PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Antonio Carlos Verzola O poder de polícia e a atividade sancionatória nos mercados financeiro e de capitais Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção de título de MESTRE em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação do Professor Doutor Silvio Luis Ferreira da Rocha SÃO PAULO 2008 ÍNDICE I - INTRODUÇÃO ................................................................ II - EVOLUÇÃO DO ESTADO E PODER DE POLÍCIA p. 01 1. Criação e desenvolvimento do Estado.............................. p. 08 2. Poder de Polícia................................................................. p. 21 III - ATOS VINCULADOS E ATOS DISCRICIONÁRIOS.......... p. 31 IV - DISCRICIONARIEDADE 1. Notas introdutórias............................................................ p. 36 2. Fundamento Geral.............................................................. p. 41 3. Grau de intensidade dos comandos normativos............... p. 49 4. Atos discricionários públicos e privados.......................... p. 53 5. Conceitos jurídicos indeterminados.................................. p. 60 6. Técnicas de redução/controle da discricionariedade...... p. 70 V - PROCESSOS ADMINISTRATIVOS SANCIONATÓRIOS 1. Poder de polícia do Banco Central do Brasil..................... p. 90 2. Poder de polícia da Comissão de Valores Mobiliários..... p. 98 3. Apontamentos sobre a ausência de sintonia entre teoria e prática .............................................................................. p. 105 VI - REGIMES ESPECIAIS 1. Noções introdutórias......................................................... p. 162 2. Decretação/cessação: ato discricionário ou vinculado?. p. 173 3. Sanções “ex lege”............................................................. p. 188 VII - CONCLUSÕES ............................................................... p. 198 VIII – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................ p. 204 RESUMO A dissertação tem por objeto examinar o exercício do poder de polícia por parte da Administração Pública, tendo como referencial o manejo da competência discricionária, confrontado-o com os limites legalmente postos e o entendimento que lhe é conferido pela doutrina administrativa. Isto porque, muito embora se reconheça à Administração Pública, nos casos em que a lei lhe autorize, a possibilidade de se valer de uma certa margem de subjetivismo em suas manifestações, mediante o emprego de critérios de conveniência e oportunidade, jamais pode ela se colocar à margem do ordenamento jurídico. Em vista disso, seus atos sempre estarão sujeitos às regras e princípios que orientam a atividade administrativa e estabelecem os limites do Estado em relação ao cidadão. O trabalho, depois de analisar, de maneira genérica, os temas correlatos à questão central, particulariza a abordagem, centrando-a no poder de polícia próprio do Banco Central do Brasil e da Comissão de Valores Mobiliários, na condução de processos administrativos sancionatórios, instaurados por um ou por outro daqueles entes públicos, nas suas respectivas esferas de competência, bem como na decretação de regimes especiais por aquele primeiro, em face de instituições sob sua supervisão. O estudo, num primeiro momento, oferece uma visão teórica a respeito da matéria e, a seguir, traz um painel ilustrativo do aspecto prático da atividade reguladora daquelas entidades, nos mercados financeiro e de capitais, respectivamente. Com suporte na legislação brasileira e na doutrina nacional e estrangeira, o estudo permite concluir que não existe uma sintonia entre o que estabelecem os comandos legais sobre a matéria ou o que preceitua a respectiva doutrina e as posturas assumidas pelos administradores públicos, quando atuam sob alegado exercício de competência discricionária. No mais das vezes, a Administração Pública, nessas situações, entende ser detentora de poder mais amplo do que o legalmente conferido e faz uso de valorações subjetivas não abrangidas pela autorização legal. Essa não correspondência ou ausência de sintonia revela-se evidente no que se relaciona com os princípios gerais, sejam aqueles inerentes ao Direito genericamente considerado, ou mesmo aqueles outros próprios do regime jurídico-administrativo. ABSTRACT This dissertation aims at examining the exercise of the Police Power by the Public Administration, taking the discretionary competence as a reference, by confronting such Police Power with the legally posed limits and the qualification that is invested to it by the administrative doctrine. That is so because, even though the Public Administration is acknowledged to be liable of using a certain margin of subjectivism in its manifestations, where the law grants it, through the use of convenience and opportunity criteria, it should never be placed at the edge of the legal system. Thence, its actions will be always subjected to the rules and principles that guide the administrative activity and establish the State limits regarding the citizen. After generically analyzing the correlate issues to the main point, the work particularizes the approach, by centering it in the Police Power that is intrinsic to the Brazilian Central Bank and the Federal Securities Commission, in the leading of sanctioning administrative proceedings, either established by one or another, out of those public entities, in their respective legal environment, as well as in the enactment of special systems by the foremost, facing institutions under its supervision. At a first instance, the study offers a theoretical view in relation to the subject, and then it brings an illustrative panel of the practical aspect of those entities regulating activity in the financial and capital markets. Accordingly. grounded on the Brazilian Law and on the national and foreign doctrines, the study can lead to the conclusion that there is no wavelength on what the legal actions on the subject should determine and on what the respective doctrine and the attitude taken by public administrators should rule, when acting under alleged exercise of discretionary competence. In other occasions of such situations, the Public Administration understands it has a broader power than the legally entitled power and uses subjective assessments that are not comprised by legal authorization. Such an absence of correspondence or lack of synchronicity becomes evident in connection with the general principles, either those that are inherent to the generically considered exercise of Law, or even those other ones that are pertaining to the juridical and administrative system. I –INTRODUÇÃO Desde logo, cabe esclarecer que a referência ao vocábulo sancionatória, constando do título do trabalho, adjetivando o substantivo atividade, pretende deixar marcado o caráter punitivo que lhe é emprestado em meio àqueles que se ocupam do estudo da matéria e que militam, de alguma forma, nesta área de atuação profissional, fazendo uso costumeiro do neologismo. Por certo, no rigor semântico, o correto seria o uso da expressão sancionadora, a qual porém não tem a conotação que se deseja imprimir ao trato da questão, posto que essa palavra é ordinariamente empregada no sentido de fazer menção a algo a que se deu conformidade, que foi objeto de aprovação, sentidos estes que não são contemplados no caso. Feita essa observação, deve ser dito que o trabalho que ora se apresenta parte do pressuposto de que existem balizas normativas que norteiam a atividade administrativa no que se refere ao exercício de competência discricionária, notadamente quando da prática de atos próprios do poder de polícia, assumindo a posição de que este é apenas uma faceta do próprio desenvolvimento da função administrativa, que dela não se diferencia, posto que submetido ao mesmo regime jurídico-administrativo. De maneira ainda mais particular, a dissertação postula tratar do exercício do chamado poder de polícia no âmbito dos mercados financeiro e de capitais, na sua vertente sancionatória, a qual se manifesta tanto nos processos administrativos punitivos instaurados e conduzidos, respectivamente, pelo Banco Central do Brasil e pela Comissão de Valores Mobiliários, quanto nos regimes especiais decretados por aquele primeiro, submetendo as instituições sujeitas ao seu poder regulador e que se encontrem sob crises de liquidez a um tratamento jurídico diferenciado, nos termos das normas de regência. Também serão discutidas algumas posturas assumidas pela instância administrativa recursal responsável pelo reexame de decisões proferidas nos processos administrativos decididos em primeira instância, qual seja, o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional. A centralização da abordagem naqueles entes públicos se deve unicamente ao fato de, por força de sua atividade profissional, o autor estar em contato mais próximo com os mesmos e acreditar que, de resto, a postura assumida por aquelas entidades reguladoras de mercado e por aquele colegiado reflete, por óbvio, o comportamento de outras estruturas da mesma espécie e, certamente, da Administração Pública como um todo. Todas as pessoas jurídicas de direito público que, em diferentes ambientes, exercem poder de polícia, bem como os órgãos administrativos dotados de poder judicante, encontram-se inseridos em um mesmo contexto organizacional e cultural, o qual é forçosamente marcado pelo estágio evolutivo da própria Administração Pública, no que diz respeito às relações entre administração e administrado ou, por outra, entre Estado e cidadão. Em virtude mesmo do estágio atual daqueles relacionamentos, tendo presente o notável esforço doutrinário desenvolvido no sentido de situá-los em conformidade com o direito positivo, de forma a colocá-los ao abrigo do regime jurídico inerente ao Estado de Direito, é que o trabalho procurará demonstrar, observados os limites próprios de uma dissertação, servindo-se de exemplos pontuais, se existe ou não uma sintonia entre o pensamento doutrinário e a atuação da Administração Pública. Por força de sua inerente e estreita ligação com o exercício do poder de polícia, a questão relativa ao exercício de competência discricionária ocupará importante posição no desenvolvimento da dissertação, a qual se preocupou em precisar o seu entendimento e deixar evidenciados os seus contornos e limites. 2 Assim, no enfrentamento dos temas propostos, será dada a devida relevância ao tema, na medida em que, como referido, é inerente à pratica dos atos administrativos originados do exercício do poder de polícia, particularmente no seu aspecto sancionatório, envolvendo processos administrativos da espécie de que se trata e a decretação dos regimes especiais dos quais se cuida nessa análise. Não obstante nos casos de exercício de competência discricionária, mormente quando no exercício do poder de polícia, a Administração Pública possa pautar suas decisões tendo como referência os critérios de conveniência e oportunidade, em que é inerente uma reconhecida parcela de apreciação subjetiva, existem limitações que devem ser observadas e que são amplamente reconhecidas em sede doutrinária. Procurar-se-á demonstrar que o tratamento a ser conferido pelo administrador público, relativamente à competência discricionária que lhe é deferida pelo legislador, deve ser contido, posto que a discricionariedade é sempre relativa, tendo em vista os limites legalmente traçados, seja por meio da própria norma concedente, seja no âmbito do regime jurídico-administrativo, pelo que inexiste, em qualquer hipótese, a possibilidade de exercício pleno e absoluto daquela faculdade legal.1 Nesse sentido, é desprovida de legitimidade a prática de 1 Celso Antônio Bandeira de Mello, Revista trimestral de Direito Público, 25/ 1999, Malheiros, São Paulo, p. 14/17: “É visível, outrossim, que a discricionariedade é sempre e inevitavelmente relativa. E é relativa em diversos sentidos. Veja-se: é relativa no sentido de que, em todo e qualquer caso, o administrador estará sempre cingido – não importa se mais ou menos estritamente – ao que haja sido disposto em lei, já que a discrição supõe comportamento intra legem e não extra legem (...). É relativa no sentido de que, seja qual for o âmbito de liberdade conferido, só dirá respeito àqueles tópicos que a lei haja remetido à apreciação do administrador e não a outros tópicos concernentes ao ato, mas sobre os quais a norma já haja resolvido de maneira a não deixar margem para interferência do agente. (...). A discricionariedade é relativa, ainda, no sentido de que, por ampla ou estrita que seja, a liberdade outorgada só pode ser exercida de maneira consonante com a busca da finalidade legal em vista da qual foi atribuída a competência (...). A discricionariedade, também é relativa no sentido de que a liberdade deferida pela lei só existe na extensão, medidas ou modalidades que dela resultem. (...). É relativa, ademais, no sentido de que a liberdade acarretada pela circunstância de haver a lei se servido de expressões vagas, fluidas ou imprecisas não pode ser utilizada de maneira a desprender-se do campo significativo mínimo que tais palavras recobrem, isto é, das chamadas “zonas de certeza positiva” e “certeza negativa” nem do significado social imanente nas palavras legais das quais resultou tal liberdade (...). Finalmente, a 3 atos administrativos conveniência e com fundamento, oportunidade, exclusivamente, dissociados das em fronteiras critérios de explícita ou implicitamente demarcadas pelo ordenamento jurídico. No que se refere às sanções administrativas impostas em virtude do desfecho de processos administrativos punitivos, considerando que podem os mesmos ser conduzidos no âmbito de ambas as instituições acima aludidas, respeitadas as suas respectivas esferas de competência, serão alvo de exame as condutas de um e de e outro ente público, postas em confronto tanto em relação ao conjunto normativo que se lhes aplica, quanto no que diz respeito ao acervo doutrinário pertinente. Naquilo que diz respeito às sanções administrativas oriundas da submissão, pelo Banco Central do Brasil, de instituição submetida a seu poder de polícia, a um dos regimes jurídicos especiais legalmente previstos, obviamente serão alcançadas pelo exame somente as condutas observadas por aquele ente autárquico, pontuadas e colocadas em comparação com a doutrina sobre a matéria, bem como trazendo à apreciação o posicionamento judicial a respeito. De início, a abordagem elabora algumas notas acerca do processo de institucionalização e evolução do Estado, percorrendo as fases históricas vividas ao longo dessa trajetória, buscando localizar o surgimento e desenvolvimento de regras tendentes a estabelecer a devida limitação à atividade estatal, notadamente no que se refere à questão da discricionariedade, Logo a seguir, tendo em vista tratar-se de seara onde viceja em grande medida o exercício de competência discricionária e na qual se abre intensa polêmica acerca dos limites à intervenção estatal na órbita de interesses privados, discricionariedade é relativa, no sentido de que, ainda quando a lei haja, em sua dicção, ensanchado certa margem de liberdade para o agente, tal liberdade poderá esmaecer ou até mesmo esvair-se completamente diante da situação em concreto na qual deva aplicar a regra.” 4 são apresentados o fundamento, a definição e a extensão do denominado poder de polícia. No passo adiante, cuida-se de oferecer os conceitos de discricionariedade e de vinculação para, em momento a seguir, examinar o fundamento da discricionariedade, abordando o grau de intensidade dos comandos normativos e estabelecendo a nota distintiva entre os atos discricionários públicos e os privados. Na seqüência, o exame é centrado no aspecto relativo aos conceitos jurídicos indeterminados para, logo após, tratar da evolução das técnicas de redução e de controle da discricionariedade. Em capítulo posterior, as atenções são dirigidas ao tratamento dispensado aos processos administrativos sancionatórios no âmbito do Banco Central do Brasil, ocasião em que, no intuito de ilustrar a convivência com o tema, tratou-se de apresentar, ainda que em linhas gerais, um painel do regramento normativo próprio deste instrumento de exercício de poder de polícia. Na seqüência, foi enfocado o modo pelo qual são conduzidos os processos administrativos instaurados pela Comissão de Valores Mobiliários, oportunidade em que também é apresentado o arcabouço legal e regulamentar que orienta a atuação daquela autarquia. Ainda nessa parte do trabalho é dado destaque à Lei 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, bem como se discorre a respeito da aplicação de princípios de direito penal aos processos administrativos punitivos e, ainda, são trazidas informações a respeito da instância administrativa recursal competente para o julgamento dos recursos interpostos contra as decisões de primeira instância. 5 Finalizando quanto a essa parte, e intentando proporcionar uma visão comparativa acerca do questionamento proposto, são trazidos à apreciação alguns apontamentos teóricos e práticos relacionados ao tratamento dispensado aos processos administrativos sancionatórios. Inaugura-se, no capítulo superveniente, a condução da questão sob a vertente específica dos denominados regimes especiais decretados pelo Banco Central do Brasil, e que submetem as instituições sob sua supervisão a tratamento jurídico diferenciado do ordinariamente imposto às sociedades que enfrentam crises de liquidez. Nesse momento, pretende-se elucidar a questão relativa ao aspecto normativo do instituto, discorrendo sobre os diplomas legais que estabelecem as diferentes espécies de regimes especiais, seguidos de comentários sobre seus principais dispositivos. Depois disso, são feitas algumas indagações a propósito dos regimes de que se trata, particularmente quanto à natureza discricionária ou vinculada dos atos administrativos instauradores dos mesmos, bem como no que atina ao caráter sancionatório ou não de algumas restrições de direitos que se seguem à decretação dos aludidos regimes especiais. Também são examinadas algumas questões de ordem prática relacionadas ao encerramento daqueles regimes excepcionais e, mais uma vez, faz-se presente o questionamento acerca da natureza vinculada ou discricionária que deve orientar as decisões do ente regulador no sentido de dar continuidade ou por fim às situações da espécie, considerada a persistência ou não dos motivos que ensejaram a decretação dos regimes. Para tanto, são consideradas ao longo dessa dissertação as posições manifestadas por doutrinadores brasileiros e estrangeiros que se 6 dedicaram ao exame do tema e que identificaram, em meio ao próprio ordenamento jurídico, limites impostos pelo legislador ao outorgar aos agentes públicos a possibilidade de exercer um certo grau de subjetivismo no desenvolvimento da função administrativa. 7 II –EVOLUÇÃO DO ESTADO E PODER DE POLÍCIA 1. Criação e desenvolvimento do Estado O processo de institucionalização do Estado teve seu início por volta do século XV, tendo como cenário as cidades italianas, onde surgiu a expressão stato, pretendendo designar uma organização jurídico-política e o seu respectivo domínio de atuação, já então se revelando o seu aspecto soberano, no sentido de ser um poder bastante por si mesmo e independente de outras entidades da espécie.2 Anteriormente a isso, ainda não havia sido desenvolvido o conceito de soberania, próprio do Estado que, para tanto, teve que se impor em relação a outros centros de dominação, dentre eles a Igreja, o Império Romano e as instituições feudais.3 Para Cassagne,4 a característica essencial que distingue o Estado de outras comunidades, de acordo com a concepção aristotélica é a sua autosuficiência, no sentido de que não precisa nem depende de outra comunidade para a realização de seus fins. 2 Maysa Abrahão Tavares Verzola, Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade de São Paulo, Departamento de Direito do Estado, A Sanção no Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo, 2008, p.10. 3 Fernando Andrade de Oliveira, O poder do Estado e o exercício da polícia administrativa, Revista de Direito Público 29/2000. Malheiros, São Paulo, p. 71: “Relatam os tratadistas que, na antiguidade, ainda era desconhecido o conceito de soberania, isto é, o fenômeno da oponibilidade do poder estatal a outros poderes. O Estado moderno, radicalmente diferente do antigo – escreve Georg Jellinek – afirmou sua existência como soberano na Idade Média, combatendo e vencendo, sucessivamente, três outros centros de poderes: a Igreja, que pretendia mantê-lo a seu serviço, o Império Romano, que não concedia ‘aos Estados particulares mais valor que o das províncias’ e, finalmente, o dos grandes senhores e corporações feudais, que se consideravam independentes. Essa soberania do Estado, no campo do Direito interno – acrescenta Hans Kelsen – designa o supremo poder sobre homens e agrupamentos humanos que os integram, a sua onipotência jurídica. ‘Dá-se a esse poder o nome de supremacia de competência, entendendo-se sob esse conceito a possibilidade de uma ordem determinar, por si mesma, em todos os sentidos, os objetos da sua regulação. Possibilidade que não provém da autorização de uma ordem superior, determinante do âmbito real, espacial e temporal da ordem inferior, nem se trata de ordem particular, frente à ordem total, única soberana”. 4 Derecho Administrativo I – Tercera Edicion Actualizada, Abeledo-Perrot, Buenos Aires, 1992, p.33. 8 O poder correlato a essa instituição deve ser entendido, segundo Heller,5 como um centro de decisão política, cuja dominação se faz por meio do direito, o qual torna possível uma maior previsibilidade na orientação e organização das situações de poder, o qual não prescinde da legitimidade, de forma a garantir o seu reconhecimento voluntário. O aspecto relativo às características que permeiam a instituição denominada Estado interessam sobremaneira ao desenvolvimento desse estudo, particularmente sob o prisma do exercício do poder que lhe é inerente e da sua estreita correlação com o trato da discricionariedade. O exercício do poder e, por via de conseqüência, da própria discricionariedade, naquilo que respeita aos variados graus que podem demarcálos, encontram os seus limites na própria legitimidade da relação de dominação entre os que comandam e os que se submetem ao comando ou, de outro modo, entre os que governam e os que são governados. Já dizia Kelsen,6 ao empreender considerações a respeito do tema sobre a vertente sociológica, que “a tentativa mais bem-sucedida de uma teoria sociológica do Estado talvez seja a interpretação da realidade social em termos de “dominação”, segundo a qual “o Estado é definido como um relacionamento em que alguns comandam e governam, e outros obedecem e são governados”. No entanto, como assevera o mesmo autor, “considera-se a dominação legítima apenas se ocorrer em concordância com uma ordem jurídica cuja validade é pressuposta pelos indivíduos atuantes; e essa ordem é ordem jurídica da comunidade cujo órgão é o “governante do Estado”. Em outra passagem, registra Kelsen que “o Estado é uma sociedade politicamente 5 6 Teoría Del Estado. Trad. Luiz Tobio, Fondo de Cultura Económica, México, 2002, p. 308/09. Teoria Geral do Direito e do Estado, Martins Fontes, São Paulo, 2000, p. 268/73. 9 organizada porque é uma comunidade constituída por uma ordem coercitiva, e essa ordem coercitiva é o Direito”. Prossegue asseverando que “a dominação que tem, sociologicamente, o caráter de “Estado”, apresenta-se como criação e execução de uma ordem jurídica, ou seja, uma dominação interpretada como tal pelos governantes e governados” e advertindo que “a sociologia tem de registrar a existência dessa ordem jurídica como um fato nas mentes dos envolvidos, e se a sociologia interpretar a dominação como uma organização do Estado, então a própria sociologia deve admitir a validade dessa ordem”. Em vista disso, conclui Kelsen: “mas se o Estado é um sistema de normas, então a vontade e a conduta do indivíduo tendem a entrar em conflito com essas normas, e só pode surgir o antagonismo entre o “ser” e o “dever ser”, que é um problema fundamental de toda a teoria e prática social”. Segundo Cassagne,7 o princípio que unifica e outorga coerência à organização estatal é o da autoridade, que se mantém por intermédio do poder, o qual atua com o fim de assegurar a ordem social fundamentalmente através da lei, que sempre dever ser justa, conforme a natureza e de acordo com os costumes do país. Segundo o autor, o poder do Estado não é absoluto, pois é limitado pela lei natural, e não se localiza em um indivíduo ou conjunto de indivíduos, mas sim na própria personalidade do Estado, na qual reside de forma exclusiva. Numa visão positivista, a qual assumimos, é de se enfatizar que a relativização do poder do Estado, aventada por Cassagne como sediada no ideário do direito natural, é derivada das próprias limitações constitucionalmente estabelecidas pelos modernos Estados Democráticos de Direito e, por isso mesmo, mais facilmente reconhecíveis e dotadas de efetividade jurídica. 7 Ob.cit. p. 34. 10 Discorrendo acerca do exercício do poder no âmbito dos diversos modelos de Estado adotados ao longo dos tempos, Maria Sylvia Zanella di Pietro8 apresenta criterioso estudo abordando a questão relativa aos limites de atuação da Administração Pública no Estado de Polícia e no Estado de Direito, situando em cada um daqueles contextos históricos o tratamento conferido à legalidade e à discricionariedade. De acordo com Merkl, citado pela autora, a característica distintiva entre os dois modelos de organização jurídico-política reside na constatação de que “o Estado de Polícia se apresenta como aquele Estado cuja administração se acha legalmente incondicionada, enquanto o Estado de Direito oferece uma administração legalmente condicionada”. O Estado moderno, em sua gênese, é assim rotulado como sendo o Estado de Polícia, marcado pelo poder absoluto do monarca, cuja vontade suprema se impunha, representado pela máxima the king can do no wrong. Nesse período histórico, informa a autora que, nas palavras de Vinício Ribeiro, “o príncipe vai utilizar a sua ausência de limites não para o seu engrandecimento pessoal, mas com a intenção de se tornar o possesso da idéia de progresso do seu país”, sendo que “(...) os súditos ficavam à mercê do príncipe, não dispondo de qualquer medida judicial a ele oponível”, como também noticia Marcelo Figueiredo.9 8 Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988, 2ª ed., Atlas, São Paulo, 2001, p. 17/64. 9 Estudos de Direito Público em homenagem a Celso Antônio Bandeira de Mello. Marcelo Figueiredo e Valmir Pontes Filho, Malheiros, São Paulo, 2006, p. 427: “Nesse período não há falar em legalidade administrativa. Como sabemos, o poder público é exercido pelo rei ou príncipe em pessoa e em seu nome e no do Estado, ao mesmo tempo, por funcionários subordinados ao rei. Em face dos súditos o poder do príncipe não tinha limites jurídicos. Havia uma presunção de competência a favor dos poderes públicos incorporados na pessoa do rei. O poder Judicial, a Justiça Civil e Criminal, conquanto estivesse organizado em tribunais, não detinha o monopólio da jurisdição, já que o rei poderia, em última análise, imiscuir-se em todos os seus assuntos, não raro avocando causas e processos conforme seu interesse. Desse modo, acabava por decidir pessoalmente como, quando e da maneira que melhor entendesse o que era o Direito, ou, ainda, podia determinar a um tribunal como se pronunciar”. 11 A fim de combater esse absolutismo monárquico, conforme reporta aquela eminente doutrinadora, “elaborou-se (...) a teoria do fisco, em consonância com a qual o patrimônio público não pertence ao príncipe nem ao Estado, mas ao fisco, que teria personalidade de direito privado, diversa da personalidade do Estado, associação política, pessoa jurídica de direito público, com poderes de mando, de império”, de forma que “o primeiro submetia-se ao direito privado, e, em conseqüência, aos tribunais; o segundo regia-se por normas editadas pelo príncipe, fora da apreciação dos tribunais”. Consequentemente, um conjunto de situações jurídicas passou a ser regida pelo direito civil, tornando as respectivas relações, portanto, sindicáveis, de modo que “os tribunais passaram a reconhecer, em favor do indivíduo, a titularidade de direitos adquiridos contra o fisco, todos eles fundamentados no direito privado”. No entanto, um outro bloco de relações continuava sob o domínio da lei editada pelo príncipe, não sujeito a controle judicial, pelo que a dualidade estabelecida não veio a efetivamente delimitar o poder do monarca, mas apenas provocou o seu abrandamento. Assim, esse sistema ao menos trouxe para o âmbito da apreciação judicial parte da atividade do Estado, submetendo-a à lei e arrefecendo o império do arbítrio discricionário do monarca, que até então não encontrava qualquer limitação legal relativamente à sua atuação. Em sua fase seguinte, qual seja, o período do Estado Liberal de Direito, registra Di Pietro que o Estado Moderno alcançou o estágio do denominado Estado de Direito, fundado com base nos princípios da legalidade, da igualdade e da separação de poderes, visando resguardar não somente os direitos individuais relativos às relações entre particulares, mas também os pertinentes aos liames em que presentes aqueles e o próprio Estado, o que veio a 12 coincidir com o próprio surgimento do constitucionalismo, como também menciona Marcelo Figueiredo.10 Nessa configuração, de um lado ocorreu a substituição do desejo do monarca como fonte de produção legal, pela noção da lei como resultante da vontade geral e, de outro lado, cometeu-se ao Direito a incumbência de promover a garantia das liberdades individuais, o que veio a determinar que a legitimação do exercício do poder necessariamente tivesse como origem a própria lei, conceito esse estampado, em 1789, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.11 Anota o já citado Marcelo Figueiredo12 que “ninguém duvida de que o princípio da legalidade, em sua concepção forte e original, tenha surgido com toda sua força e pujança nessa época” e que “a noção de poderes pessoais é substituída – muito devido a Rousseau – pelos poderes advindos da lei”, sendo que “é a lei a fonte do poder democrático”. Foi exatamente nesse ambiente mutante, como lembra Di Pietro, que veio à luz o Direito Administrativo, assumindo independência em relação ao direito 10 Ob. cit. p. 429: “Embora não haja contraposição entre Estado Liberal e Estado Constitucional, alguns autores entendem que ambos são movimentos paralelos, baseados sobre fundamentos idênticos; ou; ainda, que o primeiro é o precursor do segundo. Nos Estados Unidos da América do Norte encontramos um ambiente ideal para o desenvolvimento do regime constitucional escrito. A idéia de uma lei constitucional superior às ordinárias – todos sabemos – é antiga, e encontrada em Aristóteles. Também da velha Inglaterra somos devedores de idéia de uma lei constitucional. Cromwell, em 1652, promulgava o Instrument of Government, que em seus 42 artigos declarava nulas as leis ordinárias contrárias às suas disposições”. 11 Rafael Munhoz de Mello, Revista Trimestral de Direito Público, 30/2000, A sanção administrativa e o princípio da legalidade, Malheiros, São Paulo, 151/52: “Como foi acima afirmado, ínsita à idéia de Estado de Direito é a submissão dos entes estatais à lei. Com efeito, o Estado de Direito surge justamente no momento em que a observância da ordem jurídica torna-se obrigatória para o próprio Estado. Daí afirmarem os doutrinadores que o princípio da legalidade é a mais importante característica do Estado de Direito, ‘que o qualifica e lhe dá identidade própria’. Trata-se, nas palavras de Brewer-Carías, da ‘construción jurídica más importante del Estado de derecho’. Sendo assim, a importância do princípio da legalidade para o direito administrativo é imensurável, pois tal ramo jurídico é, também, conseqüência do advento do Estado de Direito. De fato, antes da submissão do ente estatal à legalidade não havia que se falar em direito administrativo, ao menos no modo como a expressão é hoje entendida. Pode-se afirmar, assim, que o direito administrativo é fruto da Revolução Francesa, marco histórico que identifica o surgimento do Estado de Direito”. 12 Ob. cit. p. 428. 