Central do Brasil como indutor da operação, por considerála de interesse para o sistema financeiro nacional.
119
Por evidente, esse contexto indica a presença de um interesse
público na preservação da atividade empresarial, de modo a resguardar os valores
inerentes ao sistema e promover a necessária garantia aos depositantes e
investidores, afastando a necessidade de intervenção radical da Administração
Pública.
Mais ainda, esse interesse publico seria preponderante em relação
àquele outro representado pelo poder punitivo do Banco Central do Brasil, não se
revelando oportuno ou conveniente que quem concorreu para o atendimento de
um interesse posto pelo Estado viesse a ser punido, posteriormente, em função de
um fato à época desconhecido e praticado por outro.
Essa posição formou jurisprudência no âmbito do Conselho de
Recursos do Sistema Financeiro Nacional e inspirou inúmeras soluções,
genericamente aplicadas, ao longo de vários anos, a todos os administrados que,
indistintamente, se encontrassem naquela mesma situação.
No entanto, aquele Colegiado, ainda recentemente, reviu o
posicionamento que vinha sendo observado e vêm decidindo pela manutenção de
punições impostas pelo Banco Central do Brasil, em casos daquela espécie, sob o
argumento de que não há espaço legal que permita a não aplicação de penalidade
diante de infração devidamente caracterizada.
A linha de argumentação é no sentido de que eventual não
imposição de pena, nesses casos, viria a configurar caso típico de exclusão de
ilicitude não amparada por qualquer disposição legal e, assim, afrontaria o
princípio da legalidade, ao qual a Administração Pública, nos termos da
Constituição vigente, deve estrita observância.
A nosso ver, a posição tomada reflete um acanhado entendimento do
princípio da legalidade, revelando uma interpretação reducionista, na medida em
120
que confina o Direito aos limites da lei em sentido formal, desconsiderando a
integridade do ordenamento jurídico e mesmo do regime jurídico-administrativo,
particularmente quanto aos respectivos princípios gerais.
Isso porque, afora o interesse público prevalecente nessas situações,
como já referido, acreditamos que essa punição desnecessária afronta o próprio
princípio da eficiência, de matriz também constitucional, bem como desatende ao
princípio da razoabilidade estampado na Lei 9.784/99.
121
b - quanto aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade
Segundo José Roberto Pimenta Oliveira, Perelman167 considera que
“a utilização das noções de razoável e de desarrazoado nas teorias jurídicas é
tributária do pensamento de Siches e, como este, vai nelas enxergar um conceito
referencial de toda atividade jurídica: daquela sujeita ao direito privado (civil ou
comercial) até a disciplinada pelo direito público, inclusive a discricionária, e
materializada em atos dos Poderes Executivo, Judicial e, mesmo, Legislativo”.
O mesmo Pimenta de Oliveira,168 em sua científica e bem elaborada
obra sobre o tema, em certa passagem, ao abordar a razoabilidade sob o enfoque
dos limites de atribuição de discricionariedade pelo legislador e de sua
conseqüente sindicabilidade, entende que “em verdade, é o legislador que
viabiliza o adequado controle judicial da atividade administrativa ao discipliná-la
com a densidade necessária e suficiente para operacionalizar o contraste judicial
de sua legitimidade”.
Logo adiante enfatiza que “sem um consistente delineamento
legislativo dos limites materiais da atuação discricionária, restará ao intérprete
autêntico do sistema, titular do controle, valer-se dos parâmetros axiológicos
indicados pelas pautas principiológicas do regime que, todavia, em geral, apenas
vinculam negativamente a atuação administrativa, excluindo soluções que
desconheçam os valores nelas consagrados”.
167
Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo brasileiro,
Malheiros, São Paulo, 2006, p. 130.
168
Ob. cit. p. 158/59: “Há pois o dever legislativo de conformar, em termos substanciais suficientes,
a atividade administrativa, por força do princípio da legalidade e da plena justicialidade da
Administração, em suas dimensões material e formal. A legalidade, formalmente, significa sujeição
da Administração a um quadro normativo prévio ao seu proceder; do ponto de vista material,
significa exigência de que o conteúdo da disciplina da atividade normativa apresente determinada
‘densidade regulatória’. De igual modo, o controle jurisdicional, formalmente, revela a garantia de
acesso à jurisdição, como todos os corolários deste princípio, mas, sob uma vertente material,
vislumbrando a potencialidade material da garantia, a força expansiva de sua carga axiológica
normativa, significa também que na execução da lei se assegure a viabilidade de um controle
jurídico-material efetivo da atuação administrativa. É um limite intrínseco do controle jurídico sobre
que o legislador não tem qualquer disponibilidade.”
122
Em outra passagem, relacionando a razoabilidade ao próprio
exercício da discrição administrativa, o autor169 alerta que “também é necessário
afastar a qualificação da razoabilidade como um dos aspectos que compõem o
designado mérito do ato administrativo”, tendo em vista que “se na época de
Seabra Fagundes, a virtualidade normativa do conceito não se justificava, na
atualidade assimila tal conceito conteúdo de verdadeiro princípio jurídico
delineador e limitador do exercício da discrição, de tal modo que a ausência de
razoabilidade é fonte de invalidade da atuação administrativa, e não mero defeito
de mérito, em um de seus qualificativos, impossível de ser corrigido pelo Poder
Judiciário”.
De acordo com o autor, “a razoabilidade atua como um limite interno
da discricionariedade, no sentido de ser um dos fatores que condicionam a própria
escolha entre os possíveis indiferentes legais, catalogados in abstracto na norma
de competência, impondo a rejeição a certa ou certas alternativas autorizadas pelo
marco
normativo,
em
função
dos
vetores
jurídico-materiais
incidentes
concretamente na atuação administrativa”.
Conclui, sobre este particular aspecto, que “com a razoabilidade,
impõe-se o dever de adequada ponderação, não determinada ponderação, sob
pena de negar a existência da própria discrição enquanto categoria acolhida pelo
Direito. Assim, em regra, serve de veículo impositivo de um cânone que delineará
169
Ob. cit. p. 361/363: “No controle dos conceitos jurídicos indeterminados, os princípios da
razoabilidade e da proporcionalidade são vetores inafastáveis da atividade hermenêutica exigida
na concretização do conceito em cada situação fático-jurídica, visando ao equilíbrio e realização
dos valores jurídicos que buscam operar com sua presença na linguagem normativa. Da mesma
forma, tais princípios são fundamentais no controle da margem de autonomia administrativa
decisória verificada quanto à forma, oportunidade, conveniência e conteúdo da ação no exercício
das competências administrativas. As imposições da razoabilidade são essenciais para o
desenlace do fenômeno da atrofia do poder discricionário em determinada situação. No desenho
fático-normativo do processo de eliminação, reputa-se que a redução do poder de decisão nada
mais representa do que corolário da aplicação do princípio da razoabilidade, que, em caráter
excepcional, interfere na montagem do critério administrativo de atuação da norma, tornando
obrigatória uma única apreciação no caso concreto, em face do conjunto de interesses jurídicos
subjacentes à situação, perante a qual, objetivamente, se verifica a prevalência a determinado
princípio, bem, valor, interesse ou posição jurídico-subjetiva, e, consequentemente, à solução
jurídica que mantiver natural correlação lógica coma irrefutável regra de prevalência concreta”.
123
o iter lógico que a autoridade administrativa deve percorrer para colimar a solução
ótima requerida pelo interesse público, dentro das circunstâncias do caso”.
Situando-se
nos
quadrantes
próprios
do
regime
jurídico-
administrativo, cumpre assinalar que a parcimônia no exercício dos direitos, por
parte da Administração Pública, é expressamente determinada pela Lei 9.784/99,
a qual regula o processo administrativo no âmbito federal, como enunciado no
preâmbulo daquela norma que veio a estabelecer os parâmetros normativos a
serem observados nas relações travadas entre aquela e os administrados em
geral.
A propósito, a expressão processo administrativo, tal como
estampada naquela norma, deve ser tomada na sua acepção lata, englobando
quaisquer ações impulsionadas pelos entes públicos, posto que as mesmas são
ordinariamente autuadas e formalmente conduzidas sob aquele rótulo, o qual se
desdobra
em
diferentes
espécies,
assumindo,
dentre
outras,
natureza
sancionatória, homologatória ou preparatória de atos decisórios finais por parte da
Administração Pública.
Sobre o tema, a lei acima referida veio a estabelecer, no inciso VI, do
parágrafo único, do artigo 2º, que nos processos administrativos serão
observados, entre outros, os critérios de ”adequação entre meios e fins, vedada a
imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas
estritamente necessárias ao atendimento do interesse público”.
Parece aceitável assumir que, ao indicar a necessidade de
adequação entre meios e fins, a lei se reporta aos princípios que estão também
expressos no “caput” de seu artigo 2º, dentre os quais o da razoabilidade, sobre o
124
qual Alberto Martins170 se manifesta entendendo-o como baliza interpretativa e
como meio para mitigar o formalismo do direito.
Certamente,
também
está
ali
implícito
o
171
proporcionalidade, sobre o qual José dos Santos Carvalho Filho
princípio
da
preceitua que,
“para a fiel observância do princípio, nem pode o Estado renunciar ao poder de
impor restrições quando estas se façam necessárias para o atendimento das
demandas da coletividade, nem deve impô-las com gravame para o indivíduo mais
extenso do que reclama o interesse público a ser protegido, sob pena de admitirse o caos no primeiro caso e a tirania e o arbítrio no segundo”.
.
Tecendo comentários a propósito daquele mesmo princípio, Sérgio
Ferraz e Adilson Abreu Dallari,172 na mesma trilha daqueles já mencionados,
asseveram que, “de todo modo, é certo que ele veda a desproporção entre os
meios utilizados para a obtenção de determinados fins. Pode-se dizer, com
segurança, que, por força do princípio da proporcionalidade, não é licito à
Administração Pública valer-se de medidas restritivas ou formular exigência aos
particulares além daquilo que for estritamente necessário para a realização da
finalidade pública almejada”.
Do mesmo teor é a observação de Celso Antônio Bandeira de
173
Mello,
ao professar: “com efeito, o fato de a lei conferir certa liberdade (margem
de discrição) significa que lhe deferiu o encargo de adotar, ante a diversidade de
situações a serem enfrentadas, a providência mais adequada a cada qual delas”.
170
As leis de Processo Administrativo – Lei Federal 9.784/99 e Lei Paulista 10.177/98, Malheiros,
2000, ps. 179/80: “Quanto ao segundo – o Princípio da Razoabilidade – também muito já se disse,
valendo destacar a lição do ilustre Carlos Ari Sundfeld, para quem
a razoabilidade proscreve a
irracionalidade, o absurdo ou a incongruência na aplicação (e sobretudo, na interpretação) das
normas jurídicas. É inválido o ato desajustado dos padrões lógicos’. Parece que, além do caráter
de baliza interpretativa ressaltada acima, pode o Princípio da Razoabilidade ser entendido como o
meio que a Ciência do Direito utiliza para mitigar o necessário formalismo do direito”.
171
Processo Administrativo Federal – Comentários à Lei 9.784/99 de 29/1/1999, Lúmen Júris,
2001, p. 54.
172
Processo Administrativo, Malheiros, 2001, p. 64.
173
Ob. cit. p. 99.
125
Naquilo que toca ao interesse público expressamente referido na Lei
9.784/99 como limitador das restrições e sanções impostas pela Administração
Pública, é imperioso ainda notar com Fábio Medina Osório174 que “a base de toda
a formação teórica do Direito Administrativo é o conceito de interesse público,
razão
de
ser
dos
poderes
administrativos,
privilégios,
sujeições
e,
conseqüentemente, limites aos quais estão submetidas as Administrações
Públicas”.
Em suma, pode-se dizer que os princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade traduzem a exigência de que a realização do interesse público
seja obtida com o mínimo de sacrifício dos interesses individuais, impondo-se à
Administração Pública a necessária adequação entre meios e fins, particularmente
nas situações que envolvem a imposição de restrição de direitos elementares dos
administrados, tais como a propriedade e o exercício de atividades legalmente
permitidas.
Diante desse quadro normativo e doutrinário, é natural concluir que
os dispositivos legais pertinentes e as respectivas ponderações doutrinárias
encerram a idéia de que a Administração Pública deve, quando da execução das
competências que lhe são deferidas pelo ordenamento jurídico, exercer os
correlatos direitos que lhe são para tanto atribuídos na exata medida do
estritamente necessário para a tutela do interesse público subjacente.
Nesse passo, vale informar que a competência conferida à Comissão
de Valores Mobiliários para exercer o seu poder de polícia, relativamente às
pessoas sob sua fiscalização, resulta da disposição contida no inciso V, do art. 9º,
da Lei 6.385/76175 e a possibilidade de impor penalidades aos infratores das
174
Direito Administrativo Sancionador, RT, 2000, os. 39/40.
“V – apurar, mediante processos administrativos, atos ilegais e práticas não eqüitativas de
administradores, membros do conselho fiscal e acionistas de companhias abertas, dos
intermediários e dos demais participantes do mercado.
VI – aplicar aos autores das infrações indicadas no inciso anterior as penalidades previstas no art.
11, sem prejuízo da responsabilidade civil e penal.”
175
126
normas pertinentes à sua área de atuação têm suporte legal no inciso VI, daquele
mesmo dispositivo.
A propósito, vale informar que ainda recentemente, ou seja, no ano
de 2005, houve decisão prolatada pela Comissão de Valores Mobiliários, quando
do julgamento do Processo Administrativo Sancionador CVM Nº. RJ 2005/97, cujo
objeto foi a aquisição, por empresa controlada, de debêntures emitidas por sua
controladora, a preços de mercado, precedida de aprovação pelo Conselho de
Administração da compradora.
A empresa adquirente, nos termos do contratualmente estabelecido,
veio a receber integralmente o valor relativo ao resgate daqueles títulos, sendo
que, posteriormente, o órgão regulador de mercado decidiu instaurar o referido
processo administrativo punitivo contra os conselheiros da controladora.
A acusação formulada pelo ente regulador foi no sentido de que teria
ocorrido, no caso, abuso de poder de controle, por terem os administradores da
controladora permitido que a empresa tivesse “contratado com a controlada em
condições
privilegiadas,
considerando
que
as
garantias
oferecidas
pelo
empréstimo não eram suficientes”, o que caracterizaria infração ao artigo 117, da
lei societária.
No mesmo processo, foram também intimados a apresentar suas
razões de defesa os conselheiros da controlada, sob a acusação de terem
concorrido para o abuso do poder de controle ao aprovar a aquisição dos papéis
pela empresa que administravam “em condições privilegiadas, considerando que
as garantias oferecidas pelo empréstimo não eram suficientes”, o que configuraria
violação à Instrução CVM nº. 323/00.
Quando do julgamento do caso, apreciados os argumentos de
defesa, a relatora, em seu voto vencedor, concluiu que “no caso concreto, a
127
análise dos fatos relatados neste voto – isto é, a concentração de créditos em um
só devedor, a relevância do valor de tais créditos sobre o patrimônio da
Companhia e a proporção de tais créditos diante do patrimônio líquido das
devedoras – já foi suficiente para demonstrar que o cenário que então existia
demandava
uma
conduta
diversa
dos
controladores
e
administradores,
independentemente da análise de resultados posteriores da operação realizada”.
Em vista disso, seguiu-se decisão do Colegiado da Comissão de
Valores Mobiliários aplicando a 4 (quatro) conselheiros da empresa controladora
penas de multa que atingiram a extraordinária importância de R$ 13 milhões e,
mais ainda, com relação a 2 (dois) deles foi imposta, cumulativamente, a pena de
suspensão, por 1 (um) ano, para o exercício de cargo de administrador ou
conselheiro fiscal de companhia aberta, de entidade do sistema de distribuição ou
de outras entidades que dependam de autorização ou registro daquela autarquia.
Vale ressaltar que a multa aplicada, no percentual de 2% (dois por
cento) do valor dos empréstimos, teve como alegado suporte legal o inciso II, do
parágrafo 1º, do art. 11, da Lei 6.385/76, o qual prevê que a multa não excederá a
50% (cinqüenta por cento) do valor da emissão ou operação irregular, ao passo
que a pena de suspensão teve com fundamento o § 3º do mesmo normativo, o
qual estipula que a penalidade em questão será aplicada nos casos de infração
grave, assim definidas por normas da Comissão de Valores Mobiliários.
Relativamente aos conselheiros da controlada, foram os mesmos
penalizados com a suspensão, também por 1 (um) ano, para o exercício de cargo
de administrador ou conselheiro fiscal de companhia aberta, de entidade do
sistema de distribuição ou de outras entidades que dependam de autorização ou
registro na Comissão de Valores Mobiliários, com base no mesmo dispositivo legal
acima referido.
128
Posto isso caberia verificar, com relação à imposição da penalidade
de multa pecuniária, aplicada com suposto respaldo no inciso II, do § 1º, do art.
11, da Lei 6.385/76, se na sua dosimetria foram observados os princípios da
razoabilidade e da proporcionalidade, já que o legislador estabeleceu como limite
máximo o equivalente a 50% (cinqüenta por cento) valor da “emissão ou operação
irregular”.
Não há dúvida de que, nas situações da espécie de que se trata, o
legislador confere ao agente público a possibilidade de eleger, observada a
limitação estabelecida, a graduação da sanção a ser imposta, o que vem a
caracterizar caso típico de competência discricionária.
Porém, o legislador outorga ao agente público “uma certa margem de
apreciação subjetiva, mediante o adequado uso dos critérios de conveniência e
oportunidade”, inclusive quanto à decisão de praticar ou não o ato, como entende
Maria Sylvia Zanella di Pietro.176
Evidentemente, a possibilidade legalmente deferida à Administração
Pública de atuar discricionariamente não a coloca à margem do ordenamento
jurídico, como lembra Gordillo, citado pela autora antes referida, ao lecionar que
“em nenhum momento pode-se pensar atualmente que uma porção da atividade
administrativa possa estar fora ou acima do ordenamento jurídico e é por isso que
se enuncia uma séria de princípios de direito que se constituem em limites à
discricionariedade administrativa”.
A propósito especificamente da graduação da pena, Régis
Fernandes de Oliveira177 aponta que “pode haver discricionariedade no tocante à
176
Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988, Atlas, São Paulo, 2001, p. 10:
“Ocorre, no entanto, que o legislador, não tendo condições de prever e avaliar todas as situações
possíveis, é obrigado a deixar certa margem de liberdade para a Administração apreciar os casos
concretos segundo critérios próprios e escolher, entre várias alternativas, aquela que lhe pareça a
mais adequada para a proteção do interesse público.”
177
Infrações e sanções Administrativas, 3ª ed., RT, São Paulo, 1992,p. 67.
129
graduação da sanção, isto é, o agente administrativo pode optar no grau quando a
lei estabelecer, por exemplo: multa de três a cinco salários mínimos”.
Embora inquestionável a possibilidade enunciada pela norma, a
Administração Publica, quando da quantificação da penalidade, deverá se ater aos
princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, promovendo o ajustamento
entre o ilícito e a sanção, considerando eventual reincidência e a presença de
circunstâncias agravantes ou atenuantes e, mais que isso, buscando o
atendimento do interesse público que lhe cumpre realizar.
Sobre esse aspecto, Daniel Ferreira178 acentua que “em hipóteses
como essa – por óbvio – nem discutimos a possibilidade de eleição, por quem
competente, do grau da (única) sanção aplicável ao caso” e que “o problema dáse, porém, na sua válida quantificação”.
Como adverte Celso Antonio Bandeira de Mello,179 ao discorrer
acerca do princípio da proporcionalidade, “as competências administrativas só
podem ser validamente exercidas na extensão e intensidade proporcionais ao que
seja realmente demandado para o cumprimento da finalidade de interesse público
a que estão atreladas”.
Desse modo, a desproporcionalidade na prática do ato administrativo
vem a caracterizar, em situações como a do presente caso, excesso de punição,
traduzindo-se em efetivo abuso de poder, passível de correção pelo Poder
Judiciário, conforme têm decidido nossos tribunais:
“Execução Fiscal – Auto de Infração – (...) Redução de Multa –
Princípio da Proporcionalidade – (...). 1. A lei deve ser
interpretada, antes de tudo, com bom senso. Se a Lei Delegada
178
179
Ob. cit. p. 166.
Curso de Direito Administrativo, Malheiros, São Paulo, 2003, p. 101.