13 comum e ganhando autonomia por meio de normas de direito público aplicáveis à Administração Pública. Lembra a autora que, muito embora o princípio da legalidade representasse a idéia central inspiradora do Estado de Direito, àquela época o mesmo apresentava uma compostura restritiva, na medida em que ao Estado, ainda como resquício do velho regime, reconhecia-se um círculo de agir intitulado de discricionário e que se situava livre de vinculação e fora do alcance de qualquer controle judicial. Isso se devia à idéia então difundida de que, a exemplo do Poder Judiciário, a Administração Pública, no exercício de sua atividade dita executiva, tinha a missão de executar a lei, o que levou a uma conceituação de ato administrativo próxima àquela da sentença judicial, ou seja, uma manifestação da Administração visando aplicar a lei a um caso concreto. Aponta a doutrinadora que “daí resulta a necessidade de compatibilizar essa idéia de discricionariedade com o princípio da legalidade administrativa” cuja “conseqüência foi que esse último era entendido de forma muito mas liberal do que a atualmente concebida”, já que “a administração podia fazer não só o que lei expressamente autorizasse, como também tudo aquilo que a lei não proibisse”. Nessa linha, a discricionariedade, então, podia ser entendida não como um poder jurídico, mas um poder político, posto que possível de ser manejada pela Administração em todos aqueles espaços não abrangidos pela lei. Em sua próxima etapa, no século XIX, verificada a insuficiência dos princípios que nortearam o liberalismo e, ao mesmo tempo, ancorado nas idéias de socialização e de fortalecimento do Poder Executivo, veio à lume o chamado Estado Social de Direito, quando se identifica a admissão de uma certa participação do Poder Executivo no processo normativo, na medida em que o 14 legislador editava standards que demandavam complementação por normas infralegais produzidas pelo Executivo, como reportado por José Carlos Francisco.13 Paralelamente a essa sobrecarga passada à Administração Pública ocorreu um crescimento do Direito Administrativo, posto que o Estado, além de ter reclamada a sua atuação nos campos social e econômico, passou a intervir de maneira crescente no arco das liberdades individuais, mediante a limitação ao exercício de direitos ou mesmo por meio da atuação direta em áreas antes reservadas à atividade privada, como referido por San Tiago Dantas.14 Assim, conforme a autora já citada, “o direito administrativo criou princípios e institutos que derrogaram em grande parte postulados básicos do 13 Limites Constitucionais à função regulamentar e aos regulamentos, Tese de doutorado, Faculdade de Direito da USP, Orientador Prof. Dr. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, São Paulo, abril de 2003, p. 272/73: “Vimos anteriormente que nos séculos XVIII e XIX ainda sob forte influência da lógica liberal de separação dos poderes, cogita-se que ao Executivo deveria ser conferida liberdade ou discricionariedade para a escolha de suas ações, razão pela qual o sentido extraído pela administração dos comandos da constituição e das leis não estaria sujeito a controle jurídico, mas tão somente à fiscalização moral e política. Visando à proteção das liberdades públicas e à definição dos limites de ação estatal, a administração estava vinculada à lei, mas o governo (compreendido como Chefia do Executivo) seria dotado de discricionariedade, cujos atos seriam excluídos da apreciação jurisdicional em razão da separação de funções e de poderes (jus politiae). Porém, também vimos que a separação dos poderes sempre teve o sentido de controle e equilíbrio entre eles, justificando a anulação de atos do poder Executivo pelo Legislativo e pelo Judiciário quando eivados de vícios, particularmente quanto à legalidade e constitucionalidade, motivo pelo qual a impossibilidade de controle jurídico mesmo dos atos discricionários foi vencida rapidamente, ainda no período liberal. Já com o Estado Social, quando mais se exige do Executivo e das leis em razão da consecução de fins econômicos e sociais, sabemos que as previsões legais passaram a ser mais amplas, servindo de orientação geral para flexibilizar as ações da administração pública em face da realidade cambiante e técnica. Nesse quadro de idéias é que vimos a fixação de preceitos programáticos na ordem constitucional para definir o sentido de justiça social a ser buscado pelas leis e pelos atos dos Poderes Públicos, exigindo-se do Legislativo a definição do núcleo essencial dos temas pela reserva absoluta e admitindo-se maior participação do Executivo no processo normativo, ao mesmo tempo em que se ampliam os sistemas de controle. Todavia, por mais esforços que tenham sido empreendidos, a necessária mobilidade na administração pública ainda assim exige que as leis transfiram ao Executivo uma boa dose de liberdade na tomada de decisões, seja quando exercem a função regulamentar, seja quando praticam atos administrativos de efeito concreto, definida como discricionariedade”. 14 Problemas de Direito Positivo, Forense, Rio, 1956. Igualdade perante a lei e Due process of law, Forense, Rio, 1953, p. 48, grafia original: “Entre essas medidas novas, requeridas pelo desenvolvimento sempre crescente do Estado, achavam-se tôdas aquelas que visam ‘a melhoria das condições sociais e econômicas da sociedade em geral’, cujo complexo dinâmico os autores soem designar pela expressão public welfar. A crescente intervenção do Estado na vida econômica, para orientar, coordenar, estimular e reprimir iniciativas, constitucionalmente se exprime numa dilatação do poder de polícia, o qual estende sua esfera de ação até os negócios privados, na medida em que eles se refletem no campo do interesse público”. 15 individualismo jurídico”, consoante também registrado por Marcelo Figueiredo,15 bem como “o poder de polícia também experimentou notável ampliação” fazendose presente em áreas não pertinentes à segurança, bem como impondo obrigações em vários segmentos, passando assim a ser considerado como um meio de limitação, pelo Estado, ao exercício dos direitos individuais em prol do interesse coletivo, característica esta já vislumbrada por Ramón F. Vasquez,16 na metade do século passado. Nesse quadro, o princípio da legalidade, sob a influência do positivismo jurídico, passou a incidir sobre toda a atividade administrativa, consolidando o entendimento de que a Administração Pública só pode fazer aquilo que lhe permite a lei, conforme enfatiza Celso Antônio Bandeira de Mello,17 de modo que a própria discricionariedade exigia explicação e fundamento no bojo do sistema jurídico, assumindo assim os contornos de um poder carente de justificação legal para o seu exercício. 15 Ob. cit. p. 434: “No contexto do Estado Social de Direito, não por acaso, a ‘doutrina dos princípios’ floresce com toda força. Isso porque a complexidade do Estado e da sociedade contemporânea, ambos fenômenos de massa, plurais, desencadearam a necessidade de que a experiência jurídica produzisse canais de comunicação normativa mais abertos – os princípios – de modo a acomodar essa gama enorme de interesses e aspirações, abrindo, assim, o raio normativo no maior ângulo possível, fixando-lhe, é certo, o seu conteúdo central (...). De fato, os princípios passaram a desempenhar um papel muito mais dinâmico em relação à aplicação da legalidade – inclusive na Administração. Isso porque as regras são, normalmente, relatos objetivos, descritivos de determinadas condutas e aplicáveis a um conjunto delimitado de situações. Respondem à lógica do tudo-ou-nada. Já os princípios, com sua natural abertura normativa, podem com facilidade abrigar várias regras. Ou, noutro giro, às vezes a aplicação de uma única regra pode ceder espaço para a aplicação de um princípio, de conteúdo e alcance mais amplo – digamos, um princípio geral.” 16 Poder de Policía, Segunda Edición, Buenos Aires, 1957, p. 35, tradução livre: “O dito até aqui demonstra a considerável amplitude do conteúdo do Poder de Polícia, por mais que seu exercício não esteja isento das restrições exigidas por respeito à Constituição. Tão extraordinário é seu alcance que, com a evolução social e política produzida nas sociedades modernas, tem alcançado insuspeitada aplicação, abarcando até matérias vinculadas ao mais íntimo da vida privada das pessoas.” 17 Discricionariedade e Controle Jurisdicional, Malheiros, São Paulo, 2ª ed., 7ª tiragem, 2006, p. 10/11: “Assim, deve-se, desde logo, começar por frisar que o próprio do Estado de Direito, como se sabe, é encontrar-se, em quaisquer de suas feições, totalmente assujeitado aos parâmetros da legalidade. Inicialmente, submisso aos termos constitucionais, em seguida, aos próprios termos propostos pelas leis,e, por último, adstrito à consonância com os atos normativos inferiores, de qualquer espécie, expedidos pelo poder Público. Deste esquema, obviamente, não poderá fugir agente estatal algum, esteja ou não no exercício de ‘poder’ discricionário. A grande novidade do Estado de Direito certamente terá sido subjugar totalmente a ação do Estado a um quadro normativo, o qual se faz, assim, impositivo para todos – Estado e indivíduos”. 16 Passo seguinte, mercê das conseqüências funestas deixadas pelo positivismo formalista e o resultado desfavorável apresentado pelo Estado Social no que respeita aos valores apregoados pelo liberalismo, consoante acentua Di Pietro, surge o Estado Democrático de Direito, atendendo aos reclamos pela volta ao Estado de Direito, o que veio a ser alcançado principalmente por meio da participação do povo no processo político e pela realização de justiça social. Anota a autora o caráter evolutivo da mudança ocorrida, citando José Afonso da Silva,18 ao mesmo tempo em que deixa marcado que essa nova concepção de Estado Democrático de Direito foi adotada, dentre outras, pela Constituição alemã de 1949, pela espanhola de 1978, pela portuguesa de 1976 e, ainda, pela nossa constituição promulgada em 1988. Para Juarez Freitas,19 “o Estado Constitucional, numa de suas mais expressivas dimensões pode ser traduzido como o Estado das escolhas administrativas legítimas”, e “assim considerado, nele não se admite a discricionariedade pura, intátil, sem limites, pois, “faz-se cogente, sem condescendência, enfrentar todo e qualquer “demérito” ou antijuridicidade das escolhas públicas, para além do limite adstrito a aspectos meramente formais”. Segundo o tratadista, “toda discricionariedade exercida legitimamente, encontra-se, sob determinados aspectos, vinculada aos princípios constitucionais, acima das regras concretizadoras”, e, “nessa ordem de idéias, quando o administrador público age de modo inteiramente livre, já deixou de sê-lo. 18 “a igualdade do Estado de Direito, na concepção clássica, se funda num elemento puramente formal e abstrato, qual seja a generalidade das leis. Não tem base material que se realize na vida concreta. A tentativa de corrigir isso, no entanto, não foi capaz de assegurar a justiça social nem a autêntica participação democrática do povo no processo político, de onde a concepção mais recente do Estado Democrático de Direito, como Estado de legitimidade justa (ou Estado de justiça material), fundante de uma sociedade democrática qual seja a que instaura um processo de efetiva incorporação do povo nos mecanismos de controle das decisões, e de sua real participação nos rendimentos da produção”. 19 Discricionariedade Administrativa e o direito fundamental à boa administração pública, Malheiros, São Paulo, 2007, p. 9/10. 17 Tornou-se arbitrário. Quer dizer, a liberdade apenas se legitima ao fazer aquilo que os princípios constitucionais, entrelaçadamente, determinam”. Nesse novo cenário, esclarece Di Pietro que “o princípio da legalidade vem agora expressamente previsto na Constituição entre aqueles a que se obriga a Administração Pública direta, indireta ou fundacional (...)”, sem no entanto significar que “o constituinte tenha optado pelo mesmo formalismo originário do positivismo jurídico”. Ressalta também que “preocupam-se os doutrinadores em realçar a importância dos princípios gerais do direito como fonte do direito administrativo” e que “todos esse valores são dirigidos ao legislador, ao magistrado e ao administrador público”, asseverando ainda que “a discricionariedade administrativa – como poder jurídico que é – não é limitada só pela lei, em sentido formal, mas pela idéia de justiça, com todos os valores que lhe são inerentes, declarados a partir do preâmbulo da Constituição”. Esclarece a autora que atualmente, entre nós, por força do fenômeno da globalização, verifica-se um certo retorno, ainda brando, ao neoliberalismo, bem como em virtude do princípio da subsidiariedade e da própria reforma administrativa. Nessa nova concepção, “os direitos fundamentais do homem já não constituem apenas uma barreira à atuação do Estado”, pois “cabe a esse promover, estimular, criar condições para que o indivíduo se desenvolva livremente e igualmente dentro da sociedade; para isso é necessário que se criem condições para a participação do cidadão no processo político e no controle das atividades governamentais”. Naturalmente, esse novo ambiente, conforme explicita a autora, provocou reflexos no direito administrativo, os quais podem ser percebidos, de um 18 lado, pela aderência ao mesmo de novos institutos e princípios e, de outro, como pretendem os neoliberais fundamentalistas, difunde-se a idéia de que o Direito Administrativo vem se constituindo em óbice às suas idéias. Esse alegado empecilho resultaria do próprio princípio da legalidade, o que levaria aquele grupo a postular um regime de direito privado para certas situações ou mesmo um regime jurídico-administrativo mais flexível que redunde em maior liberdade de atuação por partes das autoridades administrativas. Percebe-se, segundo Di Pietro, um claro embate por mudanças no Direito Administrativo, buscando, ao mesmo tempo, relativizar a estrita legalidade e aumentar a margem de discricionariedade, especialmente por meio da aplicação da denominada discricionariedade técnica, tendo como objetivo principal escapar ao controle jurisdicional. Entretanto, enfatiza a administrativista que “o princípio da legalidade continua presente na Constituição, tal como previsto na redação original” e, “em conseqüência, a discricionariedade continua sendo um poder jurídico, ou seja, um poder limitado”. Corrobora o posicionamento acima o entendimento expressado por Susana Lorenzo20, no sentido de que a atuação discricionária da Administração só existe por disposição expressa da lei, que lhe outorga aspectos sempre particulares de uma relação para complementá-la e lhe dar eficácia jurídica e que, por isso, o princípio da legalidade não é afetado. Ainda de acordo àquela tratadista, a maior ou menor discricionariedade surgirá, como diz Sayagués, dos textos constitucionais ou 20 Sanciones Administrativas, Julio César Faiza – Editor, Montevideo, 1996, p. 15. 19 legais, sem prejuízo de que a Administração, no exercício de seus poder regulamentar, possa estabelecer seus próprios limites de discricionariedade. Em outra passagem, Di Pietro acrescenta ainda que “a legalidade é estrita quando se trata de impor restrições ao exercício de direitos individuais e coletivos e em relação àquelas matérias que constituem reserva de lei, por força de exigência constitucional”, e que “em outras matérias, pode-se falar em legalidade em sentido amplo, abrangendo os atos normativos baixados pelo Poder Executivo e outros entes com função dessa natureza, sempre tendo-se presente que no direito brasileiro não têm fundamento os regulamentos autônomos”, Pondera que “o grau de discricionariedade continua a depender da forma como a competência legislativa é atribuída ao legislador”, e que “a discricionariedade continua a ser poder jurídico, porque exercida nos limites fixados pela lei, sendo ainda limitada por inúmeros princípios previstos de forma implícita ou explícita na Constituição como moralidade, razoabilidade, interesse público”. Por fim, enfatiza que “qualquer outra interpretação significa a perda da segurança jurídica essencial para proteger os direitos do cidadão em face do poder público”. 20 2. Poder de Polícia Naquilo que toca ao denominado poder de polícia, cabe asseverar que o seu exercício, por parte das pessoas jurídicas de direito público qualificadas implícita ou explicitamente como órgãos reguladores de mercados, têm como fundamento de validade, em termos gerais, a idéia central que abrange a totalidade do ordenamento jurídico, no sentido de que os direitos subjetivos não têm caráter absoluto.21 Em vista disso, a fruição dos direitos subjetivos por parte dos seus titulares não pode se revelar abusiva, sob pena de situar-se além do que seria necessário para o atendimento de suas finalidades e interesses e, assim, invadir esferas de direitos alheios e vir a ser a ser abrangida pelo campo da ilicitude. Nesse sentido é a própria interpretação a contrario sensu do disposto no art. 160, do revogado Código Civil, quando enunciava que não constituem atos ilícitos os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito. O vigente Código Civil, cujas disposições se espraiam para as demais províncias do Direito, veio a tornar mais claro o entendimento a respeito ao estabelecer, em seu artigo 187, que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Na mesma linha já se colocava a própria Constituição Federal, em vários incisos do seu artigo 5º, os quais estabelecem expressas limitações ao exercício de uma série de direitos e de liberdades individuais, seja no tocante à propriedade, ao exercício de profissões, aos direitos políticos ou de reunião, 21 Antonio Carlos Verzola, Dos marcos legais impostos ao exercício do direito de punir por parte da administração pública. in Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, RT, São Paulo, Ano 9, nº 32, abril-junho de 2006, p. 87/88. 21 dentre outros, limitando a sua utilização às fronteiras da normalidade, de modo a não desbordar do terreno da licitude. Em sede de Direito Público, e mais especificamente na seara do Direito Administrativo, essa proibição de abuso ou essa necessidade de moderação no exercício dos direitos traduz-se na imposição legal de conformação dos interesses individuais ao interesse público e deriva da supremacia deste em relação àqueles, vindo a ser tratada pelos doutrinadores sob a rubrica denominada poder de polícia. Para Celso Antônio Bandeira de Mello,22 “rigorosamente falando, não há limitações administrativas ao direito de liberdade e ao direito de propriedade – é a brilhante observação de Alessi – uma vez que estas simplesmente integram o desenho do próprio perfil do direito. São elas, na verdade, a fisionomia normativa dele”. Segundo Maria Silvia Zanella di Pietro,23 “a autoridade não pode renunciar ao exercício das competências que lhe são outorgadas por lei; não pode deixar de punir quando constate a prática de ilícito administrativo; não pode deixar de exercer o poder de polícia para coibir o exercício dos direitos individuais em conflito com o bem estar coletivo; não pode deixar de exercer os poderes decorrentes da hierarquia (...). Cada vez que ela se omite no exercício de seus poderes, é o interesse público que está sendo prejudicado”. A propósito, Caio Tácito24 afirma que “não há direito público subjetivo absoluto no Estado Moderno. Todos se submetem, com maior ou menor intensidade, à disciplina do interesse público, seja em sua formação ou em seu exercício”. 22 Curso de Direito Administrativo, 22ª ed., Malheiros, São Paulo, 2007, p. 784. Direito Administrativo, 15ª edição, Atlas, 2003, p.70. 24 Direito Administrativo, Saraiva, 1975, p. 141. 23 22 Em outra obra de sua autoria,25 sustenta que “a Administração Pública, dotada de uma margem reconhecida de discricionariedade, em benefício do interesse geral, encontra na regra de competência, explicitada na lei que qualifica o exercício da autoridade, a extensão do poder de agir”. A seguir, enfatiza que “dissemos, em outra oportunidade, que não é competente quem quer, mas quem pode, segundo a norma de direito”, e que “ao contrário da pessoa jurídica de direito privado que, como regra, tem a liberdade de fazer aquilo que a lei não proíbe, o administrador público somente poder fazer aquilo que a lei autoriza expressa ou implicitamente”. Ainda segundo Caio Tácito, “em seu conceito clássico o poder de polícia é simples processo de contenção dos excessos do individualismo” e “consiste, em suma, na ação da autoridade pública para fazer cumprir por todos os indivíduos, o dever de não perturbar” . Numa breve síntese histórica a respeito da matéria, Nelson Eizirik26 informa que “a noção de poder de polícia remonta à Antiguidade, quando significava “ordenamento político do Estado ou cidade”, e que ”após a ampliação de seu sentido na Idade Média, tal noção atingiu seu apogeu no fim do período absolutista, época em que o Estado realizava intromissão opressiva na vida dos particulares”. Ainda conforme o autor, “a restrição de seu sentido adveio da Revolução Francesa e da Declaração de Virgínia, quando ganharam força os direitos fundamentais do homem, principalmente aqueles em face do Estado”. Explicitando o seu significado, Hely Lopes Meirelles27 preceitua que “a cada restrição de direito individual – expressa ou implícita em norma legal – corresponde equivalente poder de polícia administrativa à Administração Pública, para torná-la efetiva e fazê-la obedecida. Isto porque esse poder se embasa, 25 Revista de Direito Administrativo, nº 227, jan/mar 2002, p. 40. Mercado de Capitais - Regime Jurídico, Renovar, Rio de Janeiro, 2008, p. 257/58. 27 Direito Administrativo Brasileiro. 26ª ed.. 2001, Malheiros, p. 125. 26 23 como já vimos, no interesse superior da coletividade em relação ao direito do indivíduo que a compõe”. Sobre a questão, Odete Medauar28 entende tratar-se de tema que “diretamente se insere na encruzilhada liberdade-autoridade, Estado-indivíduo, que permeia o direito administrativo e o direito público, revelando-se muito sensível à índole do Estado e às características históricas, políticas e econômicas dos países”. Posto isso, percebe-se que a maioria dos autores, ao se reportarem à atividade da Administração Pública de realizar, mediante atos administrativos, abstratos ou concretos, a adequação de interesses individuais ao interesse coletivo, tratam do tema empregando a denominação poder de polícia. Não obstante isso, essa locução é objeto de ampla discussão no ambiente doutrinário, podendo-se dizer, até, que a sua utilização reflete mera resignação a um arraigado costume, despido de rigor técnico, como indica o entendimento majoritário. Assim o é na medida em que um considerável grupo de doutrinadores não reconhece a existência de um conjunto normativo próprio daquilo que se convencionou chamar de poder de polícia, como é o caso de Lúcia Valle Figueiredo,29 ao concluir, com apoio em Gordillo30 e em José Roberto Dromi,31 pela “inexistência de regime jurídico determinado para as “medidas de polícia”, quer legislativas ou executivas, distinto do resto da atividade estatal”. 28 Direito Administrativo Moderno, 5ª ed., 2001, RT, p. 387. Curso de Direito Administrativo, 2ª Ed. 1995, RT, p.195/96. 30 Cf. Agustín A Gordillo, tradução livre: “De plano, é de recordar que o aditamento de ‘poder’ é equivocado, porquanto o poder estatal é um só, e já se viu que a chamada divisão de três poderes consiste, por um lado, em uma divisão de funções (funções legislativa, administrativa, jurisdicional), e por outro em uma separação de órgãos (órgãos legislativo, administrativo e jurisdicional). Em tal sentido o poder de polícia não seria em absoluto um órgão do Estado, senão em uma espécie de faculdade ou melhor uma parte de alguma das funções mencionadas”. (Tratado de Derecho Administrativo, t. 2, XII-I, XII-2). 31 Cf. José Roberto Dormí, tradução livre: “As limitações administrativas, como pressuposto legal, encaixam dentro da mecânica operativa do regime da Administração sem necessidade de recorrer a outro poder, como o de polícia, que nao tem lugar dentro da tríade tradicional e dogmática que 29 24 Filiando-se àquela corrente doutrinária, Carlos Ari Sundfeld32 considera inevitável a eliminação da própria idéia de poder de polícia e igualmente reportando-se a Gordillo informa que “seu argumento central, afora a origem viciada do conceito, reside na sua inocuidade, visto isolar algo que, em tudo e por tudo, corresponderia ao exercício de qualquer função administrativa: a aplicação da lei”. Por outro lado, um outro expressivo universo de doutrinadores discorda da própria utilização da expressão poder de polícia, dentre estes se alinhando José Cretella Júnior,33 ao lembrar que originada “da jurisprudência norte-americana a denominação police power passa aos trabalhos doutrinários, americanos e ingleses, tendo sido aceita, em breve, pelos juristas de todos os países em que se cultiva o direito público”, e acentua que sob o aspecto da técnica jurídica, a mencionada expressão é imperfeita, sendo passível de profundos reparos (...)”, como também adverte Marçal Justen Filho”.34 Por sua vez, Celso Antônio Bandeira de Mello35 considera equívoca a expressão poder de polícia, a exemplo dos autores antes citados, por conduzir a consagra a Constituição (Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário), e que mais, suas formas de exteriorização são as mesmas da função administrativa (por exemplo, atos administrativos de sanção, orden, autorização, permissão, etc.), toda vez que a chamada ‘polícia’ não é mais que uma parte da função administrativa sem autonomia jurídica nenhuma”. (Prerrogativas y Garantias Administrativas, 1ª parte, p. 121). 32 Direito Administrativo Ordenador, Malheiros, São Paulo, 1997, 1ª ed., 2ª tir. p. 11/12: “À crítica de Gordillo se opôs a resposta de que investira contra noção ultrapassada: bastaria esclarecer a necessidade de o poder de polícia traduzir sempre uma atividade sublegal. Mas ainda assim permanece a pergunta: porque isolar, empregando expressão reconhecidamente perigosa, algo que não seria distinto de outras atuações administrativas, por traduzir apenas aplicação da lei?” 33 Curso de Direito Administrativo, 17ª ed., 2000, Forense, p. 537. 34 Curso de Direito Administrativo. Saraiva, São Paulo, 2005.p. 385: “Com a evolução dos modelos políticos, a intervenção conformadora estatal deixou de ser apenas repressiva e passou a compreender imposições orientadas a promover ativamente condutas reputadas como desejáveis. Esse conjunto de competências é indicado pela expressão ‘poder de polícia’, que se caracteriza por não ser orientada a fornecer utilidades materiais. O poder de polícia compreende competências legislativas e administrativas. Tal como ressalta toda a doutrina, a expressão poder de polícia administrativa é inadequada, como será adiante exposto, mas sua utilização é mantida em vista da tradição”. 35 Curso de Direito Administrativo, 16ª ed., Malheiros, São Paulo, 2003, p.708: “Além disso, a expressão ‘poder de polícia’ traz consigo a evocação de uma época pretérita, a do ‘Estado de Polícia’, que precedeu ao Estado de Direito. Traz consigo a suposição de prerrogativas dantes 25 lamentáveis e temíveis confusões e também endossa o posicionamento de Agustín Gordillo, no sentido de banir a expressão do vocabulário jurídico, lembrando ainda que a sua evocação, nos dias atuais, revela-se dissociada do Estado Democrático de Direito. Apesar disso, mesmo em face das relevantes ponderações lançadas em sede doutrinária, tanto no que diz respeito à impropriedade da expressão poder de polícia, quanto no que atina ao não reconhecimento de um regime jurídico que lhe seja peculiar, de modo a distinguir aquela espécie de atividade na seara do Direito Administrativo e no círculo da própria função administrativa, os estudiosos do assunto reverenciam a tradição formada pelo uso da denominação e, ainda que sob protesto, resignam-se a abordar a questão sob aquele título. Diante disso, é sob tal nomenclatura que em nível doutrinário, e, por vezes, em meio ao próprio direito positivo, seja entre nós ou mesmo no direito comparado, que são desenvolvidos e oferecidos o fundamento, o conceito, as formas de atuação e os próprios limites a serem observados pela Administração Pública no exercício do denominado poder de polícia. Quanto ao conceito de poder de polícia, é de se notar que o próprio Código Tributário Nacional36, de forma não usual, veio a positivá-lo, sendo que, doutrinariamente, é clássica a definição de Marcelo Caetano37 de que “poder de polícia” é o modo de atuar da autoridade administrativa que consiste em intervir no existentes em prol do ‘príncipe’ e que se faz comunicar inadvertidamente ao Poder Executivo. Em suma: raciocina-se como se existisse uma ‘natural’ titularidade de poderes em prol da Administração e como se dela emanasse intrinsecamente, fruto de um abstrato ‘poder de polícia’. Daí imaginar-se algumas vezes, e do modo mais ingênuo, que tal ou qual providência – mesmo carente de supedâneo em lei que a preveja – pode ser tomada pelo Executivo por ser manifestação de ‘poder de polícia’.” 36 “Art. 78: Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou a abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos”. 37 Princípios Fundamentais de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, 1977, p. 339. 26 exercício das atividades individuais suscetíveis de fazer perigar interesses gerais, tendo por objeto evitar que se produzam, ampliem ou generalizem os danos sociais que a lei procura prevenir”. Por certo, a definição reproduzida carece de uma abordagem contemporânea, a fim deixar marcado que essa possibilidade de intervenção da administração pública está condicionada à necessária atribuição de competência legal que lhe dê fundamento. Na senda da abrangente definição legal, o professor Edimur Ferreira 38 de Faria aponta que “poder de polícia” é a atribuição legal conferida à Administração Pública para, no exercício de suas competências (regrada ou discricionária), promover a fiscalização do exercício do direito de propriedade e de liberdade, com vistas a evitar abusos em prejuízo da coletividade ou do Estado. Para isso, pode valer-se de seus meios próprios, nos limites da lei, para coibir atos lesivos e impor sanções previstas em lei”. Uma rápida incursão entre os demais estudiosos da matéria, alguns deles já referidos neste trabalho, permite afirmar que o conceito por cada um deles oferecido passa, necessariamente, pela indicação dos sujeitos presentes nas relações pertinentes ao poder de polícia apontando, de um lado, a Administração Pública, titular do indelegável exercício da atividade, e, de outro, o administrado, como destinatário das ações daquela e, ainda, pela menção ao objeto da mencionada atividade, qual seja, o interesse público, por via da limitação ao exercício dos direitos e das liberdades. Além daqueles elementos indispensáveis à identificação da atividade e, portanto, ao seu próprio conceito, observa-se que por vezes são acrescidas às definições produzidas pelos doutrinadores tanto a menção aos instrumentos de que se vale a Administração Pública no exercício da atividade, quanto a referência às formas de sua atuação, ou mesmo a alusão aos limites a serem observados por parte do ente estatal que desenvolve a atividade. 38 Curso de Direito Administrativo Positivo, 4ª ed., 2001, Del Rey, ps. 200/01. 27 É digna de registro a definição elaborada por Celso Antônio Bandeira de Mello39 que, com a precisão habitual, além de indicar aqueles elementos de presença obrigatória para marcar e validar as atividades de polícia administrativa, indica os instrumentos que a materializam, dá o seu fundamento de validade e deixa evidenciadas as suas formas de atuação. Assim, aquele mestre conceitua a polícia administrativa como sendo “a atividade da Administração Pública, expressa em atos normativos ou concretos, de condicionar, com fundamento em sua supremacia geral e na forma da lei, a liberdade e propriedade dos indivíduos, mediante ação ora fiscalizadora, ora preventiva, ora repressiva, impondo coercitivamente aos particulares um dever de abstenção (“non facere”) a fim de conformar-lhes os comportamentos aos interesses sociais consagrados no sistema normativo”. Naquilo que diz respeito à sua extensão ou, melhor ainda, às possíveis e legítimas formas de atuação da Administração Pública, ao dar consecução ao poder de polícia cuja competência lhe foi atribuída, cumpre assinalar, inicialmente, conforme expresso no conceito acima reproduzido, que aquelas formas se manifestam pela produção ou mesmo pela execução de atos normativos abstratos, de alcance geral e, também de atos concretos, específicos e determinados em relação aos seus destinatários. Importante deixar assinalado que, em quaisquer daquelas hipóteses, a Administração Pública está se dirigindo à conduta dos administrados, pessoas naturais ou jurídicas, que desenvolvam atividades sujeitas ao poder de polícia, consoante legalmente estabelecido, no sentido de autorizar o exercício das mesmas, promover a sua fiscalização e, eventualmente, impor as sanções que se fizerem devidas, em estrita observância à legislação de regência. 39 Ob.cit. p. 724. 28 Por força disso, é de se concluir que o poder de polícia exteriorizase, primeiramente, por uma atuação de caráter estático e preventivo, marcada pelo estabelecimento de condições para o exercício de um determinado direito ou de fruição de uma certa liberdade, cujo atendimento vem a se configurar pressuposto para a obtenção da respectiva autorização por parte da Administração Pública, como exigido de uma companhia de seguros ou de uma instituição financeira, que só a partir de então poderão vir a ter existência legal, como preceitua o artigo 45, do Código Civil vigente. Em um segundo momento, de natureza já dinâmica, manifesta-se o poder de polícia pela indispensável submissão da atividade do administrado à fiscalização da Administração Pública, titular do correlato poder de polícia, no sentido de verificar a observância do arcabouço jurídico posto para o exercício daquela atividade, como ocorre com aquelas entidades mencionadas no tópico anterior. Por fim e, diante de situações que assim o demandem, o poder de polícia se apresenta sob a sua forma repressiva, por meio de ações concretas, consubstanciadas em atos de constrição e de restrição de direitos, materializadas em sanções administrativas das mais diferentes espécies, como se explicitará adiante, o que, a exemplo das outras formas de atuação acima expostas, vem a constituir a essência inerente ao poder de polícia, qual seja, promover a adequação dos interesses privados ao interesse público. Tais formas de atuação antes comentadas são, em suma, os meios pelos quais a Administração Pública torna efetivo aquilo que se convencionou denominar de poder de polícia e sobre isso há uniformidade na abordagem doutrinária, como se extrai, a título de menção exemplificativa, do posicionamento de Toshio Mukai40 acerca deste aspecto. 40 Direito Administrativo Sistematizado, Saraiva, 1999, ps. 97/98: “A polícia administrativa atua de maneira preventiva, por meio de normas limitadoras da conduta daqueles que utilizam bens ou exercem atividades que possam afetar a coletividade. Assim, o Poder Legislativo edita leis, e os 29 órgãos executivos expedem regulamentos e instruções fixando as condições e requisitos para o uso da propriedade e o exercício das atividades que devam ser policiadas. Após as verificações de compatibilidade entre as atividades pretendidas e a lei, é outorgado o respectivo alvará de licença ou autorização, ao qual se segue a fiscalização competente. O poder de polícia também atua na fiscalização das atividades e bens sujeitos ao controle da Administração. Essa fiscalização resumese à verificação da normalidade do uso do bem ou da atividade policiada. Caso constatada qualquer irregularidade ou infringência legal, o agente fiscalizador deverá advertir verbalmente o infrator ou lavrar o competente auto de infração, no qual registrará a sanção cabível que, oportunamente, será executada pela Administração, ressalvados os casos punidos com multa, que só poderão ser executados pela via judicial. De outro lado, além dessas condutas genéricas, a Administração manifesta seu poder de polícia por injunções concretas, como as de apreensão de alimentos deteriorados, fechamento de estabelecimento comercial irregular, interdição de hotel utilizado para exploração de lenocínio, guinchamento de veículo que obstrua a via pública. Esta (...) forma de manifestação, embora atinja pessoas ou grupos determinados, não deixa de ser fruto de uma imposição genérica e indeterminada a todos os particulares. Ocorre que apenas os que ultrapassarem os limites de seus direitos estarão sujeitos à atuação repressiva da polícia administrativa”. 30 III – ATOS VINCULADOS E ATOS DISCRICIONÁRIOS A Administração Pública, no exercício da função administrativa buscando sempre a realização do interesse público, consoante lhe é legalmente exigido - atua praticando atos administrativos, fazendo uso dos correlatos poderes/deveres que lhe são atribuídos pelo ordenamento jurídico, os quais se apresentam sob duas distintas formas. Lembra Celso Antônio Bandeira de Mello41 que “é clássica a distinção entre atos expedidos no exercício de competência vinculada e atos praticados no desempenho de competência discricionária” e que “sobre esse tema já se verteram rios de tinta”. Explica que “haveria atuação vinculada e, portanto, um poder vinculado, quando a norma a ser cumprida já predetermina e de modo completo qual o único possível comportamento que o administrador estará obrigado a tomar perante casos concretos cuja compostura esteja descrita pela lei, em termos que não ensejam dúvida alguma quanto ao seu objetivo reconhecimento”. Complementa discricionária afirmando que “opostamente, haveria atuação quando, em decorrência do modo pelo qual o Direito regulou a atuação administrativa, resulta para o administrador um campo de liberdade em cujo interior cabe interferência de uma apreciação subjetiva sua quanto à maneira de proceder nos casos concretos, assistindo-lhe, então, sobre eles prove na conformidade de uma intelecção, cujo acerto será irredutível à objetividade e ou segundo critérios de conveniência e oportunidade”. 41 Discricionariedade e Controle Jurisdicional, Malheiros, São Paulo, 2ª ed., 7ª tiragem, 2006, p. 9/11. 31 Após alertar que “a despeito do muito que já escreveu sobre o assunto ainda há espaço para que muito mais se escreva, pois há tópicos importantes que precisam ser visitados ou revisitados”, Celso Antônio afirma que “deve-se, desde logo, começar por frisar que o próprio do Estado de Direito, como se sabe, é encontrar-se em quaisquer de suas feições totalmente assujeitado aos parâmetros da legalidade”. Segundo o autor, “inicialmente, submisso aos termos constitucionais, em seguida aos próprios termos propostos pelas leis, e, por último, subscrito à consonância com os atos normativos inferiores, de qualquer espécie, expedidos pelo Poder Público”, e, assim, “desse esquema obviamente não poderá fugir agente estatal algum, esteja ou não no exercício de “poder discricionário”. Dito isso, resulta que, por vezes, a lei prevê de maneira completa as condições ou pressupostos que deverão orientar a prática do ato pelo administrador, não lhe reservando qualquer possibilidade de apreciação subjetiva, vinculando-o aos estritos termos do enunciado legal, conforme assevera Celso Antônio Bandeira de Mello.42 Desse modo, diante do exercício de competência vinculada, a Administração Pública, ao praticar o ato administrativo, fica adstrita a realizar a única conduta possível estabelecida na norma de regência e nos estritos parâmetros fixados pela mesma, como indica o posicionamento de Diógenes Gasparini.43 42 Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Malheiros, 2003, p. 820: “A lei, todavia, em certos casos, regula dada situação em termos tais que não resta para o administrador margem alguma de liberdade, posto que a norma a ser implementada prefigura antecipadamente, com rigor e objetividade absolutos os pressupostos requeridos para a prática do ato e o conteúdo que este obrigatoriamente deverá ter uma vez ocorrida a hipótese legalmente prevista. Nestes lanços diz-se que há vinculação e, de conseguinte, que o ato a ser expedido é vinculado.” 43 Direito Administrativo, São Paulo, Saraiva, 2000, p. 86: “Vinculados são os atos administrativos praticados conforme o único comportamento que a lei prescreve à Administração Pública. A lei prescreve se, como e quando deve a Administração Pública agir ou decidir. A vontade da lei só estará satisfeita com esse comportamento, já que não permite à Administração Pública qualquer outro. Esses atos decorrem do exercício de uma atribuição vinculada ou, como prefere boa parte 32 Nessas situações, como frisa Seabra Fagundes44, “a Administração exerce competência estrita, ou seja, quando pratica o ato vinculado, já encontra esgotado o conteúdo político (mérito) do processo de realização da vontade estatal”, de vez que, acrescenta aquele autor, “a medida assim tomada já foi objeto de análise e de solução optativa anteriores pelo legislador”, pelo que “o administrador apenas torna efetiva a solução pré-assentada”. Em outras ocasiões, de modo diverso, em virtude principalmente de especificidades próprias do fato objeto da norma, o legislador remete à apreciação subjetiva do agente público algumas das condições de exercício do poder que atribui à Administração, como também lembra mencionado Celso Antônio Bandeira de Mello.45 Assim, conforme observa José Carlos Francisco46, “em linhas gerais, a discricionariedade consiste em opções conferidas pela norma jurídica à autoridade administrativa, em face do que há possibilidade de escolha de uma dentre duas ou mais alternativa contidas de forma expressa ou implícita na norma, valendo-se de conveniência e oportunidade na análise”. Acrescenta o autor que “a discricionariedade está sempre localizada na norma superior (constituição ou lei) que autoriza o ato inferior, afirmando a precedência de um em relação ao outro, e em vez de enfraquecer a importância da lei no ordenamento jurídico, a liberdade relativa por ela atribuída à autoridade dos autores, do desempenho do poder vinculado, em cuja prática a Administração Pública não tem qualquer margem de liberdade.” 44 Revista de Direito Administrativo, Vol. 23, janeiro-março 1951, p. 7. 45 Ob. cit. p. 821: “Reversamente, fala-se em discricionariedade quando a disciplina legal faz remanescer em proveito e a cargo do administrador uma certa esfera de liberdade, perante o quê caber-lhe-á preencher com o seu juízo subjetivo, pessoal, o campo de indeterminação normativa a fim de satisfazer no caso concreto, a finalidade da lei (...). Essa forma é exatamente a de disciplinar certa matéria sem manietar o administrador. Isto porque a lei pretende que seja adotada em cada caso concreto unicamente a providência capaz de atender com precisão a finalidade que a inspirou.” 46 Ob. cit. p. 274. 33 administrativa permite a ela (lei) mais permanência e versatilidade, maximizando sua eficácia social, efetividade e autoridade”. Para Celso Antônio Bandeira de Mello,47 a discricionariedade “é a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelos menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair, objetivamente, uma solução unívoca para a situação vertente”. Segundo informa Seabra Fagundes48, nestes casos está-se diante de exercício de atividade discricionária do legislador que, por abstenção voluntária ou mesmo em virtude da impossibilidade de abranger as múltiplas realidades supervenientes oferece, seja ao Poder Administrativo ou ao Poder Judiciário, enquanto órgãos executores, uma certa margem de exercício de discrição. Esclarece o mesmo Seabra Fagundes49 que a discrição remetida ao administrador e ao juiz é de caráter residual, posto que “onde e quando se manifeste, em toda a sua plenitude, a discrição do Poder Legislativo, já não haverá opções confiadas aos Poderes Executivo e Judiciário no processus de expressão da vontade estatal”, considerando que “exaurindo a lei as possibilidades de escolha, não resta senão cumpri-la, individualizando a solução por ela predeterminada” 47 Ob. cit. p. 48. Ob. cit. p. 7: “No exercer, porém, a sua atividade discricionária, o legislador não esgota as possibilidades de opção peculiares ao exercício da atividade estatal. Às vezes, por abstenção voluntária, outras, as mais dentre elas, pela impossibilidade de abranger satisfatoriamente, no contexto dos cânones preestabelecidos, as múltiplas realidades supervenientes.” 49 Ob. cit. p. 8. 48 34 Nessa linha, o exercício de competência discricionária pressupõe a outorga ao agente público de uma certa margem de apreciação subjetiva, mediante o adequado uso dos critérios de conveniência e oportunidade, inclusive relativamente à decisão de praticar ou não o ato, tendo em vista o interesse público envolvido, conforme acentua Maria Sylvia Zanella Di Pietro.50 A propósito da afirmação feita, no sentido de se outorgar ao agente público uma certa liberdade de agir, vale lembrar, conforme Eduardo Garcia de Enterría51, que o legislador, ao deferir aquela faculdade à Administração Pública, remete à sua apreciação subjetiva apenas algumas das condições de exercício daquela competência, ou seja, alguns de seus elementos, e nunca todos eles, como expressamente menciona o autor. Assim, como deixa registrado o doutrinador, trata-se, no caso de outorga de competência discricionária, de uma remissão parcial e não total feita pelo legislador ao juízo subjetivo da Administração Pública. 50 Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988, Atlas, São Paulo, 2001, p. 10: “Ocorre, no entanto, que o legislador, não tendo condições de prever e avaliar todas as situações possíveis, é obrigado a deixar certa margem de liberdade para a Administração apreciar os casos concretos segundo critérios próprios e escolher, entre várias alternativas, aquela que lhe pareça mais adequada para a proteção do interesse público.” 51 Curso de Derecho Administrativo, Civitas Edicciones, Madrid, 12ª ed., Civitas, p. 461/62, tradução livre: “(…) ou bem, ao contrário, definindo-a, porque não pode deixar de fazê-lo, em virtude das exigências de explicitude e especificidade da potestade que atribui à Administração, algumas das condições de exercício de dita potestade, remete à estimação subjetiva da Administração o restante de ditas condições (…). Por último, a existência de uma medida nas potestades discricionárias, é capital. Também temos observado que a remissão da lei ao juízo subjetivo da Administração não pode ser mais que parcial, e não total. Isso é uma simples aplicação do princípio da mensurabilidade de todas as competências públicas ou de sua necessária limitação, que mais atrás se expôs, mas encontra neste âmbito da discricionariedade um interesse destacado. Com efeito, se resulta que o poder é discricionário enquanto que é atribuído como tal pela lei à Administração, resulta que esta lei terá tido que configurar necessariamente vários elementos de dita potestade e que a discricionariedade, entendida como liberdade de apreciação pela Administração, só pode se referir a alguns elementos, nunca a todos, de tal potestade.” 35 IV – DISCRICIONARIEDADE 1. Notas introdutórias A propósito da discricionariedade, é oportuno comentar algumas anotações da lavra de Regina Helena Costa52, espelhando alguns dos entendimentos doutrinários a respeito do tema e que deixam evidentes, de um lado, a comprovação da própria existência de marcos a serem observados no exercício de competência discricionária e, de outro, a diversidade de opinião no que respeita a quais seriam ou, por outro modo, onde estariam localizados tais marcos. Aponta a autora que “para Queiró os limites da discricionariedade são os da própria lei, isto é, o limite é a legalidade e só a legalidade”, aduzindo que “sem contestar a veracidade dessa assertiva, os doutrinadores têm procurado melhor precisar esses limites”. Menciona ainda que “Oswaldo Aranha Bandeira de Mello assevera que os limites dos poderes discricionários “se encontram nos motivos determinantes do ato jurídico e no fim com que é praticado, tendo em vista a preocupação do seu agente e a razão de ser do próprio instituto jurídico”. Informa a autora também que Renato Alessi “apresenta limites formais e substanciais à discricionariedade administrativa”, sendo que “os primeiros estão nas prescrições relativas à forma e à formalidade da atividade discricionária, bem como à competência e, os segundos, constituem-se na indicação do grau mínimo de interesse publico cuja concreção explica o poder discricionário de ação conferido à Administração”. 52 Conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade administrativa, Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, junho de 1988, p. 87/88. 36 Já Celso Antônio Bandeira de Mello, registra a autora, “aponta como limitações ao exercício da atividade administrativa os motivos e a finalidade indicada na lei, bem como a causa do ato, entendida esta como a relação de adequação entre os pressupostos do ato e o seu objeto, tendo em vista aquela finalidade”. Destaca Regina Helena Costa que esse último doutrinador “acrescenta que, por paradoxal que pareça, os mesmo fatores que podem gerar imprecisão – os pressupostos legais justificadores do ato e a finalidade normativa – engendram igualmente os pontos de demarcação da discricionariedade”. Diante desse painel ilustrativo do pensamento doutrinário sobre o assunto, a autora manifesta sua opinião entendendo que “genericamente, pode-se dizer que a baliza, o parâmetro da atuação discricionária reside, exatamente, no respeito ao princípio da razoabilidade da solução adotada”. Aduz que ”quando da apreciação dos fatos justificadores do ato, há que verificar a proporcionalidade entre estes e o ato administrativo a ser praticado”. A questão da proporcionalidade exigida nos atos administrativos em geral e, particularmente, naqueles pertinentes ao exercício do poder de polícia, está diretamente relacionada ao correlato princípio da proibição de excesso, o qual rechaça a possibilidade de atitudes desmedidas por parte da Administração Pública.53 Tecendo comentários específicos a respeito da questão, Silvânio Covas e Adriana Laporta Cardinali54 entendem que “dessa forma, o princípio da 53 Rafael Munhoz de Mello, Sanção administrativa e o princípio da legalidade, Revista Trimestral de Direito Público, 30/2000, Malheiros, São Paulo: “Por força do princípio da proibição do excesso, as medidas adotadas pelo Estado devem ser proporcionais aos fatos que estão em sua origem e adequadas aos fins que lhes correspondem. Trata-se, pois, de uma questão de medida ou desmedidas para alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens dos fins”. 54 O Conselho de Recursos do Sistema Financeiros Nacional: Atribuições e Jurisprudência, Quartier Latin, São Paulo, 2008, p. 108. 37 razoabilidade também se insere no da legalidade; a liberdade que possui o Poder Publico nos atos discricionários não lhe é concedida para a adoção de comportamentos desarrazoados”. Segundo os autores, “a margem de liberdade existe para atender ao sentido da lei, não abrigando intelecções induvidosamente desarrazoadas, ao menos quando caiba outro entendimento”, pois, “um ato administrativo inválido, por contrariar a finalidade legal, deve ser controlado judicialmente”, o que vem sendo implementado, confome noticiam Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari55. Nessa linha, Luis Roberto Barroso56 ressalta que “o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade sempre teve o seu campo de incidência mais tradicional no âmbito da atuação do Poder Executivo” e que “estudado precipuamente na área do direito administrativo, ele funcionava como limite da legitimidade do exercício do poder de polícia e da interferência dos entes públicos na vida privada”. Informa que para Agustín Gordillo “a decisão “discricionária” do funcionário será ilegítima, apesar de não agredir nenhuma norma concreta e expressa, se é ‘irrazoável’, o que poder ocorrer, principalmente quando: a) não dê os fundamentos de fato ou de direito que a sustentam: ou b) não leve em conta os fatos constantes do expediente ou públicos e notórios ou se funde em fatos ou 55 Processo Administrativo, Malheiros, São Paulo, 2001, p. 63: “A jurisprudência, inclusive e especialmente nos Tribunais Superiores, também já assimilou e aplica o princípio da razoabilidade no controle judicial dos atos administrativos. Merece destaque decisão do Superior Tribunal de Justiça (REsp. 21.923-5-MG) na qual o Relator Min. Humberto Gomes de Barros, afirma estar certo de que ‘no estágio atual do direito administrativo, o Poder Judiciário não se poderia furtar à declaração de nulidade de absurdos evidentes’. Também o Supremo Tribunal federal tem-se valido do princípio da razoabilidade com muita freqüência. Não é o caso de se transcrever o texto das decisões, mas, pelo menos, cabe referir alguns acórdãos cujos respectivos Ministros Relatores se fundamentaram precipuamente na razoabilidade – Min. Marco Aurélio: HC 77.003-4-RE 211.043-4, RE 148.095-5-MS, RE 226.461-9-CE, RE 192.568-0-PI e AgRg em RE 205.535-2-RS; Min. Moreira Alves: Repr. 1.077-RJ (RTJ 112/34); Min. Celso de Mello: ADin 1.158-8-AM e Min. Sepúlveda Pertence: ADin 855-2-PR e HC 76.060-4-SC”. 56 Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito constitucional, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, RT, Ano 6, nº 23, p. 72. 38 provas inexistentes; ou c) não guarde um proporção adequada entre os meios que emprega e o fim que a lei deseja alcançar, ou seja, que se trate de uma medida de desproporcionalidade excessiva em relação ao que se quer alcançar”. Para Floriano Azevedo Marques,57 a “teoria da discricionariedade decorre da própria construção do direito público no Estado de Direito, na qual a lei tem um papel central, ou seja, o exercício da autoridade, do poder político, do poder extroverso, necessariamente decorre da lei e essa lei não só autoriza a atuação do poder extroverso como dá contornos, limites, competências e meios para a atuação desse poder”. Acrescenta ainda que “parece-me claro que a discricionariedade é algo que está intimamente ligado ao princípio da legalidade”, acentuando que “mas, mais do que isso me parece claro que é impossível se discutir discricionariedade fora do princípio da legalidade, porque a discricionariedade seria aquela margem que, originada na lei, vai um pouco além da dicção legal” e que “ao mesmo tempo que a discricionariedade depende da lei, ela serve para plurabilizar a peremptoriedade do princípio da legalidade”. Discorrendo especificamente acerca do princípio da legalidade no âmbito de processos administrativos, Odete Medauar58 observa que “no vínculo legalidade-processo administrativo, este representa uma das garantias do princípio da legalidade, porque significa atuação parametrada da autoridade administrativa, em contraposição à atuação livre, em tese, mais suscetível de arbítrio”. Enfatiza que “mesmo que exista uma parcela de discricionariedade em alguma fase do processo administrativo, o conhecimento dos mecanismos 57 Discricionariedade Administrativa e Controle Judicial da Administração, Processo Civil e Interesse Público, O processo como instrumento de defesa social, Carlos Alberto de Salles, Organizador, Co-edição Editora RT, São Paulo, Associação Paulista do Ministério Público, p. 190. 58 A processualidade no Direito Administrativo, RT, São Paulo, 1993, p. 88. 39 decisionais e dos fatos da situação, inerentes à processualidade, possibilitam direcioná-la às verdadeiras finalidades da atuação”. 40 2. Fundamento geral Nesse particular, cabe lembrar que a atuação discricionária resulta necessariamente de uma autorização normativa e, portanto, em termos gerais, as condutas assumidas com base na permissão legal devem conter-se nos quadrantes estabelecidos pelo ordenamento jurídico, levando-se em conta principalmente a finalidade que inspirou a elaboração da norma permissiva. Corroborando o entendimento acima, Celso Antônio Bandeira de Mello 59 assevera que a lei nunca dispensa o atendimento ao fim por ela visado, independentemente, no caso da Administração Pública, de os atos por ela praticados se revestirem de características vinculadas ou discricionárias, já que seria despropositado pretender-se por qualquer distinção entre uns e outros, tendo em vista a necessidade de ser observado o fim colimado pela norma. Acerca da limitação estabelecida pelas próprias normas, levando-se em conta a obrigatoriedade imposta ao agente público de fidelidade aos fins legalmente estabelecidos, Victor Nunes Leal60 pondera quanto à finalidade dos atos administrativos (discricionários ou vinculados), que ela está sempre expressa ou implícita na lei. Por isso, entende que o fim legalmente objetivado, necessariamente representado por um interesse público, também constitui um 59 Legalidade – Discricionariedade – Seus limites e controle, Revista de Direito Público, nº 86, AbrilJunho de 1988 – ano XXI, p. 44: “Em ambos os casos – vinculação ou discrição – evidentemente a lei reclama que seja exata e plenamente atendido seu escopo. Ou seja, seu propósito é o de que o bem jurídico que o anima se realize com perfeição. Seria um completo absurdo presumir que nas hipóteses de vinculação a lei deseja que sua finalidade se cumpra e que nas situações de discrição abona antecipadamente uma providência inapta, excessiva ou insuficiente para atender de modo cabal aos seus objetivos, contentando-se com uma solução sofrível ou – pior ainda – com uma solução qualquer cuja aceitabilidade repousaria tão-só no fato de haver sido eleita por administrador atuando no exercício de competência discricionária. É óbvio que conclusão desta ordem chocar-se-ia às abertas tanto contra as exigências do Estado de Direito, quanto contra a própria índole da discricionariedade, conforme se esclarece de pronto. A outorga de discrição vem a ser, precisamente, o meio pelo qual a lei busca assegurar-se de que sua aplicação far-se-á sempre de maneira a atender-lhe a finalidade de modo perfeito. É que a satisfação exata, precisa, de um certo escopo, ante a realidade polifacélica dos fatos e circunstâncias da vida, demandará providências distintas, conforme a fisionomia peculiar, a coloração própria, das situações que se apresentem e demandem a aplicação da regra.” 60 Problemas de Direito Administrativo, Forense, Rio, p. 279 e 285. 41 aspecto vinculado dos atos discricionários, suscetíveis, portanto, de apreciação jurisdicional.” Pontifica que “se a administração pública, no uso do seu poder discricionário, não atende ao fim legal a que está obrigada, entende-se que abusou do seu poder”, já que “o fim legal é, sem dúvida, um limite ao poder discricionário”, e que, “por isso mesmo, sustentam os autores mais abalizados que existe ai uma violação da lei, um ato ilícito”. Conseqüentemente, as condutas assumidas pelos sujeitos de direito, públicos ou privados, inspiram-se, justificam-se e têm como fundamento de validade, em termos gerais, a idéia central que envolve todo o ordenamento jurídico e que se traduz na noção de que os direitos subjetivos não têm caráter absoluto e o seu exercício, por parte daqueles que são os seus titulares, não pode se revelar abusivo, como postula Antônio José Brandão61. Caso assim não venha a ocorrer a própria fruição do direito subjetivo, por parte de seu titular, ela poderá situar-se além do que seria necessário para o atendimento de suas finalidades e interesses e, assim, invadir esferas de direitos alheios e vir a ser a ser abrangida pelo campo da ilicitude. 61 Revista de Direito Administrativo, Vol. 25, julho-setembro – 1951, p. 463/64, grafia original: “Ora bem: a intenção de sujeitar o exercício dos próprios direitos subjetivos à medida legal deles não possui natureza exclusivamente jurídica: revela, também, natureza moral. Se assim não fôsse, a legalidade do exercício do direito consistiria na mera conformidade exterior às exigências da lei, abstração feita do vínculo jurídico interno entre o fim metajuridico, as modificações da ordem jurídica e a conduta. Quer dizer: o exercício efetivo do direito não concretizaria em si a proporção entre os três elementos, figurada em abstrato pela lei; seria, por conseguinte, um exercício arbitrário, medido pelo capricho do respectivo titular (...). Pelo exercício abusivo do direito subjetivo penetra a imoralidade no mundo jurídico, perturbando a ordem jurídica, na sua finalidade última. À Ripert, na sua excelente monografia La Règle Morale dans les Obligations Civiles, não escapou isto, e, a paginas 163, escreveu: ‘A teoria do abuso do direito foi inteiramente inspirada na moral e a sua penetração no domínio jurídico obedeceu a propósito determinado. Trata-se, com efeito, de desarmar o pretenso titular de um direito subjetivo e, por conseguinte, de encarar de modo diverso direitos objetivamente iguais, pronunciando um espécie de juízo de caducidade contra o direito que tiver sido imoralmente exercido. O problema não é, pois, um problema de responsabilidade civil, mas de moralidade no exercício dos direitos.” 42 Discorrendo a respeito desse aspecto, Fernando Andrade de Oliveira62 anota que “todavia, como pondera Guido Zanobini, “a idéia de limite surge do próprio conceito de direito subjetivo: tudo que é juridicamente garantido é também juridicamente limitado. Função inerente à garantia jurídica é a tutela de um interesse com o precípuo escopo de assegurar a sua satisfação enquanto compatível com os interesses de outros sujeitos, que também devem ser reconhecidos e tutelados”. No seu entender, “´para que um direito subjetivo possa ser cabalmente protegido, é preciso que seja previamente definido e, assim, conhecido em toda a sua extensão. A definição de um direito, por sua vez, logicamente, importa a sua limitação, na medida justa para coexistir com outros direitos, no mesmo sentido, limitados. E todos ainda suportando os condicionamentos ditados pela exigência de cumprimento dos fins públicos”. Arremata asseverando que “em suma, é juridicamente inconcebível a existência de direitos subjetivos ilimitados e incondicionados e sequer há direitos universamente reconhecidos como absolutos (...)”. Examinando o tema sob o ângulo do abuso de poder ou excesso de poder, resultante dos atos praticados pelos entes públicos, Themístocles Brandão Cavalcanti63 professa que tais sujeitos exercem competência limitada, posto que, nas suas relações com os administrados, estes são titulares de direitos subjetivos que podem ser contrapostos à Administração Pública. 62 O poder do Estado e o exercício da polícia administrativa, Revista Trimestral de Direito Publico, 29/2000, Malheiros, São Paulo, p. 88/89. 63 Do Poder Discricionário, Revista de Direito Administrativo, p. 441: “Abuso de poder ou excesso de poder será aquele exercido sem fundamentos legais ou acima dos limites fixados pela lei. Toda autoridade administrativa tem a sua competência limitada, pela natureza ou função ou pela própria, de forma específica e determinada. É que nas relações entre a autoridade e os indivíduos, estes têm, em seu favor, um conjunto de direitos e prerrogativas individuais, que se podem contrapor à administração ou ao poder público. São os chamados direitos subjetivos ou na expressão de Duguit, as situações jurídicas subjetivas.” 43 Abordando a questão, sob a ótica específica do exercício do poder discricionário pela Administração Pública e visando realçar a sua submissão à lei, Victor Nunes Leal64 sublinha o caráter abusivo da atividade administrativa quando vai além dos limites que foram demarcados pela norma que outorgou ao agente público a correspondente competência discricionária. A respeito, Oswaldo Aranha Bandeira de Mello65 afirma que “a teoria do abuso do direito é uma decorrência da relatividade dos direitos subjetivos em face do conceito de justiça, que deve dominar a ordem social, ínsita na norma, formalmente disposta, que objetiva resguardar o bem jurídico de outrem, contra qualquer dano (...)”. Na mesma passagem, conclui que, “por conseguinte, o exercício abusivo de direito se inclui entre uma das muitas variedades de atos ilícitos, como ato anti-social, com a ruptura, por um desses fundamentos, do equilíbrio dos interesses estabelecidos pela ordem jurídica, no condicionamento da harmonia social”. Em passagem luminar a respeito do tema, Perelman66 leciona que “toda vez que um direito ou poder qualquer, mesmo discricionário, é concedido a 64 Revista de Direito Administrativo, Vol. 23, janeiro-março-1951, p.12: “Sem dúvida a atividade chamada discricionária se submete à lei. Tem por esta demarcadas as divisas do seu exercício, submete-se às linhas mestras por ela fixadas. Dentro, porém, dessas divisas ou linhas, é livre (e aqui está a própria essência da discricionariedade), exercitar-se sob a influência apenas de razões políticas. É nesse plano de insujeição da atividade administrativa a normas propriamente jurídicas, que discrição e mérito se identificam. Por outro lado, em corolário do que vem de se expor, a apreciação jurisdicional da competência discricionária só se dá quando dela abusa o funcionário administrativo, quando age exorbitando da esfera de ação livre que lhe deixa a lei. E tanto vale dizer, quando o funcionário supõe ou quer fazer supor que está tomando medidas de mérito, mas, na verdade age em campo diverso daquele que ao mérito traçou a lei. O que nesse caso se analisa não é o exercício da competência discricionária em substância, ou seja, o mérito no seu conteúdo, mas sim o excesso no uso daquela, a prática do ato além ou fora do âmbito pretraçado à discrição, e. portanto, ao mérito. O que se analisa é um abuso de competência, que este é sempre um aspecto legal. Não se declara que o ato é bom ou mau, melhor ou pior; mas apenas que, tal como praticado, representa um abuso do poder de livre ação conferido à autoridade administrativa, poder que poderia ser utilizado largamente dentro de certos limites e nunca além deles.” 65 Princípios Gerais de Direito Administrativo, Forense, Vol. I, Introdução, 2ª ed., 1979, p. 478/79. 66 Ética e Direito, Martins Fontes, São Paulo, 1996, p. 429. 44 uma autoridade ou a uma pessoa de direito privado, esse direito ou esse poder será censurado se for exercido de forma desarrrazoada”, de vez que “esse uso inadmissível do direito será qualificado tecnicamente de formas variadas, como abuso de direito, como excesso ou desvio de poder, como iniquidade ou má-fé, como aplicação ridícula ou inadequada de disposições legais, como contrário aos princípios gerais do direito comum a todos os povos civilizados. Logo a seguir, Perelman frisa que “pouco importam as categorias jurídicas invocadas” pois “o que é essencial é que, num Estado de Direito, quando um poder legítimo ou um direito qualquer é submetido ao controle judiciário, ele poderá ser censurado se for exercido de forma desarrazoada, portanto inaceitável”. Confirmando as assertivas acima, o nosso Código Civil, na sua Parte Geral, em seu artigo 187, estabelece que “também comete ato ilícito o titular de um direito que ao exercê-lo excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Importante também relembrar a esse respeito que, na mesma linha, a nossa Constituição Federal, em vários incisos do seu artigo 5º, prevê expressas limitações ao exercício de uma série de direitos e de liberdades individuais, seja no tocante à propriedade, ao exercício de profissões, aos direitos políticos ou de reunião, dentre outros, confinando a sua utilização às fronteiras da normalidade, de modo a não desbordar do terreno da licitude. A propósito especificamente da questão relativa à discricionariedade, interessante notar que, para os normativistas Merkl e Kelsen, existiriam no sistema jurídico apenas normas e suas relações entre elas e, nesse contexto, o primeiro entende que o poder discricionário não seria específico da Administração e existiria em função do processo geral de formação do Direito. 