130
n. 04/62 buscou reprimir o abuso do poder econômico e
proteger a economia popular, é sob esse fundamento que
devem assentar suas hipóteses de incidência. 2. A existência
de uma única lata (...), em meio a centenas de outros produtos,
assim como a circunstância de ser a infratora primária,
conduzem à aplicação do valor reduzido da multa cominada na
sanção, não caracterizando invasão de competência da esfera
administrativa a redução da referida pena, se aplicada com
exorbitância do princípio da legalidade”. (1ª T. REsp. 176.645,
rel. Min. José Delgado, j. 20.8.1998).
Ora, no processo sob comento, a punição proposta pela DiretoraRelatora em seu voto, que foi endossado pelos demais membros do colegiado,
muito embora represente 2% (dois por cento) do valor das debêntures subscritas,
a sua expressão monetária veio a atingir, como já referido, a exorbitante
importância de R$ 13.200.000,00 (treze milhões e duzentos mil reais).
Evidentemente, uma punição dessa magnitude, consideradas as
circunstâncias inerentes ao caso, não se apresenta de modo a guardar qualquer
razoabilidade ou proporcionalidade em relação ao suposto ilícito, no que diz
respeito, inclusive, ao interesse público envolvido e que deve orientar a prática dos
atos administrativos em geral e, particularmente, daqueles de natureza
sancionatória.
Em primeiro lugar, há que ser objeto de ponderação o inquestionável
fato de que a operação que veio a originar a instauração do processo e a
conseqüente punição aos recorrentes não causou sequer um centavo de prejuízo
a quem quer que seja, como reconhecido expressamente pela própria Comissão
de Valores Mobiliários, em certa passagem dos autos.
131
Em segundo lugar, considerando que a empresa compradora das
debêntures, que teria assumido um risco excessivo, recebeu integralmente o valor
de resgate das debêntures adquiridas e, portanto, não sobrou qualquer espaço
legal que justificasse a imposição da penalidade na proporção desmedida em que
isso veio a ocorrer.
Desse modo, a exagerada multa aplicada aos administrados, no caso
exemplificado, apresenta-se em absoluta desconformidade com os parâmetros
legalmente aceitáveis, em face da necessidade de obediência aos princípios da
proporcionalidade e da razoabilidade.
Não bastara a despropositada magnitude da penalidade pecuniária
aplicada, a Administração Pública, no caso a Comissão de Valores Mobiliários,
infligiu também a alguns dos administrados, como referido, outra rigorosa pena,
sobreposta àquela primeira, suspendendo-os do exercício de seus cargos pelo
período de 1 (um) ano.
É também evidente a ilegitimidade dessa cumulativa punição,
valendo aqui as mesmas observações anteriormente feitas a propósito dos limites
impostos ao exercício de competência discricionária, especialmente no que refere
à necessária obediência aos princípios que regem a atuação da Administração
Pública, notadamente aqueles relativos à proporcionalidade e à razoabilidade.
Em aditamento às considerações já desenvolvidas, é oportuno
relembrar que a já referida Lei 9.784/99, estabelece no inciso VI, de seu artigo 2º,
que nos processos da espécie deverá ser observada a “adequação entre meios e
fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior
àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público”.
132
Ao comentar o dispositivo em questão, Sérgio Ferraz e Adilson de
Abreu Dallari180 enfatizam que “o princípio da proporcionalidade foi muito bem
captado pelo legislador federal”, e entendem ainda que “pode-se dizer, com
segurança, que, por força do princípio da proporcionalidade, não é lícito à
Administração Pública valer-se de medidas restritivas ou formular exigências aos
particulares além daquilo que for estritamente necessário para a realização da
finalidade pública almejada”.
No mesmo sentido é o posicionamento de José dos Santos Carvalho
181
Filho
, ao afirmar que “a idéia central do princípio leva em conta o fato de que, se
o Poder Público, de um lado, tem o direito de instituir determinadas restrições à
liberdade e à propriedade dos indivíduos, está impedido, por outro, de exagerar na
dose restritiva se o prejuízo a ser evitado comporta restrição menos gravosa”.
As observações acima feitas, a propósito especificamente da
adequação entre meios e fins que deve nortear os atos dos entres públicos,
particularmente os de caráter punitivo, revelam o despropósito das penalidades
impostas, particularmente no que toda à magnitude e severidade que as
caracteriza.
Diante disso, considerada a situação fática e confrontando-a com as
disposições legais a respeito da matéria, tendo em conta ainda a clara posição
doutrinária sobre o tema, é inevitável concluir pelo destempero da decisão
adotada, que ignorou por completo os parâmetros legais estabelecidos no que
respeita aos limites inerentes ao exercício de competência discricionária, impondo
penalidades em medida e extensão bastante superiores ao demandado e que, por
isso, não encontram respaldo no regime jurídico-administrativo.
180
Processo Administrativo, Malheiros, São Paulo, 2001, p. 64.
Processo Administrativo Federal, Comentários à Lei 9.784, de 29.1.1999, Lúmen Júris, Rio de
Janeiro, 2001, p. 54.
181
133
c - quanto ao princípio da legalidade e à aplicação de conceitos jurídicos
indeterminados
É bastante comum a instauração, pelo Banco Central do Brasil, de
processos administrativos sancionatórios formulando acusação, dirigida contra os
administradores de instituições financeiras, no sentido de que os mesmos teriam
efetuado, dolosa ou culposamente, má gestão das empresas que administram.
Normalmente, os respectivos processos administrativos têm como
objeto operações de crédito, cujos contratos, conforme ordinariamente aponta o
órgão regulador, acabaram sendo celebrados sem as cautelas devidas, posto que
não teriam sido observados os critérios de garantia, seletividade e liquidez e que,
por isso, resultaram em inadimplemento por parte dos respectivos devedores,
causando prejuízos às instituições financeiras.
Muitas vezes, Independentemente da magnitude dessas operações e
de seu do impacto relativamente ao patrimônio das instituições financeiras
envolvidas, o Banco Central do Brasil considera que a conduta observada pelos
administradores viria a caracterizar a denominada “infração grave na condução
dos negócios de interesse da sociedade”.
Em vista disso, conclui pela ocorrência de violação ao contido no §
4º, do art. 44, da Lei 4.595/64,182 o qual, no equivocado entendimento daquela
182
“Art. 44 – As infrações aos dispositivos desta Lei sujeitam as instituições financeiras, seus
diretores, membros de conselhos administrativos, (...), às seguintes penalidades, sem prejuízo de
outras estabelecidas na legislação vigente:
I – advertência;
II – multa pecuniária variável;
III – suspensão do exercício de cargos;
IV – inabilitação temporária ou permanente para o exercício de cargos de direção na administração
ou gerência em instituições financeiras;
V – cassação da autorização de funcionamento das instituições financeiras públicas, exceto as
federais, ou privadas;
VI – detenção, nos termos do § 7º deste artigo;
VII – reclusão, nos termos dos artigos 34 e 38, desta Lei.
134
autarquia,
é
considerado
como
dispositivo
que
tipifica
comportamento
administrativamente ilícito.
É oportuno registrar que é de largo domínio a idéia, aparentemente
singela, de que, no dizer de Seabra Fagundes, cumpre à Administração Pública
aplicar a lei de ofício, o que vem a representar o cânone máximo do Direito
Administrativo, o qual se presta, essencialmente, a estabelecer o balizamento
legal da atividade estatal, em face do conjunto dos interesses privados,
particularmente quando diante de relações de sujeição do indivíduo em
contraposição ao Estado.
É exatamente em virtude da extrema importância conferida a essa
questão que o princípio da legalidade foi alçado ao nível constitucional, surgindo
estampado expressamente no art. 37 da Carta Magna, o qual determina a sua
indispensável observância pela Administração Pública no desenrolar de quaisquer
das suas atribuições legais.
A referência à lei no texto constitucional é de ser entendida no seu
sentido amplo, significando que deve a Administração Pública, sobretudo, atuar
conforme o Direito e, ao exercer as competências que lhe são traçadas pelo
ordenamento jurídico, aplicando a lei de ofício, deve fazê-lo de maneira não
abusiva, fruindo moderadamente do direito de que é titular, sob pena de sua
atuação não encontrar correspondência com a legalidade exigida.
Cabe considerar, por um lado, que aquela norma inserida no art. 187,
da Parte Geral, do vigente Código Civil, inquestionavelmente tem como
destinatária também a Administração Pública, como sujeito de direito que
cometerá ato ilícito se quando do seu exercício exceder “manifestamente os
(...)
§ 4º - As penas referidas nos incisos II, III e IV deste artigo serão aplicadas quando forem
verificadas infrações graves na condução dos interesses da instituição financeira ou quando da
reincidência específica, devidamente caracterizada em transgressões anteriormente punidas com
multa.”
135
limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons
costumes”.183
Nessa passagem, é oportuno atentar que nossa vigente constituição,
de forma inaugural, trouxe para o seu conteúdo os balizamentos que devem
orientar a Administração Pública na condução de processos administrativos e,
como frisa Odete Medauar, “a Constituição de 1988 contém preceito expresso e
direto para o processo administrativo em geral”.
Aduz a autora que tal postura do legislador constitucional “disciplina,
por
conseguinte,
atividades
da
Administração,
circunscrevendo
o
poder
discricionário”, e que isso “traz nova ordem de certeza e garantia nas relações
entre Administração e administrados, um dos pontos principais das preocupações
atuais do direito administrativo”.
Isso resulta da própria conformação legal imanente ao Estado de
Direito, a qual submete o aparelho estatal à plena submissão ao princípio da
legalidade, entendido este, como leciona Eros Roberto Grau184, “como regra de
conteúdo da atividade da Administração” o que, segundo o autor, promove “o
deslocamento do ponto de sustentação do poder de polícia de uma ‘natural e
imanente’ competência da Administração para o que tenho referido, neste texto,
como ‘bloco da legalidade’.”
Sustenta aquele doutrinador que “o poder de polícia, pois, enquanto
função administrativa, como toda ela, é de ser entendido, como dever-poder, como
atividade sub-legal” e que, “por isso mesmo, de outra parte, parece-me
equivocada a alusão a ele como faculdade discricionária”.
183
A processualidade no Direito Administrativo, RT, p. 73/74: “Sob outro aspecto pode se associar
processo administrativo e Constituição: o processo administrativo representa um dos meios pelos
quais, na atividade administrativa, se concretizam princípios e normas constitucionais; significa,
portanto, um núcleo que abriga regras substanciais da atuação administrativa e do ordenamento,
de modo conforme aos princípios constitucionais”.
184
Poder de Polícia: Função administrativa e princípio da legalidade: o chamado direito alternativo,
Revista Trimestral de Direito Público 1, p. 95/96.
136
No que se refere à discricionariedade eventualmente resultante do
exercício daquela espécie de função administrativa, Eros Roberto Grau entende
que “à administração não pertinem funções discricionárias”, posto que “há, sim,
atos em que ela pode exercitar margem de discricionariedade e atos a respeito
dos quais a atividade administrativa é totalmente vinculada”.
Assevera o ministro que o “poder de polícia consubstancia atividade
sub-legal, função administrativa, dever-poder, e que a Administração, pois, no seu
exercício, está abrangida por um vínculo imposto à sua vontade (dever)” e que
“deve exercitá-lo prestando devido acatamento à legalidade, regra de conteúdo de
sua atuação. Ou não deve – isto é, não pode – exercitá-lo”.
Conclui o autor ponderando que “se o caso de dever exercitá-lo – isto
é, se houver norma dispondo neste sentido – pode, ao fazê-lo, fazer tudo quanto
deva fazer, mas apenas isso, nada mais”, e que “não pode fazer mais do que deve
fazer”.
Segundo Carlos Ari Sundfeld,185 “inexiste poder para a Administração
Pública que não seja concedido pela lei: o que ela não concede expressamente,
nega-lhe implicitamente” e “por isso, seus agentes não dispõem de liberdade –
existente apenas para os indivíduos considerados como tais – mas de
competências, hauridas e limitadas na lei”.
Registra ainda Sundfeld, logo a seguir, que “a ligação da
Administração Pública com a lei é, portanto, extensa e inafastável, podendo ser
resumida como segue: a) seus atos não podem contrariar, implícita ou
explicitamente, a letra, o espírito ou a finalidade da lei; b) a Administração não
pode agir quando a lei não autoriza expressamente, pelo que nada pode exigir ou
vedar aos particulares que não esteja previamente imposto nela”.
185
Direito Administrativo Ordenador, Malheiros, São Paulo, 1997, 1ª ed., 3ª. tiragem, p. 29/30.
137
Abordando a questão sob um ângulo ínsito aos processos
administrativos sancionatórios, Rafael Munhoz de Mello186 anota que, “além da
necessária previsão em lei tanto da infração como da sanção (princípio da
legalidade), é preciso que haja na lei formal uma completa descrição da situação
de fato que autoriza o exercício da competência punitiva, restringindo ao máximo o
campo da discricionariedade administrativa (...)”.
Ainda de acordo com Munhoz, “os três princípios – lex scripta, lex
certa e lex praevia – estão intimamente relacionados: a sanção administrativa só
será validamente aplicada se estiver prevista em lei formal anterior ao fato, que
descreve com clareza a conduta ilícita e a própria medida punitiva”.
No mesmo diapasão, tratando do princípio da tipicidade, o qual
decorre do próprio princípio da legalidade, Nelson Eizirik187 leciona que “(...) da
mesma forma que ocorre no direito penal, também no contexto do direito
administrativo sancionador é necessário, além da lex praevia (princípio da
legalidade ou reserva legal), também a lex certa (princípio da tipicidade), de vez
que para que alguém seja punido é indispensável que tenha o prévio
conhecimento da proibição da prática de determinada conduta”.
Conforme o doutrinador, “o princípio da legalidade, garantia basilar
do Estado Democrático de Direito, destina-se a resguardar a liberdade e os
direitos do cidadão frente à atuação arbitrária do Poder Publico”, sendo que “o
princípio é objeto de dupla menção constitucional”, já que “prescreve a
Constituição, primeiramente, que ‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de
fazer alguma coisa senão em virtude de lei’ (...), e também que a Administração,
por se encontrar sujeita ao referido princípio, apenas poderá proceder quando e
conforme autorizada pelo ordenamento jurídico vigente (Constituição Federal, art.
37, caput)”.
186
Princípios Constitucionais de Direito Administrativo Sancionador, As sanções administrativas à
luz da Constituição Federal de 1988, Malheiros, São Paulo, 2007, p. 119.
187
Ob. cit. p. 279 e 284.
138
Nessa mesma senda, Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari188
afirmam que “o princípio da legalidade, expressamente previsto no art. 37 da
Constituição Federal, significa que a administração pública é uma atividade que se
desenvolve debaixo da lei, na forma da lei, nos limites da lei e para atingir fins
assinalados pela lei”. Advertem que “entenda-se por ‘lei’ tanto uma específica
modalidade de ato normativo quanto o sistema jurídico como um todo,
compreendendo, evidentemente, a Constituição Federal”.
Frisam os autores189 que “é sempre necessária a previsão legislativa
como condição de validade de uma atuação administrativa: mas isso, porém, não
e suficiente”, posto entenderem que “não basta a existência de uma previsão geral
e abstrata: é essencial que, no caso concreto, tenham efetivamente acontecido os
fatos aos quais a lei estipulou uma consequência”.
Ressaltam
os
doutrinadores
que
“essas
considerações
são
especialmente valiosas no caso de atos praticados no curso ou na decisão do
processo administrativo por autoridade investida de competência discricionária”,
na medida em que, conforme explicitam, “está totalmente superado o
entendimento segundo o qual a discricionariedade que a lei confere ao agente
legitima qualquer conduta e – pior que isso – impede o exame pelo Poder
Judiciário”.
188
Processo Administrativo, Malheiros, São Paulo, 2001, p. 55/6.
Silvana Bussab Endres. A imprescindibilidade da motivação do ato administrativo em face do
princípio da legalidade, in Princípios Informadores do Direito Administrativo, p. 212: “A doutrina
assim enfocou essa questão: ‘Sendo assim, os atos administrativos encontram-se jungidos ao
disposto na lei que prevê sua edição, só podendo ser editados na hipótese de ocorrerem no plano
fático as circunstâncias que a própria lei estabelece como necessárias ao exercício da
competência atribuída. Assim, de um lado, o ato administrativo para ser válido deve apoiar-se
numa disposição legal que o preveja e, ao mesmo tempo, deverá ser emanado apenas e tão
somente se a situação de fato concretamente verificada for aquela que a própria lei contempla
como autorizadora da sua emanação. ‘Todo ato administrativo, para ser válido, deve apoiar-se
numa dupla demonstração:
a) de existência de lei autorizadora da sua emanação: o denominado motivo legal; e,
b) da verificação concreta da situação fática para a qual a lei previu o cabimento daquele ato: o
denominado motivo de fato’.”
189
139
A propósito, deve ser registrado que, da simples leitura do dispositivo
legal acima reproduzido (art. 44, da Lei 4.595/64), resta cabalmente evidenciado
que os mesmos não descrevem, de forma alguma e, como exigido, nenhum fato
típico, não se erigindo, assim, em preceitos primários incriminadores, de modo a
possibilitar que sejam cotejados com uma ação ou omissão humana, para fins de
verificação de eventual ilicitude.
O caput daquele artigo simplesmente enuncia as penalidades que a
seguir enumera, a serem aplicadas caso verificadas infrações aos seus
dispositivos ou a normas infralegais dele derivadas, ao passo que o seu parágrafo
4º tem a natureza de agravante genérico, prevendo a imposição de penas de
maior rigor, caso materializadas as situações que expressamente menciona.
Importante notar que também nossos tribunais, ao se manifestarem
especificamente a respeito dessa questão, revelam absoluta harmonia com o
posicionamento doutrinário, concluindo pela atipicidade da norma sob exame.
“II – DO MÉRITO
No mérito, com razão a parte autora.
(...)
Repita-se, mais um vez, que a descrição pormenorizada de
qualquer penalidade deve estar expressa em lei. Nesse sentido,
tendo em vista que o art. 44, § 4° da Lei 4595/64 n ão descreve
os fatos tidos pela parte ré como ilícitos, não existe
embasamento legal para a penalidade combatida nos autos,
devendo esta ser anulada, portanto.
Conforme já decidiu o E. Tribunal Regional Federal da 4ª
Região:
“No direito penal não há crime sem lei anterior que o defina,
nem pena sem prévia cominação legal. O mesmo princípio da
legalidade é aplicável no Direito Administrativo. Não há infração
140
administrativa sem que a descrição da infração e sua pena
estejam previstas em lei. Não estando o fato subsumido no tipo
descrito na lei, o ato é atípico e impunível no âmbito
administrativo”. (5ª Turma, Autos n°89.0405127-4, j .29.08.1996,
DJU 16.10.1996, p. 78726, Relator Juiz João Surreaux
Chagas).
Sobre o tema, Silvânio Covas e Adriana Laporta Cardinali190
informam que “no Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, grande
discussão rodeia o conceito de ‘infração grave’ na condução dos interesses da
instituição financeira, que consta da Lei 4.595/64, dado que muitas das sanções
aplicadas pelo Banco Central do Brasil se fundamentam no cometimento dessa
conduta, dotada de amplitude em sua definição”.
Aduzem que “em algumas oportunidades tem havido manifestação
no sentido de que a sanção administrativa decorrente de infração grave, ainda que
embasada em conceito genérico, é admissível desde que, na motivação do ato
administrativo, seja possível aferir o correto enquadramento da falta e a adequada
dosagem da pena”.
Sustentam aqueles autores, com a nossa inteira concordância, que
“para a aplicação da penalidade nos termos do art. 44, § 4º, da Lei 4.595/64 é
necessária a exteriorização dos motivos da decisão da autarquia, com a indicação
dos preceitos legais violados, o que deve ocorrer, inclusive, já na intimação”.
Isso porque, segundo também entendem, “se a conduta não é
vedada por lei, não há que se falar em infração grave”, pois “é o que dispõe o
Decreto-Lei nº 448/69, cujo objeto é aplicação de penalidades às instituições
financeiras, às sociedades e empresas integrantes do sistema de distribuição de
títulos ou valores mobiliários e aos seus agentes autônomos (...)”.
190
Ob. cit. p. 141.
141
De acordo aos mesmos autores, “não é correto o apenamento do
administrado, quando da inexistência de norma violada, ou melhor, quando a
conduta praticada, o fato, não se encontra proibido no ordenamento jurídico
vigente. Essa conclusão decorre não só do princípio da motivação, mas também
do próprio princípio constitucional da legalidade, inserto no art. 5º, inciso II”.
Concluem
ponderando,
com
absoluta
pertinência,
que
“o
enquadramento da conduta como falta grave é de competência administrativa,
tratando-se de atividade discricionária, mas não arbitrária, a ser exercida nos
estritos limites da lei”.