45 Para Merkl, as normas seriam os elementos únicos do sistema que se caracterizam por partir do geral para o particular, caminhando do abstrato, como no caso da Constituição, até os atos administrativos e decisões judiciais, estas aplicadas de forma direta ao caso concreto. Desse modo, o poder discricionário encontraria justificativa no fato incontroverso de que o legislador, posto na condição obrigatória de editar comandos gerais e abstratos, não poderia prever o universo e a complexidade das situações da vida em sociedade. Diante disso, ao destinatário da norma jurídica, especialmente a Administração, seria outorgada a necessária discricionariedade para aplicar ao caso concreto, valendo-se dos critérios de conveniência e oportunidade, a norma identificada no ato administrativo discricionário. Nessa direção, Floriano Azevedo Marques67 registra que “na concepção clássica dos administrativistas a discricionariedade era aquela margem de liberdade que o administrador teria para eleger um dentre mais de um comportamento possível”, e que “nesta acepção clássica, esta margem viria prevista na lei com vistas ao atingimento, no caso concreto, das finalidades legais que justificam a competência do agente público”. 67 Discricionariedade Administrativa e Controle Judicial da Administração, Processo Civil e Interesse Público, O processo como instrumento de defesa social, Carlos Alberto de Salles, Organizador, Co-edição Editora RT, São Paulo, Associação Paulista do Ministério Público: “A discricionariedade consta da teoria do direito público desde sempre. Ela decorre – isso nós encontramos em todos os livros de direito administrativo – quer da lassidão do texto legal (da dificuldade de precisão inerente ao uso da linguagem que, por si só, é imprecisa), quer da expressa autorização do legislador que, consciente da impossibilidade de prever todos os comportamentos, contempla uma margem de opção para o administrador atuar ou não atuar no caso presente. A teoria da discricionariedade decorre da própria construção do direito público no Estado de Direito, na qual a lei tem um papel central, ou seja, o exercício da autoridade, do poder político, do poder extroverso, necessariamente decorre da lei e essa lei não só autoriza a atuação do poder extroverso como dá contornos, limites, competências e meios para a atuação desse poder. Parece-me claro que a discricionariedade é algo que está intimamente ligado ao princípio da legalidade.” 46 Tal posicionamento encontra forte resistência em Hauriou, para quem o sistema normativo denominado Direito não é formado tão somente pelas normas e suas inter-relações, mas sim de normas e de pessoas chamadas de sujeitos de direito, as quais se submetem às normas que, por sua vez, cumprem a função de determinar limites externos que modificam ou impedem as iniciativas e vontades de seus destinatários. Por força disso, entende o doutrinador francês que a Administração Pública, como sujeito de direito, ao promover a edição do ato administrativo, também exprime sua vontade, pelo que, quando a mesma exerce competência discricionária, esta figura como a vontade e iniciativa da Administração Pública que não foram objeto de limitação pela norma, equivalendo-se, assim, à autonomia da vontade no âmbito do direito privado. Hauriou68 compara a Administração Pública à administração de uma empresa privada, e a justificativa para a existência da discricionariedade residiria no fato de que a administração, na figura do Estado, também é um sujeito de direito e o agente público atuaria como o dirigente de uma empresa privada, guiando seus atos discricionários pelo parâmetro da oportunidade. Informa Antônio José Brandão69 que o poder público, segundo Hauriou, “a fim de desempenhar a função administrativa – manutenção da ordem e gestão de serviços – é “instituído” no quadro de uma vasta empresa, cuja estrutura tem a informá-la, como idéia de obra a realizar, a idéia do serviço público”. Nas suas próprias palavras, ao responder ao questionamento sobre eventual supressão do poder discricionário, assevera que “a resposta a essa questão que se apresenta, além disso, em termos semelhantes ao plano do direito 68 69 O poder discricionário e sua justificativa, RDA 19-27. Ob. cit. p. 58. 47 privado, deve ser extraída do reconhecimento de que as administrações públicas, como os indivíduos, são os chefes de empresa e têm direito, por esse motivo, à auto-determinação e à apreciação da oportunidade”. Não nos parece acertada a posição tomada por Hauriou, posto considerarmos perigosa a pretendida aproximação entre direito privado e direito público, da maneira em que formulada, não se nos afigurando como válida a utilização de um autoritário conceito de chefia com a intenção de respaldar ou justificar a própria existência da discricionariedade. Evidentemente, que o estágio atual do Direito, no que toca às relações entre Estado e indivíduo, já desenvolveu formas com suficiente fundamento jurídico para justificar o exercício de competência discricionária e de contê-la nos limites legalmente traçados, as quais estão devidamente marcadas em sede de direito constitucional e mesmo no âmbito do próprio regime jurídicoadministrativo. 48 3. Grau de intensidade dos comandos normativos Preliminarmente, cumpre realçar que os destinatários das normas do Direito, pessoas naturais ou jurídicas, públicas ou privadas, têm os seus comportamentos circunscritos pelas molduras dos elementos descritos nos preceitos legais reguladores das condutas teoricamente previstas, e que expressam aquilo que a sociedade entendeu como sendo desejável, em certo espaço temporal70. As normas jurídicas, no entanto, nem sempre esgotam em seus enunciados deônticos o modo de agir dos indivíduos e em muitos casos sequer impõem como obrigatória uma única conduta, deixando às pessoas, por vezes, a possibilidade de agir ou de não fazê-lo e ainda apontando, em certos casos, diferentes comportamentos conformáveis ao direito posto. É em virtude dessa plasticidade jurídica que, no âmbito da Teoria Geral do Direito, as normas jurídicas vêm a ser classificadas como: “i) de imperatividade absoluta ou impositivas, e ii) de imperatividade relativa ou dispositivas”, como ensina Maria Helena Diniz71. 70 Rafael Munhoz de Mello, Revista Trimestral de Direito Público, 30/2000, Malheiros, São Paulo, p. 142: “O Direito é uma ordem normativa, e, como tal, é um conjunto de normas que regulam condutas, com o objetivo de conformá-las a valores tidos com relevantes pelo grupo social. Tratase, assim, de uma ordem social, cuja função, do ponto de vista psicológico, ‘consiste em obter uma determinada conduta, por parte daquele que a esta ordem está subordinado, fazer com que essa pessoa omita determinadas ações consideradas como socialmente – isto é, em relação às outras pessoas – prejudiciais, e, pelo contrário, realize determinadas ações consideradas socialmente úteis’.” 71 Teoria Geral do Direito Civil, Edit. Saraiva, São Paulo, 2002, 18ª ed., p. 34: “1) de imperatividade absoluta ou impositivas, também chamadas absolutamente cogentes ou de ordem pública. São as que ordenam ou proíbem alguma coisa (obrigação de fazer ou de não fazer) de modo absoluto. São as que determinam, em certas circunstâncias, a ação, a abstenção ou o estado das pessoas, sem admitir qualquer alternativa, vinculando o destinatário a um único esquema de conduta (...). 2) de imperatividade relativa ou dispositivas, que não ordenam, nem proíbem de modo absoluto; permitem ação ou abstenção ou suprem a declaração de vontade não existente.” 49 Como ilustra a civilista, as normas de imperatividade absoluta obrigam o sujeito de direito a um único comportamento a ser realizado, ao passo que aquelas outras dotadas de imperatividade relativa e que são denominadas de dispositivas, permitem ao seu destinatário uma ação ou abstenção ou suprem eventual não declaração de vontade. Como exemplo das primeiras normas, a doutrinadora cita o art. 1.526, do Código Civil, o qual estabelece o modo de habilitação para o casamento e menciona, quanto às segundas, a possibilidade conferida aos nubentes de estipular, quanto aos seus bens, o que melhor lhes aprouver. A propósito, Carlos Roberto Gonçalves72 assevera, quanto às normas cogentes, que as mesmas “se impõem de modo absoluto, não podendo ser derrogadas pela vontade dos interessados”, acrescentando que “a imperatividade absoluta de certas normas decorre da convicção de que determinadas relações ou estados da vida social não podem ser deixados ao arbítrio individual, o que acarretaria graves prejuízos para a sociedade”. Relativamente às normas não cogentes, manifesta-se no sentido de que essas “não determinam nem proíbem de modo absoluto determinada conduta, mas permitem uma ação ou abstenção, ou suprem declaração de vontade não manifestada”. Por sua vez, Caio Mário da Silva Pereira73, abordando a classificação das leis do modo como acima aludido, comenta que “tem esse critério em vista a distribuição das leis quanto à obrigatoriedade de que são dotadas, conforme estatuam um comando de que ninguém pode escapar (ius cogens), ou estipulem normas que podem ser afastadas pelo ajuste dos interessados”. 72 Direito Civil Brasileiro, Saraiva, São Paulo, 2003, p. 33/34. Instituições de Direito Civil, Vol. I, Introdução ao Direito Civil, Teoria Geral do Direito Civil, Forense, Rio de Janeiro, 2004, p. 106. 73 50 Dessa maneira, e ainda que por razões não formalmente idênticas, é de se concluir que as normas jurídicas dirigem-se aos seus destinatários com maior ou menor grau de impositividade, seja no que se refere às relações de direito privado, seja no que diz respeito às relações de direito público, como referido. Em sede de direito privado, esses diferentes níveis de obrigatoriedade dos comandos normativos são referidos na teoria geral do direito, com base na classificação das leis naquelas modalidades mencionadas, como leis imperativas e leis dispositivas74, ao passo que na seara própria de Direito Público, especificamente no campo do Direito Administrativo, o estudo da matéria é desenvolvido sob as denominações de discricionariedade e vinculação. Mesmo em sede de teoria geral do direito privado, interessante é a posição de Francesco Carnelutti75, que adota aquela classificação típica de direito público, enfatizando que “discricionariedade nada mais é do que liberdade na regulação do conflito de interesses a que a situação respeita”. Prossegue afirmando que “a antítese entre discricionariedade e vinculação só se manifesta no campo das fontes subordinadas” e que “discricionário ou vinculado pode, pelo contrário, ser, quer o poder jurisdicional ou administrativo, quer o direito subjetivo público ou privado”. 74 Fernando Andrade de Oliveira, O poder do Estado e o exercício da polícia administrativa, Revista Trimestral de Direito Público, 29/2000, p. 86: “Observa Eduardo Espínola que se o fim do Direito Privado é limitar a ação dos indivíduos, esse fim é atingido por meio diferentes. Tal ação pode ser rigorosamente traçada pela norma jurídica, cabendo os interessados livremente entrar, ou não, nas relações reguladas. Mas se o fazem ‘têm de se submeter indeclinavelmente às prescrições da lei’. Outras vezes a norma faz prevalecer os seus preceitos, se não manifestada a vontade dos interessados, sendo-lhes permitido dispor de outro modo, ou prescreve que apenas produzirás efeitos e ‘desenvolverá sua força obrigatória só depois de se manifestar a vontade individual’. Daí a importante divisão das leis em ‘coativas ou absolutas’ (jus cogens) e ‘não coativas, supletivas ou dispositivas ‘(jus dispositivum, jus supletivum). Nas primeiras, a sanção se manifesta em virtude da própria força obrigatória da lei; nas segundas depende do concurso da vontade (expressa ou tácita) do indivíduo.” 75 Teoria Geral do Direito, São Paulo, Lejus, 1999, p. 350. 51 Do exposto, resulta que a norma jurídica, ao regular matérias de direito público ou mesmo de direito privado, concede por vezes, aos seus destinatários, a possibilidade de exercer um certo grau de subjetividade nos comportamentos a serem assumidos, o que vem a ser denominado, respectivamente, de exercício de poder discricionário e de manifestação do princípio da autonomia da vontade. 52 4. Atos discricionários públicos e privados Releva notar que há um diferencial característico e que determina uma fundamental diferença entre o postulado da autonomia privada da vontade nas relações entre pessoas privadas e o exercício de competência discricionária, nas situações em que está presente a Administração Pública. No primeiro caso, há uma considerável permissividade no que respeita ao principio da autonomia privada da vontade, o que faculta aos sujeitos, observadas as fronteiras legais, determinar a conduta que melhor atenda aos seus interesses nitidamente privados. Já no segundo caso, mesmo presente a autorização legal para que a Administração Pública atue discricionariamente, o seu limite no exercício do direito conferido encontra uma clara barreira que reside na absoluta e indispensável necessidade de atendimento do interesse público, o qual predomina em relação ao interesse privado. Consoante Afonso Rodrigues Queiro,76 “a essência do direito privado está na autonomia da vontade dos respectivos sujeitos; a essência do direito público, do direito administrativo in specie, está na obrigação para os respectivos agentes de realizarem os interesses que as leis lhe entregam para que deles curem”. 76 A teoria do “Desvio de Poder” em Direito Administrativo, Revista de Direito Administrativo, Vol. VI, outubro-1946, p. 52, grafia original: “Atinge esse fim, fundado nesta norma. Não sem intenção dizemos que esta é a essência, quer dizer, o que há de irredutível em qualquer norma de direito administrativo: esta supõe sempre um agente, um órgão e atribui-lhe uma função, ou seja, atribuilhe alguns interesses específicos, um ou alguns fins concretos, uma ou algumas atividades determinadas. Interêsse, fim, atividade, ato, são têrmos que se identificam, e são a matéria que a norma de direito circunscreve e individualiza. Ora bem. Esta soma de funções, de fins, que a lei atribui a cada órgão, marca as situações de fato em que esses órgãos devem agir.” 53 Como acentua Victor Nunes Leal77, “o fim de qualquer ato administrativo, discricionário ou não, é, sem dúvida, o interesse coletivo; no caso dos atos vinculados, êsse interesse já foi definido pelo legislador, cujas prescrições impõem, necessariamente, determinada conduta do administrador; em caso de incidência do poder discricionário, é, entretanto, à própria administração que incumbe discernir onde está o interesse coletivo, com base nos princípios gerais informadores do ordenamento jurídico positivo”. O princípio da supremacia do interesse público é o próprio fundamento último do Direito Administrativo, e desenvolveu-se no sentido de proteção dos direitos individuais e no da sua preponderância propriamente dita, premissas essas que devem estar presentes desde a elaboração legislativa até a execução em concreto da lei por parte da Administração Pública. Vale ressaltar ainda que o interesse público não é, necessariamente, o interesse da Administração Pública, posto que essa não é a titular do interesse público, mas tão somente a guardiã incumbida de protegê-lo, não podendo dele dispor, já que não lhe pertence. Por força disso, é indiscutível que cabe ao Estado a persecução do interesse público, objetivando sempre a busca do bem comum, satisfazendo as demandas de interesse coletivo, daí afirmar Hector Jorge Escola78 que o interesse público é o conceito que dá sustentação e fundamento ao próprio Direito Administrativo, podendo esse ramo da ciência do Direito ser definido, de acordo ao autor, como o direito do Interesse público. Em vista da extraordinária importância de que se reveste o conceito de interesse público, considerada a sua característica de elemento legitimador e razão de ser de toda a atividade administrativa, faz-se necessário aclarar o seu 77 Problemas de Direito Público, Forense, Rio, p. 284/85. El interés público como fundamento del derecho administrativo, Depalma, Buenos Aires, 1989, p. 261. 78 54 conteúdo e o entendimento que lhe é conferido em sede doutrinária, tendo em vista a própria fluidez do conceito e a ausência de definição legal a respeito, o que é justificável, posto nos parecer que não é essa uma função do direito positivo. Para tanto, cumpre desde logo assinalar que não seria possível verificar o atendimento desse alegado interesse público, tido como de obrigatória observância pela Administração Pública, caso não fosse ele dotado de uma certa concretude, pois, como alerta o mesmo Escola, “o interesse público não é um conceito carente de conteúdo concreto; pelo contrário, tal conteúdo deve ser reconhecível e determinável, consistindo em uma coisa ou um bem que é perceptível para qualquer componente da sociedade”. Dessa forma, lembra Aline Maria Dias Bastos:79 “tem-se, pois, de um lado, o interesse público geral, que a Administração Pública deve perseguir; de outro lado, o interesse público específico, ou seja, a exigência pela lei de uma causa específica de interesse público, para poder exercitar determinada competência ou justificar uma medida concreta (...)”, pelo que “a Administração deve alegar, provar e motivar em cada caso a ocorrência dessa específica causa de interesse público legitimado, sem que seja suficiente invocar sua posição geral de gestora ordinária desse interesse”. Para Renato Alessi80, existe uma distinção entre interesse público primário e interesse público secundário, com o que concorda Celso Antônio Bandeira de Mello,81 ao ponderar que “interesse público primário é o pertinente à sociedade como um todo e só ele pode ser validamente objetivado, pois este é o interesse que a lei consagra e entrega à compita do Estado como representante do corpo social”. 79 Conceitos jurídicos indeterminados: discricionariedade ou vinculação? Dissertação apresentada à Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Orientador: Prof. Doutor Edmir Netto de Araújo, São Paulo, 2002. 80 Sistema Istituzionale del Diritto Ammnistrativo Italiano, Dott Antonino Giufré, Milão, 1953, p. 15/52, 197/198. 81 Curso de Direito Administrativo, 13ª ed., Malheiros, São Paulo, 2001, p. 70. 55 Continua esclarecendo que “interesse secundário é aquele que atina tão-só ao aparelho estatal enquanto entidade personalizada e que por isso mesmo pode lhe ser referido e nele encarnar-se pelo simples fato de ser pessoa”. A propósito do conceito de interesse público, Alice Gonzáles Borges 82 o entende como “um somatório de interesses individuais coincidentes em torno de um bem da vida que lhes significa um valor, proveito ou utilidade de ordem moral ou material, que cada pessoa deseja adquirir, conservar ou manter em sua própria esfera de valores”. Ainda para a autora, “esse interesse passa a ser público, quando dele participam e compartilham um tal número de pessoas, componentes de uma comunidade determinada, que o mesmo passa a ser também identificado como interesse de todo o grupo, ou, pelo menos, como um querer valorativo predominante da comunidade”. Ao par disso, deve também deve ser considerado que o conceito em questão é de caráter dinâmico, sofrendo mutações em virtude de elementos temporais ou circunstanciais, de vez que, como anota Lúcia Valle Figueiredo,83 “o conceito de interesse público, como pragmático que é, terá conotações diversas, dependendo da época, da situação econômica, das metas a atingir, etc...”. Há também que se estabelecer uma distinção entre interesse público e interesse comum, de vez que aquele nem sempre coincide com este, na medida em que geralmente são conflitantes, particularmente no caso de estados pluralistas, como é o brasileiro. 82 Interesse público: um conceito a determinar. Revista de Direito Administrativo nº 205, jul/set de 1996, Rio de Janeiro, p. 114. 83 Curso de Direito Administrativo, 3ª ed., Malheiros, São Paulo,1998, p. 34. 56 Em sendo assim, o que deve a Administração buscar não é a satisfação dos interesses de todos os cidadãos, mas sim atuar de forma a beneficiar uma coletividade de pessoas que tenham interesses comuns, mesmo que esses não correspondam ao somatório dos interesses individuais. Como asseveram Silvânio Covas e Adriana Laporta Cardinali,84 “sem dúvida, a finalidade última de qualquer ato administrativo deve ser o interesse público, aquilo que é almejado pela coletividade, e não o interesse pessoal do agente público”, posto que, conforme aqueles autores, “o princípio da legalidade preleciona que o agir da Administração Pública deva atender à finalidade da lei em sentido formal, em seu caráter genérico e abstrato”, já que “toda lei visa a um determinado fim público, cuja identificação exsurge de cada caso (por exemplo, saúde pública, higidez do Sistema Financeiro Nacional, etc.)”. Assim posto, releva notar que o interesse público se caracteriza por ser uma noção absolutamente contrária à de interesse individual e, conforme acentua Celso Antônio Bandeira de Mello,85 “todo o sistema de Direito Administrativo, a nosso ver, se constrói sobre os mencionados princípios da supremacia do interesse público sobre o particular e indisponibilidade do interesse público pela Administração”. A esse respeito, Edmir Netto de Araújo86 aponta que “o princípio da supremacia do interesse público relaciona-se à noção de puissance publique, e fundamenta-se nas próprias idéias iniciais da entidade ‘Estado’, em que os membros de certa coletividade abdicam, como diz Hobbes, em seu ‘Leviatã’, de parte de sua liberdade integral em favor de um comando disciplinador para a vida dessa mesma comunidade”. 84 Ob. cit. p. 110/11. Ob. cit. p. 28. 86 Os princípios administrativos na Constituição de 1988, Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo nº. 34, dez/1990, p. 135. 85 57 Abordando a questão relativa à amplitude que deve ser conferida ao espaço de aplicação do interesse público, o mesmo autor87 antes referido observa que “mesmo nos atos discricionários, o que ocorre não é o livre consentimento do agente indivíduo, mas uma faculdade concedida ao administrador para decidir sobre a oportunidade ou conveniência da prática de certos atos, mas sempre referentes ao interesse público e à sua própria competência, pois, a finalidade é elemento vinculado dos atos administrativos”. Concluindo, Edmir Netto de Araújo se posiciona no sentido de que “ato administrativo praticado sem interesse público que inspire seus motivos e caracterize sua finalidade, ou contra o interesse público, não tem objeto lícito, e, portanto, não tem validade”. Necessário também se faz proceder à distinção entre interesse público, interesse coletivo e interesse difuso, sendo o primeiro aquele de um grupo de indivíduos cujos interesses se atrelam em virtude de um móvel comum, advindo de um vínculo jurídico definido que os congrega, mas que é impossível de ser fruído individualmente, com exclusividade, e é também de disponibilidade relativa, como ensina Lúcia Valle Figueiredo.88 No que se refere ao interesse difuso, o mesmo se caracteriza por não ter uma base jurídica comum que una os sujeitos, posto que são interesses metaindividuais, indivisíveis e indisponíveis, não se fazendo presente um titular identificável desse interesse e que poderia dele dispor. Diante disso, resta evidente que o interesse público pode ser ou não diretamente identificado na lei e, caso o seja, não há espaço de discricionariedade para a Administração Pública e, ao contrário, não sendo possível identificá-lo, caberá o recurso aos critérios de conveniência e oportunidade, a fim de perseguir 87 88 Do negócio jurídico administrativo, RT, São Paulo, 1992, p. 87/88. Direito difusos e coletivos, Saraiva, São Paulo, 1989, p. 12/14. 58 a realização do interesse público, que pode ou não coincidir com o interesse da Administração, com o interesse comum ou com o interesse coletivo ou difuso. 59 5. Conceitos jurídicos indeterminados A questão relativa aos conceitos jurídicos indeterminados, considerada a sua importância para o exame da questão de que se trata, merece análise em título à parte, inclusive mostrando o próprio posicionamento de Enterría a respeito do assunto, a fim de que se traga à discussão o entendimento doutrinário pertinente, com vistas a propiciar o entendimento da matéria em toda a sua extensão e dificuldade. Percebe-se com alguma freqüência que os conceitos jurídicos indeterminados têm sido objeto de equivocada utilização nos domínios da Administração Pública, posto que em virtude da alegada fluidez dos mesmos, firmou-se o entendimento de que estaria o agente público autorizado a completálos com absoluto subjetivismo, negando-lhes qualquer possibilidade de apreciação objetiva. No entanto, não tem sido esse o entendimento conferido à matéria por ao menos parte de autorizada interpretação doutrinária a qual, apoiada na doutrina alemã, sustenta que muito embora os conceitos da espécie não possam ser rigorosamente quantificados ou determinados, não seria possível, quando de sua aplicação, postular pela sua inserção no âmbito da atividade discricionária. Nesse particular, Celso Antônio Bandeira de Mello89, analisando o posicionamento explicitado acima, observa que para aquela corrente tais conceitos, que ele denomina de imprecisos, “à vista das situações do mundo real ganhariam consistência e univocidade, de tal sorte que, perante os casos concretos, sempre se poderia reconhecer se em uma dada situação é ou não ‘urgente’; se o interesse posto em causa é ou não ‘relevante’, se existe ou não um perigo ‘grave’ e assim por diante”. 89 Discricionariedade e controle jurisdicional, Malheiros, São Paulo, 2006, 2ª ed., 7ª tiragem, p. 22. 60 Prosseguindo na sua abordagem sobre a questão, informa que aquela linha de pensamento doutrinária pretende “que a questão suscitada por tais conceitos é meramente uma questão de ‘interpretação’, definível, como qualquer outra, pelo Poder Judiciário e não uma questão de discricionariedade, a qual supõe certa margem de liberdade decisória para o administrador”. Conforme Enterría,90 por se referirem tais conceitos a pressupostos concretos e não a coisas imprevistas e contraditórias, a aplicação dos mesmos não comporta várias soluções, mas uma única, já que a situação objetivada pela norma acontece ou deixa de acontecer, como exemplificativamente a existência ou não de boa-fé, ou mesmo se houve ou não improbidade e, ainda, se o preço é justo ou não. Nessa trilha, conclui o autor91 que a indeterminação é uma característica própria unicamente do enunciado da norma que não deve ser estendida à aplicação do conceito, considerando que nesse âmbito admite-se somente uma solução justa em cada caso, a qual se alcança por meio de uma atividade de cognição objetiva e, portanto, não resultante simplesmente da vontade do aplicador da norma. Não se pretende com isso, como assinalado por Enterría92, afirmar que exista uma única conduta capaz de receber, entre todas aquelas possíveis, a 90 Ob. cit. p. 465, tradução livre: “A lei utiliza conceitos de experiência (incapacidade para o exercício de suas funções, premeditação, força irresistível) ou de valor (boa-fé, standard de conduta do bônus pater familias, justo preço) porque as realidades referidas não admitem outro tipo de determinação mais precisa. Mas ao estar se referindo a supostos concretos e não a vaguidades imprecisas ou contraditórias, é claro que a aplicação de tais conceitos ou a qualificação de circunstâncias concretas não admite mais que uma solução: ou se dá ou não se dá o conceito; ou há boa-fé ou não; ou o preço é justo ou não o é; ou se está faltando à probidade ou não se faltou. Tertium non datur.” 91 Ob. cit. p. 465, tradução livre: “Isso é o essencial do conceito jurídico indeterminado: a indeterminação do enunciado não se traduz em uma indeterminação das aplicações do mesmo, as quais só permitem uma ‘unidade de solução justa’ em cada caso, a que se chega mediante uma atividade de cognição, objetivável portanto, e não de vontade.” 92 Ob. cit. p. 465/66, tradução livre: “Convém notar a esse respeito,para evitar um mal entendido bastante freqüente sobre o que se costuma construir as críticas ulteriores, que essa ‘unidade de solução justa’ a que nos referimos não significa que haja uma só e única conduta capaz de 61 qualificação indicada pelo conceito, mas sim que em um determinado caso concreto o comportamento questionado é ou não de boa-fé, já que impossível ser as duas coisas ao mesmo tempo. A diferença marcante entre a discricionariedade e os conceitos jurídicos indeterminados estaria precisamente no momento da aplicação da norma, posto que quando do exercício da primeira há uma pluralidade de soluções justas, ao passo que diante de conceitos indeterminados só é possível uma única solução juridicamente aceitável. Assim, à discricionariedade, no entendimento conferido à questão pelo doutrinador93, é inerente uma liberdade de escolha entre alternativas igualmente justas, em virtude do fato de que a decisão respectiva se fundamenta ordinariamente em critérios extrajurídicos, como a aferição de oportunidade ou mesmo em virtude de razões econômicas, os quais não são referidos na lei e, por isso, são remetidos ao juízo subjetivo da Administração Pública. Diversamente ocorre no caso dos conceitos jurídicos indeterminados, os quais se traduzem em situações de aplicação da lei, expressamente indicadas, pelo que deve haver a subsunção das circunstâncias reais a uma categoria legal, o que afasta a possibilidade de exercício de discricionariedade. merecer, entre todas as possíveis, a qualificação a que o conceito aponta. O que se quer dizer exatamente é que em um caso dado a concreta conduta objeto de juízo ou é de boa-fé ou não o é, o que remete a uma ‘apreciação por juízos disjuntivos’, na expressiva fórmula alemã, já que não se pode ser as duas coisas ao mesmo tempo, como é evidente.” 93 Ob. cit. p. 466/67, tradução livre: “A discricionariedade é essencialmente uma liberdade de eleição entre alternativas igualmente justas, ou, se assim se prefere, entre indiferentes jurídicos, porque a decisão se fundamenta normalmente em critérios extrajurídicos (de oportunidade, econômicos, etc.), não incluídos na lei e remetidos ao juízo subjetivo da Administração. Ao contrário, a aplicação de conceitos jurídicos indeterminados é um caso de aplicação da lei, posto que se trata de subsumir em uma categoria legal (configurada,não obstante sua imprecisão, de limites, com a intenção de adotar um suposto concreto) circunstâncias reais determinadas, justamente por isso é um processo regulado, que se esgota no processo intelectivo de compreensão da realidade no sentido de que o conceito legal indeterminado pretendeu, processo em que não interfere nenhuma decisão de vontade do aplicado, como é próprio de quem exercita uma potestade discricionária.” 62 Isso é que viria a permitir ao julgador, diante do caso concreto, valorar se a solução tomada seria a única justa permitida pela lei, o que não se faz possível no caso de exercício de atividade discricionária, se esta se produziu em respeito aos limites da remissão legal deferida à apreciação subjetiva da Administração Pública. Posto isso, na visão do autor,94 conceitos como urgência, ordem pública, preço justo, calamidade publica, medidas adequadas ou proporcionais, incluídas a necessidade pública, utilidade pública e até interesse publico, não permitem, quando de sua aplicação, uma pluralidade de soluções justas, mas sim somente uma em cada caso, resultante da aplicação de juízos disjuntivos. Interessante também notar que, de acordo com Enterria,95 na estruturação de qualquer conceito indeterminado pode ser identificado um núcleo fixo que o mesmo denomina de zona de certeza positiva, uma zona intermediária ou de incerteza e, finalmente, uma zona de certeza negativa. Assim concebida pelo autor96 a estrutura do conceito jurídico indeterminado, a dificuldade de verificar a solução justa localizar-se-ia exatamente na zona de imprecisão, denominada de “hallo” conceitual, não se fazendo presente dificuldade alguma no que respeita às zonas de certeza positiva ou negativa. 94 Ob. cit. p. 468, tradução livre: “Assim, conceitos com urgência, justo preço, calamidade pública, medidas adequadas ou proporcionais, incluindo necessidade pública, utilidade pública e até interesse público, não permitem em sua aplicação uma pluralidade de soluções justas, senão uma só solução em cada caso, a que concretamente resulte de essa ‘aplicação por juízos disjuntivos’ das circunstâncias concorrentes a que antes aludimos.” 95 Ob. cit. p. 468, tradução livre: “De pronto há que se notar que na estrutura de todo conceito indeterminado é identificável um núcleo fixo (Begrifkern) ou ‘zona de certeza’ configurada por dados prévios e seguros, uma zona intermediária ou de incerteza ou ‘zona cinzenta’ (Begriffhof), mais ou menos precisa e, finalmente, uma ‘zona de certeza negativa’, também certa quanto à exclusão do conceito.” 96 Ob. cit. p. 468, tradução livre: “Suposta esta estrutura do conceito jurídico indeterminado, a dificuldade de precisar a solução justa se concentra na zona de imprecisão ou ‘vão’ conceitual, mas tal dificuldade desaparece nas zonas de certeza, positiva ou negativa (...).” 63 Utilizando como referência o conceito de preço justo, o autor espanhol exemplifica, relativamente à zona de certeza positiva, que o valor de uma casa poderia situar-se na casa dos dez milhões de pesetas, o que representaria o preço mínimo, segundos as estimativas comuns. A seu turno, a zona de imprecisão se localizaria em algo entre dez e quinze milhões e, por último, a zona de certeza negativa equivaleria a valor superior a quinze milhões. Invocando a doutrina alemã que, como informa Enterría97, foi a responsável pela elaboração acerca do tema, há um reconhecimento no sentido de que é inafastável uma margem de apreciação subjetiva, no que respeita à zona de imprecisão, sem que isso, contudo, venha a deslocar a questão para o campo da discricionariedade. Colocado o problema dessa forma, consoante afirma o próprio autor,98 o aprofundamento no exame da técnica dos conceitos indeterminados conduz a um estreitamento do espaço reservado à discricionariedade, provocando importante redução em sua esfera de utilização. Assumindo posição não tão extremada, Celso Antônio Bandeira de Mello99 entende, no que se refere aos conceitos indeterminados, “seria excessivo considerar que as expressões legais que os designam, ao serem confrontadas com o caso concreto, ganham, em todo e qualquer caso, densidade suficiente para autorizar a conclusão de que se dissipam por inteiro as dúvidas sobre a aplicabilidade ou não do conceito por elas recoberto”. 97 Ob. cit. p. 469. Ob. cit. p. 470, tradução livre: “Através desse aprofundamento na técnica dos conceitos jurídicos indeterminados a idéia de discricionariedade tende a se reduzir de forma importante, como é óbvio.” 99 Ob. cit. p. 22. 98 64 Assim, entende Celso Antônio Bandeira de Meelo100 que nem sempre isso será possível, já que em incontáveis situações poderia se constatar a existência de mais de uma interpretação razoavelmente admissível e, por isso, não seria permitido afirmar, com foros de absolutismo, que um eventual entendimento divergente do que se tenha tido seria necessariamente desconsiderado, ou seja, reputado como incorreto. Semelhante é o pensamento de Afonso Rodrigues Queiró101, para quem “pode dizer-se, como Bernatzik a respeito dos conceitos vagos (...), mas sem aceitar a sua construção, que, na sua execução, existe ‘um limite além do qual nunca terceiros podem verificar a exatidão ou a não exatidão da conclusão atingida’. Segundo o autor, entende ainda Bernatzik que “pode dar-se que terceiros sejam de outra opinião, mas não podem pretender que só êles estejam na verdade, e que os outros tenham uma opinião falsa”, já que “sobre êles, a generalidade das pessoas não forma senão casualmente o mesmo juízo”, Para Celso Antônio Bandeira de Mello102, determinadas noções como “pobreza”, “velhice”, “notável saber”, “boa ou má reputação”, “urgência”, “tranqüilidade pública”, “como quaisquer outras suscetíveis de existir em graus e medidas variáveis – ensejarão, em certos casos, objetiva certeza de que ‘in concreto’, foram bem ou mal reconhecidos”. Porém, prossegue o professor103, ocorrerá “isto em alguns casos, não porém em todos”, posto que “em dadas situações, nas paradigmáticas ou típicas, poder-se-á dizer, em nome de uma verdade objetivamente convinhável, que alguém induvidosamente é pobre ou que é velho, ou então, que não o é (e 100 Ob. cit. p.22: “Algumas vezes isso ocorrerá. Outras não. Em inúmeras situações, mais de uma intelecção será razoavelmente admissível, não se podendo afirmar, com vezos de senhoria da verdade, que um entendimento divergente do que se tenha será necessariamente errado, isto é, objetivamente reputável como incorreto.” 101 Ob. cit. p. 63. 102 Ob. cit. p. 22/23. 103 Ob. cit. p. 23. 65 assim por diante no exemplário referido), porém, em outras tantas, mesmo recorrendo-se a todos os meios mais além aduzidos para delimitar o âmbito de uma expressão vaga, ter-se-á de reconhecer que não se poderia rechaçar como necessariamente falsa nenhuma dentre duas opiniões conflitantes sobre o mesmo tópico”. Afirma o doutrinador104 que: “em suma: muitas vezes – exatamente porque o conceito é fluido – é impossível contestar a possibilidade de conviverem intelecções diferentes, sem que, por isto, uma delas tenha de ser havida como incorreta, desde que quaisquer delas sejam igualmente razoáveis”, e, assim, conclui o autor, “eis porque não é aceitável a tese de que o tema dos conceitos legais fluidos é estranho ao tema da discricionariedade”. O campo de discussão é por demais extenso e comporta várias correntes doutrinárias e, mesmo centrando a análise naquelas duas anteriormente expostas, é possível antever o elemento comum a todas as outras demais opiniões e que se situa exatamente na tensão entre interpretação, como proposto por Enterría, e discricionariedade, possível ao menos em determinadas situações, como defendido por Celso Antônio Bandeira de Mello. A propósito desse debate, Maria Sylvia Zanella de Pietro105 cita Regina Helena Costa que “apela para o princípio da razoabilidade, para concluir que em determinados casos, mesmo quando haja possibilidade de opção entre duas ou mais alternativas, é possível, no caso concreto, chegar-se a uma única solução válida; referido princípio tem o condão de nortear a apreciação subjetiva do agente para uma solução que seria aceitável pela comunidade”. 104 105 Ob. cit. p. 23. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988, Atlas, São Paulo, 2001, p. 118. 66 Especificamente acerca da tensão entre interpretação discricionariedade, a mesma Maria Sylvia Zanella Di Pietro106 registra e que “quando se instaurou o Estado de Direito, a Administração passou a sujeitar-se à lei, mas uma lei que precisava ser interpretada. Reconhecia-se tanto ao Judiciário como à Administração, o poder de interpretar a lei antes de sua aplicação”. A partir daí, segundo a autora107, surgiu, “dentro da linha de Bernatzik, a idéia de que determinados conceitos utilizados pela lei, por serem vagos, são ininterpretáveis, gerando, para a Administração, a liberdade de fazer uma apreciação subjetiva diante dos fatos concretos, liberdade essa que corresponderia precisamente ao poder discricionário”. De acordo com a opinião de Maria Sylvia Zanella Di Pietro108, “não é necessário muito esforço para perceber que tal doutrina melhor se afeiçoa a um tipo de governo autoritário, já que reconhece maior poder para a Administração e menor para o Judiciário, ao qual se nega a possibilidade de apreciar aqueles atos emanados do poder discricionário”. Aponta ainda a mesma autora109 que “em linha diversa colocam-se os que, segundo a doutrina de Tezner, entendem que todos os conceitos vagos são passíveis de interpretação, não implicando discricionariedade para a Administração” o que representa, conforme acima exposto, o entendimento que Enterría confere à questão. Existiria ainda, como informa Maria Sylvia Zanella Di Pietro110, uma posição intermediária, na qual “situam-se aqueles que reconhecem poder discricionário para a Administração Pública em face dos conceitos indeterminados; todavia, essa discricionariedade não importa livre apreciação. A autoridade 106 Ob. cit. p. 120. Ob. cit. p. 120. 108 Ob. cit. p. 120. 109 Ob. cit. p. 121. 110 Ob. cit. p. 121. 107 67 administrativa deve utilizar todos os métodos possíveis de exegese para alcançar o interesse público que o legislador quis proteger ao conferir-lhe discricionariedade. Esta começa onde termina a interpretação”. Diante desse mosaico de idéias a respeito do assunto, é possível e até necessário, ao menos em tese, adotar-se uma posição favorável a um ou outro entendimento, sem que se pretenda, por óbvio, referendá-la como a mais acertada, mas apenas com o objetivo de se definir por uma linha doutrinária dotada de razoável consistência jurídica. Nesse propósito, não nos anima o alinhamento ao lado da posição defendida por Enterría, posto não acreditarmos de maneira absoluta que a questão se resuma aos domínios da interpretação e que, em qualquer caso, sempre existirá uma única solução consentânea com o direito. Assim, preferimos encampar a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, posto que nos parece fora de dúvida que, em determinados casos, apresentem-se como aceitáveis, sob o ângulo jurídico, mais de uma solução para um determinado caso concreto posto à decisão da Administração Pública, o que levaria a admitir, ainda que confinada a determinados balizamentos, alguma margem para o exercício da discricionariedade. Deve ser dito, por um lado, que a filiação doutrinária acima manifestada não invalida a afirmação antes trazida à colação, da lavra de Enterría, um dos expoentes da doutrina oposta, no sentido de que o aprofundamento da discussão acerca dos conceitos indeterminados conduz, necessariamente, a um estreitamento das possibilidades de exercício de competência discricionária. Por outro lado, também cabe deixar marcado que, apesar do reconhecimento de que em determinados casos restará à Administração Pública, quando da aplicação em concreto dos conceitos indeterminados, algum espaço 68 que permita o exercício da discricionariedade, conforme a tese professada, dentre outros, por Celso Antônio Bandeira de Mello, isso não significa que a decisão possa ficar à livre e completa apreciação dos agentes públicos, também como acima já referido. Ainda assim, será sempre possível exigir-se que a decisão produzida leve em conta alguns elementos dotados de ao menos uma certa dose de objetividade, tendo em vista o atendimento do interesse público pretendido pela norma, o que será atingido, por exemplo, mediante o emprego do princípio da razoabilidade, como proposto por Regina Helena Costa e acima já referido, em passagem citada por Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Em virtude de todo o exposto, é de se concluir que, independentemente da corrente doutrinária que se pretenda adotar, o que resta claro, principalmente como meio de preservar os direitos do administrado em face do Estado, é que o exercício de competência discricionária jamais prescinde, por completo, da observância de certos limites, reconhecidos em sede doutrinária e jurisprudencial, por força, inclusive, de preceitos expressos ou implicitamente estabelecidos pelo próprio ordenamento jurídico. 69 6. Técnicas de redução/controle da discricionariedade A fim de evitar que o exercício de competência discricionária se apresentasse abusivo e viesse assim a revelar contornos de arbitrariedade, levando a Administração Pública a prevalecer em relação ao administrado mediante o uso da força e do autoritarismo, é que surgiram variadas técnicas objetivando conter a discricionariedade nos marcos legais que lhe são inerentes, reduzindo as hipóteses de sua própria utilização ou mesmo submetendo-a, quando fosse o caso, ao crivo do Poder Judiciário. Assim, de acordo com Luciano Ferreira Leite,111 “somente se pode cogitar, portanto, de um Estado Democrático de Direito se presente a submissão de seus órgãos ao seu próprio ordenamento, ao lado da observância das liberdades fundamentais conferidas aos administrados (...)”, enfatizando ainda aquele autor que “o Estado de Direito caracteriza-se, portanto, pela vedação às autoridades, obstaculizando-lhes atuação arbitrária contra os cidadãos”. Nesse mesmo sentido, recorda Antonio Carlos de Araújo Cintra,112 reportando-se ao direito norte americano, que “é oportuno ainda acrescentar que o Judiciário americano não hesita em controlar o próprio exercício do poder discricionário do administrador, considerada a discricionariedade como a liberdade de escolher entre várias condutas possíveis ou a inação”, e que, “para isso, está autorizado pelo Federal Administrative Procedure Act e leis estaduais 111 Interpretação e Discricionariedade, São Paulo, RCS Edit, 2006, p.17/18: “Verifica-se, destarte, à luz das normas constitucionais, conforme exposto, que o Estado, como pessoa jurídica de Direito Público, é destinatário das normas (leis obrigatórias e proibitivas) por ele próprio editadas. Está sempre sujeito ao controle de validade na produção das normas infralegais que expede, na medida em que prevê o ordenamento jurídico positivo, os mecanismos processuais acima referidos a serem acionados perante o Poder Judiciário. Este, com absoluta neutralidade e imparcialidade, é o órgão institucional que possui a competência outorgada pela Constituição para se pronunciar sobre a validade dos atos administrativos e a constitucionalidade das leis.” 112 Dissertação de concurso à livre docência de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1978, p. 178. 70 correspondentes, admitindo-se a revisão se o poder discricionário foi empregado de forma arbitrária, caprichosa ou abusiva". Nesse sentido, Kelsen113 deixa estabelecido que “o propósito de uma norma constitucional que concede uma liberdade ou direito individual é precisamente o de impedir que os órgãos do Poder Executivo sejam autorizados por uma lei simples a ultrapassar os limites da esfera de interesse determinada pela ‘liberdade’ ou ‘direito’”. Buscando o delineamento histórico daquelas técnicas de controle referidas ao início desse tópico, Enterría114 lembra que, no seu entendimento inicial, a discricionariedade era assimilável aos então denominados atos de império, os quais se situavam à margem de qualquer possibilidade de controle jurisdicional, submetendo os administrados unicamente à vontade do Estado. Recorda Enterría que o marco inicial propondo conter a discricionariedade nos lindes juridicamente demarcados teve o seu surgimento na França, já no primeiro terço do século XIX, por meio do recurso que veio a ser denominado de “excesso de poder”, que visou regular ou controlar, ainda que sob alguns aspectos, os atos administrativos. Nesse contexto, ainda conforme Enterría115, admitia-se aquela espécie de recurso nas situações em que se vislumbrava a existência de um vício de incompetência por parte do órgão que veio a praticar o ato. Passo seguinte, o próprio Conselho de Estado francês empenhado, como acentua Enterría,116 na ampliação daquelas técnicas de controle, passa a 113 Teoria Geral do Direito e do Estado, São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 379. Ob.cit. p.471/72, tradução livre: “O assédio à imunidade judicial da discricionariedade resume um dos capítulos mais importantes da evolução do Direito Administrativo. A discricionariedade é inicialmente equiparada aos ‘atos de império’,categoria oposta à dos ‘atos de gestão’, e a respeito da mesma não se admite recurso contencioso administrativo pelas razões que bem nos constam.” 115 Ob. cit. p. 472. 114 71 equiparar o vício de forma ao vício de competência, fundado na premissa de que a atribuição de competência à Administração Pública é feita precisamente no sentido de que a mesma deva, quando de seu exercício, fazê-lo de modo a ter em mira uma causa determinada nos termos em que legalmente veio a ser estabelecido. Como consequência natural do posicionamento antes referido, e trilhando sempre a senda evolucionista no que respeita à matéria, chegou-se, como registra o doutrinador,117 ao descobrimento e formulação da técnica do desvio de poder, que veio a ser a terceira via de incursão na esfera isenta de discricionariedade. Nesse estágio, acentuou-se a idéia de que a liberdade de escolha da decisão outorgada ao órgão da Administração Pública não compreendia uma implícita autorização para que o mesmo se afastasse do fim considerado pela norma que lhe deferiu aquela potestade. Depois disso, já ao fim do século, como também deixa consignado Enterría118, o recurso se estende para toda violação direta ou indireta da lei, generalizando-se a aplicação da via excepcional então reservada ao excesso de poder, permitindo-se inclusive o acesso à via ordinária, o que veio a tornar possível inclusive a impugnação dos atos de gestão, valorizando assim as relações jurídico-administrativas. Numa etapa posterior, ainda de acordo com a abordagem desenvolvida por Enterría,119 o recurso é estendido ao controle dos fatos que foram levados em consideração pela Administração Pública por ocasião da prática 116 Ob. cit. p. 472. Ob. cit. p. 472. 118 Ob. cit. p. 472. 119 Ob. cit. p. 472. 117 72 do ato, o que era até então impossível de ser questionado na via judicial, baseado na premissa de que isso viria a ofender o princípio da separação dos poderes. Acrescenta ainda aquele mesmo autor que o controle jurisdicional dos fatos, particularmente no que diz respeito à qualificação jurídica dos mesmos, permitiu o acesso ao problema de fundo, por parte do Conselho de Estado. A partir de então, admitiu-se examinar a correta utilização, por parte da Administração Pública, de conceitos tais como o de boa ordem, segurança, salubridade, trazendo assim para o campo possível de apreciação jurisdicional algo que se considerava não sindicável, posto que estaria abrangido pela discricionariedade administrativa.120 Informa também Enterria121 que a aplicação dos princípios gerais do Direito, como técnica de redução da discricionariedade administrativa, aconteceria algum tempo depois, por força de um julgado de 1954, do Conselho de Estado, exigindo que a Administração, em qualquer caso, indicasse de forma precisa as razões de fato e de direito capazes de justificar uma decisão discricionariamente adotada. Finalmente, aponta o autor,122 que em virtude de um outro julgado ocorrido em 1971, passou a ser utilizada a técnica de se efetuar um balanço entre custos e benefícios, servindo-se para tanto do princípio da proporcionalidade, firmando-se a partir de então o entendimento de que em suas ações, ou na prática de seus atos, o Estado deveria considerar o grau de invasão nos interesses privados e verificar se tais inconvenientes de ordem social não seriam excessivos face ao interesse público perseguido. 120 Ob. cit. p. 472. Ob. cit. p. 472/73. 122 Ob. cit. p. 473. 121 73 Em seara de direito constitucional, Luiz Roberto Barroso123 assinala que o princípio da proporcionalidade, “conhecido, também, como “princípio da menor ingerência possível, consiste ele no imperativo de que os meios utilizados para o atingimento dos fins visados sejam os menos onerosos para o cidadão” e que isso nada mais é do que “a chamada proibição do excesso”. Informa o autor, ainda acerca do princípio da proporcionalidade, reportando-se à sua formulação pela doutrina alemã, que do mesmo se extraem os “requisitos (a) da adequação, que exige que as medidas adotadas pelo Poder Público mostrem-se aptas a atingir os objetivos pretendidos; (b) da necessidade ou exigibilidade, que impõe a verificação da inexistência de meio menos gravoso para o atingimento dos fins visados; e (c) da proporcionalidade em sentido estrito, que é a ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido, para constatar se é justificável a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos”. Lembra também Luiz Roberto Barroso, em outra passagem do mesmo trabalho, que “o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade sempre teve o seu campo de incidência mais tradicional no âmbito de atuação do Poder Executivo” e que “estudado precipuamente na área do direito administrativo, ele funcionava como medida de legitimidade do exercício do poder de polícia e da interferência dos entes públicos na vida privada”. Retomando a perspectiva histórica traçada por Enterría, o mesmo acentua que este seria o último reduto da arbitrariedade administrativa que o Conselho de Estado estaria combatendo e que este trabalho vem sendo levado adiante com uma admirável sutileza, posto que não pretende aquela corte administrativa, propositadamente, elaborar uma teoria geral a respeito do tema, a fim de conservar em seu poder os frutos de uma política jurisprudencial. 123 Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no Direito Constitucional, Revista dos Tribunais, Ano 6, nº 23, - abril-junho de 1998, p. 72/73. 74 Evidentemente, todo esse processo de criação e de evolução das técnicas de redução e de controle do exercício da discricionariedade, surgidas por obra do Conselho de Estado francês, espalharam-se para outros países e influenciaram fortemente na construção de seus regimes jurídico-administrativos e vieram a determinar a formação de uma jurisprudência consentânea com o ideário francês, a propósito da necessidade de se possibilitar o exame judicial quando diante de arbitrariedades que o justificassem. Assim, com maior ou menor intensidade ou velocidade, como registrado pelo autor, relativamente ao direito espanhol, aquelas idéias acabaram por determinar a formação, em sede de direito comparado, de um arcabouço legal mínimo positivando o entendimento acerca da necessidade de delimitar as possibilidades de exercício do poder discricionário, de modo a evitar agressões à esfera de interesses privados. Talvez mais importante que isso, ocorreu, no âmbito jurisdicional, a sedimentação de um universo de decisões que se apresentam em absoluta sintonia com as teorias desenvolvidas originariamente no direito francês, refletindo a idéia central ali construída e desenvolvida no sentido de tornar sindicável a discricionariedade, nas situações em que o seu exercício viesse a se revelar abusivo. Como observa Enterria124, a primeira redução do dogma da discricionariedade decorreu da constatação de que em todo ato discricionário é possível reconhecer a existência de elementos regrados concernentes à própria existência e extensão daquele poder, relativos à competência, à forma, aos procedimentos, à finalidade, ou ao tempo, de maneira a afastar qualquer justificativa acerca de eventual abdicação de controle sobre ditos elementos. 124 Ob.cit. p. 475. 75 Assim, de acordo com o autor, o exercício da discricionariedade só pode realizar-se validamente caso sejam respeitados os elementos regrados do ato, o que vem a permitir o controle externo quanto à legitimidade na produção dos atos discricionários. Em relação àqueles elementos regrados, especial destaque é conferido pelo autor125 no que respeita ao fim ou finalidade do ato, a partir da constatação de que toda atividade administrativa é dirigida à realização de um objetivo estabelecido expressa ou implicitamente e a sua eventual não observância vem dar ensejo ao desvio de poder. Nesse sentido são as agudas observações de Victor Nunes Leal,126 contidas nas afirmações de que “o ato administrativo – ensina a doutrina do desvio de poder – só será legítimo se coincidir com a finalidade prevista ou definida, expressa ou implicitamente, na regra de competência” e de que “exorbitando dessa previsão ou definição, que há de ser específica (pois a possível implicitude não se confunde com a inadmissível falta de especialidade), o ato será ilegal”. Ao se afastar da finalidade que condiciona o exercício do poder discricionário, o ato praticado pela Administração Pública deixa de ser legítimo, no dizer daquele autor127. Conseqüentemente, dá ensejo à sua anulação, de vez que os poderes outorgados aos entes públicos não são abstratos, pelo que não se prestam à utilização para qualquer finalidade, mas são funcionais e, portanto, concedidos tendo em vista o alcance de uma finalidade específica. 125 Ob. cit. p. 475. Reconsideração do tema do abuso do poder, Revista de Direito Administrativo, p. 459: “O fim legal é, sem dúvida, um limite ao poder discricionário. Portanto, se a opção administrativa desatende a essa finalidade, deve-se concluir que extrapolou da sua zona livre, violando uma prescrição jurídica expressa por implícita, o que a transpõe, por definição, para uma zona vinculada.” 127 Ob. cit. p. 475. 126 76 A respeito da finalidade do ato, Raúl Bocanegra Sierra128 alerta sobre a necessidade de que toda atividade administrativa esteja orientada para a realização de um fim público ou de interesse público e que essa finalidade dever ser buscada na norma que atribuiu a competência. Esclarece que a finalidade é expressamente indicada pela norma ou então pode ser deduzida de seu conteúdo e deve ser cumprida, na medida em que ela é o próprio objeto da potestade atribuída à administração e que se efetiva, no caso concreto, por meio do ato administrativo. Adverte Enterría129 que não é exigido para a caracterização do desvio de poder que o agente público, ao praticar o ato, objetive o atendimento de um interesse privado, bastando que o fim almejado, ainda que se revista de natureza pública, seja diverso daquele previsto na norma. Considera ainda que o vício de desvio de poder é um vício de estrita legalidade e que é controlável pela verificação do cumprimento do fim concretamente assinalado pela norma, e esse controle se realiza por meio de critérios jurídicos estritos e não de regras morais, posto que está sob análise a legalidade administrativa e não a moralidade do agente ou mesmo da Administração130. É exatamente por isso, continua o autor131, que o desvio de poder não se reduz à constatação de que o agente não buscou um fim privado quando da prática do ato, mas sim à certificação quanto a uma eventual divergência entre a efetiva finalidade colimada pela lei e aquela que foi objetivada pelo agente 128 Lecciones sobre el lacto administrativo, Thomson Civitas, Madrid, Segunda Edición, 2004, p. 74. Ob. cit. p. 476, tradução livre: “Para que se produza desvio de poder não é necessário que o fim perseguido seja um fim privado, um interesse particular do agente ou autoridade administrativa (assim, por exemplo, uma finalidade persecutória ou de vingança). 130 Ob. cit p. 476/77. 131 Ob. cit. p. 477. 129 77 público, circunscrevendo-se a analise à perquirição quanto à identidade ou divergência entre os fins desejados pela lei e os almejados pela Administração. Igual matiz marca o entendimento de Queiro,132 ao recordar passagem de monografia de Michoud, na qual este afirma que “o administrador, a seus olhos, comete uma ilegalidade, não apenas quando age num interêsse privado, mas também quando age em vista de um interêsse coletivo diferente daquele que tinha o dever de prosseguir.” No sentir do autor, “ai também o limite é um limite de legalidade, porque resulta de regras legais precisas, que são as regras de competência”, e “se, conforme a feliz expressão de Hauriou, cada poder administrativo está limitado à prossecução de seu fim próprio, então é que não lhe é permitido dispor da sua competência para a obtenção de um fim que nela não está contido”. A seu turno, acrescenta Enterría133 que a grande dificuldade suscitada por essa forma de controle situa-se no campo da prova, não se podendo exigir sua plenitude, na medida em que o ato viciado certamente não deixará evidenciado se o fim que o inspirou é distinto daquele previsto na norma. No entanto, consciente dessa dificuldade, entende Enterría134 que, apesar de não bastarem para tanto as meras presunções, é suficiente a convicção 132 A teoria do “desvio de poder” em direito administrativo, Revista de Dieito Administrativo, Vol. VI, janeiro-março – 1947, p. 75. 133 Ob. cit. p. 477, tradução livre: “Em qualquer caso, é evidente que a dificuldade maior que comporta a utilização da técnica do desvio de poder é a da prova da divergência de fins que constitui sua essência. Facilmente se compreende que esta prova não pode ser plena, já que não é presumível que o ato viciado confesse expressamente que o fim que o anima é outro distinto daquele assinalado pela norma.” 134 Ob. cit. p. 477, tradução livre: “Consciente dessa dificuldade, assim como a exigência de um excessivo rigor probatório privaria totalmente à virtualidade a técnica do desvio do poder, a jurisprudência costuma afirmar que para que se possa declarar a existência desse desvio ‘é suficiente a convicção moral que se forme no Tribunal’ (...), à vista dos atos concretos que em cada caso resultem provados, se bem que não bastam ‘as meras presunções nem suspeitas interpretações do ato de autoridade e da oculta intenção que o determina’.” 78 moral formada pelo Tribunal diante dos fatos concretos que em cada caso resultem provados. Acerca da questão relativa à prova, Raúl Bocanegra Sierra135 admite a sua obtenção de forma indireta, por meio de indícios racionais que possam despertar no juiz do contencioso a convicção de que o ato administrativo apresenta um desvio de finalidade. Ainda particularmente quanto ao aspecto probatório, Queiró136 defende que “nada mais há a fazer do que observar o ato no seu conteúdo e na sua motivação, e verificar se existe uma violação objetiva da norma que marca as finalidades da atividade administrativa, a demonstrar que “a autoridade não tomou a decisão determinada pelo fim que a lei teve em vista ao atribuir-lhe a competência”. Ainda se reportando a Queiró, em seu trabalho abordando o tema do “desvio de poder”, interessante consignar que o tratadista reconhece que “em teoria, seria mais lógica mesmo a doutrina segundo a qual essa vinculação ao objeto e ao fim legais – isto é, ao interesse público e ao fim público – se pode entender como própria de toda a atividade administrativa: todos os atos administrativos têm de ser praticados pela autoridade competente e sem motivos de moral administrativa reprováveis”. Isso ocorreria “não porque em todos eles haja uma margem de poder discricionário, mas porque todos os atos administrativos têm de completamente observar a lei e a moral administrativa – a primeira tal como os tribunais a interpretam, a segunda como os tribunais a definem”. 135 136 Ob. cit. p. 75. Ob. cit. p. 76. 79 O autor,137 ao tecer considerações sobre a existência de limitação à discricionariedade, pondera que diante de limites que sejam ao mesmo tempo discricionários e jurisdicionais, além dos próprios limites naturais, a realidade é que o poder discricionário termina, no que se refere às autoridades administrativas, aquém daquilo que seria natural, sendo que a discricionariedade que lhes é subtraída passa a ser exercida pela administração contenciosa. Assim, conclui ponderando que a discricionariedade “tem uma dimensão natural, que pode ser reduzida pelos vários sistemas positivos, mediante a criação de determinadas limitações: essas limitações são, materialmente, de natureza hierárquica-administrativa interna; formalmente, jurisdicionais” e que “um desse limites é uma das formas de desvio de poder, no sistema administrativo português”. Apesar de todas essas considerações, Enterria138 deixa registrado que mesmo na França observa-se um declínio na utilização dessa forma de controle, o que deve ser debitado não a uma perda de confiança na sua efetividade, mas sim ao surgimento de técnicas outras que se apresentam com maior poder de penetração. A segunda forma de controle da discricionariedade tem como referência os fatos determinantes para a prática do ato administrativo, e a respeito da matéria cabe lembrar o sempre oportuno ensinamento de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello,139 ao registrar que a atividade estatal está circunscrita a determinados limites jurídicos e que “esses limites dos poderes discricionários se encontram nos motivos determinantes do ato jurídico, e no fim com que é 137 Ob. cit. p. 80, grafia original: “Verdadeiramente deve-se dizer que onde começam os limites acaba o que é limitado: se há propriamente uma limitação ao mesmo tempo discricionária e jurisdicional do poder discricionário além dos seus limites naturais, então isso significa que o poder discricionário termina realmente para as autoridades administrativas ativas mais aquém do que poderia naturalmente terminar: êsse, porém, que lhes tiram, vai para a administração contenciosa; muda de titular.” 138 Ob. cit. p. 478. 139 Ob. cit. p. 473. 80 praticado, tendo em vista a preocupação do seu agente e a razão de ser do próprio instituto”. Prossegue o eminente tratadista afirmando que “por conseguinte, não se tolera motivo determinante estranho ao interesse coletivo e nem preocupação da autoridade pública em conflito com ele” e ainda que “por outro lado, não basta seja praticado o ato tendo em vista o interesse coletivo, outrossim, se impõe a consideração do interesse coletivo específico, objeto do instituto jurídico a que se refere o ato”. Por força disso, conclui Bandeira de Mello que “portanto, mesmo os atos administrativos praticados pela Administração Pública no exercício de seus poderes discricionários encontram os limites acima apontados”, pelo que “não podem transpô-los, sob pena de envolver exercício abusivo de direito”. A respeito dessa espécie de controle do exercício da discricionariedade, que tem como referência os fatos que determinaram a atuação da Administração Publica, Enterría140 assinala que toda outorga de competência discricionária fundamenta-se em uma realidade de fato que assume a condição de pressuposto necessário para o seu exercício. Esse pressuposto, ainda de acordo com o autor, deve encontrar correspondência com a realidade, cuja valoração poderá casualmente ser objeto de uma faculdade discricionária, ao passo que a sua ocorrência não pode ficar ao arbítrio de uma apreciação subjetiva da Administração Pública, pelo simples fato de que não existem milagres nessa área, cabendo apenas e tão somente verificar se algo veio ou não a acontecer. Isso porque, arremata o tratadista, a realidade é sempre única, não podendo ser ou não ser ao mesmo tempo ou ser simultaneamente de uma 140 Ob. cit. p. 478. 81 maneira e de outra, o que, por outras palavras, é corroborado por Celso Antônio Bandeira de Mello141, ao asseverar que “uma vez enunciados pelo agente os motivos em que se calçou, ainda quando a lei não haja expressamente imposto a obrigação de enunciá-los, o ato só será válido se estes realmente ocorreram e o justificavam”. Essa idéia aparentemente elementar, diz Enterría142, só veio a ser devidamente levada em consideração após a edição de lei que, contrariamente ao entendimento ate então dominante no direito francês, esclareceu que a jurisdição contenciosa administrativa é de natureza revisora quando requer a existência prévia de um ato administrativo, sem que isso venha a significar que seja impertinente a produção de provas, Em virtude dessa norma é que se passou a admitir a possibilidade de produção de prova quando existia desconformidade em relação aos fatos que seriam importantes a juízo do órgão jurisdicional para a solução do conflito posto à sua apreciação, passando a ser admitida, inclusive, a realização de diligências julgadas pertinentes pelo Tribunal, ainda que depois de concluída a fase probatória. Isso veio a viabilizar um controle pleno, segundo ainda Enterria143, da efetiva correspondência com a realidade dos fatos alegados pela Administração ao elaborar seus atos e, assim, verificar a correta utilização dos poderes discricionários por parte dos agentes públicos, que só podem exercitá-los quando se produzem concretamente as circunstâncias de fato previstas nas normas atributivas de ditas potestades. 