Naquilo que respeita especificamente à discussão a respeito da
caracterização de determinada conduta como infração grave, bem ilustra a
questão o processo administrativo punitivo Pt. nº. 0601347264, instaurado pelo
Banco Central do Brasil, no qual os administradores de instituição financeira são
acusados de “deferir sistematicamente, operações de crédito sem a observância
dos princípios de seletividade, garantia, liquidez e diversificação de riscos, em
desacordo com as práticas de boa gestão e segurança operacional, o que
caracteriza infração de natureza grave”, o que, segundo a acusação formulada,
viria a caracterizar violação ao dispositivo legal acima referido e reproduzido.
Acerca da correta utilização do conceito indeterminado “infração
grave”, deve ser observado que o DL 448/69 concede a autorização legal ao
Banco Central do Brasil para caracterizar uma determinada infração como de
natureza grave, porém estabelecendo os requisitos ou condições que devem ser
observados para que um apontado ilícito administrativo venha a ser considerado
como uma falta grave.
Assim, aquela norma estabelece, em seu artigo 1º, que “o
descumprimento
de normas
legais ou regulamentares pelas
instituições
financeiras, sociedade e empresas integrantes do sistema de distribuição de
142
títulos e valores mobiliários, ou pelos seus agentes autônomos, contribuindo para
gerar indisciplina ou para afetar a normalidade do mercado financeiro e de capitais
será por decisão do Banco Central do Brasil, considerado falta grave e por ele
punido com inabilitação temporária (...)”.
O preceito legal acima transcrito não deixa qualquer margem a
dúvidas no que se refere às condições exigidas para a caracterização da chamada
infração grave, na medida em que expressamente exige a presença de elementos
relacionados à conduta tida como ilícita no sentido de que a mesma tenha
contribuído para “gerar indisciplina ou para afetar a normalidade do mercado
financeiro e de capitais”.
Afora isso, necessário também se faz que a autoridade administrativa
promova a devida motivação do ato acusatório que veio a praticar, demonstrando
a ocorrência, no mundo fenomênico, daquelas circunstâncias mencionadas no
dispositivo legal antes referido.
No entanto, não foi isso o que ocorreu no caso amostrado e, via de
regra, em todos dessa natureza, nos quais a Administração Pública não se
preocupa em evidenciar que as condutas pretensamente ilícitas tenham sido de
alguma forma exteriorizadas, de modo a contaminar o mercado financeiro ou de
capitais.
Assim, muito embora referidas condutas tenham seus eventuais
efeitos restritos ao âmbito interno da própria instituição financeira, sem que exista
a mínima comprovação nos autos em sentido contrário, acabam por ensejar, ao
arrepio da lei, a instauração de processos administrativos e a conseqüente
punição dos administrados sob a acusação de haverem praticado infração de
natureza grave, cuja pena prevista é a inabilitação para o exercício de cargos em
instituições financeiras.
143
Assim se passa na medida em que, nesses casos, a Administração
Publica, ou seja, o Banco Central do Brasil, de forma equivocada e a pretexto de
exercício de competência discricionária, no caso, de forma ilegítima, entender
estar autorizada a conferir concretude ao conceito jurídico indeterminado
veiculado no normativo, qualificando como graves determinados comportamentos,
de forma absolutamente dissociada do direito posto.
144
d - quanto ao princípio da presunção de inocência
Estabelece a Constituição Federal, em seu artigo 5º. Inciso LVII, que
“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal
condenatória”, preceito este que concretiza o princípio da presunção de inocência
no campo específico do direito penal, mas que tem sido transportado, com ampla
concordância doutrinária, para quaisquer processos de natureza sancionatória,191
A propósito, vale ressaltar que tanto a abordagem doutrinária do
princípio, quanto a sua invocação como vigoroso argumento de defesa ocorrem,
ordinariamente, tendo como pressuposto um processo daquela espécie já
instaurado e em pleno curso na instância própria.192
No entanto, o acurado exame do princípio conduz a uma necessária
ampliação do seu espectro de incidência, já que o mesmo comporta diferentes
facetas que vêm a lhe conferir variado conteúdo e a demandar sua aplicação em
situações outras que não unicamente àquela acima referida, sob pena de não vir a
se materializar a garantia constitucionalmente assegurada, na sua devida
extensão.193
191
Daniel Ferreira. ob. cit. p. 119: “Reportando ao direito administrativo sancionador, significa dizer
que se impõe à Administração somente ao final de regular processo, inclusive após esgotada a via
recursal reconhecer, como tal, o infrator. Antes disso só haverá um juízo de probabilidade fática e,
no máximo, uma presunção de veracidade acerca do fato que serviu como suporte para a edição
de um auto de infração, não sendo constitucionalmente de se admitir imediata imposição de
sanção.”
192
Silvânio Covas e Adriana Laporta Cardinali. ob. cit. p. 122: “Trata-se de um dos pilares do
Estado de Direito, segundo o qual há uma presunção juris tantum da não culpabilidade daqueles
que figurem como réus nos processos penais condenatórios. A mera existência do processo não
torna o réu culpado, pelo contrário, o seu ‘estado de inocência’ permanece até que transitada em
julgado a sentença penal condenatória, a única que pode afastar essa presunção.”
José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, 27ª ed., Malheiros, São Paulo,
2006, p. 441: “Garantias da presunção de inocência, segundo as quais ninguém será considerado
culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória (LVII) (...); a garantia de
inocência e de que ninguém deve sofrer sanção sem culpa é que fundamenta a prescrição do
inciso LXXV, segundo o qual ‘o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o
que ficar preso além do tempo fixado na sentença’.”
193
Derecho Administrativo Sancionador, Alejandro Nieto, Cuarta Edición totalmente reformada,
Tecnos, Madrid, 2005.
145
Vale dizer que uma das conseqüências mais importantes do princípio
da presunção de inocência diz respeito à distribuição do ônus da prova, o qual,
nos processos da espécie, conduzidos pelos órgãos reguladores de mercado
tratados nesse trabalho compete, sempre, à autoridade administrativa que exerce
o poder de polícia.
Essa questão está diretamente relacionada à exigência de justa
causa quando da formulação de acusação aos administrados, inserindo-se dentre
os amplos direitos constitucionais que lhes são garantidos, no sentido de que não
venham os mesmos a ser indevidamente indiciados ou denunciados quando não
se revelem presentes os elementos minimamente necessários para tanto.194
Tais garantias, ordinariamente invocadas nos domínios do Direito
Penal devem, sob pena de manifesta ilegalidade, serem observadas no contexto
do Direito Administrativo Sancionatório, na medida em que a falta das condições
exigidas pela lei vêm a determinar a rejeição da intimação ou acusação em
processos administrativos punitivos, sempre que não sejam agregados aos autos
informações ou documentos que possam minimamente fundamentá-las, no que
respeita aos requisitos da materialidade e autoria.
Naquilo que diz respeito especificamente à materialidade, a peça
acusatória
deverá
estar
embasada
em
fatos
que
restem
devidamente
demonstrados, sendo de se afastar quaisquer acusações originadas de meras
conjecturas ou suposições.
No que se refere à autoria, cumpre à acusação deixar evidenciados
os elementos que apontem, ainda que de forma indiciária, observados os limites e
194
Fernando da Costa Tourinho, Processo Penal, Vol 1, Saraiva, São Paulo, 1977, p. 486:
“Procurou o legislador evitar acusações temerárias, sem qualquer fundamento (...). Não basta a
simples afirmação que houve crime e que fulano ou sicrano foi seu autor. É preciso que o pedido
da acusação consubstanciado na denúncia ou queixa, seja afinal apreciado, que no limiar da ação
veja o magistrado se o que se pede traz a nota da idoneidade.”
146
condições em que essa espécie de prova é admitida em processos punitivos, a
eventual ação ou omissão praticada pelo administrado e que o vincule à conduta
tida como reprovável, de modo a justificar a responsabilidade que a Administração
Publica deseja lhe imputar.
A atuação repressiva das autoridades administrativas somente
poderá ser legitimamente levada a cabo quando resulte estritamente necessária,
idônea e proporcional aos objetivos perseguidos em sua atuação.195
Por força disso, a instauração de procedimentos administrativos e a
aplicação de penalidades nessa esfera, quando ausentes os princípios que devem
reger a atuação do Poder Público, vêm sendo questionadas em virtude dos danos
que efetivamente causam sobre a honra e a imagem dos administrados,
particularmente em segmentos da economia nos quais aqueles valores se
apresentem como elementos indissociáveis.
A esse respeito, oportuno registrar que a vigente Constituição
Federal estabelece em seu artigo 37, § 6º., que “as pessoas jurídicas de direito
público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos
danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o
direito de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa”.
Trata-se, no caso, de efetiva previsão de responsabilidade de
natureza objetiva, a qual prescinde, com sabido, de considerações subjetivas
relativamente à conduta do agente, nada importando se a mesma se apresenta de
maneira culposa ou dolosa, bastando apenas a demonstração do nexo causal e
do prejuízo sofrido pelo administrado.196
195
Nelson Eizirik, Reforma das S/A & Mercado de Capitais, Renovar, Rio de Janeiro, 1997, p. 179.
Egon Bockmann Moreira, Processo Administrativo – Princípios Constitucionais e a Lei 9.784/99,
Malheiros, São Paulo, 2000, p. 106: “Em face daqueles que sofreram a lesão a responsabilidade
administrativa é ‘objetiva’, porque não necessita da prova de dolo ou culpa do causador do dano. A
justificação do indenizar abstrai o elemento subjetivo. Tampouco é relevante a legalidade ou
ilegalidade da conduta danosa. O dever de reparar prescinde dessas informações. Inexiste
196
147
É inquestionável que o preceito constitucional estabelecendo o dever
de reparar o prejuízo causado aplica-se à atuação da Administração Pública no
exercício do poder de polícia, mormente por ocasião da indevida instauração de
processos administrativos punitivos desprovidos de elementos necessários à
demonstração, ainda que minimamente, da materialidade e da autoria e, mais
ainda, nos casos em que, eventualmente, vier a ser caracterizado o desvio de
poder.197
Assim se passa de vez que, como observa a respeito Luiz Roberto
Barroso, a própria instauração do processo administrativo sancionatório gera,
inegavelmente,
um
constrangimento
e
será
injustificável
e
abusivo
se
198
desproporcional ou descabido.
Disso resulta que a atuação dos participantes do mercado, sejam
pessoas físicas ou jurídicas, por repousar, basicamente, na reputação pelos
mesmos desfrutada, virá a sofrer de imediato e, muitas vezes, de maneira
irremediável, os reflexos negativos decorrentes de seu indevido indiciamento em
processos de cunho repressivo.199
Em que pesem a clareza e a gravidade das ponderações doutrinárias
pertinentes ao tema, a Comissão de Valores Mobiliários tem pautado suas
qualquer subordinação à qualidade da conduta do agente, mas unicamente ao objeto da
reparação: o prejuízo.”
197
Egon Bockmann Moreira, ob. cit. 119: “Por outro lado, também a instalação ex officio indevida
gera responsabilidade à Administração. Imagine-se a hipótese de processo de apuração de
responsabilidade funcional instalado espontaneamente pela autoridade lastreado em pura
perseguição pessoal. Trata-se de nítido desvio de poder, apto a gerar danos patrimoniais e
morais,, que importa responsabilidade da Administração.”
198
Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais 17/96, Banco Central do Brasil –
Comunicação ao Ministério Público para fins penais: “A repercussão negativa sobre o nome e a
imagem do investigado ou do acusado não é apenas uma evidência que decorre da observação da
realidade. A própria ordem jurídica a reconhece e procura criar instrumentos aptos a evitar um
dano inútil à imagem das pessoas quando não há elementos de suspeita suficientes para submetêlos a essa restrição.”
199
Modesto Carvalhosa e Nelson Eizirik, A nova lei das S/A, Saraiva, 2000, p. 510: “O exercício de
atividades no âmbito do mercado de capitais depende primordialmente da credibilidade e da
reputação que o profissional desfruta no mercado. Assim, a divulgação de instauração de inquérito
administrativo contra determinada pessoa causará prejuízos imediatos e praticamente irreparáveis
à imagem de tal pessoa perante o mercado.”
148
decisões, em considerável contingente de casos, no sentido da instauração de
processos administrativos punitivos, de forma a ignorar o princípio da presunção
de inocência, promovendo, de forma alheia ao regime jurídico aplicável, uma
verdadeira inversão do ônus da prova. Ou seja, primeiro aquele ente autárquico
acusa e, depois, os administrados é que devem demonstrar as razões que
justifiquem a sua inocência ou não participação nos ilícitos que lhes são
apontados.
Assim é que em diversas vezes aquela autarquia formula as
acusações que vem a entender como devidas e promove a conseqüente
responsabilização dos administrados, sem contudo agregar aos pertinentes
processos os elementos de convicção suficientes quanto a deixar ao menos
evidenciadas a materialidade e a autoria.
Isso vem ocorrendo principalmente em processos sancionatórios
instaurados em virtude de aquela entidade concluir pelo questionamento, quanto à
licitude, de determinadas operações conduzidas no âmbito do mercado de
capitais, em bolsas de valores ou de mercados futuros, decididas e
implementadas por investidores institucionais, especificamente por entidades de
previdência privada.
Nesses casos, a Comissão de Valores Mobiliários, de forma
atentatória aos limites próprios ao exercício de seu poder de polícia,
particularmente quanto à competência discricionária que lhe é deferida para
formular acusações às pessoas sujeitas à sua fiscalização, vem promovendo
indiscriminado chamamento aos autos dos mais diversos integrantes do mercado
de valores mobiliários.
Assim é que, a pretexto de um suposto e nunca demonstrado conluio
entre um formidável universo de participantes do mercado, aquele órgão regulador
vem formulando acusações, indistintamente, sem promover a necessária
149
individualização das ações ou omissões praticadas por cada um dos acusados,
representados, nesses casos, por entidades de previdência privadas, seus
gerentes financeiros, corretoras de valores e seus diretores e operadores e, ainda,
comitentes que tenham, de qualquer forma, comprado ou vendido, ainda que não
diretamente, valores mobiliários cuja negociação foi iniciada por aqueles
investidores institucionais e ofertadas publicamente ao mercado.
Dessa forma veio a ocorrer, por exemplo quando da instauração do
Processo Administrativo Sancionador CVM – 16/2005, no qual aquela autarquia
concluiu que “configurado ficou, assim, que as operações ora investigadas
constituíram ‘esquema’ que, com grande sucesso, proporcionou às contrapartes
da CENTRUS resultados extraordinariamente positivos em detrimento desta,
tendo referido ‘esquema’ consistido na montagem e execução de operações
envolvendo o lançamento de opções, por parte da Fundação, a preços bem
inferiores aos preços justos”.
Àquela ocasião, concluiu-se ainda que “tal ‘esquema’, em que a
CENTRUS sempre foi colocada numa posição indevida de desequilíbrio perante
os demais participantes da operação, envolveu além de diretores e gerentes da
CENTRUS (...), a rede formada pelas corretoras e profissionais a elas ligados (...),
os quais participaram ativamente na montagem e minuciosa execução desse
‘esquema’ ora relatado, bem como formada pelos comitentes que receberam os
vultosos lucros aqui tratados (...)”.
Foi com base na pressuposta existência de um “esquema” dessa
ordem e magnitude, congregando imensa variedade de agentes do mercado de
valores mobiliários, envolvendo instituições, administradores e comitentes, que se
promoveu a instauração daquele processo administrativo, formulando idênticas
acusações dirigidas a mais de 170 (cento e setenta) pessoas físicas e jurídicas.
150
No que se refere especificamente ao teor das acusações
perpetradas, observa-se uma injustificável identidade, na medida em que todos os
supostamente envolvidos foram chamados aos autos para apresentarem suas
razões de defesa em virtude de “terem participado de parte das 217 operações
investigadas no presente inquérito, no mercado à vista e/ou de opções, de 1997 a
2001”, envolvendo a Fundação Banco Central de Previdência Privada –
CENTRUS.
Em complemento àquelas acusações, veio a ser também entendido,
em relação a tais operações que, no que diz respeito a todas aquelas pessoas,
“ficou configurada a ocorrência de práticas não eqüitativas, de operações
fraudulentas e de criação de condições artificiais de demanda, oferta e preço de
valores mobiliários, práticas essas definidas, respectivamente, pelas alíneas “d”,
“c” e “a” do item II, e vedadas pelo item I, ambos da Instrução CVM nº 08/79”.
Releva ainda notar que, precedentemente à instauração do
mencionado processo administrativo, ainda na fase de inquérito, a Comissão de
Valores Mobiliários notificou cerca de mais de 3 (três) centenas de pessoas para
que respondessem questões que lhes foram formuladas, a fim de instruir aquele
procedimento que veio a originar o processo administrativo de que se trata.
Importante
ainda
salientar
que,
certamente,
com
base
em
experiências similares anteriores, a decisão a ser prolatada pelo Colegiado
daquela Comissão de Valores Mobiliários decidirá, se for o caso, pela efetiva
responsabilização e conseqüente imposição de penalidades a apenas algumas
poucas pessoas, em relação às quais venha a restar devidamente comprovadas a
materialidade e a autoria.
No entanto, até que alcançado esse resultado, ainda em primeira
instância administrativa, cerca de 170 (cento e setenta) pessoas terão sido
submetidas às agruras de um processo administrativo, sendo colocadas na
151
indevida posição de acusados, tendo seus nomes publicamente divulgados no
próprio sítio eletrônico daquela autarquia na rede mundial de computadores e,
mais ainda, tendo que demonstrar a sua inocência diante de acusações
aleatoriamente formuladas.
Do mesmo modo veio a ocorrer quando da instauração do Processo
Administrativo Sancionador 03/05, no qual a Comissão de Valores Mobiliários
concluiu que “os negócios realizados pela FACEB de 1999 a 2001 (...)
compunham operações estruturadas que consistiam na compra de papéis, no
mercado à vista e o lançamento (venda) simultâneo de uma série de opções de
compra sobre essas ações”.
Segundo o relatório então produzido e que veio a embasar as
acusações formuladas, “não bastasse a FACEB efetuar operações estruturadas
que limitavam os lucros, em caso de alta dos ativos subjacentes e que não
limitavam o prejuízo, em caso de baixa desses ativos, a fundação, por ocasião do
lançamento das opções, recebia prêmios consideravelmente inferiores aos preços
justos calculados pelo modelo de Black & Scholes”.
Nesse
processo
administrativo,
particularmente
quanto
às
sociedades corretoras que intermediaram as operações, as quais são em número
superior a uma dezena, o órgão regulador posicionou-se no sentido de que as
mesmas “participaram ativamente na montagem e minuciosa execução desse
esquema ora relatado em que a FACEB sempre era colocada numa posição
indevida de desequilíbrio perante os demais participantes das operações”.
Quanto aos comitentes que atuaram na compra e venda daqueles
valores mobiliários, cuja quantidade é superior a 5 (cinco) dezenas, concluiu-se
que “(...) sem a efetiva participação dos comitentes com estreita ligação entre si e
com as corretoras envolvidas, o esquema não poderia ter sido implementado”,
152
como também que “os lucros auferidos pelas contrapartes da FACEB já estavam
fixados por ocasião do lançamento das opções”.
Mais uma vez, com fundamento na suposta existência desse
fabuloso esquema, envolvendo essa enorme quantidade de pessoas e
instituições, a Comissão de Valores Mobiliários promoveu o indiciamento de todos
aqueles que considerou terem dele participado, sem contudo provar a
materialidade, representada pela suposta existência do conluio ou mesmo a
autoria, ou seja, a efetiva participação nele de cada um dos acusados.
O processo em questão veio a ser julgado no mês de julho do
corrente ano de 2008 e o Colegiado da mesma Comissão de Valores Mobiliários,
unanimemente,
decidiu
pela
improcedência
das
acusações
formuladas,
absolvendo todos que houvera anteriormente acusado.
Casos desse jaez denotam, já numa primeira aproximação, a falta de
plausibilidade, decorrente de mero exercício de lógica, quanto à existência em um
mercado caracterizado por extrema volatilidade e pela possibilidade de
interferência nos ambientes bursáteis operacionais, por parte de qualquer
interessado, de um “esquema” do qual participe tão expressivo número de
pessoas.
Posto isso, ressalta evidente a despreocupação da autoridade
administrativa em observar o regime jurídico que lhe é aplicável, entendendo
estar, por força da competência discricionária que lhe é, diga-se de passagem,
limitadamente deferida, autorizada a promover a indiscriminada responsabilização
de administrados.