141 Curso de Direito Administrativo, Malheiros, São Paulo, 16ª ed., 2003, p. 370. Ob. cit. p. 478/79. 143 Ob. cit. p. 479. 142 82 Após citar e comentar uma série de decisões judiciais a respeito do tema, o doutrinador144 procura encarecer a importância dessa forma de controle da discricionariedade, na medida em que aqueles pronunciamentos jurisdicionais vieram a consolidar entendimento que deixou no passado alguns posicionamentos que se contentavam, no que respeita à aferição da ocorrência dos fatos alegados pela Administração, com simples alegações por essa produzidas, baseadas em meros informes. Como conseqüência dessa nova postura jurisprudencial, foi definitivamente aclarado o equívoco que marcava anteriores decisões, restando evidente que tanto a existência quanto as características dos fatos que foram determinantes em relação à atuação da Administração Pública não se inserem no âmbito da discricionariedade, e o controle judicial se lhes aplica em qualquer caso, consoante expressa o autor.145 Mas não é apenas a isso que se presta o controle a respeito da exatidão ou da efetiva realidade dos fatos enquanto pressupostos necessários para a legitimidade do exercício do poder discricionário pois, como ensina Enterría,146 abriu-se também a possibilidade de verificar a qualificação jurídica emprestada aos mesmos pela Administração Pública. O autor,147 nessa passagem, estabelece relativamente à mencionada qualificação jurídica uma distinção que leva em conta, de um lado, quando a mesma é realizada com base em conceitos legais e, de outro, quando considera a qualificação efetuada em função da oportunidade e não da legalidade. No primeiro caso, entende o autor que se trata de um problema estrito de qualificação legal como, por exemplo, ao se concluir acerca da 144 Ob. cit. p. 480/81. Ob. cit. p. 481. 146 Ob. cit. p. 481/82. 147 Ob. cit. p. 482. 145 83 existência ou não de uma infração e qual seria esta em concreto, pelo que, nesse caso, não há que se falar em um poder discricionário para tanto concedido à Administração Publica. Já no segundo caso, reconhece o autor que há uma discricionariedade possível de ser exercida pelo agente público, resultante de uma remissão legal conferida pela norma para que ele exerça um juízo de apreciação acerca da oportunidade, por ocasião da prática do ato administrativo. Num terceiro momento, surgiu o controle exercido por meio dos princípios gerais do Direito, valendo ressaltar que em virtude do apurado e adequado tratamento doutrinário que lhes vem sendo conferido, o que também tem marcado a atuação de instâncias jurisdicionais, já vai sendo relegada ao esquecimento, ao menos naquilo que se refere aos domínios antes referidos, a errada compreensão que se atribuía àquela espécie normativa, por um tempo vista como um ideal que poderia ou não ser concretizado e, por isso mesmo, desprovida da necessária força obrigatória. Como relata Marino Pazzaglini Filho,148 “em passado recente, os princípios constitucionais eram tidos como meras normas programáticas, destituídas de imperatividade e aplicabilidade incontinenti”. Segundo o autor, “presentemente, os princípios constitucionais ostentam denso e superior valor jurídico, ou melhor, são normas jurídicas hegemônicas às demais regras do sistema jurídico, de eficácia imediata e plena imperatividade, vinculantes e coercitivas para os Poderes Públicos e para a Coletividade”. Nesse sentido, Cármen Lúcia Antunes Rocha149 ressalta que “a norma que dita um princípio constitucional não se põe à contemplação, como 148 Princípios Constitucionais reguladores da Administração Pública, Agentes Públicos, Discricionariedade Administrativa, Extensão da Atuação do Ministério Público e do Controle do Poder Judiciário, Atlas, São Paulo, 2007, p. 11. 149 Princípios Constitucionais da Administração Pública, Del Rey, Belo Horizonte, 1994, p. 23. 84 ocorreu em períodos superados do constitucionalismo, põe-se à observância do próprio Poder Público do Estado e de todos os que à sua ordem se submetem e da qual participam”. Continua pontuando que “sendo a Constituição uma lei, não se pode deixar de concluir que todos os preceitos que nela se incluem, expressa ou implicitamente, são leis, normas jurídicas postas à observância insuperável e incontornável da sociedade estatal”. É inegável a importância que deve ser atribuída aos princípios gerais do Direito, a partir da constatação de que o ordenamento jurídico é composto pelo gênero denominado norma e este, por sua vez, comporta a divisão em duas espécies: regras e princípios jurídicos. Observa Canotilho150, desenvolvendo abordagem a propósito da importância dos princípios, que os mesmos “podem desempenhar uma função argumentativa, permitindo, por exemplo, denotar a ratio legis de uma disposição (...) ou revelar normas que não são expressas por qualquer enunciado legislativo, possibilitando aos juristas, sobretudo aos juízes, o desenvolvimento, integração e complementação do direito”. Conforme amplo entendimento doutrinário, a não obediência a um princípio geral de Direito, seja expresso ou mesmo implicitamente dedutível do próprio ordenamento, vem a se revelar mais nociva que o não atendimento a uma regra de direito, na medida em que, dado o seu caráter nuclear, a ofensa a um certo princípio acaba por se refletir em desatendimento a um conjunto de regras. Em vista disso é possível perceber a extraordinária importância que assume a questão relativa aos princípios gerais do Direito, quando estes são 150 Direito Constitucional, Almedina, Coimbra, 1995, 6ª ed., p. 167. 85 utilizados como meio de aferir a correção no exercício do poder discricionário por parte da Administração Pública. É incontroverso o fato de que a lei, nos casos em que outorga à Administração Pública a possibilidade de exercer certa medida de apreciação subjetiva, não lhe atribui a faculdade de se colocar à margem do ordenamento jurídico, sendo assim forçoso concluir que a sua atuação continuará a ser obrigatoriamente orientada pelas normas jurídicas, especialmente pelos princípios gerais do Direito. Sobre o assunto, é oportuna, mais uma vez, a lição de Enterría,151 quando, ao tratar do controle da discricionariedade por meio dos princípios gerais do Direito, pontifica que a norma que outorgou à Administração tal poder de agir não derrogou para a mesma a totalidade da ordem jurídica, a qual, com seu componente essencial, continua vinculando a Administração. Ampliando o discurso sobre a importância de que se revestem os princípios gerais do Direito, Enterría152 acentua que os mesmos oferecem vários outros critérios que devem ser levados em conta no momento de se examinar, em sede judicial, a legitimidade do exercício da discricionariedade pela Administração Pública. Explicitando a assertiva feita, o tratadista153 considera que os princípios gerais não são de modo algum uma abstrata e indeterminada invocação de justiça ou da consciência moral ou mesmo da discricionariedade do julgador, mas sim uma expressão da justiça material tecnicamente estabelecida para a solução de problemas jurídicos concretos. 151 Ob. cit. p. 482. Ob. cit. p. 482. 153 Ob. cit. p. 483. 152 86 Deixa claro que os princípios gerais de Direito são efetivamente normas jurídicas que podem e devem ser concretamente consideradas na solução de conflitos jurídicos, não se tratando de meros ideais de justiça cuja aplicação restaria colocada ao sabor dos aplicadores do direito, seja em sede administrativa, seja em sede judicial. Complementa o doutrinador154, deixando assentado que o controle da discricionariedade, por via da utilização dos princípios gerais do Direito, não pode se reduzir a uma forma de substituição do critério da Administração pelo do juiz, posto que isso viria apenas a deslocar o problema para uma discricionariedade judicial em lugar da administrativa. Assevera ainda que se trata, na realidade, da necessidade de aprofundamento no tocante à decisão judicial, de modo a se encontrar uma explicação objetiva que venha a expressar um princípio geral.155 Atendo-se especificamente a alguns dos princípios, interessante anotar que o autor chama a atenção para o princípio da boa-fé, alertando que o mesmo há de inspirar não só os atos da administração como também os dos administrados. Referindo-se particularmente ao princípio da igualdade, recorda que as intervenções da Administração Pública devem ser efetuadas da maneira menos restritiva possível em relação à liberdade individual, em respeito à expressa proibição constitucional de qualquer ação arbitrária por parte da Administração Pública. A respeito da utilização dos princípios como ferramenta jurídica destinada a frear a discricionariedade ou mesmo de promover a sua 154 155 Ob. cit. p. 483. Ob. cit. p. 483. 87 sindicabilidade, Maria Sylvia Zanella di Pietro156 anota que “muitas teorias e princípios de origem pretoriana foram incorporados pela doutrina do direito administrativo estrangeiro e, por intermédio deste, ao direito brasileiro, e, consagrados, em grande parte, pelo direito positivo, inclusive, agora, pela Constituição”. Após deixar assentado que atualmente o controle judicial alarga-se por via do acolhimento de vários princípios de origem pretoriana, aquela autora tece algumas considerações a propósito da importância e do entendimento a serem conferidos a princípios espeficamente endereçados à atividade administrativa, como os da razoabilidade, proporcionalidade e da moralidade, e, ainda, encarece a importância dos princípios gerais do direito, que vêm a constituir, também, barreiras ao exercício da discricionariedade administrativa. Dentre esses últimos, a doutrinadora referida arrola o princípio do devido processo legal, o da proibição ao enriquecimento sem causa, o da igualdade dos administrados perante os serviços públicos, o da continuidade dos serviços públicos e, ainda, o da mutabilidade dos contratos, todos consagradores de valores permanentes, imutáveis, universais e que, segundo aquela autora, transcendem o próprio direito positivo e, por isso mesmo, apresentam-se como limitadores da atividade discricionária. Finaliza afirmando que “todos esses princípios foram acolhidos implícita ou explicitamente na Constituição de 1988” e que “eles limitam a discricionariedade administrativa, norteiam a tarefa do legislador e ampliam a ação do Poder Judiciário, que não poderá cingir-se ao exame puramente formal da lei e do ato administrativo, pois terá que confrontá-los com os valores consagrados como dogmas na Constituição”. 156 Ob. cit. p. 233/234. 88 Acerca dessa discussão, cabe pontuar que a caracterização dos princípios gerais do direito como marcos limitadores do exercício de competência discricionária vem sendo reconhecida de maneira uniforme pela doutrina, inclusive em sede de direito comparado. Nessa direção é o ensinamento de Javier Barnes Vasques157 que, ao empreender considerações a respeito dos atributos dos princípios gerais de direito, aponta os três atributos básicos, comuns a qualquer princípios, como previstos no Código Civil: i) ser um fundamento do ordenamento jurídico, guia do legislador e medida da justiça; ii) ser norma orientadora da função interpretativa e, iiii) constituir um elemento de integração das lacunas da lei. Em continuação, afirma o mestre espanhol que existe ainda uma quarta função que deve ser atribuída aos princípios gerais, que é a constituir limites ao poder discricionário e regulamentar, como reconhecido em recentes decisões judiciais, restando assim reforçado o seu papel de partes autônomas do ordenamento jurídico e não de simples elementos interpretativos do direito posto. A propósito dessa questão, Caio Tácito158 observa que “o fortalecimento do poder discricionário – do qual o poder de polícia é uma das manifestações mais atuantes – colocou em destaque a necessidade de aperfeiçoamento do controle de legalidade de modo a conter, oportunamente, os excessos ou violências da Administração Pública”. Pondera aquele mestre que “certamente, a via tradicional de garantia, no sistema de freios e contrapesos, incumbe, por excelência, ao poder judiciário, guardião da legalidade e protetor dos direitos e liberdades. Na medida em que se amplia, como assinalado, o poder maior do Estado, constróem-se meios mais eficazes para a prática do controle judicial”. 157 158 El procedimiento Administrativo en el Derecho Comparado, Editora Civitas, p.94. Revista de Direito Administrativo, nº 227, Rio de Janeiro, jan/mar 2002. 89 V – PROCESSOS ADMINISTRATIVOS SANCIONATÓRIOS 1. Poder de polícia do Banco Central do Brasil Ao Banco Central do Brasil, por força da competência que lhe conferem as Leis 4.595/64 e a 4.728/65, cabe a supervisão sobre as operações realizadas no âmbito do sistema financeiro nacional, mais especificamente aquelas pertinentes ao mercado financeiro e, verificando infração ao disposto naquelas leis ou em normas infralegais com base nelas editadas, poderá instaurar processos administrativos sancionatórios contra os infratores com vistas à imposição das penalidades cabíveis. A Lei 4.595/64, que criou o Banco Central do Brasil e estruturou, sob o ponto de vista legal, o sistema financeiro nacional, em seu próprio texto tipifica alguns ilícitos de natureza administrativa, bem como estabelece a competência tanto do Conselho Monetário Nacional, órgão de cúpula daquele sistema, quanto do Banco Central do Brasil, autarquia que, basicamente, está incumbida de zelar pela execução e fiel cumprimento das decisões do referido conselho. Dessa forma, tanto o órgão referido quanto a entidade mencionada têm competências normativas infralegais definidas em lei e que são exercidas, no âmbito do Conselho Monetário Nacional, por meio da edição de resoluções e, na esfera do Banco Central do Brasil, por meio de circulares e outras normas daquela espécie. Da mesma forma, cabe acrescentar que a Lei 4.728/65, a qual veio a promover a reforma do sistema bancário, também traz importantes disposições acerca dos mercados financeiro de capitais que, àquela época subordinavam-se ao poder de polícia do Banco Central do Brasil, o que veio a ser modificado com a criação da Comissão de Valores Mobiliários, autarquia a quem cabe, a partir da 90 edição da Lei 6.385/76, a supervisão do mercado de capitais, remanescendo no âmbito do Banco Central do Brasil a supervisão do mercado financeiro. Posto isso, vale recordar que as instituições financeiras e demais sociedades autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil sujeitam-se ao seu poder de polícia, desde o seu nascimento até a sua extinção, pelo que se submetem a uma séria de regras que visam, principalmente, resguardar a estabilidade e solidez do sistema e garantir os interesses dos depositantes, investidores e demais participantes. Assim, as instituições que pretendam ingressar no sistema carecem da devida e prévia autorização, mediante o cumprimento de requisitos de caráter patrimonial, e, quanto aos seus diretores, exige-se o preenchimento de qualidades de natureza técnica, além de experiência e ilibada reputação. Uma vez integrando o sistema, as instituições ficam adstritas à regular fiscalização, por parte do Banco Central do Brasil, no tempo e modo que este julgar convenientes, disponibilizando-lhe toda a documentação para tanto necessária, e, diante da eventual verificação de ilícito administrativo, poderá aquela autarquia instaurar o correspondente processo administrativo sancionatório, como já referido. A título de ilustração, vale citar como exemplo de ilícito administrativo a concessão, por instituições financeiras, de empréstimos ou adiantamentos a pessoas físicas ou jurídicas com as quais estejam impedidas de operar, tais como empresas ligadas ou diretores e seus parentes até um certo grau, consoante norma que pretende evitar qualquer promiscuidade operacional que possa vir a comprometer o patrimônio da instituição. Ainda com o mesmo objetivo, as operações de crédito deferidas por aquelas instituições sujeitam-se, consoante regulamentarmente exigido, a 91 determinados limites e critérios de segurança, liquidez e diversificação de riscos, os quais, se não atendidos, poderão vir também a caracterizar ilícitos administrativos. De igual maneira, virão a configurar ilícitos administrativos as situações em que as instituições apresentarem capital ou patrimônio líquido abaixo dos limites regulamentarmente estabelecidos, o mesmo sucedendo no caso de comportamentos ou condutas de seus administradores que resultem em prejuízos decorrentes de má administração. Também são dignos de menção os ilícitos administrativos de natureza cambial, tais como a prestação de informação falsa em contratos de câmbio ou mesmo a classificação incorreta das operações da espécie, os quais podem ensejar a aplicação de penalidades pecuniárias de considerável magnitude, posto que referenciadas aos próprios valores das operações, as quais, via de regra, apresentam expressivo montante. Dada a importância de que se revestem, em virtude do alto grau de reprovabilidade e de seus nefastos reflexos sobre o sistema, inclusive sobre o aspecto da credibilidade, cabe especial menção aos ilícitos administrativos que tenham origem no não atendimento das normas sobre o combate e a prevenção aos crimes de lavagem de dinheiro, tipificados na Lei nº. 9.613/98. Com fundamento na referida lei foram editados normativos infralegais impondo às instituições financeiras a criação de uma série de controles e regras, inclusive de natureza cadastral, cujo objetivo é a detecção de eventuais operações suspeitas realizadas por seus clientes. Nesse sentido, as instituições devem dedicar atenção à movimentação de recursos incompatíveis com o patrimônio ou atividade financeira de seus clientes, sendo que as próprias regras estabelecidas enumeram situações 92 que, exemplificativamente, demandam uma atuação preventiva por parte de seus destinatários. Assim é que, quando verificados comportamentos suspeitos, as instituições financeiras devem efetuar a devida comunicação ao Banco Central do Brasil, nos temos da Circular BCB 2.852/98, e, ainda, ao Conselho de Atividades Financeiras – COAF. Uma vez não procedendo dessa forma, ficarão sujeitas a processos administrativos sancionatórios, sendo ainda os fatos comunicados ao Ministério Público Federal, para as providências de sua alçada, tendo em vista a eventual ocorrência de crimes tipificados principalmente na Lei 7.492/86, que define os crimes contra o sistema financeiro. Os processos administrativos sancionatórios, instaurados em virtude da provável prática de ilícitos administrativos de qualquer natureza, têm origem, via de regra, em relatórios produzidos pela área de supervisão bancária do Banco Central do Brasil que, concluindo naquele sentido, apresentará proposta formal de instauração de processo, da qual constará, dentre outros elementos, o relato circunstanciado da conduta supostamente ilícita, indicação da norma infringida, prova material dos fatos e o nome das pessoas que entende serem as responsáveis. A proposta antes referida é dirigida a um colegiado institucionalizado no âmbito interno do próprio Banco Central do Brasil que a examinará e, decidindo pela procedência, encaminhará os autos ao setor competente para providenciar a formulação de acusação aos responsáveis, cientificando-lhes da conduta supostamente ilícita e de seu enquadramento legal, concedendo-lhes prazo de 30 (dias), a partir do recebimento da intimação, para oferecimento de defesa. Apresentada ou não a defesa por parte dos interessados, o departamento específico do Banco Central do Brasil, o qual trata exclusivamente de processos administrativos instaurados, decidirá, em primeira instância 93 administrativa, e mediante manifestação de outro órgão colegiado interno, pela procedência ou não da acusação efetuada, sugerindo o arquivamento do processo (absolvição) ou a imposição da penalidade prevista em lei. Assim, nessas situações, o Banco Central do Brasil, no desempenho de suas atribuições de fiscalização, vislumbrando a presença de hipotéticos ilícitos administrativos, decide pela instauração de processos administrativos sancionatórios, formulando acusação aos supostos infratores, os quais terão a oportunidade de exercer o contraditório, ainda em sede administrativa, seguindose decisão a respeito. No aspecto procedimental, o regramento próprio dessa atividade é estabelecido pela Resolução 1.065/85 e normas posteriores. Os processos da espécie, sujeitos ao duplo grau de jurisdição em sede administrativa, em relação aos quais venham a ser julgadas procedentes as acusações formuladas, encerrar-se-ão com imposição de restrições de direitos que podem flutuar desde uma simples advertência até à inabilitação de administradores para o exercício de cargo de direção em empresas submetidas à fiscalização do Banco Central do Brasil, por período de tempo variável em função da gravidade de que venham a se revestir os ilícitos perpetrados. As penalidades de que se trata estão devidamente enumeradas, quando for o caso, no artigo 44 da Lei 4.595/64, o qual também estabelece o âmbito de aplicação de cada uma daquelas restrições de direito, ao passo que a Resolução 3.192/04, naquilo que diz respeito à penalidade de multa, define as hipóteses de sua incidência, considerado o valor máximo de R$ 250.000,00 (duzentos e cinqüenta mil reais). Em virtude de sua própria natureza, as penalidades por ilícitos cambiais estão devidamente explicitadas, dentre outras, na Lei 4.131/62, que disciplina o capital estrangeiro no país, bem como em normas infralegais sobre os 94 diferentes mercados de câmbio, as quais estão consolidadas no RMCCI (Regulamento do Mercado de Câmbio e Capitais Internacionais). De seu turno, a já referida Lei 9.613/98 (ocultação de bens e lavagem de dinheiro), também enumera penalidades de natureza administrativa a serem impostas, caso verificados ilícitos daquela ordem. Da decisão proferida, seja ela qual for, caberá recurso, no prazo de 15 (quinze), ao Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, seja o recurso de ofício, quando resultante da decisão do Banco Central do Brasil que absolveu o acusado, seja o voluntário, em razão da insatisfação dos penalizados com a decisão proferida. O Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional é órgão que têm como atribuição, dentre outras, o reexame, em segunda instância administrativa, das decisões prolatadas pelo Banco Central do Brasil e é composto, de forma paritária, por 8 (oito) conselheiros, sendo 4 (quatro) deles representantes da Administração Pública Federal e os outros 4 (quatro) representantes de entidades da iniciativa privada relacionadas a matérias pertinentes aos mercados financeiro e de capitais. Uma vez recebidos os recursos por aquele colegiado, os quais terão efeito suspensivo em relação à decisão de primeira instância, ocorrerá, em sessão pública, o sorteio, dentre os 8 (oito) conselheiros, de um relator e de um revisor, sendo os recursos distribuídos a um dos representantes da Procuradoria da Fazenda Nacional que atuam junto ao órgão, o qual emitirá parecer formal a respeito das razões apresentadas pelos recorrentes e opinará sobre o acolhimento ou não das mesmas. Incluídos os recursos na pauta do Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, será a mesma publicada no Diário Oficial da União, onde 95 constará a data, o local e horário da sessão pública de julgamento, ocasião em que os recorrentes, através de seus advogados ou pessoalmente, depois de lido o relatório do caso, poderão efetuar a pertinente sustentação oral e, em seguida, ocorrerá a manifestação do representante da Procuradoria da Fazenda Nacional, seguindo-se a fase de debates e, finalmente, a votação e decisão do colegiado. Somente terão direito a voto os 8 (oito) conselheiros antes referidos, sendo que, no caso de empate, o Conselheiro-Presidente, que sempre será o representante do Ministério da Fazenda, terá voto qualificado e a decisão tomada torna-se definitiva na instância administrativa, não restando mais possibilidade de discussão da matéria nesse âmbito. No entanto, considerando que o nosso ordenamento jurídico adotou o sistema de jurisdição única, cabendo somente ao Poder Judiciário decidir conflitos de interesses de forma definitiva, a questão controvertida sempre poderá ser levada à discussão e decisão naquela instância. Em outro segmento igualmente próprio do seu poder de polícia, também é o Banco Central do Brasil que, a seu critério e de forma devidamente motivada, determina a medida aplicável ou mesmo a saída do sistema de instituições que, a qualquer momento, nos termos das leis de regência, revelaremse não mais serem portadoras de condições de permanecer nele atuando, como vinham fazendo, seja por insuficiência patrimonial ou mesmo em virtude de reiterados descumprimentos das normas que se lhes aplicam. Nesses casos, por força do peculiar regime jurídico que lhes é pertinente, as instituições poderão ser submetidas aos regimes de intervenção, de liquidação extrajudicial ou de administração especial temporária, em qualquer dos casos decretado pelo Banco Central do Brasil e sujeito à administração por pessoas pelo mesmo nomeadas. 96 Uma vez decretada a intervenção ou a liquidação extrajudicial de instituição submetida ao poder de polícia do Banco Central do Brasil, como efeitos decorrentes do próprio ato de liquidação, a instituição deixa de operar no mercado em que atuava e seus administradores, cujos bens são tornados indisponíveis, são afastados e substituídos por aqueles nomeados pelo órgão regulador. Diversamente, quando da decretação do Regime de Administração Especial Temporária (RAET), a instituição continua operando no mercado de forma regular, mas também os seus administradores terão seus bens tornados indisponíveis e serão destituídos de seus cargos, sendo nomeado pelo Banco Central do Brasil um Conselho Diretor que passará a responder pela administração da empresa. Em qualquer dos casos acima alinhados, a decretação do regime implicará na nomeação de uma Comissão de Inquérito, cujo objetivo será a apresentação, no prazo legalmente assinalado, de relatório no qual deverão ser apontadas as causas que levaram a instituição àquela situação, o montante dos prejuízos causados, se for o caso, e informado o nome dos administradores que exerceram cargos na instituição nos últimos 5 (cinco) anos. O trabalho produzido, caso sejam realmente constatados prejuízos, será encaminhado ao Poder Judiciário, precedido de vistas do Ministério Público Estadual, a fim de subsidiar a devida Ação de Responsabilidade Civil, tendo como sujeitos passivos aqueles ex-administradores, cujos patrimônios responderão pelos prejuízos causados que excederem os recursos próprios da instituição submetida ao regime especial. Tais regimes excepcionais são disciplinados, no caso dos dois primeiros, pela Lei 6.024/74 e, no caso do último dos acima mencionados, qual seja, o Regime de Administração Especial Temporária (RAET), pelo Decreto-Lei 2.321/87. 97 2. Poder de polícia da Comissão de Valores Mobiliários A Comissão de Valores Mobiliários, autarquia em regime especial, também é entidade integrante do Sistema Monetário Nacional, cabendo-lhe fazer cumprir as decisões do Conselho Monetário Nacional, no seu âmbito próprio de atuação, qual seja, o mercado de capitais. Assim é que a Comissão de Valores Mobiliários, criada pela Lei 6.385/76, foi investida nas competências que lhe são remetidas pelo artigo 4º daquela norma e que se resumem, relativamente aos valores mobiliários assim definidos no referido diploma, a zelar pela regularidade das operações desenvolvidas no recinto da BM&FBOVESPA, de modo a assegurar e zelar pelos interesses dos investidores nos diversos segmentos operacionais disponíveis e que se encontram sob sua tutela. Também lhe cabe agir no sentido de verificar o fiel cumprimento, pelas sociedades de capital aberto e de seus administradores, do regime jurídico que lhes é pertinente, conforme estabelecido pela Lei 6.404/76 e legislação complementar posterior. A autarquia é dotada, nos termos de sua lei criadora, de poder normativo infralegal, marcado pela edição, principalmente, de instruções e deliberações que têm como destinatárias as sociedades de capital aberto, bem como os seus administradores e demais participantes do mercado de valores mobiliários, tais como corretoras de valores e investidores. O eventual descumprimento das normas de sua esfera de competência, apurado em virtude de denúncias recebidas ou mesmo em razão do seu regular exercício de fiscalização, poderá resultar na instauração de processos administrativos de natureza sancionatória. 98 O descumprimento de normas proibitivas de operações que venham a caracterizar, no segmento do mercado de valores mobiliários, manipulação de preços, práticas não eqüitativas, criação de condições artificiais de demanda, oferta ou preço de valores mobiliários ou, ainda, a realização de operações fraudulentas, virão a configurar ilícitos administrativos próprios da área de atuação da Comissão de Valores Mobiliários. Igualmente caracterizam ilícitos daquela espécie o uso de informação privilegiada, causando assimetria de conhecimento entre os participantes de mercado, bem como a não publicação de fato relevante por parte de empresas que têm ações negociadas em bolsa e que possa, de alguma, forma, influenciar na cotação das ações e nas decisões de compra e venda daqueles valores mobiliários. Ainda exemplificativamente, também são ilícitos de natureza administrativa o exercício abusivo do poder de controle, bem como a falta do dever de diligência por parte de administradores de sociedades de capital aberto. Também no âmbito de atuação da Comissão de Valores Mobiliários, avultam em importância os ilícitos administrativos por desobediência ás regras de prevenção e combate aos crimes de lavagem de dinheiro, tipificados na Lei nº. 9.613/98. A esse respeito, foi editada a Instrução CVM Nº 301, de 16 de abril de 1999, a qual dispõe sobre a identificação, o cadastro, o registro, as operações, a comunicação, os limites e a responsabilidade administrativa de que tratam os incisos I e II, do artigo 10, I e II, do art. 11, e os artigos 12 e 13, da Lei 9.613/98, referente aos crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores. O referido normativo tem como destinatárias, dentre outras, as sociedades corretoras de valores mobiliários, as quais se sujeitam às obrigações 99 nele impostas que, se descumpridas, darão ensejo à propositura de instauração de processos administrativos sancionatórios. Quanto verificados ilícitos administrativos em virtude de infração a dispositivos de sua área de competência e, diante de situações em que se apresentem claros os elementos de autoria e materialidade, a Comissão de Valores Mobiliários poderá, de pronto, instaurar o processo administrativo e formular a acusação que entende cabível, mediante a lavratura do denominado Termo de Acusação. Não se fazendo presentes ditos elementos e, portanto, demandando a realização de necessária apuração e conseqüente instrução probatória, a Comissão de Valores Mobiliários nomeará, formalmente, Comissão de Inquérito que procederá às investigações cabíveis, efetuando os exames devidos e ouvindo as pessoas que possam contribuir para a elucidação dos fatos, sendo que nessa fase o inquérito será sigiloso. Concluído o relatório pela Comissão de Inquérito encarregada da apuração dos fatos, será apresentará proposta no sentido de instaurar ou não o processo administrativo, a qual será submetida ao colegiado da Comissão de Valores Mobiliários, que decidirá a respeito. Decidindo pela instauração do processo administrativo sancionatório, os intimados serão responsabilizados e chamados a apresentar suas defesas no prazo legalmente marcado, sendo-lhes então franqueado o acesso aos autos, garantindo-se o exercício do contraditório e da ampla defesa. Cumpre assinalar que, contemporaneamente á apresentação de suas razões de defesa, o acusado poderá requerer a apresentação de Termo de Compromisso, conforme facultado pelo § 5º, do inciso VIII, do artigo 11, da Lei 6.385/76. 100 Trata-se de acordo firmado entre as partes, de um lado, a Comissão de Valores Mobiliários e, de outro, o acusado, que equivale à transação, instituto de uso corrente em sede de direito civil, que provoca a suspensão do processo, mediante o compromisso de cumprimento de certas condições previstas na lei e que pode ser discricionariamente aceito ou não pelo órgão regulador de mercado. A celebração desse Termo de Compromisso não implica confissão de culpa nem reconhecimento da ilicitude da conduta objeto do processo administrativo e, via de regra, traduz-se em indenização paga à Comissão de Valores Mobiliários pelos custos pertinentes ao processo ou, quando for o caso, em reparação paga àqueles participantes do mercado que eventualmente tenham sido prejudicados pelo comportamento recriminado. Uma vez satisfeitas as obrigações assumidas, o processo será encerrado sem julgamento e, se não cumpridas as condições avençadas, a Comissão de Valores Mobiliários dará prosseguimento ao processo, na forma da regulamentação aplicável. Não ocorrendo a celebração de Termo de Compromisso, em ambas as espécies de processos administrativos, seja no caso de Termo de Acusação ou de processo administrativo sancionador (PAS), analisadas as defesas apresentadas, será marcada sessão pública de julgamento, na qual, ouvidos os acusados, pessoalmente ou através de seus representantes, o Colegiado proferirá sua decisão. Vale registrar que o procedimento a ser observado nestes processos administrativos é disciplinado, atualmente, pela Deliberação CVM Nº 538, de 05 de março de 2008. 101 Decidindo a Comissão de Valores Mobiliários pela procedência da acusação formulada, poderá impor sanções, na conformidade do previsto no artigo 11, da Lei 6.385/76, as quais podem variar desde uma simples advertência até a suspensão para o exercício de cargos em instituições do sistema, ou inabilitação para o exercício dos mesmos cargos, pelo prazo máximo de até 20 (vinte) anos, ou proibição de atuar ou praticar modalidades de operações ou atividades ou, ainda, cassação da autorização ou registro previsto na lei de regência. As penalidades de multa, a seu turno, observarão o valor máximo de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) ou, quando for o caso, 50% da operação irregular ou, ainda, 3 (três) vezes o montante da vantagem econômica obtida ou da perda evitada em decorrência do ilícito. Seja qual for a decisão proferida pelo colegiado da Comissão de Valores Mobiliários, o processo, a exemplo do que ocorre naqueles outros processos administrativos conduzidos pelo Banco Central do Brasil, poderá ser objeto de recurso ao Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional. Se absolvido o acusado, terá lugar o devido recurso de ofício, posto que determina a lei o necessário reexame pela instância administrativa ad quem, qual seja, o mesmo Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, conforme já referido em passagem anterior e, se condenado o administrado, poderá o mesmo interpor recurso voluntário junto àquele colegiado. Oportuno mencionar, por um lado, que o recurso de ofício poderá, como ordinariamente ocorre nos casos da espécie, ser provido pelo Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional que, reformando a decisão a quo, poderá decidir pela condenação e conseqüente imposição de penalidade. Também é importante salientar, por outro lado, que não obstante até o momento não se tenha registro, no caso de recurso voluntário, de nenhuma 102 decisão que redunde em reformatio in pejus, como é ordinário em sede de direito punitivo, o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, ainda que em tese, já se manifestou pela possibilidade jurídica de decisão naquele sentido. Ainda a propósito do conteúdo normativo incidente sobre os processos administrativos punitivos, sejam os próprios do Banco Central do Brasil ou mesmo os específicos da Comissão de Valores Mobiliários, vale informar que Lei 9.784/99, a qual veio a regular o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, é aplicável ás relações formadas em virtude daqueles processos e têm se prestado a importante função tanto no sentido de conferir a devida proteção aos direitos dos administrados, quanto na direção de orientar a Administração Publica no cumprimento de suas finalidades. A Lei 9.784/99, cujo objeto são aos processos administrativos genericamente considerados, dos quais aqueles de natureza sancionatória se constituem em uma de suas espécies, incorporou ao regime jurídicoadministrativo, uma série de princípios aplicáveis àquelas relações, deixando expressamente marcadas, em seu texto, disposições acerca dos direitos dos administrados e dos deveres da Administração Pública. Além disso, tratou também da parte eminentemente processual e procedimental, divulgando normas sobre competência, forma, lugar e prova dos atos processuais, bem como regras relativas à instrução dos processos da espécie. Assim, muito embora aquela lei estabeleça em suas disposições finais o seu caráter subsidiário, posto que, conforme determina, os processos administrativos específicos continuarão regulados por leis próprias, é considerável o seu campo de incidência, em razão da vacuidade, em muitos casos, daquelas normas particulares. 103 Também deve ser mencionado que àqueles processos administrativos cursados no âmbito daquelas duas autarquias já tantas vezes referidas, aplicam-se princípios originados do Direito Penal, tendo em vista a proximidade deste com o Direito Administrativo Punitivo, haja vista a natureza sancionatória de ambas as matérias. Nessa linha, há uniforme entendimento doutrinário acerca da submissão dos processos administrativos sancionatórios a pelo menos alguns dos princípios próprios do Direito Penal, cabendo destacar os relativos à presunção de inocência, ao in dubio pro reo e à non reformatio in pejus, dentre outros, 104 3. Apontamentos sobre a ausência de sintonia entre teoria e prática a - quanto à realização do interesse público Além das anteriores considerações sobre o interesse público como vetor máximo que deve orientar o exercício da função administrativa, compreendidas as atividades próprias do denominado poder de polícia, é oportuno realçar, nos termos em que preconizado por Silvânio Covas e Adriana Laporta Cardinali, que “sem dúvida, a finalidade última de qualquer ato administrativo deve ser o interesse público, aquilo que é almejado pela coletividade, e não o interesse do agente público”. Aqueles autores se manifestam no sentido de que “o princípio da finalidade preleciona que o agir da Administração Pública deva atender à finalidade da lei em sentido formal, em seu caráter genérico e abstrato. Toda lei visa a um determinado fim público, cuja identificação exsurge de cada caso (...)”. Complementam afirmando que “a satisfação do interesse público é a verdadeira finalidade do ordenamento jurídico brasileiro. Em atenção a esse postulado, extrai-se que a Lei nº 9.784/99, em seu artigo 2º, parágrafo único, inciso XIII, objetiva a observância, nos processos administrativos, do princípio da finalidade, ao exigir a “interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige. Também o inciso II desse artigo exige o atendimento a fins de interesse geral”. As alegações nesse sentido refletem a mudança de postura ocorrida ao longo do processo histórico de formação e de sedimentação do próprio direito administrativo, na medida em que o seu estudo que, em tempos outros centravase na idéia de poder, teve o seu eixo de pensamento deslocado para a noção de dever, sempre voltado para a realização do interesse público ou, por outra, 105 concentrado no exato cumprimento de uma finalidade prévia e normativamente estabelecida.159 No caso do Banco Central do Brasil, a finalidade que deve nortear o exercício de suas atribuições é a própria higidez das instituições submetidas à sua supervisão, de modo a propiciar a estabilidade e a solidez do sistema sob sua égide, como referido na Resolução CMN 1.065/85, buscando preservar os interesses de depositantes e investidores o que, de resto e de forma ampliada, representa o próprio interesse público, considerada a importância que assumem as instituições financeiras no contexto econômico. Assim, o Banco Central do Brasil, no exercício do poder de polícia, consoante competência outorgada pela Lei 4.595/64, caso verificados os pressupostos indicados na Lei 6.024/74 e no Decreto-Lei 2.321/87, pode vir a decretar, relativamente às instituições sob sua supervisão, os regimes de intervenção ou de liquidação extrajudicial, disciplinados naquele primeiro normativo ou, se entender mais conveniente e oportuno, submetê-las ao regime de administração especial temporária, previsto no último dos normativos acima referidos. A sujeição de uma instituição a qualquer dos regimes excepcionais referidos provoca, como conseqüências do próprio ato administrativo que decretou a medida, a perda, pelos administradores, do cargo que até então ocupavam e a indisponibilidade de seus bens e, no que concerne à própria instituição, no caso de intervenção ou de liquidação extrajudicial, o seu afastamento do segmento em 159 Adilson Abreu Dallari, Os poderes administrativos e as relações jurídico-administrativas, Revista Trimestral de Direito Público, 24/1998, Malheiros, São Paulo, p. 64: “Note-se a radical mudança de rumo: relações jurídicas sempre até então estudadas a partir da idéia de poder, passam a ser examinadas em função de um dever a cumprir, de uma finalidade que deve ser atingida. Essa finalidade sempre será alguma coisa previamente qualificada pela lei como sendo um interesse público. O estudo da história do Direito Administrativo é o exame do caminho percorrido desde uma concepção centrada no poder até o ponto de equilíbrio entre prerrogativas e sujeições, entre os poderes e os meios e instrumentos de sua contenção, mas, sempre, tendo como norte a satisfação do interesse público.” 106 que atuava, o que certamente, por via reflexa, vem também atingir aqueles primeiros. Tais situações extraordinárias e as suas apontadas conseqüências, aliadas a outras previstas nos mesmos normativos já aludidos, dada à extrema gravidade de que se revestem, particularmente pelo fato de aquelas empresas e pessoas atuarem em segmentos em que a credibilidade é indissociável, certamente representam a forma mais radical de atuação no exercício do poder de polícia próprio do Banco Central do Brasil, objetivando restabelecer a normalidade daqueles mercados e preservar o interesse público subjacente àquele nicho da economia. As restrições de direito antes referidas, sejam em relação à empresa, sejam em relação aos administradores, concretizadas por ocasião da decretação de regime especial, têm origem ex lege, caracterizando-se, assim, como efeitos legais que decorrem diretamente das próprias normas disciplinadoras daqueles institutos. O mesmo Banco Central do Brasil, no exercício ainda do seu poder de polícia sobre as mesmas instituições sujeitas à sua supervisão, em outras situações, de caráter ordinário, e ainda no desempenho das mesmas atribuições de fiscalização, pode vislumbrar a presença de hipotéticos ilícitos administrativos, em relação aos quais não constate gravidade suficiente para se erigir em um dos pressupostos necessários para a adoção de qualquer das medidas extremas já anteriormente suscitadas. Nesses casos, poderá decidir, como aventado em momento anterior, pela instauração de processos administrativos sancionatórios, formulando acusação aos supostos infratores, os quais terão a oportunidade de exercer o contraditório, ainda em sede administrativa. 107 Nos procedimentos dessa espécie, sujeitos ao duplo grau de jurisdição em sede administrativa, caso julgadas procedentes as acusações formuladas, poderá o órgão regulador de mercado, consoante já explicitado, impor restrições de direitos de outra espécie, as quais podem flutuar desde uma simples advertência até à inabilitação de administradores para o exercício de cargo de direção em empresas submetidas à fiscalização do Banco Central do Brasil, por período de tempo variável em função da gravidade ínsita aos ilícitos praticados. No entanto, ocorre ainda e, de maneira até compulsória, casos de sobreposição das duas formas de atuação anteriormente aludidas, na medida em que empresas primeiramente submetidas àqueles regimes especiais e que tiveram, assim como seus administradores, suas esferas de direitos e de liberdades severamente afetadas e restringidas, virem a ser também acusados, em processos administrativos sancionatórios instaurados pelo mesmo Banco Central do Brasil, em momento seguinte e em virtude dos mesmos fatos que determinaram aquela forma radical de intervenção. Tais processos administrativos sanconatórios, nos quais aquelas pessoas são acusadas, invariavelmente são concluídos com a imposição de uma daquelas outras restrições de direitos acima indicadas, variando, como referido, desde uma advertência até à inabilitação para o exercício de cargos de direção em instituições submetidas ao poder de polícia do Banco Central do Brasil. Essa dupla ou superposta atuação ocorre, em virtude de, como efeito legal do regime especial então decretado, o Banco Central do Brasil proceder a inquérito, conforme determina o artigo 41, da Lei 6024/74, designando a respectiva Comissão de Inquérito, que deverá, nos termos da lei, apurar as causas que levaram a sociedade àquela situação, verificar a existência de eventuais prejuízos e, nesse caso, identificar os administradores que exerceram seus cargos na empresa, nos últimos cinco anos. 108 Encerrados os seus trabalhos, aquela Comissão de Inquérito, ao lado de outras providências para fins de responsabilização civil dos envolvidos, na esfera própria, remete cópia de seu relatório ao mesmo Banco Central do Brasil e este, ordinariamente, conclui pela existência de supostos ilícitos, desta feita de natureza administrativa, segundo normalmente informa e, assim, procede à instauração de processos administrativos sancionatórios, como antes asseverado. Essa rápida síntese desperta a necessidade de reflexão e de discussão acerca da legitimidade da sobreposição de procedimentos, como exposto linhas atrás, face ao regime jurídico aplicável ao exercício do poder de polícia por parte da Administração Pública, particularmente no que se refere ao correto exercício da competência discricionária que lhe é atribuída naquelas diferentes situações antes referidas. Trata-se, na verdade, de verificar se essa atuação repetida da Administração Pública, impondo penalidades aos mesmos administrados, em virtude dos mesmos fatos, sob a invocação da discricionariedade que lhe é outorgada em uma e outra situação, não extrapola os limites do que seria necessário para o atendimento do interesse público que lhe incumbe perseguir e que é, como anteriormente ressaltado, a idéia central e orientadora do exercício da função administrada, em geral, e do próprio poder de polícia, em particular. É óbvio que naqueles casos em que é adotada, primeiramente, aquela forma radical de intervenção da Administração Pública na esfera de interesses privados, essa medida tem como objetivo preservar o interesse público inerente, na extensão devida e com a urgência requerida. Também naqueles outros casos em que, posteriormente, são instaurados processos administrativos punitivos regularmente instaurados pela Administração Pública, com o objetivo de apurar a existência ou não de ilícitos administrativos e no curso dos quais é oferecido o direito de defesa aos acusados, 109 também seria o interesse público o móvel que determinaria a atuação da Administração Pública. No entanto, o que se coloca em discussão é se, uma vez implementadas aquelas gravíssimas medidas restritivas de direito impostas pelo Poder Público, com a submissão das instituições a um regime especial, com todas as implicações resultantes, ainda se faria presente algum interesse público residual que viesse a justificar um novo exercício de competência discricionária, representado pela instauração de processo administrativo sancionatório. Indaga-se a respeito da regularidade, no plano legal, da imposição de uma e de outra daquelas espécies de sanções administrativas, consecutivamente, em relação às mesmas pessoas e em virtude dos mesmos fatos, tendo presente o regime jurídico que deve nortear a atividade sancionatória da Administração Pública, no exercício da competência discricionária que lhe outorgam as normas pertinentes. Nesse desiderato, naquilo que respeita ao interesse público expressamente referido na Lei 9.784/99 como limitador das restrições e sanções impostas pela Administração Pública, como se depreende do seu art. 2º, é imperioso notar com Fábio Medina Osório160 que “a base de toda a formação teórica do Direito Administrativo é o conceito de interesse público, razão de ser dos poderes administrativos, privilégios, sujeições e, conseqüentemente, limites aos quais estão submetidas as Administrações Públicas”. Em vista disso, é forçoso concluir que as ponderações lançadas ao longo desse estudo, especificamente sobre a questão ora abordada, encerram a idéia de que a Administração Pública deve, quando da execução das competências que lhe são deferidas pelo ordenamento jurídico, exercer os 160 Direito Administrativo Sancionador, RT, 2000, ps. 39/40. 110 respectivos direitos que lhe são para tanto atribuídos na exata medida do estritamente necessário para a tutela do interesse público subjacente. No caso específico do Banco Central do Brasil, as normas que regem a sua atuação, relativamente às instituições sujeitas ao seu poder de polícia, têm como escopo tutelar o interesse público representado pelos valores inerentes à estabilidade e solidez do Sistema Financeiro Nacional e ao resguardo dos interesses dos investidores e credores, como acentuado no art. 9º, da Lei 4595/64 e na Resolução 1065/85, do Conselho Monetário Nacional. Dessa forma, o Banco Central do Brasil, no cumprimento de suas atribuições legais de proceder à fiscalização das instituições por ele autorizadas a funcionar, exercendo o correlato poder de polícia que lhe é outorgado, busca realizar o interesse público representado pelos valores antes mencionados. No curso de seus trabalhos, percebendo que qualquer daqueles valores restou agredido, tem à sua disposição o devido aparato legal que lhe possibilita agir de forma repressiva, implementando as medidas que entender cabíveis. O instrumental normativo que o legislador coloca ao dispor daquele órgão regulador de mercado prevê desde a possibilidade de instauração de processos administrativos punitivos, o que pode provocar as espécies de sanções já antes comentadas, até a decretação de regimes especiais, o que resultará, de imediato, naquelas outras sanções administrativas ex lege, conforme também já exposto. Percebe-se, pois, que dentre as várias condutas possíveis de serem adotadas pelo Banco Central do Brasil, verificada a não observância da disciplina legal pertinente, pelas instituições e por pessoas que exerçam a administração das mesmas, a medida de caráter extremo e, portanto, mais gravosa para ambos, é a submissão da empresa a regime especial o que, por si só, já é uma sanção administrativa. 111 Não bastara isso, como decorrência da decretação daquela medida radical, os administrados têm os seus bens tornados indispoiveis, são afastados de seus cargos e, diante dos casos de intervenção e de liquidação extrajudicial, a própria empresa é retirada do mercado em que atuava, restrições estas que, sob nossa ótica, materializam severíssimas sanções administrativas, como será adiante demonstrado. Ora, num quadro com tal formatação, o Banco Central do Brasil, no exercício do poder de polícia próprio de tais situações, ao eleger e adotar a solução extrema de decretação de regime especial em relação à instituição submetida ao seu poder de polícia, já exerceu aquele “poder” na sua máxima intensidade e, desse modo, já atendeu ao interesse público que lhe incumbia zelar, já efetuou a tutela dos valores consagrados nas normas pertinentes e, em assim sendo, já esgotou a sua possibilidade de atuação. No entanto, em praticamente todos os casos de decretação de regimes especiais nos quais os relatórios produzidos pelas respectivas Comissões de Inquérito apontaram a existência de prejuízos, os mesmos foram também encaminhados ao próprio Banco Central do Brasil para apuração de eventuais ilícitos administrativos e acabaram resultando na instauração de processos administrativos sancionatórios, os quais, via de regra, foram concluídos com imposição de nova e outra penalidade aos ex-administradores. Normalmente, a pena aplicável nesses casos é a de inabilitação para o exercício de cargos de direção em instituições sujeitas ao poder de polícia do Banco Central do Brasil. Um caso emblemático é o relativo ao Banco Econômico S/A, submetido ao regime de intervenção em 11.08.95, convertido em liquidação extrajudicial em 09.08.96 e que resultou, por força do relatório produzido pela Comissão de Inquérito, constituída por ocasião da decretação daquele primeiro regime especial, na instauração, pelo mesmo Banco Central do Brasil, de 2 (dois) 112 distintos processos administrativos punitivos, de nºs. Pt. 0001026021 e 0001026436. Esses processo têm por objeto as mesmas operações que foram apontadas como causa da decretação do regime especial, apresentam como sujeitos os mesmos ex-administradores daquela instituição e que, portanto, já sofreram as penalidades ex-ofício decorrentes da decretação do regime especial, sendo que vários deles também foram punidos, ainda recentemente, em razão daqueles processos administrativos posteriormente instaurados, com a penalidade de inabilitação para o exercício de cargos de administradores de instituições financeiras. Não bastara isso, aquele mesmo relatório produzido pela já mencionada Comissão de Inquérito foi também enviado à Comissão de Valores Mobiliários que, por sua vez, com base naqueles mesmos fatos e operações, de idêntica natureza, entendeu pela ocorrência de novos ilícitos, desta feita, segundo as acusações formuladas, infringentes da legislação societária. Diante disso, instaurou o Inquérito Administrativo CVM Nº 03/96. Esse terceiro processo administrativo veio a redundar, também, em outras punições a alguns dos mesmos ex-administradores do Banco Econômico S/A, ainda hoje em regime de liquidação extrajudicial. Vale repisar que a decretação de regime especial de que se trata decorre de competência discricionária outorgada ao Banco Central do Brasil, por força das disposições contidas na Lei 6.024/74,161 no caso de intervenção ou de 161 “Art. 1º. As instituições financeiras privadas e as públicas não federais, assim como as cooperativas de crédito, estão sujeitas, nos termos dessa Lei, à intervenção ou liquidação extrajudicial, em ambos os casos efetuada e decretada pelo Banco Central do Brasil, sem prejuízo do disposto nos artigos 137 e 138 do Decreto nº. 2627, de 26 de setembro de 1940, ou à falência, nos termos da legislação vigente. Art. 2º - Far-se-á intervenção quando se verificarem as seguintes anormalidades nos negócios sociais da instituição: I – a entidade sofrer prejuízos, decorrente de má administração, que sujeite a risco os seus credores; 113 liquidação extrajudicial e no DL 2.321/87,162 no caso de submissão de instituição ao Regime de Administração Especial Temporária. II – forem verificadas reiteradas infrações a dispositivos da legislação bancária não regularizadas após as determinações do Banco Central do Brasil, no uso das suas atribuições de fiscalização; III – na hipótese de ocorrer qualquer dos fatos mencionados nos artigos 1º e 2º do Decreto nº 7661, de 21 de junho de 1945 (Lei de Falências), houver possibilidade de evitar-se a liquidação extrajudicial. Art. 3º - A intervenção será decretada ex officio pelo Banco Central do Brasil, ou por solicitação dos administradores da instituição – se o respectivo estatuto lhes conferir esta competência – com indicação das causas do pedido, sem prejuízo da responsabilidade civil e criminal em que incorrerem os mesmos administradores, pela indicação falsa ou dolosa. (...) Art. 15 – Decretar-se-á liquidação extrajudicial da instituição financeira: I – ex officio: a) em razão de ocorrências que comprometam a sua situação econômica ou financeira, especialmente quando deixar de satisfazer, com pontualidade, seus compromissos ou quando se caracterizar qualquer dos motivos que autorizem a declaração de falência; b) quando a administração violar gravemente as normas legais e estatutárias que disciplinam a atividade da instituição bem como as determinações do Conselho Monetário Nacional ou do Banco Central do Brasil, no uso de suas atribuições legais; c) quando a instituição sofrer prejuízo que sujeite a risco anormal seus credores quirografários; d) quando, cassada a autorização para funcionar, a instituição não iniciar, nos 90 (noventa) dias seguintes, sua liquidação ordinária, ou quando, iniciada esta, verificar o Banco Central do Brasil que a morosidade de sua administração pode acarretar prejuízos para os credores; II – a requerimento dos administradores da instituição – se o respectivo estatuto social lhes conferir essa competência – ou por proposta do interventor, expostos circunstanciadamente os motivos justificadores da medida. § 1º. O Banco Central do Brasil decidirá sobre a gravidade dos fatos determinantes da liquidação extrajudicial, considerando as repercussões deste sobre os interesses dos mercados financeiro e de capitais e, poderá, em lugar da liquidação, efetuar a intervenção, se julgar essa medida suficiente para a normalização dos negócios da instituição e preservação daqueles interesses.” 162 “Art. 1º. O Banco Central do Brasil poderá decretar regime de administração especial temporária, na forma regulada por esse decreto-lei, nas instituições financeiras privadas e públicas não federais, autorizadas a funcionar nos termos da Lei nº. 4.595, de 31 de dezembro de 1964, quando verificadas: a) prática reiterada de operações contrárias às diretrizes de política econômica ou financeira traçadas em lei federal; b) existência de passivo a descoberto; c) descumprimento das normas referentes à conta de Reservas Bancárias mantida no Banco Central do Brasil; d) gestão temerária ou fraudulenta de seus administradores; e) ocorrência de qualquer das situações descritas n o artigo 2º, da Lei 6.024, de 13 de março de 1974. Parágrafo único. A duração da administração especial fixada no ato que a decretar, podendo ser prorrogada, se absolutamente necessário, por período não superior ao primeiro. (...) Art. 3º. A administração especial temporária será executada por um conselho diretor, nomeado pelo Banco Central do Brasil, com plenos poderes de gestão, constituído de tantos membros quantos julgados necessários para a condução dos negócios sociais.” 114 Naquilo que se refere à instauração e condução de processos administrativos punitivos por parte do Banco Central do Brasil, cabe informar que a correspondente outorga de competência discricionária encontra fundamento nas disposições da Lei 4.595/64163 e na Resolução CMN 1065/86.164 Assim passados os fatos, confrontados com as normas que se lhes aplicam, não encontra qualquer justificativa plausível e é desprovida do necessário amparo legal que venha o órgão regulador, após haver adotado aquela forma extrema de invasão, ainda que legal, na esfera de direitos dos administrados, pretender, com base nos mesmos fatos, exercer novamente o seu poder de polícia, instaurando processos administrativos sancionatórios em relação às 163 “Art. 9º. Compete ao Banco Central do Brasil cumprir e fazer cumprir as disposições que lhe são atribuídas pela legislação em vigor e as normas expedidas pelo Conselho Monetário Nacional. Art. 10. Compete privativamente ao Banco Central do Brasil: (...) VIII – exercer a fiscalização das instituições financeiras e aplicar as penalidades previstas (...). Art. 44. As infrações aos dispositivos dessa Lei sujeitam as instituições financeiras, seus diretores,membros de conselho de administrativos, fiscais e semelhantes às seguintes penalidades, sem prejuízo de outras estabelecidas na legislação vigente.” 164 “I – Baixar o anexo Regulamento de aplicação de penalidades às instituições financeiras, seus administradores, membros de conselhos consultivos, fiscais e semelhantes, gerentes e outras pessoas que infrinjam as disposições das Leis n. 4.595, de 31.12.64, 4.728, de 14.07.65 e 4.829, de 05.11.65, bem como de outras normas legais ou regulamentares aplicáveis. (...) 4.1.1. 1. As disposições deste capítulo regem a ação fiscalizadora do Banco Central, exercida no âmbito de sua competência legal e regulamentar, determinam o seu alcance, objetivo e atuação, prescrevem penalidades e medidas aplicáveis a pessoas físicas e jurídicas infratoras, bem como disciplinam os procedimentos e processos administrativos. 2. A ação fiscalizadora e controladora do Banco Central tem por objetivos principais a estabilidade e a solidez do Sistema sob sua égide, o aperfeiçoamento dos instrumentos financeiros e das instituições e o resguardo dos interesses dos investidores e credores. 3. Para atingir esses objetivos, a atuação do Banco Central compreende os seguintes principais grupos de atividades: a) acompanhamento da situação econômico-financeira das instituições e dos grupos financeiros; b) vigilância permanente dos mercados financeiro, cambial e de capitais, bem como das pessoas físicas e jurídicas que, direta ou indiretamente, neles interfiram, ressalvada a competência da Comissão de Valores Mobiliários; e c) verificação dos procedimentos adotados pelas instituições, a fim de fazer cumprir as normas e regulamentos baixados pelo Conselho Monetário Nacional e pelo Banco Central e a legislação vigente. 4. A atuação do Banco Central rege-se pelos seguintes princípios básicos: a) por força de sua ação preventiva e orientadora, poderá alertar a pessoa física ou jurídica fiscalizada para a falta observada, assinalando-se-lhe, se for o caso, prazo razoável para saná-la.” 115 mesmas pessoas, posto que isso vem a se configurar como exorbitante, na medida em que não resta mais qualquer interesse público a ser realizado. Vale acrescentar ainda a absoluta inocuidade dessa postura por parte da Administração Pública, na medida em que qualquer eventual sanção imposta em virtude dessa segunda forma de atuação será, necessariamente, de magnitude inferior a quaisquer daquelas ex lege já sofridas pelos administrados quando da submissão das empresas que administravam a regime especial decretado pelo Banco Central do Brasil. Posto isso, resta evidente que na situação descrita, o exercício de competência discricionária pelo órgão regulador de mercado, no caso o Banco Central do Brasil do Brasil, situou-se além do que é exigido para a realização do interesse público marcado pelo legislador e, portanto, sua atuação carece de legitimidade. O tema até aqui versado remete à discussão acerca do caráter discricionário ou vinculado da atividade sancionatória, ou seja, coloca-se a indagação sobre se diante de um comportamento administrativamente ilícito, restando caracterizada uma infração administrativa, a Administração pode ou deve sancionar a conduta reprovável. Para uma corrente considerável de doutrinadores e que efetivamente congrega maior número de adeptos, não tem a Administração Pública a possibilidade de decidir discricionariamente pela imposição de penalidade quando verificada a ocorrência de uma conduta administrativamente ilícita, Assim, realizado o pressuposto ou ocorrida a hipótese descrita no texto legal, segue-se a obrigatoriedade, por parte da Administração Pública, de fazer incidir o mandamento contido na mesma norma ou em outra, quando for o caso, não lhe sendo permitido agir mediante o emprego dos critérios de 116 conveniência e oportunidade ou valer-se de qualquer outra justificativa que venha a resultar na não imposição de penalidade ao infrator. Nesse grupo coloca-se Celso Antônio Bandeira de Mello,165 ao asseverar que “registre-se, por último, que, uma vez identificada a ocorrência de infração administrativa, a autoridade não pode deixar de aplicar a sanção”, e, ainda, ponderar que “com efeito, há um dever de sancionar, e não uma possibilidade discricionária de praticar ou não tal ato”. Ainda segundo aquele autor, “a doutrina brasileira, mesmo em obras gerais, costuma enfatizar tal fato em relação ao dever disciplinar, invocando o art. 320 do Código Penal, que tipifica a figura da condescendência criminosa, mas o dever de sancionar tanto existe em relação às infrações internas quanto em relação às externas”. A única exceção à regra se daria, entende Celso Antônio Bandeira de Mello, quando diante de hipóteses que autorizariam a aplicação do denominado “princípio da insignificância”. De forma diversa, um reduzido contingente de doutrinadores entende que não se impõe à Administração Pública um dever inarredável de punir com a pertinente sanção administrativa sempre que ocorrer infração da mesma natureza, havendo situações, legalmente amparadas, que viriam a autorizar que a Administração Pública decidisse pela não aplicação de penalidade. Desse pequeno rol faz parte Marcelo Madureira Prates,166 esclarecendo que “ao longo do texto temos insistido em dizer, repetindo, aliás, o que consta no conceito de sanção administrativa por nós proposto, que a Administração pode, e não que ela deve, infligir a sanção administrativa, mesmo quando definitivamente verificado o ilícito correspondente”. 165 166 Ob. cit. p. 829/30. Sanção Administrativa Geral: Anatomia e Autonomia, Almedina, Coimbra, 2005, p. 69/72. 117 Explana o autor que “na fase de apuração do ilícito administrativo, a Administração poderá, ou melhor, deverá deixar de iniciar o procedimento sancionador sempre que dispuser de elementos suficientes sobre a infração cometida e sobre a respectiva sanção aplicável que lhe indiquem, de pronto, a existência de outros interesses públicos preponderantes sobre o interesse sancionador, ou, quando menos, a inconveniência de se movimentar o aparelho administrativo em função da baixa reprovação que merecerá o ilícito concretamente”. Em continuidade à sua tese, afirma o doutrinador que “mesmo depois de confirmado o ilícito em todos os seus elementos e de definida a sanção administrativa aplicável, a Administração poderá progredir para o exame da oportunidade e da conveniência da imposição de sanção, se observar a existência de interesses públicos colidentes com o interesse, igualmente público, de sancionar aquela ação ilícita”. Conclui o tratadista que “não se trata, repare-se, de absolver uma ação comprovadamente ilícita, e sim de não aplicar uma sanção formalmente devida em face da existência e da preponderância de outros interesses públicos na hipótese”. Por fim, alerta que “porém, no domínio administrativo sancionador, essa tolerância há de ter caráter geral, e nunca singular”, pois “a administração não pode, à face de situações idênticas, ser tolerante em relação a alguns administrados infratores, enquanto sanciona outros (...)”