153
e - quanto ao princípio da “non reformatio in pejus”
Em sede de direito penal pátrio, decorre do seu próprio regime
jurídico, conforme amplo entendimento doutrinário a respeito, que o recurso
eventualmente interposto junto à instância ad quem, por parte daquele que veio a
ser punido pelo julgador a quo, não pode resultar em reforma, para pior, da pena
que lhe fora anteriormente imposta.
Dessa forma, a decisão proferida no julgamento anterior da questão
não pode, em sede de recurso voluntário, vir a ser objeto de decisão que venha a
impor penalidade mais gravosa, piorando a situação do recorrente, por força da
aplicação do princípio da non reformatio in pejus.
Este posicionamento, em virtude da já comentada aplicação de
princípios de direito penal ao direito administrativo sancionatório, tendo em vista a
comum natureza punitiva de ambas as províncias do direito,200 como também
referido em outra passagem, tem sido reiteradamente observado nos julgamentos
das instâncias administrativas recursais, particularmente pelo Conselho de
Recursos do Sistema Financeiro Nacional.
Assim é que, passadas praticamente 3 (três) décadas de
funcionamento daquele órgão colegiado, não há um único registro de julgamento
em que a decisão de primeira instância, proferida pelo Banco Central do Brasil ou
200
Edílson Pereira Nobre Júnior. Sanções Administrativas e princípios de direito penal, Revista de
Direito Administrativa, 219:127, 2000. p. 128: “Essa distinção ontológica, no entanto, não pode
olvidar que, tanto no ilícito criminal como no administrativo. está-se diante de uma situação
ensejadora da manifestação punitiva do Estado. Segue, em linha de princípio, nada haver a obstar,
antes a recomendar, serem os postulados vetores da aplicação das punições criminais, cuja
sistematização doutrinária e legislativa é bem anterior á ordenação das sanções administrativas, a
estas aplicáveis. Há necessidade, porém, de restarem sempre consideradas as peculiaridades das
últimas.”
154
pela Comissão de Valores Mobiliários, tenha sido reformada com a imposição, ao
administrado, de pena mais severa do que aquela já aplicada.
Dessa maneira, o comentado princípio vem se conservando
respeitado, por força da robustez dos fundamentos que o justificam, os quais vêm
a se constituir em desdobramentos da aplicação de outros princípios e valores que
visam assegurar certas garantias constitucionais e determinados direitos
fundamentais originados de lenta e sólida construção na ciência do Direito e que
estão devidamente consagrados.
Um fundamento basilar e que dá sustentação à aplicação do
princípio da non reformatio in pejus reside na própria Constituição, a qual
estabelece em seu artigo 5º, inciso LV, que “aos litigantes, em processo judicial ou
administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla
defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
Evidentemente, não restaria garantido o direito constitucionalmente
deferido se não pudesse o mesmo ser exercido na amplitude que lhe confere a
norma, caso o litigante se visse constrangido quanto à decisão de recorrer, diante
da possibilidade de que o invocado reexame da matéria pudesse lhe ser
prejudicial.
Por certo, resultaria fragilizado o princípio do contraditório na sua
devida magnitude, posto que em muitas situações estaria impedido o seu
desenvolvimento na plenitude que lhe atribui o texto constitucional, na medida em
que o litigante deixaria de exercê-lo tendo em vista o risco envolvido, o que não se
coaduna com a natureza do direito em questão.
155
Essa hipotética limitação relativamente a direito constitucionalmente
garantido certamente viria a retirar a efetividade, no plano jurídico, da garantia do
duplo grau de jurisdição, o qual se erige em imperativo de ordem pública, como
entendido por Sérgio Ferraz e Adilson de Abreu Dallari.201
Do mesmo teor é a posição de Lúcia Valle Figueiredo, ao afirmar que
“finalmente, há proibição da reformatio in pejus, não obstante o princípio da
legalidade que preside toda a atividade administrativa”, e que “se houvesse a
possibilidade de ser agravada a pena, por evidente que esse fato obstaculizaria a
garantia constitucional do duplo grau de jurisdição”.
Posto isso, afigura-se sólida a posição doutrinária a respeito do tema
no sentido de que a proibição da reformatio in pejus tem fundamentos de natureza
constitucional, já que amparada não só no princípio garantidor da ampla defesa e
do contraditório, mas também na garantia do duplo grau de jurisdição.
Aliás, já antes da promulgação de nossa vigente constituição, Régis
Fernandes de Oliveira202 explanava que “dedutível também dos princípios
constitucionais que dão sustentação à posição dos que são acusados perante a
Administração Pública é a inadmissibilidade de julgamento que possa piorar a
situação do administrado quando apenas ele for o recorrente. Se o recurso é,
como se viu, garantia do particular, nenhum sentido jurídico terá que pudesse o
201
Ob. cit. p. 179: “Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes
garantias mínimas: (...) direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior. Ora, como ao
processo administrativo se aplicam as mesmas garantais do judicial (Constituição Federal, art.
5º,LIV e LV), como ‘os direitos e garantais expressos nesta Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais que a
República Federativa do Brasil seja parte’ (Constituição Federal, art. 5º, § 2º, segue-se,
inelutavelmente,que o duplo grau constitui garantia constitucional inarredável do processo
administrativo).”
202
Processo administrativo e judicial (coisa julgada administrativa, RDTributário 58, São Paulo. RT,
1985, p. 100/01: “Seria absurdo jurídico que a Constituição Federal assegurasse os recursos
inerentes à ampla defesa (§ 15, do art.153) e se pudesse admitir que tal garantia fosse utilizada em
detrimento do administrado (...). Em suma, não tem aplicação no direito administrativo, à
semelhança do direito penal (art. 617 do CPP), a reformatio in pejus”.
156
superior hierárquico, órgão colegiado competente para decidir, aumentar a pena
imposta em primeiro grau”.
Com base na vigente constituição, Adilson Dallari e Sérgio Ferraz203
entendem que os enunciados dos incisos LIV e LV, do artigo 5º rejeitam qualquer
possibilidade de reformatio in pejus e, lembrando a estatura constitucional
daqueles dispositivos, os autores em questão reafirmam a proibição da reforma
para pior, ainda que isso venha a ser textualmente admitido por qualquer lei.
Não obstante todas as posições doutrinárias referidas, o Conselho de
Recursos do Sistema Financeiro Nacional, em questão de ordem suscitada pelo
procurador da Fazenda Nacional que atuava junto àquele colegiado, veio a
examinar o tema, precedentemente ao julgamento do Recurso 4.987, cujos
recorrentes eram a KPMG – Auditores Independente e seu diretor.
Os recorrentes já haviam sido penalizados em primeira instância
administrativa pelo Banco Central do Brasil, que lhes aplicou pena pecuniária por
suposta omissão no exercício de seus deveres, relativamente às normas de
contabilidade e de auditoria, no conhecido episódio relativo ao Banco Nacional
S/A, envolvendo contas-corrente fantasmas criadas com o fim de encobrir créditos
inadimplentes que, se devidamente reconhecidos nos registros contábeis daquela
instituição financeira, comprometeriam a sua situação patrimonial e provocariam a
atuação do órgão regulador.
203
Ob. cit. p. 155: “Outra conseqüência das anteriores posições e do que dispõem dos incisos LIV
e LV do art. 5º da Lei Maior é a rejeição, aqui, à reformatio in pejus (e pouco importa que leis a
aceitem textualmente, pois a vedação é de estatura constitucional). A tutela da ampla defesa
envolve a possibilidade de, sem ser surpreendida, a parte rebater acusações, alegações,
argumentos ou interpretações tais como dialeticamente postos, para evitar sanções ou prejuízos.
Ver sua posição agravada sem contraditório, quando sequer houve recurso da parte contrária, é
validar a restrita defesa, e não a ampla defesa de que cuida a Constituição (...).”
157
Naquela ocasião, o procurador da Fazenda Nacional que oficiava no
caso entendia, dada a gravidade dos fatos, que deveria a pena imposta ser
majorada e, por isso, elaborou parecer a respeito e o submeteu à decisão do
Colegiado para que este decidisse acerca da possibilidade de admissão da
reformatio in pejus, mudando orientação até então observada naquela instância
administrativa.
O argumento central desenvolvido pelo representante da Fazenda
Nacional era no sentido de que a Lei 9.784/99, a qual disciplina o processo
administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, expressamente
autorizaria a reforma para pior, ao prescrever, em seu artigo 64, que “o órgão
competente para decidir o recurso poderá confirmar, modificar, anular ou revogar,
total ou parcialmente, a decisão recorrida, se a matéria for de sua competência”.
Em complemento e referendando a tese proposta, no entendimento
de seu autor, o parágrafo único daquele dispositivo estabelece que “se da
aplicação do disposto neste artigo puder decorrer gravame à situação do
recorrente, este deverá ser cientificado para que formule suas alegações antes
da decisão” (grifamos).
Interpretando conjuntamente esses dois dispositivos, o citado
procurador da Fazenda Nacional concluiu que havia expressa autorização legal
para a admissão, em sede administrativa, da reformatio in pejus, exigindo porém
a norma que fosse o recorrente cientificado, a fim de formular alegações
específicas a respeito antes da decisão, o que demandaria que essa questão
fosse preliminarmente discutida.
Quanto à alegada permissão legal, trata-se de interpretação
meramente literal, isolada e que não resiste a uma abordagem sistemática, na
158
medida em que a possibilidade de reforma para pior é repelida pelo próprio
regramento processual penal e, mais ainda, pela lei paulista de processo
administrativo que, em seu artigo 49, veda expressamente a hipótese aventada.
Afora isso, o artigo 65, caput, da mesma Lei 9.784/99, é expresso ao
prever que “os processos administrativos de que resultem sanções poderão ser
revistos, a qualquer tempo, a pedido ou de ofício, quando surgirem fatos novos ou
circunstâncias relevantes suscetíveis de justificar a inadequação da sanção
aplicada” e ao comandar, no seu parágrafo único, que “da revisão do processo
não poderá resultar agravamento da sanção” (grifamos).
Neste último dispositivo transcrito, o legislador foi expresso ao proibir
a reformatio in pejus, de maneira clara e, ao contrário do pretendido, não há
qualquer certeza quanto à sua admissão, nos temos da dicção do artigo 64
anteriormente citado, o que não permite, desse modo, assumir a conclusão sobre
existência de autorização legal quanto à aceitabilidade do incremento da pena em
instância administrativa recursal.
Deve ser notado, ainda, que no caso do artigo 65, o legislador referese especificamente a sanção, o que não ocorre relativamente ao artigo 64, o que
se explica pelo simples fato de que a lei respectiva disciplina o gênero processo
administrativo, no âmbito da Administração Pública Federal, sendo que aquele de
natureza sancionatória, aqui sob foco, é apenas uma de suas espécies.
Assim, quando o legislador faz menção a processo do qual resulta
sanção, preocupou-se em marcar a incidência do princípio da non reformatio in
pejus, proibindo eventual agravamento da sanção, ao passo que, no artigo 64, ao
fazer referência à ocorrência de eventual gravame, não está se reportando ao
aspecto sancionatório e, por isso, a questão não foi objeto de previsão.
159
Evidentemente que, em processos administrativos de outras
espécies, tais como os homologatórios ou mesmo naqueles próprios de certames
de licitação, poderão ocorrer decisões administrativas que não apresentem
conteúdo sancionatório, mas que, certamente, poderão resultar em gravame para
a situação do recorrente.
Somadas
essas
considerações
àquelas
outras
de
natureza
constitucional já comentadas e que se traduzem nas garantias da ampla defesa,
do contraditório e do duplo grau de jurisdição, é inevitável concluir que o
ordenamento jurídico brasileiro, considerado na sua integralidade, rejeita qualquer
possibilidade de aplicação da reformatio in pejus.
Apesar disso, a questão foi posta em julgamento e o Conselho de
Recursos do Sistema Financeiro Nacional decidiu, por maioria de votos, acatar a
tese apresentada e admitir a possibilidade de impor pena mais gravosa que a
sofrida pelo recorrente em decisão de primeira instância administrativa.
Como conseqüência daquela decisão de caráter preliminar ao
julgamento do caso concreto de que se trata, foi aberto novo prazo aos recorrentes
a fim de que, em sessão seguinte, tivessem a oportunidade de apresentar suas
alegações a respeito.
Assustados com a possibilidade que se apresentava, principalmente
no que se refere ao recorrente pessoa física, ao qual poderia ser imposta, em
tese, a pena de inabilitação para o exercício de sua profissão, os recorrentes
desistiram do recurso e acataram a pena pecuniária que já lhes havia sido
imposta,
160
Não resta a menor dúvida de que ficaram prejudicados, no caso, a
possibilidade de exercício pleno e efetivo da ampla defesa e do contraditório, bem
como desrespeitada foi a garantia do duplo grau de jurisdição, sendo os
recorrentes constrangidos a não se valerem de prerrogativas constitucionalmente
asseguradas.
161
VI – REGIMES ESPECIAIS
1. Noções introdutórias
Preliminarmente, cabe registrar que, muito embora a nossa vigente
Constituição, a exemplo de outras anteriores, consagre a livre iniciativa e a
economia de mercado, afastada não está a presença impositiva do Estado,
particularmente do Banco Central do Brasil, relativamente às atividades
desenvolvidas pelos intermediários financeiros.
Essa participação do órgão regulador ocorre seja autorizando a
inclusão daqueles agentes nos mercados, seja fiscalizando-os e também
determinando a saída dos mesmos e gerindo, por meio de regimes especiais,
aqueles que se revelaram sem condições técnicas ou financeiras de permanecer
atuando, da mesma forma com vinha fazendo, nos seus respectivos mercados. A
respeito, confira-se a ponderação lançada por Francisco José de Siqueira.204
Posto isso, é oportuno o oferecimento de algumas informações a
respeito da disciplina legal pertinente, a qual prescreve que instituições financeiras
e demais sociedades autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil
sujeitam-se a regime jurídico diferenciado, particularmente quanto às soluções
legais cabíveis diante de crises experimentadas pelas mesmas, notadamente as
de insolvência.
204
Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, Ano 4, nº 12, abril-junho de 2001.RT,
São Paulo, Instituições Financeiras: regimes especiais no direito brasileiro, p.66: “No universo dos
negócios, o exercício da atividade bancária está sujeito a vínculos e controles especiais, tanto na
sua organização quanto no seu desenvolvimento, por se tratar de função de notório interesse
público. Logo, a constituição e funcionamento das empresas bancárias dependem de autorização
do Poder Público, sendo condicionada à realização de determinado capital mínimo, dentre outros
requisitos legais. Além disso, durante todo o ciclo de vida das empresas bancárias, são instituídos
controles técnicos e jurídicos para o seu regular funcionamento, podendo a autoridade pública das
instruções de caráter vinculante sobre as operações e serviços, critérios de gestão e relações com
o mercado.”
162
Esse regime apartado daquele ordinariamente aplicável às empresas
em geral, quando atingidas por problemas de inadimplência ou insolvência, é
tradicional no direito brasileiro já de longa data e, de resto, acompanha as
soluções também encampadas pela maioria dos ordenamentos jurídicos
alienígenas.
As justificativas mais importantes para a adoção desse modelo
residem, por um lado, no fato de que os intermediários financeiros operam com
poupança de terceiros, o que exigiria um tratamento diferenciado e, por outro lado,
da constatação de que instituições financeiras exercem uma atuação central no
contexto econômico, como financiadores ou mesmo como executores de políticas
determinadas pelos agentes governamentais, pelo que seria descabido, por
exemplo, que qualquer credor pudesse postular, em juízo, a falência de uma
instituição desse gênero. Nesse sentido as observações da lavra de Frederico
Viana Rodrigues.205
Desse modo, fica evidenciado o interesse público que o justifica,
como reconhecido por Rubens Requião.206 ao asseverar que “assim, devido a
esse controle que o Estado se reserva manter sobre certas empresas, em virtude
do interesse coletivo e público que decorre de seu objeto, constituíram os juristas
dois institutos para servirem-lhes de instrumento, em caso de insolvência dessas
205
Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, Ano 8, nº 28, abril/junho de 2005,
Saneamento e Liquidação de instituições de crédito, p. 173/174: “Certas empresas, em razão da
relevância que desempenham, no meio social em que se inserem, envolvem interesses que
transcendem os fins privatísticos do empreendimento. Assumindo conotação ‘quase pública’.
Dentre tais empresas estão as desenvolvidas por instituições de crédito, cujo objeto consiste na
captação de recursos da economia popular para, por sua conta e risco, empregá-los em operações
de crédito. Porque atuam como gestoras – em nome e interesses próprios – de recursos de
terceiros, as instituições de crédito submetem-se a forte intervencionismo estatal. Esse
intervencionismo justifica-se pela imprescindibilidade do elemento confiança nas operações de
crédito e pela proteção dos depósitos bancários. Além disso como, como as instituições de crédito
são fundamentais para o sistema de pagamentos, e porque atuam como intermediárias da moeda
e do crédito no sistema econômico, existe elevada correlação entre sua saúde financeira e a
estabilidade macroeconômica do país. Como o desequilíbrio de instituições de crédito pode
acarretar inúmeras consequências nefastas para a economia e para a política econômica, cabe ao
Estado acompanhá-las de perto, zelando pela estabilidade e eficiência do sistema financeiro.”
206
Curso de Direito Falimentar, Saraiva, 1989.
163
empresas. Surgiram, por isso o instituto da intervenção e o da liquidação
extrajudicial (...)”.
Nessa
passagem,
é
interessante
deixar
marcado
que,
em
decorrência da natureza do interesse que fundamenta os regimes especiais, é
inquestionável que a disciplina jurídica que se lhes aplica é de Direito Publico, no
geral, e de Direito Administrativo, em particular.
Portanto, o Banco Central do Brasil, autarquia competente para
decretar os regimes aos quais se reporta, bem como para nomear os seus
executores, sua longa manus e, ainda, para supervisionar e decidir, em última
instância, sobre os rumos dos processos da espécie, submete-se às regras
próprias estabelecidas para as entidades componentes da Administração Pública,
nos termos da Constituição Federal e normas infra-constitucionais.
Consequentemente, os atos praticados pelo Banco Central do Brasil,
envolvendo a decretação, o curso e o encerramento daqueles regimes especiais,
qualificam-se como atos administrativos, com todas as conseqüências jurídicas
daí advindas, especialmente quanto aos requisitos ou elementos de existência,
validade e perfeição.
Naquilo que diz respeito especificamente aos distintos regimes
especiais aplicáveis às sociedades alcançadas pelo poder de polícia do Banco
Central do Brasil, caberiam alguns breves comentário acerca de suas diferentes
espécies, assinalando que as normas de regência estabelecem e disciplinam 3
(três) diversas formas, quais sejam, a intervenção, a liquidação extrajudicial e a
administração especial temporária.
164
De início, cabe anotar que o conjunto normativo incidente sobre
esses regimes jurídicos exorbitantes da lei comum cinge-se, basicamente, à Lei
6.024, de 13 de março de 1.974, ao Decreto-Lei 2.321, de 25 de fevereiro de
1.987/ 87 e à Lei 9.447, de 14 de março de 1997.
A Lei 6.024/74 que, de acordo com seu preâmbulo, dispõe sobre a
intervenção e a liquidação extrajudicial de instituições financeiras e dá outras
providências, fornece todo o aparato legal disciplinador dos regimes mencionados,
esgotando inclusive o aspecto procedimental no âmbito administrativo.
O Decreto-Lei 2.321/87, como expressamente menciona, institui, em
defesa das finanças públicas, regime de administração especial temporária, nas
instituições financeiras privadas e públicas não federais.
A seu turno, a Lei 9.447/97 estabeleceu a responsabilidade solidária
dos controladores de instituições submetidas a quaisquer dos regimes especiais
previstos
nas
leis
antes
referidas,
trouxe
novas
disposições
sobre
a
indisponibilidade de bens dos respectivos administradores e também proclamou a
possibilidade de responsabilização das empresas de auditoria e dos auditores
independentes.
Aquela mesma lei cuidou ainda de baixar disposições acerca de
privatização de instituições cujas ações tenham sido desapropriadas na forma do
disposto no DL 2.321/87, bem como trouxe a possibilidade de o Banco Central do
Brasil atuar de forma preventiva, de modo a promover a manutenção da
organização empresarial, como atesta Francisco José de Siqueira.207
207
Ob. cit. p. 67: “No entanto, com o advento da Lei 9.447, de 1997 (...), foram introduzidas
mudanças importantes na legislação bancária, especialmente com relação aos poderes atribuídos
ao Banco Central na condição de regulador do sistema financeiro e de guardião da estabilidade
monetária, de atuar no fortalecimento e no saneamento do mercado, com o objetivo de prevenir e
solucionar crises de liquidez ou solvência de instituições bancárias. Até então, diante de situações
tais, o Banco Central tinha como alternativa a decretação do regime de intervenção, de liquidação
extrajudicial ou de administração especial temporária, na forma da regulamentação própria. A nova
legislação faculta ao Banco Central determinar aos controladores da instituição que adotem as
165
Esse último diploma facultou ainda ao Banco Central do Brasil, desde
que materializados os pressupostos autorizadores da decretação dos regimes de
intervenção e de
liquidação extrajudicial,
determinar a capitalização, a
transferência do controle acionário ou a reorganização societária, mediante fusão,
cisão ou incorporação das respectivas entidades.
Em vista disso, prescreveu que não implementadas as medidas
acima, no prazo estabelecido pelo Banco Central do Brasil, este decretaria o
regime especial cabível.
Nos termos da Lei 6.024/74, caberá a decretação de intervenção
quando se verificarem anormalidades nos negócios sociais da instituição,
caracterizadas, principalmente, por prejuízos que sujeitem os seus credores a
riscos anormais ou quando ocorridas reiteradas infrações à legislação, não
regularizadas após determinação do Banco Central do Brasil.
O regime em questão será decretado ex-officio pelo Banco Central
do Brasil ou por solicitação dos próprios administradores e terá a duração de (6)
seis meses, prorrogável por igual período, sendo executado por interventor
nomeado no ato da decretação do regime com plenos poderes de gestão, à
exceção da prática de atos que impliquem disposição ou oneração do patrimônio
do intervindo ou que ocasionem admissão ou demissão de pessoal, os quais não
prescindem da necessária autorização daquela autarquia.
Submetida à intervenção, a instituição não mais pode atuar no
sistema e, além de serem afastados da administração de seus respectivos cargos,
os seus até então administradores ficarão com todos os seus bens indisponíveis,
os quais ficam resguardos para garantir os eventuais prejuízos causados à
providências cautelares por ela instituídas, objetivando a recuperação da empresa, sem prejuízo
das hipóteses de decretação de regime especial, caso tais determinações não sejam cumpridas
ou, mesmo que o sejam, não surtam a desejada eficácia.”
166
instituição e não cobertos pelos seus recursos próprios, apurados em ação de
responsabilidade civil, na forma da Lei 6.024/74.
Ainda conforme a lei de regência, a intervenção cessará quando, a
critério do Banco Central do Brasil, a situação da entidade se houver normalizado
ou se decretada a liquidação extrajudicial ou a falência da sociedade.
Em resumo, pode-se dizer que a intervenção, enquanto espécie mais
branda dentre os regimes especiais, aplicar-se-ia quando a instituição estivesse
sendo mal gerida, demandando a intervenção do Banco Central do Brasil com o
propósito de promover o devido saneamento e, após isso, seria devolvida aos
seus administradores e voltaria a ocupar o seu espaço no mercado em que vinha
atuando.
No entanto, aquele desiderato que foi o móvel de sua instituição
jamais veio a ser atingido em nenhum caso, pelo simples fato de que nos
mercados financeiro e de capitais a fidúcia ou confiança dos depositantes e
investidores é elemento indissociável e, uma vez posta em dúvida a credibilidade
da instituição, por via da decretação de regime especial, provoca-se,
naturalmente, o afastamento definitivo da instituição daqueles ambientes.
Desse modo, o desfecho natural do regime de intervenção, desde
que no seu curso não se alcance uma solução de mercado, é a decretação, findo
o prazo legalmente estabelecido, de outro regime especial, desta feita mais
ostensivo, qual seja, a liquidação extrajudicial.
O regime de liquidação extrajudicial de instituições submetidas ao
poder de polícia de que é titular o Banco Central do Brasil caracteriza-se por ser
uma forma excepcional de extinção da empresa, conduzida no âmbito
administrativo, implementando-se a realização dos seus ativos e o pagamento
167
seus passivos, em estrita observância ao concurso de credores que em virtude
dele se instaura.
Na essência, sua finalidade, consoante se depreende dos termos da
Lei 6.024/74 é, além de preservar a higidez do sistema financeiro como um todo,
assegurar proteção, principalmente, aos interesses de depositantes e investidores
em geral.
A mesma lei já antes referida estabelece que será decretado o
regime de liquidação extrajudicial quando presentes as causas enumeradas no
seu artigo 15, dentre as quais avultam aquelas relacionadas a problemas de
liquidez que comprometam a situação econômico-financeira da instituição,
especialmente quando deixar de satisfazer com pontualidade seus compromissos
ou apresente prejuízos que exponham seus credores quirografários a risco
anormal.
Também será a empresa afastada de seus negócios normais e
passará a ser gerida, no caso, por um liquidante com poderes de gestão limitados
apenas quanto aos atos relativos à complementação de negócios pendentes ou
que impliquem oneração ou alienação de bens, os quais, igualmente ao que se
passa no regime de intervenção, dependem de expressa autorização do Banco
Central do Brasil.
Uma vez decretada, a liquidação extrajudicial produzirá como
principais efeitos imediatos a suspensão das ações e execuções iniciadas sobre
direitos e interesses relativos ao acervo da entidade e o vencimento antecipado de
suas obrigações.
Diferentemente do que ocorre no processo de intervenção, não há o
estabelecimento de um prazo fatal para a cessação do regime, a qual poderá
168
ocorrer caso os interessados, apresentando as necessárias condições de garantia,
tomarem para si o prosseguimento do negócio, ou ainda com a aprovação das
contas finais do liquidante e baixa no registro competente e, por último, caso seja
decretada a falência da liquidanda.
Por força da decretação do regime, os então administradores
perderão os seus mandatos, bem como seus bens serão tornados indisponíveis,
visando aos mesmos fins já referidos em passagem anterior, quando da
abordagem acerca do regime de intervenção.
Por último, o Regime de Administração Especial Temporária (RAET)
poderá ser decretado pelo Banco Central do Brasil em virtude de razões idênticas
àquelas aplicáveis aos demais regimes e, ainda, em razão da prática reiterada de
operações contrárias às diretrizes governamentais, da existência de passivo a
descoberto ou do descumprimento de normas referentes à conta de Reservas
Bancárias e, ainda, em virtude de gestão temerária.
Decretado o regime também serão afastados os administradores,
passando a instituição a ser gerida por um conselho diretor nomeado pelo Banco
Central do Brasil, munidos de poderes da mesma amplitude e restrições dos
demais regimes.
Uma das notas características dessa modalidade de regime
excepcional é que a decretação do mesmo não afetará a curso regular dos
negócios da entidade, a qual permanecerá atuando no seu segmento,
prosseguindo na realização de todas as atividades próprias do mercado em que já
vinha atuando.
Outra característica distintiva é que poderiam ser utilizados recursos
públicos visando ao saneamento da instituição, em contrapartida à cessão de
169
créditos, direitos e ações para o Banco Central do Brasil, estabelecendo também a
lei as garantias a serem oferecidas.
O regime em questão não tem prazo de duração estabelecido e pode
cessar se a União assumir o controle acionário da instituição, se ocorrer
incorporação, cisão ou transferência do controle acionário, se a situação da
instituição se houver normalizado, ou se ocorrer a decretação de sua liquidação
extrajudicial.
O estatuto legal de que se trata prevê ainda a possibilidade de
desapropriação das ações da instituição por necessidade ou utilidade pública ou
interesse social, sendo a União imitida na posse daqueles títulos.
Na verdade, essa espécie de regime especial veio a criar uma
situação absolutamente diferenciada em um contexto que, por natureza, já é
excepcional, na medida em que decorrente de norma editada em um ambiente
econômico-financeiro
bastante
específico
e
claramente
destinada
a
um
determinado segmento do mercado bancário.
Àquela época, os bancos estaduais passavam por séria crise
financeira e esse foi o instrumento legal que veio a premiá-los com um regime
jurídico bastante peculiar, devendo ainda ser considerado que naquele momento
era possível a utilização de recursos públicos para o saneamento daquelas
instituições, como lembra o já citado Francisco José de Siqueira.208
208
Ob. cit. p. 51: “Como alternativa ao regime de intervenção, o governo brasileiro, nos termos do
Dec.-Lei 2.321, de 25.02.1987, sob o propósito declarado de defender as finanças públicas,
instituiu o regime de administração especial temporária, cuja decretação não afeta o curso regular
dos negócios nem o funcionamento normal da instituição bancária. Afinal, dispunha o novo texto
legal que, decretado esse regime especial, o Banco Central poderia, como objetivo de prover o
saneamento econômico ou financeiro da instituição, utilizar recursos da reserva monetária ou, não
sendo esses suficientes, adiantá-los a esse título, depois incluindo os valores correspondentes na
proposta orçamentária do exercício subseqüente, conforme estabelecia o art. 9º, par. ún. do
aludido decreto-lei.”
170
Conseqüentemente, vários bancos foram ungidos pelo regime então
criado, tendo sido o controle acionário dos mesmos, num primeiro momento,
transferido para a União e, depois, foram privatizados, como foi o caso tanto do
Banco do Estado de São Paulo – BANESPA, quanto do Banco do Estado do Rio
de Janeiro – BANERJ.
Posto isso, cumpre assentar que, em quaisquer dos casos de regime
especial, o Banco Central do Brasil procederá a inquérito, conduzido por uma
comissão pelo mesmo nomeada, com já antes referido, com amplos poderes de
investigação e que deverá apresentar, no prazo estabelecido, relatório no qual
apontará as causas do regime, o montante dos prejuízos causados, se for o caso,
e informará os administradores que estiveram à frente da instituição nos últimos 5
(cinco) anos.
Deve ser destacado que o arcabouço normativo básico dos regimes
especiais e que tem se mantido intacto já de longa data, não obstante a
extraordinária gama de transformações sociais, econômicas e políticas ocorridas
ao longo do tempo, sempre provocou uma série considerável de questionamentos
quanto à natureza de seus dispositivos, bem como no que se refere à sua própria
constitucionalidade.
Assim, são comuns discussões acerca do caráter discricionário ou
vinculado do ato da autoridade monetária que decreta o regime especial que
entende cabível, entendendo alguns que não há uniformidade no enquadramento
da questão e das respectivas soluções, as quais são diferenciadas quanto ao
tratamento conferido aos administrados.
Também vicejam embates acerca da natureza sancionatória ou não
de alguns efeitos ex lege decorrentes do próprio ato administrativo que submete a
instituição a regime especial, dentre eles o afastamento dos administradores dos
cargos que até então ocupavam e, nos casos de intervenção e de liquidação
171
extrajudicial, a própria retirada da instituição do segmento em que atuava ou
mesmo a conseqüente indisponibilidade que passa a onerar os bens dos então
administradores, tida por alguns como atentatória ao direito de propriedade
constitucionalmente garantido.
Verifica-se também a presença de opiniões contraditórias acerca da
necessidade de observância do direito de defesa previamente à decretação de
regime especial, concedendo aos administradores a oportunidade de proporem
soluções, oferecerem esclarecimentos, ou mesmo de demonstrarem que não se
fazem presentes razões que justifiquem a adoção de medida tão extremada.
Por força disso é que algumas dessas questões serão enfrentadas
logo adiante, dada a importância de que se revestem, quando se buscará trazer
para discussão considerações envolvendo as posições existentes a respeito de
cada uma delas.
172
2. Decretação/cessação: ato discricionário ou vinculado ?
No plano estritamente de direito positivo, dispõe a Lei 6.024/74, em
seu artigo 1º, que “as instituições financeiras privadas e as públicas não federais,
assim como as cooperativas de crédito, estão sujeitas, nos termos desta Lei, à
intervenção e à liquidação extrajudicial, em ambos os casos efetuada e decretada
pelo Banco Central do Brasil, sem prejuízo do disposto nos artigos 137 e 138 do
Decreto-lei nº. 2627, de 26 de setembro de 1940, ou à falência, nos temos da
legislação vigente”.
O artigo 2º daquela mesma lei estabelece que, basicamente, far-se-á
a intervenção quando a entidade sofrer prejuízo, decorrente de má administração,
que sujeite a risco os seus credores ou quando forem verificadas reiteradas
infrações aos dispositivos da legislação bancária, não regularizadas após
determinação do Banco Central do Brasil.
No artigo 15, da mesma norma, são arroladas como causas de
decretação da liquidação extrajudicial as ocorrências que comprometam a
situação patrimonial da instituição, especialmente quando deixar de satisfazer
compromisso, bem como quando violadas gravemente normas legais e
estatutárias pertinentes ou ainda quando sofrer prejuízo que sujeite a risco
anormal os seus credores quirografários.
Por sua vez, o Decreto-lei nº. 2.321, de 25 de fevereiro de 1987,
prescreve, no seu artigo 1º, que “o Banco Central do Brasil poderá decretar regime
de administração especial temporária, na forma regulada por este decreto-lei, nas
instituições financeiras privadas e públicas não federais, autorizadas a funcionar
nos termos da Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964 (...)”.
Em sua parte final, o artigo enumera como causas para decretação
do regime especial a prática reiterada de operações contrárias às diretrizes de
173
política econômica ou financeira traçadas em lei federal, a existência de passivo a
descoberto, o descumprimento das normas referentes à conta de Reservas
Bancárias mantida junto ao Banco Central do Brasil, a gestão temerária ou
fraudulenta por seus administradores ou a ocorrência de quaisquer das situações
previstas no artigo 2º, da Lei 6.024, de 13 de março de 1974.
Posto isso, cabe definir se o ato administrativo praticado pelo Banco
Central do Brasil, submetendo uma instituição subordinada ao seu poder de
polícia a um dos regimes especiais previstos naquelas normas, caso verificado
qualquer dos pressupostos legalmente previstos, caracterizar-se-ia como exercício
de competência discricionária ou vinculada.
Fundamentalmente, o objetivo é saber se o legislador ordinário, ao
baixar os dispositivos legais antes aludidos, conferiu à Administração Pública, no
caso ao Banco Central do Brasil, a possibilidade de exercer alguma margem de
apreciação subjetiva, no sentido de adotar ou não aquelas medidas extremas
legalmente previstas.
Examinando, mais uma vez, os conceitos de discricionariedade e
vinculação, Maria Sylvia Zanella Di Pietro209 diz que “pode-se, pois, concluir que a
atuação da Administração Pública no exercício da função administrativa é
vinculada quando a lei estabelece a única solução possível diante de determinada
situação de fato; ela fixa todos os requisitos cuja existência a Administração deve
limitar a constatar, sem qualquer margem de apreciação subjetiva”.
Na mesma passagem, a autora afirma que “a atuação é discricionária
quando a Administração, diante do caso concreto, tem a possibilidade de apreciá-
209
Direito Administrativo, 3ª ed., Ed. Atlas, p. 161
174
la segundo critérios de oportunidade e conveniência e escolher uma dentre duas
ou mais soluções, todas válidas para o Direito“.
Normalmente, é possível inferir dos próprios termos da lei se a
atuação da Administração Pública será vinculada ou discricionária, no sentido de
conceder ou não ao seu destinatário alguma margem de discricionariedade,
concedendo-lhe ou negando-lhe, expressa ou implicitamente, a possibilidade de
decidir pela prática do ato ou mesmo, dentre vários deles, juridicamente legítimos,
escolher a alternativa que se apresente como a mais indicada.
No caso presente, entendemos que o legislador ordinário não tomou
para si a totalidade da competência discricionária de que poderia, em tese, dispor,
na medida em que, como sugere o conjunto normativo pertinente, transferiu parte
dela para o executor ou aplicador das normas, ou seja, o Banco Central do Brasil.
Examinando os textos legais, nas passagens em que fazem
expressa menção à decretação de regimes especiais pelo Banco Central do
Brasil, parece-nos que a dicção dos mesmos não permite que se extraia um
comando imperativo, mas sim faculta ao ente público, diante de certas situações
que a própria lei enumera, decretar um regime especial e, ainda, dentre as
espécies possíveis, optar por uma delas.
Quanto ao artigo 1º, do Decreto-Lei 2.321/87, não há qualquer
dúvida sobre a natureza discricionária da competência outorgada, posto estar ali
estabelecido que “o Banco Central do Brasil poderá decretar regime de
administração especial temporária, na forma prevista por este decreto-lei (...)”.
175
Já o artigo 1º, da Lei 6.024/74, prescreve que “as instituições
financeiras privadas e as públicas não federais, assim como as cooperativas de
crédito, estão sujeitas, nos termos desta lei, à intervenção ou à liquidação
extrajudicial (..)”.
No que toca à intervenção, diz o artigo 2º, da mesma lei, que “far-seá a intervenção quando se verificarem as seguintes anormalidades (...)”, ao passo
que o artigo 15, do mesmo diploma legal preconiza que “decretar-se á liquidação
extrajudicial da instituição financeira”, enumerando a seguir situações que a
ensejariam.
No entanto, o parágrafo primeiro do próprio artigo 15 dispõe que “o
Banco Central do Brasil decidirá sobre a gravidade dos fatos determinantes da
liquidação extrajudicial considerando as repercussões deste sobre os interesses
dos mercados financeiro e de capitais, e, poderá, em lugar da liquidação, efetuar a
intervenção, se julgar esta medida suficiente para a normalização dos negócios da
instituição e preservação daqueles interesses”.
Evidentemente, trata-se de norma que atribui uma faculdade ao ente
regulador que, com fundamento nos próprios interesses dos mercados, os quais,
em última instância, representam o interesse público envolvido, poderá avaliar,
discricionariamente, qual a medida que melhor venha a atender àqueles objetivos
e decretar a medida que lhe pareça a mais conveniente e oportuna.
Para além disso, é a Lei 9.447, de 14 de março de 1997, já referida
em passagem anterior, que elucida de forma definitiva a indagação trazida à
discussão, deixando assentado o caráter discricionário conferido à competência
outorgada ao Banco Central do Brasil, no sentido de decretar ou não um dos
regimes
especiais,
já
que
remete
àquela
entidade
a
faculdade
de,
176
preliminarmente, e a seu critério, lançar mão de outros instrumentos típicos do
exercício de poder de polícia, nas situações da espécie.
Nesse sentido, prevê o artigo 5º da mencionada lei que, verificado
um daqueles pressupostos que autorizariam a decretação de regime especial, fica
facultado ao Banco Central do Brasil, visando justamente tutelar o interesse
público pertinente, determinar que a instituição financeira promova ou a
capitalização da empresa, ou a transferência de seu controle acionário ou, ainda,
a reorganização societária, mediante incorporação, fusão ou cisão. Nos termos da
mesma norma, determinada qualquer daquelas medidas e verificada a sua não
implementação, decretar-se-á o regime especial cabível.210
Além disso, o caráter discricionário daqueles dispositivos emana do
fato de que determinadas situações neles previstas demandam uma ação
valorativa do destinatário da norma, seja quando se referem expressamente a
prejuízo que sujeite a risco anormal a instituição, seja na passagem em que se faz
menção a ocorrências que comprometam a situação econômica ou financeira da
instituição, ou ainda quando aponta a eventual existência de passivo a descoberto.
Certamente, a definição acerca daqueles eventos não pode
prescindir da intermediação do órgão regulador na aplicação da lei, considerando
não só a sua proximidade dos fatos, mas principalmente os aspectos de natureza
210
“Art. 5º. Verificada ocorrência de qualquer das hipóteses previstas nos arts. 2º e 15, da Lei nº.
6.024, de 1974 e no art. 1º do Decreto-Lei nº. 2.321, de 1987, é facultado ao Banco Central do
Brasil, visando assegurar a normalidade da economia pública e resguardas os interesses dos
depositantes, investidores e demais credores, sem prejuízo da posterior adoção dos regimes de
intervenção, liquidação extrajudicial ou administração especial temporária, determinar as seguintes
medidas:
I – capitalização da sociedade, com o aporte de recursos necessários ao seu soerguimento, em
montante por ele fixado:
II – transferência do controle acionário;
III – reorganização societária, inclusive mediante incorporação, fusão ou cisão.
Parágrafo único. Não implementadas as medidas de que trata este artigo no prazo estabelecido
pelo Banco Central do Brasil, decretar-se-á o regime especial cabível.”
177
estritamente técnica que obrigatoriamente deverão orientar a conclusão acerca da
presença ou não daqueles pressupostos aventados na descrição legal.
A fim de referendar a conclusão posta, cabe considerar que a própria
definição acerca da existência de passivo a descoberto está condicionada ao
critério técnico observado pelo Banco Central do Brasil, no sentido de resolver
deduzir ou não do patrimônio contábil de instituição sob sua fiscalização créditos
que, a seu juízo, não tenham perspectivas de realização.
A propósito, importante assinalar que as normas que regem a
atuação do Banco Central do Brasil, particularmente no que se refere ao exercício
do poder de policia que lhe é correlato, têm como escopo resguardar, como já
frisado, o interesse público representado pelos valores inerentes à estabilidade e
solidez do Sistema Financeiro Nacional e, assim, resguardar os interesses dos
investidores e credores, como acentuado no art. 9º, da Lei 4595/64 e na
Resolução 1065/85, do Conselho Monetário Nacional.
Consequentemente, o Banco Central do Brasil, no cumprimento de
suas atribuições legais de proceder à fiscalização das instituições sujeitas ao seu
poder de polícia, percebendo que algum daqueles interesses legalmente tutelados
restou agredido, tem à sua disposição, como já mencionado, o devido aparato
legal que lhe autoriza atuar, de forma preventiva ou repressiva, implementando as
medidas que, ao amparo da lei, venha a entender cabíveis, como também
reconhece Francisco José de Siqueira.211
211
Ob. cit. p. 45: “Nesse contexto, pois, a função de saneamento do mercado, a cargo do Banco
Central, não se restringe ao afastamento das instituições bancárias, por dificuldades verificadas no
sem ambiente operacional. Tem o governo a responsabilidade de atuar preventivamente, evitando
que o mal ocorra. Daí, é necessário aparelhar a autoridade pública, responsável pela condução
desse processo, de um arsenal normativo suficiente para lhe permitir o manejo oportuno dos
mecanismos postos à sua disposição, visando o saneamento do sistema bancário, com a solução
dos problemas de liquidez, momentânea, que são inevitáveis nesse segmento da atividade
econômica.”
178
O instrumental que lhe disponibiliza o legislador ordinário se estende
desde uma simples interpelação solicitando esclarecimentos e adoção de medidas
corretivas, passando pela instauração de processos administrativos punitivos, o
que pode provocar as espécies de sanções em outra parte comentadas,
culminando na decretação de regimes especiais, o que, a nosso ver, como será
oportunamente abordado, também provoca o surgimento, ex lege, de sanções de
natureza administrativa.
Nota-se, pois, que caberá ao Banco Central do Brasil, em cada caso,
observados os parâmetros discricionários legalmente estabelecidos, de forma
implícita ou explicita, adotar a medida que venha a entender adequada para o
caso e que, repita-se, deverá se ater aos limites traçados pelo regime jurídicoadministrativo.
Sobre o tema, Luiz Alfredo Paulin,212 em trabalho no qual muito
embora aborde a questão relativa à obrigatoriedade ou não de instauração de
processo administrativo sancionatório pelo Banco Central do Brasil, diante da
constatação de condutas administrativamente ilícitas, faz algumas observações
importantes a respeito e que, certamente, são válidas também para as situações
ora enfrentadas.
Naquele artigo, o autor, discorrendo sobre “os instrumentos que são
colocados à disposição das autoridades, objetivando a normalidade no mercado
financeiro, bem como quais os parâmetros para a utilização de cada um deles”,
assevera
que
“em verdade, a
ocorrência
de
uma dada
conduta
em
desconformidade com as normas ou regulamentos, coloca a autoridade diante de
algumas alternativas”.
212
Dos meios passíveis de utilização pelo Banco Central do Brasil, no combate às irregularidades
praticadas por instituições financeiras, Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, Ano
2, nº. 6, RT, São Paulo, setembro/dezembro de 1999, p. 90/105.
179
Após efetuar assertivas sobre ditas alternativas, o tratadista
considera que “a despeito de admitir a possibilidade de a autoridade escolher o
instrumento convincente para combater irregularidades, deve-se reconhecer
inexistir espaço para uma escolha fora de parâmetros, isto é, arbitrária”.
Com base na premissa acima, conclui o autor que deve a autoridade
orientar a sua escolha tendo como referências principalmente o princípio da
proporcionalidade e o dever de eficiência, os quais se desconsiderados poderão
comprometer irremediavelmente a conduta do administrador público e redundar na
invalidade do ato.
Em vista de todo o exposto, afigura-se como entendimento abrigado
pela segurança jurídica concluir que, no caso de decisão pela decretação ou não
de regimes especiais, a decisão proferida pela entidade reguladora de mercado
reveste-se de caráter discricionário, o que, entretanto, jamais pode significar que é
dado à Administração Pública o poder de, a seu exclusivo talante, decidir por
critérios absolutamente subjetivos, desagregados do regime jurídico que lhe é
peculiar e obrigatório.
Não fora por outras razões também de ordem jurídica, a
Administração Pública está jungida, dentre outros, ao princípio da razoabilidade,
de anterior construção doutrinária e jurisprudencial e, hoje, positivado no art. 2º.,
da já referida Lei 9.784/99, conforme exposto por Celso Antônio Bandeira de
Mello.213
213
Curso de Direito Administrativo, 11ª ed., Malheiros, p. 66: “Enuncia-se com este princípio que a
Administração, ao atuar no exercício da discrição, terá de obedecer a critérios aceitáveis do ponto
de vista racional, em sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e respeitosas das
finalidades que presidiram a outorga da competência exercida. Vale dizer: pretende-se colocar em
claro que não serão apenas inconvenientes, mas também ilegítimas – e, portanto,
jurisdicionalmente invalidáveis – as condutas desarrazoadas, bizarras, incoerentes ou praticadas
em desconsideração às situações e circunstâncias que seriam atendidas por quem tivesse
atributos normais de prudência, sensatez e disposição de acatamento às finalidades da lei
atributiva da discrição manejada. Com efeito, o fato de a lei conferir ao administrador certa
liberdade (margem de discrição), significa que lhe deferiu o encargo de adotar, ante à diversidade
180
Claro está, dessa forma, que ainda quando Administração Pública
tenha sua atuação pautada pela discricionariedade, esta deverá estar associada à
observância do princípio da razoabilidade e que este, a seu turno, é balizado pelo
princípio da finalidade, o qual se constitui em vetor máximo da própria ciência do
direito, conforme assevera Carlos Maximiliano214 e que, de forma especial, deve
nortear todos os atos administrativos.
Mas a questão acerca do exercício de competência discricionária não
se esgota naquilo que se refere ao momento de decisão pela decretação ou não
de regimes especiais, cabendo ser cogitada também no que se refere à decisão
pela cessação ou não daquelas situações extravagantes, tendo presentes as
normas específicas sobre a questão.
de situações a serem enfrentadas, a providência mais adequada a cada qual delas. Não significa,
como é evidente, que lhe seja outorgado o poder de agir ao sabor exclusivo de seu arbítrio, de
seus humores, paixões pessoais, excentricidades ou critérios personalíssimos, e muito menos
significa, que liberou a Administração para manipular a regra de direito de maneira a sacar dela
efeitos não pretendidos nem assumidos pela lei aplicanda. Em outras palavras: ninguém poderia
aceitar como critério exegético de uma lei, que esta sufrague providências insensatas que o
administrador queira tomar; é dizer, que avalize previamente condutas desarrazoadas, pois isto
corresponderia a irrogar dislates à própria regra de direito. Deveras: se com outorga de discrição
administrativa pretende-se evitar a prévia adoção em lei de uma solução rígida, única – e por isso
incapaz de servir adequadamente para satisfazer, em todos os casos, o interesse público
estabelecido na regra aplicanda – é porque através dela visa-se à obtenção da medida ideal que,
em cada situação, atenda de modo perfeito à finalidade da lei.É óbvio que uma medida
administrativa desarrazoada, incapaz de passar com sucessos pelo crivo da razoabilidade, não
pode estar conforme à finalidade da lei. Donde, se padecer deste defeito, será, necessariamente,
violadora do princípio da finalidade. Isto equivale a dizer que será ilegítima, conforme visto, pois a
finalidade integra a própria lei. Em conseqüência será anulável pelo Poder Judiciário, a instâncias
do interessado. Fácil é ver, pois, que o princípio da razoabilidade fundamenta-se nos mesmos
preceitos que arrimam constitucionalmente os princípios da legalidade (arts. 5º, II, 37 e 84) e da
finalidade (os mesmos e mais art. 5º, LXIX, nos termos já apontados ).”
214
Hermenêutica e Aplicação do Direito, 11ª ed., Forense, São Paulo, p. 151/52: “Considera-se o
Direito como uma ciência primariamente normativa ou finalística; por isso mesmo sua interpretação
há de ser, na essência, teleológica. O hermeneuta sempre terá em vista o fim da lei, o resultado
que a mesma precisa atingir em sua atuação prática. A norma enfeixa um conjunto de providências
protetoras, julgadas necessárias para satisfazer certas exigências econômicas e sociais; será
interpretada de modo que melhor corresponde àquela finalidade e assegure plenamente a tutela de
interesse para a qual foi redigida.”
181
O artigo 7º, da Lei 6.024/74, estabelece que a intervenção cessará
quando, a critério do Banco Central do Brasil, a situação da entidade se houver
normalizado, ou se decretada a liquidação extrajudicial ou falência da sociedade.
Pela própria dicção do texto legal, parece-nos que a hipótese de
normalização da entidade, ocorrente a critério do Banco Central do Brasil, como
veio a ser facultado pelo legislador ordinário, está a indicar claramente a
possibilidade do exercício de competência discricionária por parte do ente
regulador.
Da mesma forma acreditamos que se possa concluir naquilo que se
relaciona ao término do regime de administração especial temporária, no caso da
alínea “b”, do artigo 14, do Decreto-lei 2.321/87 que, igualmente, prevê a cessação
do regime “quando, a critério do Banco Central do Brasil, a situação da instituição
se houver normalizado”.
Evidentemente, a conclusão acerca da dita normalização da
instituição financeira não pode resultar, sob pena de invalidade do ato
administrativo respectivo, de decisão arbitrária da autoridade administrativa, como
já comentado, posto que se encontra submetida ao regime jurídico-administrativo,
devendo sua atuação ser guiada, principalmente, pela correta observância dos
princípios que lhe são ínsitos.
No que tem a ver com a liquidação extrajudicial, determina o artigo
19, da Lei 6.024/74, que cessará aquele regime “se os interessados, apresentando
as necessárias condições de garantia, julgadas a critério do Banco Central do
Brasil, tomarem a si o prosseguimento das atividades econômicas da empresa”.
182
Como se extrai do dispositivo legal, a cessação daquela situação
excepcional está condicionada a duas distintas manifestações de vontade,
representadas, de um lado, pela apresentação de proposta dos interessados e, de
outro, pela concordância do Banco Central do Brasil no que se refere aos
aspectos aventados na norma de regência.
Por certo, naquilo que diz respeito à postura do ente público, está
explicitado o deferimento de alguma atuação discricionária no que concerne à
aceitabilidade das garantias oferecidas, cabendo, no entanto, verificar onde estaria
localizada essa discricionariedade e, consequentemente, determinar o seu raio de
atuação.
A mesma observação se aplica aos casos de cessação da
intervenção ou do regime de administração especial temporária, posto que os
dispositivos legais pertinentes também deferem ao Banco Central alguma
competência discricionária no que respeita a considerar normalizada a situação
das instituições submetidas àqueles regimes excepcionais.
Conforme relata Maria Sylvia Zanella di Pietro,215 é aceito que as
normas jurídicas compõem-se de duas partes, constituídas pela sua própria
hipótese, onde são descritos os fatos possíveis de se verificar no mundo
fenomênico e, ainda, pelo seu mandamento, onde são definidas as consequências
jurídicas resultantes dos fatos descritos, de modo que, em se realizando a
hipótese, segue-se a aplicação do mandamento.
215
Ob. cit. p. 78: “Se se analisa qualquer estado de coisas consideradas pelo Direito, como por
exemplo uma resolução parlamentar, um ato administrativo, uma sentença judicial, um delito,
podem-se distinguir dois elementos: um deles é um ato sensorialmente perceptível, que tem lugar
no tempo e no espaço, um acontecimento exterior, o mais das vezes uma conduta humana; o outro
é um sentido assim como imanente ou aderente a esse ato ou acontecimento, uma significação
específica”, ou seja, a significação do ato perante o direito. A partir daí, reconhece-se que as
normas jurídicas constam de duas partes: hipótese da norma, onde se descrevem os fatos que
podem ocorrer, e o mandamento da norma, onde se definem as consequências jurídicas dos fatos
descritos. Ocorrendo o fato que a hipótese da norma descreve, incide o mandamento.”
183
Ainda segundo a mesma autora, “a discricionariedade está na
hipótese da norma quando os pressupostos de fato por ela enunciados (motivos
do ato administrativo) são descritos mediante os chamados conceitos práticos, ou
seja, determinados por meio de palavras vagas, imprecisas, como pobreza e
notável saber”.
Continua a doutrinadora: “a discricionariedade está no mandamento
quando a norma facultar um comportamento, ao invés de exigi-lo”, ao passo que
“está na finalidade, quando esta é expressa por meio dos referidos conceitos
práticos, como moralidade pública”.
Na específica situação sob análise, presente que a norma elege
como pressuposto a apresentação de “necessárias condições de garantia,
julgadas a critério do Banco Central do Brasil (...)”, é forçoso concluir que a
discricionariedade reside na hipótese da norma, posto que colocado à apreciação
do aplicador na norma um daquele denominados conceitos práticos, dotados de
certa imprecisão de conteúdo e que demandam a intermediação do destinatário da
regra.
Nesse sentido e em artigo tratando exatamente dessa questão,
Celso Antônio Bandeira de Mello216 entende que é precisamente no tópico da
hipótese legal que se localiza, no caso, a outorga de competência discricionária,
estando o Banco Central do Brasil, diante da autorização legal, investido na
competência de se manifestar e concluir sobre a existência das garantias
necessárias ou satisfatórias quanto ao atendimento do interesse público.
216
Direito Administrativo Contemporâneo, Estudos em Homenagem ao Professor Manoel de
Oliveira Franco Sobrinho, Vinculação e Discrição nas Liquidações Extrajudiciais, Editora Fórum,
Belo Horizonte, 2004. p. 107: “Sua discrição – que efetivamente existe – reside em outro tópico,
pois concerne sobre a existência ou inexistência de garantias necessárias à conveniência pública.
A análise a ser feita segundo o critério do Banco Central não é relativa à continuidade ou cessação
da medida; é relativa à subsistência de garantias satisfatórias, em face de conveniências gerais”.
184
Já no que diz respeito ao mandamento da norma, presente o seu
caráter imperativo, não subsiste qualquer dúvida, sob nossa ótica, quanto a se
tratar de caso típico de competência vinculada, na medida em que o comando é
no sentido de que cessará a liquidação, uma vez considerado atendido o
pressuposto descrito na hipótese, como também reconhece o mesmo Celso
Antônio Bandeira de Mello217 no artigo antes referido.
Como adverte o doutrinador em passagem adiante, “no caso
vertente, o mandamento, isto é, o conteúdo prescritivo da norma, nega qualquer
discrição, ou seja, ao invés de facultar, impõe. Enuncia em termos objetivos e
inadversáveis qual o único admissível comportamento do BACEN perante
qualquer das hipóteses arroladas no artigo 19 (...)”.
A advertência endereçada pelo doutrinador alcança também a
decisão da autoridade administrativa pela cessação dos regimes de intervenção e
de administração especial temporária, em virtude de os pertinentes dispositivos
comandarem de forma imperativa ao adotar, no que respeita aos respectivos
mandamentos das normas, a comum expressão “cessará”.
Trata-se, pois, de norma que vincula o comportamento do agente
administrativo naquilo que respeita aos mandamentos das normas aplicáveis,
apontando-lhe de modo peremptório a única atitude que, consoante entende o
legislador, virá a realizar o interesse público objetivado, conforme atesta o mesmo
Celso Antônio Bandeira de Mello.218
217
Ob. cit.: “Em suma: não há discrição no mandamento da norma (“cessará”). A discrição
existente decorre de que a integração da hipótese (na letra “a”) depende de um juízo subjetivo do
BACEN (“a critério do Banco Central”). Com efeito, o art. 19 não diz, na letra “a”, que “oferecidas as
garantias necessárias, o Banco Central, a seu critério, cessará a liquidação”, mas, pelo contrário,
diz que ‘a liquidação cessará se os interessados, apresentando as necessárias condições de
garantia, julgadas a critério... etc.’.”
218
Ob. cit. p. 33: “Se a lei regula vinculadamente a conduta administrativa, está com isto
declarando saber qual o comportamento único que, a seu juízo, atenderá com exatidão, nos casos
185
A propósito, acresce ainda pontuar que, uma vez materializada a
proposta de encerramento do regime, e sendo consideradas satisfatórias as
garantias apresentadas ou sendo normalizada a situação das instituições, não
subsistiria razão para que a autoridade administrativa viesse a concluir, a seu
talante, pela continuidade do regime especial, sob pena de ofensa, inclusive, ao
princípio da eficiência, expressamente positivado no art. 37, da Constituição
Federal.
Não encontraria respaldo jurídico pretender a Administração Pública
estender no tempo, mobilizando pessoas e recursos, um regime excepcional que
já exauriu as suas finalidades, não apresenta mais uma justa causa e cuja
manutenção não mais atende o interesse público. Nesse sentido têm se
manifestado nossas instâncias jurisdicionais, como exemplifica o acórdão a seguir:
“Administrativo – Banco Central do Brasil –
Sociedade Corretora – Liquidação Extrajudicial –
Ausência de Justa Causa – Falta do Serviço – Lei nº
6.024/74, art. 15.
- A liquidação extrajudicial de instituição financeira
é
decretada,
de
ofício,
quando
ocorrência
que
comprometa
financeira
ou
econômica,
a
se
constata
sua
situação
tal
como
a
impontualidade na satisfação dos compromissos
ou a caracterização de situação que autorize a
decretação da falência (Lei nº 6.024/74, art. 15, I, a).
- É descabida e ilegal a liquidação extrajudicial de
empresa que, embora se encontre em débito com o
concretos, o interesse público por ela almejado. Daí que pré-selecionou o ato a ser praticado e o
fez obrigatório, excluindo qualquer interferência do administrador na apreciação dos fatos
deflagradores da aplicação da norma e qualquer avaliação quanto à providência mais adequada
para atender a finalidade legal.”
186
seu banco custodiante, mantenha suficiente lastro
em letras financeiras do tesouro, sob custódia do
Banco Central, o que desautoriza a denúncia do
convênio para a prestação de serviços relativos ao
Sistema Especial de Liquidação e Custódia –
SELIC.
- Constatada a ausência de justa causa para a
liquidação
extrajudicial,
pressuposto
já
fático
que
baseada
inexistente,
em
com
pronunciamento subseqüente de inexistência de
prejuízo – arquivamento do inquérito com base no
art. 44 da Lei nº 6.024/74, configura-se falta do
serviço, impondo-se a desconstituição do ato
interventivo.
- Apelação e remessa oficial desprovidas.”
(Apelação
em
91.01.062506/DF,
Mandado
Rel.
Juiz
de
Segurança
Vicente
Leal,
nº
j.
06.04.1992, maioria).
187
3. Sanções “ex lege”
Numa primeira aproximação do tema, é de se assinalar que é
inseparável da idéia de sanção, no seu sentido amplo, a noção de dever jurídico
como pressuposto necessário para a sua imposição, o qual é representado pela
obrigação dirigida aos sujeitos de direito no sentido de observar o seu dever
genérico de subordinar-se à lei e de abster-se do ilícito, conforme explicitado por
Hans Kelsen.219
O mesmo Kelsen220 desenvolveu o conceito de direito jurídico,
entendendo-o como aspecto correlato do dever jurídico, em vista da sua
característica de faculdade da qual dispõe alguém, em vista daquele dever
estabelecido, de obter a conduta à qual um outro está juridicamente obrigado,
sendo que, nas relações aqui tratadas, o titular desse direito seria a própria
Administração Pública.
O
autor221
cuidou
também
de
construir
o
conceito
de
responsabilidade jurídica, entendendo-a como a atribuição a alguém do resultado
de uma conduta antijurídica, pelo que deverá o faltoso arcar com a respectiva
219
Teoria Geral do Direito e do Estado, Martins Fontes, 2000, 3ª ed., 2ª tiragem, ps. 83/84: “Ele
está juridicamente obrigado a abster-se do delito; se o delito for certa ação positiva, ele é obrigado
a não empreender essa ação. Um indivíduo está juridicamente obrigado à conduta cujo oposto é a
sanção dirigida contra ele (ou contra os indivíduos que tem contra ele certa relação juridicamente
determinada. Ele ‘viola’ o seu dever (ou obrigação), ou, o que redunda no mesmo, ele comete um
delito quando se comporta de maneira tal que sua conduta seja a condição de uma sanção; ele
cumpre seu dever (obrigação), ou, o que redunda no mesmo, se abstém de cometer um delito,
quando sua conduta é oposta a este. Assim, estar juridicamente obrigado a certa conduta significa
que a conduta contrária é um delito e, como tal, é a condição de uma sanção estipulada por uma
norma jurídica; assim, estar juridicamente obrigado significa ser o sujeito potencial de um delito, um
delinquente potencial”.
220
Ob. citada, p. 108: “Se o direito for um direito jurídico, ele é necessariamente um direito sobre a
conduta de outra pessoa, um direito de obter a conduta à qual o outro está juridicamente obrigado.
Um direito jurídico pressupõe um dever de outra pessoa. Isso é auto-evidente caso falemos de um
direito sobre a conduta de outra pessoa”.
221
Ob. cit. ps. 93 e 99: “Um conceito relacionado ao de dever jurídico é o conceito de
responsabilidade jurídica. Dizer que uma pessoa é juridicamente responsável por certa conduta ou
que ela arca com a responsabilidade jurídica por essa conduta significa que ela está sujeita a
sanção em caso de conta contrária”. Ainda conforme o autor: “No direito dos povos civilizados, o
indivíduo que é obrigado a certa conduta normalmente também é o responsável por essa conduta”.
188
responsabilização, por vezes imputada por aquele que tinha o direito jurídico de
exigir o comportamento fixado pelo ordenamento jurídico, fazendo surgir, desse
modo, a possibilidade de aplicação da correspondente sanção.
Segundo Bobbio222, o grupo social organizado, com a pretensão de
contrapor-se à ausência de eficácia da sanção interna, bem como evitar também
os inconvenientes da sanção externa não institucionalizada, representados pela
desproporção entre violação e resposta, criou o instituto da sanção e, dessa
forma, além de regular as condutas das pessoas, passou também a estabelecer a
reação cabível diante de comportamentos em desconformidade com a ordem
estabelecida.
Ainda de acordo com o autor, a sanção jurídica se distingue das
demais categorias típicas de outras ciências sociais por se traduzir em uma
resposta externa e institucionalizada da sociedade e que integra e completa,
organicamente, ao lado do preceito primário, o conjunto normativo. Assim,
distingue-se da sanção moral por ser externa, bem como se diferencia da social
por ser institucionalizada.
Cabe ainda agregar que, num sentido abstrato, a sanção
considerada de maneira genérica, sem a sua efetiva associação a um regime
jurídico peculiar e, portanto, como instituto da teoria geral do direito, nada mais é
do que a resposta do aparelho estatal, em quaisquer de sua variadas formas, a
um comportamento indesejável, conforme atesta Hugo de Brito Machado.223
222
Teoria da Norma Jurídica, Edipro, São Paulo, 2003: “Com o objetivo de evitar os inconvenientes
da sanção interna, isto é, sua escassa eficácia, e os da sanção externa não institucionalizada,
sobretudo a falta de proporção entre violação e resposta, o grupo social institucionaliza a sanção,
ou seja, além de regular os comportamentos dos cidadãos, regula também a reação aos
comportamentos contrários. Esta sanção se distingue da moral por ser externa, isto é, por ser uma
resposta de grupo, e da social por ser institucionalizada, isto é, por ser regulada, em geral, com as
mesmas formas e através das mesmas fontes de produção das regras primárias.”
223
Ilícito tributário, Revista dos Tribunais 709:287, 1994: “Sanção é o meio de que se vale a ordem
jurídica para desestimular o comportamento ilícito. Pode limitar-se a compelir o responsável pela
inobservância da norma ao cumprimento de seu dever, e pode constituir num castigo, numa
penalidade, a esse cominada.”
189
Considerado
o
exposto,
interessante
trazer
à
discussão
o
pensamento manifestado por Daniel Ferreira224 que, após elaborar a definição de
sanção, na sua abrangência ampla, procede ao seu confinamento aos lindes
administrativos e nessa órbita restrita a entende como “a direta e imediata
conseqüência jurídica, restritiva de direitos, de caráter repressivo, a ser imposta no
exercício
da
função
administrativa,
em
virtude
de
um
comportamento
juridicamente proibido, comissivo ou omissivo”.
No dizer de Celso Antônio de Bandeira de Mello,225 infração e sanção
administrativa são conceitos estreitamente ligados, previstos em diferentes partes
da norma jurídica e que demandam estudo conjunto a fim de evitar qualquer
prejuízo quanto à inteligência acerca da compreensão de cada um daqueles
temas.
Na lição do autor, infração administrativa é o não cumprimento, de
forma consciente, de uma norma de natureza administrativa para a qual o
ordenamento prevê uma sanção a ser imposta e decidida por uma autoridade no
exercício da função administrativa,
Também é oportuno ressaltar que o mesmo Daniel Ferreira226, ao
empreender a classificação das sanções administrativas sob o prisma das
restrições delas originadas, considera que as mesmas são orientadas na direção
de atingir o patrimônio moral ou econômico dos administrados ou, ainda,
224
Sanções Administrativas, Malheiros, 2001, p. 25: “(...) a direta e imediata conseqüência jurídica,
restritiva de direitos, de caráter repressivo, determinada pela norma jurídica a um comportamento
proibido nela previsto, comissivo ou omissivo, dos seus destinatários.”
225
Curso de Direito Administrativo, 22ª ed., Malheiros, São Paulo, 2007.
226
Ob. cit. ps. 45/46: “(...) para mantermos fidelidade ao nosso conceito de sanção, o primordial
parâmetro para classificação das sanções deve ser o da própria conseqüência (restrição de
direitos) imposta a cada caso concreto. Em razão disso, podem ser as sanções: a) restritivas da
liberdade – que, por isso mesmo, só podem ocorrer com pessoas (...); b) restritivas de atividades
(de pessoa humana ou jurídica) – aqui inseridas as de inabilitação, perda ou suspensão de direitos
(de dirigir, de fabricar, etc.); interdição ou fechamento de estabelecimentos; intervenção
administrativa; suspensão e demissão de servidor (...); c) restritivas do patrimônio moral (de
pessoa humana ou jurídica) – são aquelas constitutivas de admoestações ao infrator, como as de
advertência, repreensão e censura; d) restritivas do patrimônio econômico (da pessoa humana ou
jurídica) – ou seja, as de natureza pecuniária (multas) e as de perda de bens (...).”
190
objetivando cercear-lhes a liberdade ou o exercício de atividades, enumerando
dentre estas últimas a inabilitação, a interdição ou fechamento de estabelecimento
e a intervenção administrativa, classificação esta que guarda semelhança com a
proposta por Adolfo Carretero Perez e Adolfo Carretero Sanches.227
Posto o conceito de sanção administrativa e deixando consignado
que se percebe uma certa homogeneidade entre os autores no enfrentamento da
questão, não fugindo, na essência, do conceito acima reproduzido, impõe-se
verificar os modos pelos quais se procede à aplicação das sanções daquela
natureza, buscando elucidação acerca da exigência ou não, em qualquer caso, de
serem as mesmas precedidas do respectivo procedimento administrativo e do
correlato direito de prévia defesa.
A abordagem proposta remete à discussão acerca da autoexecutoriedade, atributo próprio dos atos administrativos em geral, sendo que
neste particular, Hely Lopes Meirelles228 enfatiza que, “com efeito, no uso desse
poder, a Administração impõe diretamente as medidas ou sanções de polícia
administrativa necessárias à contenção da atividade social que ela visa a obstar”.
O mesmo autor afirma ainda que “a Administração só pode aplicar
sanções sumariamente e sem defesa (principalmente as de interdição de
atividade, apreensão ou destruição de coisas) nos casos urgentes que ponham
em risco a segurança ou a saúde pública, ou quando se tratar de infração
instantânea surpreendida na sua flagrância, aquela ou esta comprovada pelo
respectivo auto de infração”.
227
Derecho Administrativo Sancionador, Editoriales de Derecho Reunidas, 1995, Segunda Edición,
ps. 177/78.
228
Ob. cit. p. 129. Conforme o autor, o TJSP entendeu que: “exigir-se prévia autorização do Poder
Judiciário equivale a negar-se o próprio poder de polícia administrativa, cujo ato tem de ser
sumário, direto e imediato, sem as delongas e complicações de um processo judiciário prévio. Ao
particular que se sentir prejudicado pelo ato de polícia da Administração é que cabe recorrer ao
Judiciário, uma vez que não pode fazer justiça pelas próprias mãos”.
191
Pondo-se em concordância com Hely Lopes Meirelles, no sentido de
que as sanções administrativas “em virtude do princípio da auto-executoriedade
do ato de polícia são elas impostas e executadas pela própria Administração em
procedimentos administrativos sumários e compatíveis com as exigências do
interesse público”, Álvaro Lazzarini229 anota que, “porém, mister se torna deixar
bem claro que, como dito, tais meios coercitivos devem estar, previamente,
indicados na lei específica que disciplina a matéria policiada”.
A seu turno, Celso Antônio Bandeira de Mello230, mirando a questão
também sob o ângulo da auto-executoriedade, leciona que “todas essas
providências, mencionadas exemplificativamente, têm lugar em três diferentes
hipóteses: a) quando a lei expressamente autorizar; b) quando a adoção da
medida for urgente e não comportar as delongas naturais do pronunciamento
judicial sem sacrifício ou risco para a coletividade; c) quando inexistir outra via de
direito capaz de assegurar a satisfação do interesse público que a Administração
está obrigada a defender em cumprimento à medida de polícia”.
Como consequência das premissas doutrinárias invocadas, é
possível afirmar que, verificadas determinadas situações específicas, afigurandose premente a necessidade de imediata preservação do interesse público
subjacente e, mais importante ainda, existindo a necessária autorização legal, a
Administração Pública pode aplicar sanções que decorram diretamente do texto
da lei, independentemente da instauração de procedimento administrativo
específico e afastando a obrigatoriedade de oferecimento de precedente direito de
defesa.
229
Estudos de Direito Administrativo, RT, 2ª edição, 1999, p. 197.
Ob. cit. p. 728/29: “as medidas de polícia administrativa freqüentemente são auto-executórias:
isto é, pode a Administração promover, por si mesma, independentemente de remeter-se ao Pode
Judiciário, a conformação do comportamento do particular às injunções dela emanadas, sem
necessidade de um prévio juízo de cognição e ulterior juízo de execução processado perante as
autoridades judiciárias”.
230
192
A propósito, confira-se o posicionamento de Régis Fernandes de
Oliveira,231 invocando o ensinamento do professor Oswaldo Aranha Bandeira de
Mello e sustentando as diferentes possibilidades que se abrem para a
Administração Pública de implementar as sanções administrativas por diferentes
modos, seja executando meramente a lei que possibilita a cominação direta da
sanção,
seja
instaurando,
quando
necessário,
o
respectivo
processo
administrativo, seja, ainda, à vista da infração e ouvido o administrado, impondo a
sanção cabível.
Apresentando o conceito de sanção administrativa e estampados os
meios pelos quais pode a mesma ser implementada, cumpre trazer à discussão as
restrições de direito originadas da decretação de regimes especiais e que passam
a incidir sobre a instituição financeira e seus administradores a partir do exato
momento da decretação do regime pelo Banco Central do Brasil, qualificando-se,
pois, como efeitos ex lege dos atos administrativos instauradores daquelas
situações excepcionais.
Dentre os ditos efeitos, pode-se mencionar, naquilo que interessa
aos objetivos desse trabalho, a indisponibilidade de bens dos administradores e
afastamento dos mesmos dos cargos que ocupavam na instituição, bem como na
submissão desta a um regime excepcional e da sua retirada do segmento em que
231
Infrações e Sanções Administrativas, RT 1985, ps. 65/66: “A sanção pode defluir diretamente do
texto legal, hipótese em que será vinculada, bem como pode ser imposta mediante procedimento
administrativo ou simples ato. No primeiro caso, como diz o Prof. O. A. Bandeira de Mello, ‘além da
sanção administrativa aplicada especificamente, ante a verificação da inobservância da norma
jurídica ou de ordem administrativa, há a sanção legal que comina genericamente uma penalidade
pela inobservância do preceito normativo. Então, a ação da Administração se reduz à mera
execução do preceito’. No segundo, tendo a Administração ciência da prática de uma infração, mas
por ter dúvidas quanto à sua configuração ou, inclusive, sobre quem é no seu autor, instaura o
procedimento próprio para apurar a falta e seu autor, terminando, após a sequência de atos, por
um ato final, que imporá a sanção ou arquivará o procedimento. Também nos casos em que a lei
expressamente exige apuração completa ou prévia defesa do infrator (...). No terceiro caso, cuidase de ato único, isto é, à vista da infração e independentemente de maiores indagações – à só
vista da infração – a Administração aplica a sanção, ouvindo, antes, evidentemente, o infrator. A
oitiva do infrator é fundamental para a regularidade da punição.”
193
atuava, nos casos de intervenção e de liquidação extrajudicial, todos vindo a
caracterizar, segundo entendemos, efetivas sanções de natureza administrativa.
Assim entendemos porque consubstanciam efetivas restrições
impostas pela Administração Pública no exercício do denominado poder de
polícia, dirigidas aos administrados, seja a empresa ou seus administradores, por
haverem deixado de cumprir o regramento que se lhes aplica, ou seja, não
observaram os deveres jurídicos aos quais estão adstritos, consoante se extrai do
contido nos artigos 2º. e 15, da Lei 6.024/74 ou no art. 1º. do DL 2.321/87,
normativos estes notadamente enfeixados no regime jurídico-administrativo.
Com efeito, o artigo 2º, da Lei 6.024/74, ao referir como causa
suficiente à decretação do regime de intervenção a existência de prejuízos
decorrente de má administração, por certo está impondo um dever jurídico de boa
administração,
o
qual,
se
não
obtido,
importa
em
uma
conduta
administrativamente não desejável e, portanto ilícita, daí seguindo-se a
conseqüência jurídica prevista, ou seja, a possibilidade de imposição de sanção
administrativa.
O mesmo silogismo aplica-se às demais situações previstas em
outras passagens daquele mesmo artigo, ou naquelas descritas no artigo 15, da
mesma Lei 6.024/74, ao tratar da liquidação extrajudicial ou, ainda, àquelas outras
condutas arroladas no artigo 1º. do Decreto-Lei 2.321/87 e que ensejam a
possibilidade de decretação do regime de administração especial temporária.
Trata-se de hipóteses caracterizadoras de infrações administrativas
e, por isso, determinam a conseqüência juridicamente prevista, qual seja, a
imposição de sanção administrativa. Oportuno citar novamente Daniel Ferreira,232
que entende a infração administrativa como sendo “o comportamento voluntário,
violador de norma de conduta que o contempla, que enseja a aplicação de uma
232
Ob. cit. p. 63.
194
direta e imediata conseqüência jurídica, restritiva de direitos, de caráter
repressivo”.
Importar considerar ainda, nessa passagem, o conceito de sanção
administrativa de autoria de Susana Lorenzo233 que, invocando Guido Zanobini,
define-a, de modo singelo e preciso, como o evento danoso (menoscabo) imposto
por um órgão estatal, atuando na função administrativa, como conseqüência da
violação de um dever imposto por uma norma.
Na essência, o conceito acima em nada se contrapõe àquele de
Fábio Medina Osório,234 mais longo e detalhado e elaborado com a intenção de
extremá-lo de outras medidas aflitivas impostas pela Administração Pública ou
pelo Judiciário, conforme assevera o autor, tais como as medidas de polícia, as
medidas rescisórias, as medidas de ressarcimento ao erário e, por último, as
medidas coativas e preventivas.
A fim de ressaltar a natureza de sanção que entendemos marcar as
conseqüências jurídicas ex lege ora tratadas, e para possibilitar a confrontação
com as medidas de polícia e as medidas coativas ou preventivas aventadas pelo
autor antes referido, e que poderiam suscitar alguma discussão, caberiam alguns
comentários a respeito, a fim de afastar qualquer possibilidade de identificação.
No que se refere às medidas de polícia, informa Fábio Medina
Osório235 que “é certo que as medidas de polícia podem estar ligadas ao
cometimento ou ao perigo de cometimento de um fato ilícito, mas tal circunstância
233
Ob. cit. p. 8.
Ob. cit. p.80: “Consiste a sanção administrativa, portanto, em um mal ou castigo, com alcance
geral e potencial pro futuro, imposto pela Administração Pública, materialmente considerada, pelo
Judiciário, ou por corporações de direito público, a um administrado, agente público, indivíduo ou
pessoa jurídica, sujeitos ou não a especiais relações de sujeição com o Estado, como
conseqüência de uma conduta ilegal, tipificada em norma proibitiva, com uma finalidade repressora
ou disciplinar, no âmbito de aplicação formal e material do Direito Administrativo.”
235
Ob. cit. p.81 e segs.
234
195
não lhes confere um caráter punitivo, um enquadramento no conceito de sanções
administrativas”.
Isso porque, complementa o autor, os efeitos de uma sanção
administrativa significam uma privação de direitos que já existiam ou a imposição
de obrigações originais aos administrados, com a finalidade de intimidar e reprimir.
Conclui o autor afirmando que “quando o Estado veda ao indivíduo
um exercício de um direito para o qual não estava habilitado, não há falar-se
propriamente em sanção administrativa. Nessa linha de raciocínio, o fechamento
ou a interdição de uma atividade iniciada pelo particular sem a necessária
autorização do Poder Público não constitui sanção administrativa, pois em
realidade se trata de uma medida adotada para o restabelecimento da legalidade,
como poder legítimo da Administração”.
Como se vê, as características apontadas não guardam qualquer
relação com os efeitos ex lege da decretação de regimes especiais, já que nesses
casos ocorrem restrições ao exercício de direitos pré-existentes, tais como o
direito de administrar uma instituição, de dispor o administrador de seus próprios
bens ou de continuar a sua empresa, o que vem a imprimir-lhes a natureza de
sanções administrativas.
No que diz respeito às medidas coativas ou preventivas, o próprio
autor desfaz qualquer possibilidade de equiparação com os efeitos decorrentes da
decretação de regime especial já amplamente referidos, ao asseverar que
naquelas “o objetivo é, justamente, evitar a ocorrência de determinados fatos,
impedir que se consume uma violação da ordem jurídica”.
Prossegue o autor afirmando que “as sanções administrativas, ao
contrário, são conseqüências do cometimento de uma infração administrativa,
constituindo uma repressão” e que “o pressuposto é, nessa seara, a realização de
196
um comportamento proibido, representando, enfim um posterius, ao passo que no
campo das medidas preventivas outro é o pressuposto, dado que inexiste
pretensão de uma resposta cabal a um fato ilícito”.
Posto isso, importa aduzir que os efeitos ex lege dos quais se cuida
têm natureza sancionatória também em virtude de materializarem efetivas
incursões desfavoráveis nas esferas de interesses e de direitos e liberdades dos
seus destinatários, gravando uma restrição em relação ao seu patrimônio,
afastando-os do exercício de suas atividades profissionais, submetendo as
empresas que administravam a um regime especial e retirando-as dos segmentos
para os quais estavam anteriormente autorizadas a atuar, nos casos legalmente
previstos.
É de se notar que, nestes casos, as normas de regência, a fim de
preservar o interesse público inerente, na extensão devida e com a urgência
requerida, autoriza a Administração Pública a adotar as medidas nela
enumeradas,
caso
presentes
os
pressupostos
legalmente
previstos,
independentemente da defesa dos destinatários, tratando-se, pois, de autênticas e
legítimas sanções administrativas ex lege.
Por fim, deve ser encarecido que a discussão acerca da questão
proposta assume considerável importância tendo em vista os reflexos resultantes
do fato de as consequências ex lege ora tratadas serem consideradas como
sanções administrativas decorrentes da decretação de regimes especiais.
Isso porque, revestidas daquela natureza sancionatória, importantes
conseqüências serão produzidas em relação aos punidos, notadamente no que diz
respeito, dentre outros, à perda da primariedade dessas pessoas para fins de
reincidência, ou mesmo para efeitos de considerações a propósito do princípio do
non bis in idem.
197
VII - CONCLUSÕES
A discricionariedade só é exercitável mediante prévia autorização
normativa e deve, por isso, limitar-se às fronteiras estabelecidas pelo próprio
ordenamento jurídico, tendo em vista principalmente a finalidade que expressa ou
implicitamente a norma permissiva buscou alcançar.
Os direitos subjetivos, aí incluídos os decorrentes da outorga de
poder discricionário, não são de caráter absoluto e demandam que a sua fruição,
pelos seus titulares, não se revele abusiva, sob pena de adentrarem para o campo
da ilicitude.
A possibilidade conferida aos sujeitos de direito de agirem ou de não
agirem ou mesmo a faculdade de assumirem uma dentre várias condutas
igualmente legítimas, sob o ponto de vista jurídico, não é exclusividade do regime
jurídico de direito público, fazendo-se presente, ainda que sob outra denominação,
em sede de direito privado, particularmente em matéria de direito civil.
No campo do direito privado, a maior ou menor intensidade dos
comandos legais em relação aos sujeitos de direito decorre do fato de as normas
se apresentarem, respectivamente, como de imperatividade absoluta ou de
imperatividade relativa.
No âmbito do direito público, especificamente em sede de direito
administrativo, as normas pertinentes se apresentam, relativamente aos agentes
públicos, vinculando totalmente o seu modo de agir ou lhes conferindo uma certa
margem de apreciação discricionária.
O elemento distintivo entre os atos discricionários privados e os atos
discricionários públicos reside na obrigatoriedade imposta a esses últimos de se
198
produzirem tendo em vista a realização de um interesse público contido explícita
ou implicitamente na norma.
Nos casos de competência vinculada, a norma estabelece todos os
pressupostos e condições que devem ser observados relativamente à conduta do
seu destinatário, vinculado-o completamente aos estritos enunciados do comando
legal.
Diversamente, quando a norma defere o exercício de competência
discricionária, remete ao agente público a possibilidade de assumir uma certa
margem de apreciação subjetiva, relativamente a algumas das condições de
exercício do poder atribuído à administração.
Quando diante de conceitos indeterminados, ainda que possam se
apresentar como igualmente válidas mais de uma solução para um caso concreto,
a decisão não fica posta à livre e completa apreciação da administração, cabendolhe observar o balizamento imposto pelo ordenamento jurídico, particularmente o
decorrente da aplicação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
Com o objetivo de estabelecer limitações ao exercício do poder
discricionário por parte da Administração Pública, foram criadas ao longo do
tempo várias técnicas visando à redução da discricionariedade ou mesmo a sua
submissão ao crivo do Poder Judiciário, quando a mesma viesse a se situar além
dos marcos legais estabelecidos.
A pioneira das técnicas de redução da discricionariedade teve como
fundamento o reconhecimento de que existem elementos regrados relativos aos
atos discricionários no tocante à forma, à competência, aos procedimentos, à
finalidade e ao tempo, de sorte que a validade dos atos pertinentes fica
condicionada à observância daqueles elementos.
199
Dentre tais elementos assume relevante importância o concernente à
finalidade do ato, na medida em que, segundo expressiva corrente doutrinária, o
ato só restará legitimado se respeitada a finalidade expressa ou implicitamente
definida na regra de competência.
O requisito da finalidade restará desatendido, caracterizando-se
assim o desvio de poder, não somente se o ato visou a um interesse privado, mas
também quando o interesse, ainda que público, seja diverso daquele objetivado
pela norma de regência.
De acordo com a técnica de controle exercida em função dos fatos
que determinaram a produção do ato discricionário, os motivos alegados pela
administração e que justificariam a prática do ato assumem a condição de
pressuposto necessário para a sua legitimidade, pelo que devem encontrar
perfeita correspondência com a realidade dos fatos.
Uma vez enunciados pelo agente os motivos que justificariam a
prática do ato, ainda que não houvesse obrigatoriedade para tanto, a validade do
mesmo fica na dependência de terem aqueles fatos realmente ocorrido e que
justificassem a prática do ato.
A técnica da redução da discricionariedade ou da sua submissão ao
controle judicial com base nos princípios gerais do direito tem como premissa a
assertiva de que o legislador, nos casos em que outorga competência
discricionária para a administração, não derroga, em favor dessa, a totalidade do
ordenamento jurídico e, portanto, continuará o agente público sujeito ao mesmo,
especialmente no que se refere à observância daqueles princípios antes referidos.
Os princípios gerais do direito não constituem uma mera abstração
ou uma pálida invocação aos ideais de justiça ou mesmo uma chamada à
consciência moral ou discricionária do aplicador da lei, mas sim uma das formas
200
de expressão do direito, direcionada à solução de conflitos de interesses
concretos.
É possível constatar, em meio ao ordenamento jurídico brasileiro, a
presença de uma série de princípios acolhidos expressa ou implicitamente pela
Constituição
e
que,
além
de
limitar
o
exercício
da
discricionariedade
administrativa, orientam também a elaboração legislativa e, ainda, ampliam a
esfera de ação do Poder Judiciário no enfrentamento da questão.
O exercício do poder de polícia, enquanto atividade de conformação
dos interesses individuais ao interesse coletivo, materializa-se, por vezes, em
incursões restritivas na esfera de direitos dos administrados, sujeitando-se, para
tanto, especialmente no que se refere ao exercício de competência discricionária,
aos parâmetros legais postos.
A AdminIstração Pública, no exercício prático da competência
discricionária que lhe é deferida para o exercício de poder de polícia, adota
entendimentos e posturas que extrapolam os limites legais demarcados pelo
legislador e que revelam ausência de sintonia com o posicionamento doutrinário.
Os órgãos reguladores dos mercados financeiro e de capitais têm à
sua disposição um arcabouço legal prevendo uma série de medidas típicas do
exercício do poder de polícia, conferindo-lhes a possibilidade de adotar a medida
que se venha a atender como a mais indicada diante da ocorrência de
comportamentos assumidos pelos administrados e que não estejam em
conformidade com as normas pertinentes às suas atividades.
Tanto no âmbito da Comissão de Valores Mobiliários, quanto na
esfera própria do Banco Central do Brasil, a instauração de processos
administrativos não é a única nem obrigatória atitude a ser tomada por aqueles
entes reguladores.
201
A decisão do Banco Central do Brasil de submeter a regime especial
instituição sujeita a seu poder de polícia é de natureza discricionária, tendo em
vista os termos das próprias leis de regência, bem como os conceitos de natureza
prática ou indeterminada que consubstanciam os pressupostos para tanto
exigidos.
Não obstante isso, as decisões da espécie não podem se revestir de
caráter arbitrário, assumidas ao talante da vontade estatal, devendo estar
devidamente amparadas pelo regime jurídico-administrativo e respeitados,
principalmente, os princípios jurídicos que lhes são pertinentes.
No que respeita à cessação ou término de regimes especiais, a lei
confere ao Banco Central do Brasil certa margem de discricionariedade no que se
refere apenas e tão somente às situações em que aquela competência se localiza
na hipótese das normas de regência.
Alguns efeitos ex lege decorrentes dos próprios atos administrativos
instauradores
de
regimes
especiais
possuem
a
natureza
de
sanções
administrativas e, portanto, devem ser assim consideradas para todos os fins de
direito, particularmente naquilo que se refere à aplicação do princípio do non bis in
idem.
O ordenamento jurídico brasileiro, considerado na sua integralidade,
repele claramente a possibilidade de aplicação, inclusive em sede de direito
administrativo sancionatório, da reformatio in pejus, pelo que não poderá o
reexame do litígio resultar em imposição de pena mais gravosa que a já decidida
em primeira instância.
Eventual não observância da proibição de que se trata caracterizará
não acatamento, a um só tempo, das garantais da ampla defesa e do
202
contraditório, bem como impedirá a aplicação do princípio do duplo grau de
jurisdição.
De maneira genérica, considerado o tema desenvolvido nessa
dissertação, pode-se concluir que a Administração Pública, ao exercitar a
competência discricionária que lhe é deferida na implementação do poder de
polícia no âmbito dos mercados financeiro e de capitais, exorbita dos limites
legalmente demarcados pelas normas respectivas e situa-se em desconformidade
com o posicionamento doutrinário pertinente.
203
VIII - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALESSI, Renato. Sistema Istituzionale del Diritto Ammnistrativo Italiano, Dott
Antonino Giufré, Milão, 1953.
ARAÚJO, Edmir Netto de. Os princípios administrativos na Constituição de 1988,
Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, n. 34, p. 133-142, dez.
1990.
___________ Do negócio jurídico administrativo, RT. São Paulo, 1992.
BARROSO, Luiz Roberto. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade
no Direito Constitucional. Revista dos Tribunais. Ano 6. nº 23. abriljunho de 1998.
___________ Banco Central do Brasil – Comunicação ao Ministério Público para
fins penais, Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais
17/96.
BASTOS, Aline Maria Dias. Conceitos jurídicos indeterminados: discricionariedade
ou vinculação ? Dissertação apresentada à Comissão de PósGraduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,
Orientador: Prof.: Doutor Edmir Netto de Araújo, São Paulo, 2002.
BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Edipro, São Paulo, 2ª edição. 2003.
BORGES, Alice Gonzáles. Interesse público: um conceito a determinar, Revista de
Direito Administrativo nº. 205, jul/set. 1996, Rio de Janeiro.
BRANDÃO, Antônio José. O poder discricionário e a sua justificativa. Revista de
Direito Administrativo, Vol. 25, julho/setembro, 1951.
204
CAETANO, Marcelo. Princípios Fundamentais de Direito Administrativo. Rio de
Janeiro. 1977.
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Almedina, Coimbra. 6ª edição
revista. 1995.
CARNELUTTI, Francesco. Teoria Geral do Direito. Lejus, São Paulo. 1999.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo Administrativo Federal.
Comentários à Lei 9.784 de 29/1/1999. Lúmen Juris. São Paulo.
2001.
CASSAGNE, Juan Carlos. Derecho Administrativo. Buenos Aires. AbeledoPerrot.1992.
CARVALHOSA, Modesto e EIZIRIK, Nelson. A nova lei das S/A. Saraiva, São
Paulo, 2000.
CAVALCANTI, Themistocles Brandão. Do Poder Discricionário. Revista de Direito
Administrativo seleção histórica. Rio de Janeiro, 1995, p. 431.
__________
O poder do Estado e o exercício da policia administrativa, Revista
Trimestral de Direito Público 29/2000, Malheiros, São Paulo.
CASSAGNE, Juan Carlos, Derecho Administrativo I. Abeledo-Perot, Buenos Aires,
1992.
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo. Dissertação de concurso à livre docência de
Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo, 1978.
205
COSTA, Regina Helena. Conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade
administrativa. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São
Paulo. Junho de 1998.
COVAS, Silvânio e CARDINALI, Adriana Laporta, O Conselho de Recursos do
Sistema Financeiro Nacional, Atribuições e Competência, Quartier
Latin, São Paulo, 2008.
CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Direito Administrativo. 17ª. Ed. Forense.
2000.
DALLARI, Adilson Abreu. Revista Trimestral de Direito Público, Malheiros, São
Paulo, 24/1998.
DANTAS, F.C. de Santiago. Problemas de Direito Positivo – Due Process of law,
Forense. Rio. 1953.
DINIZ, Maria Helena. Teoria Geral do Direito Civil. Saraiva, São Paulo. 2002
DI
PIETRO,
Maria
Sylvia
Zanella.
Discricionariedade
administrativa
na
Constituição de 1988. Atlas. São Paulo. 2001.
__________
Direito Administrativo. 15ª ed. Atlas. São Paulo. 2003.
EIZIRIK, Nelson, GAAL, Ariádna B., PARENTE, Flávia, HENRIQUES, Marcus de
Freitas. Mercado de Capitais – Regime Jurídico, Rio de Janeiro,
Renovar, 2008.
__________, Reforma das S/A & Mercado de Capitais, Renovar, Rio de Janeiro,
1997.
206
ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico, Fundação Calouste
Gulbekian, 8ª edição, Lisboa, 2001.
ENTERRÍA, Garcia de et FERNANDEZ, Tomás-Ramon. Curso de Derecho
Administrativo, Civitas Ediciones. Madrid. 2004.
ESCOLA, Hector Jorge, El interés público como fundamiento del derecho
administrativo, Depalma, Buenos Aires, 1989.
FAGUNDES, M. Seabra. Direito Administrativo. Saraiva. São Paulo. 2000.
___________ Conceito de mérito no direito administrativo. Revista de Direito
Administrativo. Vol. 23. janeiro-março – 1951.
FAÍZA, Júlio César. Sanciones Administrativas. Editor. Montevideo. 1996.
FARIA, Edmur Ferreira de. Curso de Direito Administrativo Positivo. 4ª ed. Del
Rey. Belo Horizonte. 2001.
FERRAZ, Sérgio e DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo, Malheiros,
São Paulo, 2001.
FERREIRA, Daniel. Sanções Administrativas. Malheiros, São Paulo, 1994.
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Direitos difusos e coletivos. Saraiva, São Paulo. 1989.
___________
Curso de Direito Administrativo, 3ª, ed., Malheiros, São Paulo,
1998.
___________, Estado de Direito e devido processo legal, Revista Trimestral de
Direito Público 15, Malheiros, São Paulo, 1997.
207
FIGUEIREDO, Marcelo e PONTES FILHO, Valmir, Estudos de Direito Público em
homenagem a Celso Antônio Bandeira de Mello, Malheiros, São
Paulo, 2006.
FRANCISCO, José Carlos, Limites Constitucionais à função regulamentar e aos
regulamentos, Tese de doutorado, Faculdade de Direito da USP,
Orientador Prof. Dr. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, São Paulo,
abril de 2003.
FREITAS,
Juarez.
Discricionariedade
Administrativa
e
o
direito
à
boa
administração pública, Malheiros, São Paulo, 2007.
GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo, Saraiva, São Paulo, 2000.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Saraiva. São Paulo. 2003.
GRAU, Eros Roberto, Poder de Polícia: Função administrativa e princípio da
legalidade: o chamado direito alternativo, Revista Trimestral de
Direito Público -1.
HAURIOU, André. O poder discricionário e sua justificação. Trad. Guilherme
Augusto dos Anjos, Revista de Direito Administrativo, Vol. 19.
Janeiro-março 1950.
HELLER, Herman, Teoría Del Estado, Trad. Luis Tobio, Fondo de Cultura
Económica, México, 2002.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. Saraiva. São Paulo.
2000.
208
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Martins Fontes. São Paulo.
2000.
___________ Teoria Pura do Direito. Martins Fontes. São Paulo, 2000
LAZZARINI, Álvaro. Estudos de Direito Administrativo, RT, São Paulo, 2ª edição,
1999.
LEAL, Victor Nunes, Problemas de Direito Administrativo. Forense. Rio.
_________,
Revista de Direito Administrativo. Vol. 23, janeiro-março. 1951
_________,
Reconsideração do tema do abuso de poder. Revista de Direito
Administrativo – seleção histórica. Rio de Janeiro, 1995, p. 453.
LEITE, Luciano Ferreira. Interpretação e Discricionariedade. RCS. São Paulo,
2006.
LORENZO, Suzana. Sanciones Administrativas, Julio César Faiza – Editor,
Montevideo, 1996.
MACHADO, Hugo de Brito. Ilícito Tributário. Revista dos Tribunais 709 p. 287, São
Paulo. 1994.
MARQUES, Floriano Azevedo. Discricionariedade Administrativa e Controle
Judicial da Administração, Processo Civil e Interesse Público, O
processo como instrumento de defesa social, Carlos Alberto de
Salles, Organizador, Co-edição Associação Paulista do Ministério
Público e Editora RT, 2003.
209
MEDAUAR, Odete, A processualidade no direito administrativo, RT, São Paulo,
1993.
__________
Direito Administrativo Moderno. 5ª ed., RT, São Paulo, 2001.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 26ª ed., Malheiros, São
Paulo, 2001.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Legalidade – Discricionariedade. Seus
Limites e Controle, Revista de Direito Público nº 86. abril-junho de
1988. Ano XXI.
__________
Curso de Direito Administrativo. São Paulo. Malheiros. 2001.
__________
Curso de Direito Administrativo, 22ª ed., Malheiros, São Paulo,
2007.
__________
Discricionariedade e controle jurisdicional, Malheiros. São Paulo.
2006.
__________
Revista Trimestral de Direito Público, 25/1999, Malheiros, São
Paulo,
__________
Direito Administrativo Contemporâneo, Estudos em homenagem a
Manoel de Oliveira Franco Sobrinho, Vinculação e Discrição nas
Liquidações Extrajudiciais, Editora Fórum, Belo Horizonte, 2004.
MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de, Princípios Gerais de Direito Administrativo,
Forense, Belo Horizonte, 2ª ed. 1979.
210
MOREIRA, Egon Bockmann. Processo Administrativo – Princípios Constitucionais
e a Lei 9.784/99, Malheiros, São Paulo, 2000.
MUNHOZ DE MELLO, Rafael. Princípios Constitucionais de Direito Administrativo
Sancionador. As sanções Administrativas à luz da Constituição
Federal de 1988, Malheiros, São Paulo, 2007.
_________ Sanção administrativa e o princípio da legalidade, Revista Trimestral
de Direito Público, 30/2000, Malheiros, São Paulo.
MUKAI, Toshio. Direito Administrativo Sistematizado. Saraiva. São Paulo. 1999.
NIETO, Alejandro. Derecho Administrativo Sancionador, Cuarta Edición totalmente
reformada, Editorial Tecnos (Grupo Anaya, S.A ) Madrid, 2005.
NOBRE JÚNIOR, Edílson Pereira. Revista de Direito Administrativo, 219:127,
Editora Renovar. Rio de Janeiro. 2000.
OLIVEIRA, Fernando Andrade de. O poder do Estado e o exercício da polícia
administrativa, Revista Trimestral de Direito Público, Malheiros,
29/2000, São Paulo, 2000.
OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Infrações e Sanções Administrativas, 3ª ed., RT,
São Paulo, 1992.
__________
Processo administrativo e judicial (coisa julgada administrativa),
RDTributário 58, Editora RT. São Paulo. 1991.
OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador, RT, São Paulo, 2000.
211
PAULIN, Luiz Alfredo. Dos meios passíveis de utilização pelo Banco Central do
Brasil, no combate às irregularidades praticadas por instituições
financeiras. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais,
Ano 2, nº. 6, RT, São Paulo, setembro/dezembro de 1999.
PAZZAGLINI
FILHO,
Marino,
Princípios
Constitucionais
Reguladores
da
Administração Pública, Atlas, São Paulo, 2ª ed., 2007.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Introdução ao Direito
Civil. Teoria Geral do Direito Civil. Forense. Rio de Janeiro. 2004,
PERELMAN, Chaim. Ética e Direito, Martins Fontes, São Paulo, 1996.
PEREZ, Adolfo Carretero e SANCHES, Adolfo Carretero, Derecho Admnistrativo
Sancionador. Editoriales de Derecho Reunidas, 1995, Segunda
Edición.
PIMENTA OLIVEIRA, José Robert. Malheiros, São Paulo, 2006.
PRATES,
Marcelo
Madureira, Sanção Administrativa
Geral, Anatomia e
Autonomia, Almedina, Coimbra, 2005.
QUEIRÓ, Afonso Rodrigues. A teoria do “desvio de poder” em direito
administrativo, Revista de Direito Administrativo. Vol. VI. Outubro1946.
REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Administrativo, Saraiva, 1989.
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes, Princípios Constitucionais da administração
pública, Del Rey, Belo Horizonte, 2ª ed., 1994.
212
RODRIGUES, Frederico Viana. Saneamento e Liquidação de Instituições
Financeiras, in Revista de Direito Bancário e do Mercado de
Capitais. Ano 8, nº 28, abril-junho de 2005. Editora Revista dos
Tribunais. São Paulo.
SIERRA, Raúl Bocanegra. Lecciones sobre el acto administrativo.Thomsom
Civitas. Madrid. 2004.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 27ª ed.,
Malheiros, São Paulo, 2006.
SIQUEIRA, Francisco José de. Instituições financeiras: regimes especiais no
direito brasileiro, in Revista de Direito Bancário, do Mercado de
Capitais e de Arbitragem, Ano 4, nº 12, abril-junho de 2001, Editora
Revista dos Tribunais, São Paulo.
SUNDFELD, Carlos Ari, Direito Administrativo Ordenador, Malheiros, São Paulo,
1997.
TÁCITO, Caio, Revista de Direito Administrativo nº 227, Rio de Janeiro, jan/mar
2002.
__________
Direito Administrativo. Saraiva, São Paulo, 1975.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, Vol. 1, Saraiva, São
Paulo, 1977.
VASQUEZ, Javier Barnes, El procedimiento administrativo em el derecho
comparado, Editora Civitas.
213
VASQUEZ, Ramon F., Poder de Policía, Segunda Edición, Buenos Aires, 1957.
VERZOLA, Antonio Carlos. Dos marcos legais impostos ao exercício do direito de
punir por parte da administração pública. In Revista de Direito
Bancário e do Mercado de Capitais. Ano 9, número 32, RT São
Paulo. abril-junho de 2006. RT. São Paulo.
VERZOLA, Maysa Abrahão Tavares. A Sanção no Direito Administrativo
Brasileiro, Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo.
Departamento de Direito do Estado, Orientador Prof. Edmir Netto
de Araújo, São Paulo. 2008.
214
Download

Antonio Carlos Verzola