. Muito embora seja minoritária a posição que defende a possibilidade de discricionariedade quanto à decisão de impor sanção e mesmo tendo em conta o caráter vanguardista da proposta, entendemos ser a mesma dotada de razoável fundamento jurídico, o que ampara a sua adoção, sendo, ainda, passível de comprovação concreta. 118 A esse respeito, vale lembrar que no âmbito do mercado financeiro é relativamente comum a situação em que uma instituição financeira atuante no sistema, marcada por importante crise de liquidez, dependendo de financiamentos de outros agentes ou mesmo do próprio regulador, suscite a necessidade de uma solução de mercado, evitando-se a medida extrema de decretação de regime especial. Nesse casos, essa busca por um desfecho que atenda aos diversos interesses envolvidos, é ordinariamente estimulada, ainda que informalmente, pelo Banco Central do Brasil e, em muitas ocasiões, uma outra instituição termina por adquirir o controle acionário daquela que se encontrava em dificuldades para permanecer atuando no segmento bancário. Também não é incomum que, passado algum tempo, o Banco Central do Brasil, em seus trabalhos de fiscalização, detectando ilícitos administrativos ocorridos ao tempo em que a empresa era administrada pelos antigos controladores, instaure o respectivo processo administrativo e imponha sanção à instituição sucessora. Os processos da espécie, quando alçados à apreciação, em grau de recurso, ao Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, tinham reformadas as decisões de primeira instância, absolvendo-se a instituição financeira sucessora, sempre que se caracterizava o que veio a ser denominado de “transferência qualificada do controle acionário”. Essa caracterização demandava a presença de alguns elementos, tais como o não conhecimento do ilícito pelo adquirente e, portanto, o seu não apontamento na due diligence efetuada e, também, alguma demonstração da participação do Banco Central do Brasil como indutor da operação, por considerála de interesse para o sistema financeiro nacional. 119 Por evidente, esse contexto indica a presença de um interesse público na preservação da atividade empresarial, de modo a resguardar os valores inerentes ao sistema e promover a necessária garantia aos depositantes e investidores, afastando a necessidade de intervenção radical da Administração Pública. Mais ainda, esse interesse publico seria preponderante em relação àquele outro representado pelo poder punitivo do Banco Central do Brasil, não se revelando oportuno ou conveniente que quem concorreu para o atendimento de um interesse posto pelo Estado viesse a ser punido, posteriormente, em função de um fato à época desconhecido e praticado por outro. Essa posição formou jurisprudência no âmbito do Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional e inspirou inúmeras soluções, genericamente aplicadas, ao longo de vários anos, a todos os administrados que, indistintamente, se encontrassem naquela mesma situação. No entanto, aquele Colegiado, ainda recentemente, reviu o posicionamento que vinha sendo observado e vêm decidindo pela manutenção de punições impostas pelo Banco Central do Brasil, em casos daquela espécie, sob o argumento de que não há espaço legal que permita a não aplicação de penalidade diante de infração devidamente caracterizada. A linha de argumentação é no sentido de que eventual não imposição de pena, nesses casos, viria a configurar caso típico de exclusão de ilicitude não amparada por qualquer disposição legal e, assim, afrontaria o princípio da legalidade, ao qual a Administração Pública, nos termos da Constituição vigente, deve estrita observância. A nosso ver, a posição tomada reflete um acanhado entendimento do princípio da legalidade, revelando uma interpretação reducionista, na medida em 120 que confina o Direito aos limites da lei em sentido formal, desconsiderando a integridade do ordenamento jurídico e mesmo do regime jurídico-administrativo, particularmente quanto aos respectivos princípios gerais. Isso porque, afora o interesse público prevalecente nessas situações, como já referido, acreditamos que essa punição desnecessária afronta o próprio princípio da eficiência, de matriz também constitucional, bem como desatende ao princípio da razoabilidade estampado na Lei 9.784/99. 121 b - quanto aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade Segundo José Roberto Pimenta Oliveira, Perelman167 considera que “a utilização das noções de razoável e de desarrazoado nas teorias jurídicas é tributária do pensamento de Siches e, como este, vai nelas enxergar um conceito referencial de toda atividade jurídica: daquela sujeita ao direito privado (civil ou comercial) até a disciplinada pelo direito público, inclusive a discricionária, e materializada em atos dos Poderes Executivo, Judicial e, mesmo, Legislativo”. O mesmo Pimenta de Oliveira,168 em sua científica e bem elaborada obra sobre o tema, em certa passagem, ao abordar a razoabilidade sob o enfoque dos limites de atribuição de discricionariedade pelo legislador e de sua conseqüente sindicabilidade, entende que “em verdade, é o legislador que viabiliza o adequado controle judicial da atividade administrativa ao discipliná-la com a densidade necessária e suficiente para operacionalizar o contraste judicial de sua legitimidade”. Logo adiante enfatiza que “sem um consistente delineamento legislativo dos limites materiais da atuação discricionária, restará ao intérprete autêntico do sistema, titular do controle, valer-se dos parâmetros axiológicos indicados pelas pautas principiológicas do regime que, todavia, em geral, apenas vinculam negativamente a atuação administrativa, excluindo soluções que desconheçam os valores nelas consagrados”. 167 Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo brasileiro, Malheiros, São Paulo, 2006, p. 130. 168 Ob. cit. p. 158/59: “Há pois o dever legislativo de conformar, em termos substanciais suficientes, a atividade administrativa, por força do princípio da legalidade e da plena justicialidade da Administração, em suas dimensões material e formal. A legalidade, formalmente, significa sujeição da Administração a um quadro normativo prévio ao seu proceder; do ponto de vista material, significa exigência de que o conteúdo da disciplina da atividade normativa apresente determinada ‘densidade regulatória’. De igual modo, o controle jurisdicional, formalmente, revela a garantia de acesso à jurisdição, como todos os corolários deste princípio, mas, sob uma vertente material, vislumbrando a potencialidade material da garantia, a força expansiva de sua carga axiológica normativa, significa também que na execução da lei se assegure a viabilidade de um controle jurídico-material efetivo da atuação administrativa. É um limite intrínseco do controle jurídico sobre que o legislador não tem qualquer disponibilidade.” 122 Em outra passagem, relacionando a razoabilidade ao próprio exercício da discrição administrativa, o autor169 alerta que “também é necessário afastar a qualificação da razoabilidade como um dos aspectos que compõem o designado mérito do ato administrativo”, tendo em vista que “se na época de Seabra Fagundes, a virtualidade normativa do conceito não se justificava, na atualidade assimila tal conceito conteúdo de verdadeiro princípio jurídico delineador e limitador do exercício da discrição, de tal modo que a ausência de razoabilidade é fonte de invalidade da atuação administrativa, e não mero defeito de mérito, em um de seus qualificativos, impossível de ser corrigido pelo Poder Judiciário”. De acordo com o autor, “a razoabilidade atua como um limite interno da discricionariedade, no sentido de ser um dos fatores que condicionam a própria escolha entre os possíveis indiferentes legais, catalogados in abstracto na norma de competência, impondo a rejeição a certa ou certas alternativas autorizadas pelo marco normativo, em função dos vetores jurídico-materiais incidentes concretamente na atuação administrativa”. Conclui, sobre este particular aspecto, que “com a razoabilidade, impõe-se o dever de adequada ponderação, não determinada ponderação, sob pena de negar a existência da própria discrição enquanto categoria acolhida pelo Direito. Assim, em regra, serve de veículo impositivo de um cânone que delineará 169 Ob. cit. p. 361/363: “No controle dos conceitos jurídicos indeterminados, os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade são vetores inafastáveis da atividade hermenêutica exigida na concretização do conceito em cada situação fático-jurídica, visando ao equilíbrio e realização dos valores jurídicos que buscam operar com sua presença na linguagem normativa. Da mesma forma, tais princípios são fundamentais no controle da margem de autonomia administrativa decisória verificada quanto à forma, oportunidade, conveniência e conteúdo da ação no exercício das competências administrativas. As imposições da razoabilidade são essenciais para o desenlace do fenômeno da atrofia do poder discricionário em determinada situação. No desenho fático-normativo do processo de eliminação, reputa-se que a redução do poder de decisão nada mais representa do que corolário da aplicação do princípio da razoabilidade, que, em caráter excepcional, interfere na montagem do critério administrativo de atuação da norma, tornando obrigatória uma única apreciação no caso concreto, em face do conjunto de interesses jurídicos subjacentes à situação, perante a qual, objetivamente, se verifica a prevalência a determinado princípio, bem, valor, interesse ou posição jurídico-subjetiva, e, consequentemente, à solução jurídica que mantiver natural correlação lógica coma irrefutável regra de prevalência concreta”. 123 o iter lógico que a autoridade administrativa deve percorrer para colimar a solução ótima requerida pelo interesse público, dentro das circunstâncias do caso”. Situando-se nos quadrantes próprios do regime jurídico- administrativo, cumpre assinalar que a parcimônia no exercício dos direitos, por parte da Administração Pública, é expressamente determinada pela Lei 9.784/99, a qual regula o processo administrativo no âmbito federal, como enunciado no preâmbulo daquela norma que veio a estabelecer os parâmetros normativos a serem observados nas relações travadas entre aquela e os administrados em geral. A propósito, a expressão processo administrativo, tal como estampada naquela norma, deve ser tomada na sua acepção lata, englobando quaisquer ações impulsionadas pelos entes públicos, posto que as mesmas são ordinariamente autuadas e formalmente conduzidas sob aquele rótulo, o qual se desdobra em diferentes espécies, assumindo, dentre outras, natureza sancionatória, homologatória ou preparatória de atos decisórios finais por parte da Administração Pública. Sobre o tema, a lei acima referida veio a estabelecer, no inciso VI, do parágrafo único, do artigo 2º, que nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de ”adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público”. Parece aceitável assumir que, ao indicar a necessidade de adequação entre meios e fins, a lei se reporta aos princípios que estão também expressos no “caput” de seu artigo 2º, dentre os quais o da razoabilidade, sobre o 124 qual Alberto Martins170 se manifesta entendendo-o como baliza interpretativa e como meio para mitigar o formalismo do direito. Certamente, também está ali implícito o 171 proporcionalidade, sobre o qual José dos Santos Carvalho Filho princípio da preceitua que, “para a fiel observância do princípio, nem pode o Estado renunciar ao poder de impor restrições quando estas se façam necessárias para o atendimento das demandas da coletividade, nem deve impô-las com gravame para o indivíduo mais extenso do que reclama o interesse público a ser protegido, sob pena de admitirse o caos no primeiro caso e a tirania e o arbítrio no segundo”. . Tecendo comentários a propósito daquele mesmo princípio, Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari,172 na mesma trilha daqueles já mencionados, asseveram que, “de todo modo, é certo que ele veda a desproporção entre os meios utilizados para a obtenção de determinados fins. Pode-se dizer, com segurança, que, por força do princípio da proporcionalidade, não é licito à Administração Pública valer-se de medidas restritivas ou formular exigência aos particulares além daquilo que for estritamente necessário para a realização da finalidade pública almejada”. Do mesmo teor é a observação de Celso Antônio Bandeira de 173 Mello, ao professar: “com efeito, o fato de a lei conferir certa liberdade (margem de discrição) significa que lhe deferiu o encargo de adotar, ante a diversidade de situações a serem enfrentadas, a providência mais adequada a cada qual delas”. 170 As leis de Processo Administrativo – Lei Federal 9.784/99 e Lei Paulista 10.177/98, Malheiros, 2000, ps. 179/80: “Quanto ao segundo – o Princípio da Razoabilidade – também muito já se disse, valendo destacar a lição do ilustre Carlos Ari Sundfeld, para quem a razoabilidade proscreve a irracionalidade, o absurdo ou a incongruência na aplicação (e sobretudo, na interpretação) das normas jurídicas. É inválido o ato desajustado dos padrões lógicos’. Parece que, além do caráter de baliza interpretativa ressaltada acima, pode o Princípio da Razoabilidade ser entendido como o meio que a Ciência do Direito utiliza para mitigar o necessário formalismo do direito”. 171 Processo Administrativo Federal – Comentários à Lei 9.784/99 de 29/1/1999, Lúmen Júris, 2001, p. 54. 172 Processo Administrativo, Malheiros, 2001, p. 64. 173 Ob. cit. p. 99. 125 Naquilo que toca ao interesse público expressamente referido na Lei 9.784/99 como limitador das restrições e sanções impostas pela Administração Pública, é imperioso ainda notar com Fábio Medina Osório174 que “a base de toda a formação teórica do Direito Administrativo é o conceito de interesse público, razão de ser dos poderes administrativos, privilégios, sujeições e, conseqüentemente, limites aos quais estão submetidas as Administrações Públicas”. Em suma, pode-se dizer que os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade traduzem a exigência de que a realização do interesse público seja obtida com o mínimo de sacrifício dos interesses individuais, impondo-se à Administração Pública a necessária adequação entre meios e fins, particularmente nas situações que envolvem a imposição de restrição de direitos elementares dos administrados, tais como a propriedade e o exercício de atividades legalmente permitidas. Diante desse quadro normativo e doutrinário, é natural concluir que os dispositivos legais pertinentes e as respectivas ponderações doutrinárias encerram a idéia de que a Administração Pública deve, quando da execução das competências que lhe são deferidas pelo ordenamento jurídico, exercer os correlatos direitos que lhe são para tanto atribuídos na exata medida do estritamente necessário para a tutela do interesse público subjacente. Nesse passo, vale informar que a competência conferida à Comissão de Valores Mobiliários para exercer o seu poder de polícia, relativamente às pessoas sob sua fiscalização, resulta da disposição contida no inciso V, do art. 9º, da Lei 6.385/76175 e a possibilidade de impor penalidades aos infratores das 174 Direito Administrativo Sancionador, RT, 2000, os. 39/40. “V – apurar, mediante processos administrativos, atos ilegais e práticas não eqüitativas de administradores, membros do conselho fiscal e acionistas de companhias abertas, dos intermediários e dos demais participantes do mercado. VI – aplicar aos autores das infrações indicadas no inciso anterior as penalidades previstas no art. 11, sem prejuízo da responsabilidade civil e penal.” 175 126 normas pertinentes à sua área de atuação têm suporte legal no inciso VI, daquele mesmo dispositivo. A propósito, vale informar que ainda recentemente, ou seja, no ano de 2005, houve decisão prolatada pela Comissão de Valores Mobiliários, quando do julgamento do Processo Administrativo Sancionador CVM Nº. RJ 2005/97, cujo objeto foi a aquisição, por empresa controlada, de debêntures emitidas por sua controladora, a preços de mercado, precedida de aprovação pelo Conselho de Administração da compradora. A empresa adquirente, nos termos do contratualmente estabelecido, veio a receber integralmente o valor relativo ao resgate daqueles títulos, sendo que, posteriormente, o órgão regulador de mercado decidiu instaurar o referido processo administrativo punitivo contra os conselheiros da controladora. A acusação formulada pelo ente regulador foi no sentido de que teria ocorrido, no caso, abuso de poder de controle, por terem os administradores da controladora permitido que a empresa tivesse “contratado com a controlada em condições privilegiadas, considerando que as garantias oferecidas pelo empréstimo não eram suficientes”, o que caracterizaria infração ao artigo 117, da lei societária. No mesmo processo, foram também intimados a apresentar suas razões de defesa os conselheiros da controlada, sob a acusação de terem concorrido para o abuso do poder de controle ao aprovar a aquisição dos papéis pela empresa que administravam “em condições privilegiadas, considerando que as garantias oferecidas pelo empréstimo não eram suficientes”, o que configuraria violação à Instrução CVM nº. 323/00. Quando do julgamento do caso, apreciados os argumentos de defesa, a relatora, em seu voto vencedor, concluiu que “no caso concreto, a 127 análise dos fatos relatados neste voto – isto é, a concentração de créditos em um só devedor, a relevância do valor de tais créditos sobre o patrimônio da Companhia e a proporção de tais créditos diante do patrimônio líquido das devedoras – já foi suficiente para demonstrar que o cenário que então existia demandava uma conduta diversa dos controladores e administradores, independentemente da análise de resultados posteriores da operação realizada”. Em vista disso, seguiu-se decisão do Colegiado da Comissão de Valores Mobiliários aplicando a 4 (quatro) conselheiros da empresa controladora penas de multa que atingiram a extraordinária importância de R$ 13 milhões e, mais ainda, com relação a 2 (dois) deles foi imposta, cumulativamente, a pena de suspensão, por 1 (um) ano, para o exercício de cargo de administrador ou conselheiro fiscal de companhia aberta, de entidade do sistema de distribuição ou de outras entidades que dependam de autorização ou registro daquela autarquia. Vale ressaltar que a multa aplicada, no percentual de 2% (dois por cento) do valor dos empréstimos, teve como alegado suporte legal o inciso II, do parágrafo 1º, do art. 11, da Lei 6.385/76, o qual prevê que a multa não excederá a 50% (cinqüenta por cento) do valor da emissão ou operação irregular, ao passo que a pena de suspensão teve com fundamento o § 3º do mesmo normativo, o qual estipula que a penalidade em questão será aplicada nos casos de infração grave, assim definidas por normas da Comissão de Valores Mobiliários. Relativamente aos conselheiros da controlada, foram os mesmos penalizados com a suspensão, também por 1 (um) ano, para o exercício de cargo de administrador ou conselheiro fiscal de companhia aberta, de entidade do sistema de distribuição ou de outras entidades que dependam de autorização ou registro na Comissão de Valores Mobiliários, com base no mesmo dispositivo legal acima referido. 128 Posto isso caberia verificar, com relação à imposição da penalidade de multa pecuniária, aplicada com suposto respaldo no inciso II, do § 1º, do art. 11, da Lei 6.385/76, se na sua dosimetria foram observados os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, já que o legislador estabeleceu como limite máximo o equivalente a 50% (cinqüenta por cento) valor da “emissão ou operação irregular”. Não há dúvida de que, nas situações da espécie de que se trata, o legislador confere ao agente público a possibilidade de eleger, observada a limitação estabelecida, a graduação da sanção a ser imposta, o que vem a caracterizar caso típico de competência discricionária. Porém, o legislador outorga ao agente público “uma certa margem de apreciação subjetiva, mediante o adequado uso dos critérios de conveniência e oportunidade”, inclusive quanto à decisão de praticar ou não o ato, como entende Maria Sylvia Zanella di Pietro.176 Evidentemente, a possibilidade legalmente deferida à Administração Pública de atuar discricionariamente não a coloca à margem do ordenamento jurídico, como lembra Gordillo, citado pela autora antes referida, ao lecionar que “em nenhum momento pode-se pensar atualmente que uma porção da atividade administrativa possa estar fora ou acima do ordenamento jurídico e é por isso que se enuncia uma séria de princípios de direito que se constituem em limites à discricionariedade administrativa”. A propósito especificamente da graduação da pena, Régis Fernandes de Oliveira177 aponta que “pode haver discricionariedade no tocante à 176 Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988, Atlas, São Paulo, 2001, p. 10: “Ocorre, no entanto, que o legislador, não tendo condições de prever e avaliar todas as situações possíveis, é obrigado a deixar certa margem de liberdade para a Administração apreciar os casos concretos segundo critérios próprios e escolher, entre várias alternativas, aquela que lhe pareça a mais adequada para a proteção do interesse público.” 177 Infrações e sanções Administrativas, 3ª ed., RT, São Paulo, 1992,p. 67. 129 graduação da sanção, isto é, o agente administrativo pode optar no grau quando a lei estabelecer, por exemplo: multa de três a cinco salários mínimos”. Embora inquestionável a possibilidade enunciada pela norma, a Administração Publica, quando da quantificação da penalidade, deverá se ater aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, promovendo o ajustamento entre o ilícito e a sanção, considerando eventual reincidência e a presença de circunstâncias agravantes ou atenuantes e, mais que isso, buscando o atendimento do interesse público que lhe cumpre realizar. Sobre esse aspecto, Daniel Ferreira178 acentua que “em hipóteses como essa – por óbvio – nem discutimos a possibilidade de eleição, por quem competente, do grau da (única) sanção aplicável ao caso” e que “o problema dáse, porém, na sua válida quantificação”. Como adverte Celso Antonio Bandeira de Mello,179 ao discorrer acerca do princípio da proporcionalidade, “as competências administrativas só podem ser validamente exercidas na extensão e intensidade proporcionais ao que seja realmente demandado para o cumprimento da finalidade de interesse público a que estão atreladas”. Desse modo, a desproporcionalidade na prática do ato administrativo vem a caracterizar, em situações como a do presente caso, excesso de punição, traduzindo-se em efetivo abuso de poder, passível de correção pelo Poder Judiciário, conforme têm decidido nossos tribunais: “Execução Fiscal – Auto de Infração – (...) Redução de Multa – Princípio da Proporcionalidade – (...). 1. A lei deve ser interpretada, antes de tudo, com bom senso. Se a Lei Delegada 178 179 Ob. cit. p. 166. Curso de Direito Administrativo, Malheiros, São Paulo, 2003, p. 101. 130 n. 04/62 buscou reprimir o abuso do poder econômico e proteger a economia popular, é sob esse fundamento que devem assentar suas hipóteses de incidência. 2. A existência de uma única lata (...), em meio a centenas de outros produtos, assim como a circunstância de ser a infratora primária, conduzem à aplicação do valor reduzido da multa cominada na sanção, não caracterizando invasão de competência da esfera administrativa a redução da referida pena, se aplicada com exorbitância do princípio da legalidade”. (1ª T. REsp. 176.645, rel. Min. José Delgado, j. 20.8.1998). Ora, no processo sob comento, a punição proposta pela DiretoraRelatora em seu voto, que foi endossado pelos demais membros do colegiado, muito embora represente 2% (dois por cento) do valor das debêntures subscritas, a sua expressão monetária veio a atingir, como já referido, a exorbitante importância de R$ 13.200.000,00 (treze milhões e duzentos mil reais). Evidentemente, uma punição dessa magnitude, consideradas as circunstâncias inerentes ao caso, não se apresenta de modo a guardar qualquer razoabilidade ou proporcionalidade em relação ao suposto ilícito, no que diz respeito, inclusive, ao interesse público envolvido e que deve orientar a prática dos atos administrativos em geral e, particularmente, daqueles de natureza sancionatória. Em primeiro lugar, há que ser objeto de ponderação o inquestionável fato de que a operação que veio a originar a instauração do processo e a conseqüente punição aos recorrentes não causou sequer um centavo de prejuízo a quem quer que seja, como reconhecido expressamente pela própria Comissão de Valores Mobiliários, em certa passagem dos autos. 131 Em segundo lugar, considerando que a empresa compradora das debêntures, que teria assumido um risco excessivo, recebeu integralmente o valor de resgate das debêntures adquiridas e, portanto, não sobrou qualquer espaço legal que justificasse a imposição da penalidade na proporção desmedida em que isso veio a ocorrer. Desse modo, a exagerada multa aplicada aos administrados, no caso exemplificado, apresenta-se em absoluta desconformidade com os parâmetros legalmente aceitáveis, em face da necessidade de obediência aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Não bastara a despropositada magnitude da penalidade pecuniária aplicada, a Administração Pública, no caso a Comissão de Valores Mobiliários, infligiu também a alguns dos administrados, como referido, outra rigorosa pena, sobreposta àquela primeira, suspendendo-os do exercício de seus cargos pelo período de 1 (um) ano. É também evidente a ilegitimidade dessa cumulativa punição, valendo aqui as mesmas observações anteriormente feitas a propósito dos limites impostos ao exercício de competência discricionária, especialmente no que refere à necessária obediência aos princípios que regem a atuação da Administração Pública, notadamente aqueles relativos à proporcionalidade e à razoabilidade. Em aditamento às considerações já desenvolvidas, é oportuno relembrar que a já referida Lei 9.784/99, estabelece no inciso VI, de seu artigo 2º, que nos processos da espécie deverá ser observada a “adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público”. 132 Ao comentar o dispositivo em questão, Sérgio Ferraz e Adilson de Abreu Dallari180 enfatizam que “o princípio da proporcionalidade foi muito bem captado pelo legislador federal”, e entendem ainda que “pode-se dizer, com segurança, que, por força do princípio da proporcionalidade, não é lícito à Administração Pública valer-se de medidas restritivas ou formular exigências aos particulares além daquilo que for estritamente necessário para a realização da finalidade pública almejada”. No mesmo sentido é o posicionamento de José dos Santos Carvalho 181 Filho , ao afirmar que “a idéia central do princípio leva em conta o fato de que, se o Poder Público, de um lado, tem o direito de instituir determinadas restrições à liberdade e à propriedade dos indivíduos, está impedido, por outro, de exagerar na dose restritiva se o prejuízo a ser evitado comporta restrição menos gravosa”. As observações acima feitas, a propósito especificamente da adequação entre meios e fins que deve nortear os atos dos entres públicos, particularmente os de caráter punitivo, revelam o despropósito das penalidades impostas, particularmente no que toda à magnitude e severidade que as caracteriza. Diante disso, considerada a situação fática e confrontando-a com as disposições legais a respeito da matéria, tendo em conta ainda a clara posição doutrinária sobre o tema, é inevitável concluir pelo destempero da decisão adotada, que ignorou por completo os parâmetros legais estabelecidos no que respeita aos limites inerentes ao exercício de competência discricionária, impondo penalidades em medida e extensão bastante superiores ao demandado e que, por isso, não encontram respaldo no regime jurídico-administrativo. 180 Processo Administrativo, Malheiros, São Paulo, 2001, p. 64. Processo Administrativo Federal, Comentários à Lei 9.784, de 29.1.1999, Lúmen Júris, Rio de Janeiro, 2001, p. 54. 181 133 c - quanto ao princípio da legalidade e à aplicação de conceitos jurídicos indeterminados É bastante comum a instauração, pelo Banco Central do Brasil, de processos administrativos sancionatórios formulando acusação, dirigida contra os administradores de instituições financeiras, no sentido de que os mesmos teriam efetuado, dolosa ou culposamente, má gestão das empresas que administram. Normalmente, os respectivos processos administrativos têm como objeto operações de crédito, cujos contratos, conforme ordinariamente aponta o órgão regulador, acabaram sendo celebrados sem as cautelas devidas, posto que não teriam sido observados os critérios de garantia, seletividade e liquidez e que, por isso, resultaram em inadimplemento por parte dos respectivos devedores, causando prejuízos às instituições financeiras. Muitas vezes, Independentemente da magnitude dessas operações e de seu do impacto relativamente ao patrimônio das instituições financeiras envolvidas, o Banco Central do Brasil considera que a conduta observada pelos administradores viria a caracterizar a denominada “infração grave na condução dos negócios de interesse da sociedade”. Em vista disso, conclui pela ocorrência de violação ao contido no § 4º, do art. 44, da Lei 4.595/64,182 o qual, no equivocado entendimento daquela 182 “Art. 44 – As infrações aos dispositivos desta Lei sujeitam as instituições financeiras, seus diretores, membros de conselhos administrativos, (...), às seguintes penalidades, sem prejuízo de outras estabelecidas na legislação vigente: I – advertência; II – multa pecuniária variável; III – suspensão do exercício de cargos; IV – inabilitação temporária ou permanente para o exercício de cargos de direção na administração ou gerência em instituições financeiras; V – cassação da autorização de funcionamento das instituições financeiras públicas, exceto as federais, ou privadas; VI – detenção, nos termos do § 7º deste artigo; VII – reclusão, nos termos dos artigos 34 e 38, desta Lei. 134 autarquia, é considerado como dispositivo que tipifica comportamento administrativamente ilícito. É oportuno registrar que é de largo domínio a idéia, aparentemente singela, de que, no dizer de Seabra Fagundes, cumpre à Administração Pública aplicar a lei de ofício, o que vem a representar o cânone máximo do Direito Administrativo, o qual se presta, essencialmente, a estabelecer o balizamento legal da atividade estatal, em face do conjunto dos interesses privados, particularmente quando diante de relações de sujeição do indivíduo em contraposição ao Estado. É exatamente em virtude da extrema importância conferida a essa questão que o princípio da legalidade foi alçado ao nível constitucional, surgindo estampado expressamente no art. 37 da Carta Magna, o qual determina a sua indispensável observância pela Administração Pública no desenrolar de quaisquer das suas atribuições legais. A referência à lei no texto constitucional é de ser entendida no seu sentido amplo, significando que deve a Administração Pública, sobretudo, atuar conforme o Direito e, ao exercer as competências que lhe são traçadas pelo ordenamento jurídico, aplicando a lei de ofício, deve fazê-lo de maneira não abusiva, fruindo moderadamente do direito de que é titular, sob pena de sua atuação não encontrar correspondência com a legalidade exigida. Cabe considerar, por um lado, que aquela norma inserida no art. 187, da Parte Geral, do vigente Código Civil, inquestionavelmente tem como destinatária também a Administração Pública, como sujeito de direito que cometerá ato ilícito se quando do seu exercício exceder “manifestamente os (...) § 4º - As penas referidas nos incisos II, III e IV deste artigo serão aplicadas quando forem verificadas infrações graves na condução dos interesses da instituição financeira ou quando da reincidência específica, devidamente caracterizada em transgressões anteriormente punidas com multa.” 135 limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.183 Nessa passagem, é oportuno atentar que nossa vigente constituição, de forma inaugural, trouxe para o seu conteúdo os balizamentos que devem orientar a Administração Pública na condução de processos administrativos e, como frisa Odete Medauar, “a Constituição de 1988 contém preceito expresso e direto para o processo administrativo em geral”. Aduz a autora que tal postura do legislador constitucional “disciplina, por conseguinte, atividades da Administração, circunscrevendo o poder discricionário”, e que isso “traz nova ordem de certeza e garantia nas relações entre Administração e administrados, um dos pontos principais das preocupações atuais do direito administrativo”. Isso resulta da própria conformação legal imanente ao Estado de Direito, a qual submete o aparelho estatal à plena submissão ao princípio da legalidade, entendido este, como leciona Eros Roberto Grau184, “como regra de conteúdo da atividade da Administração” o que, segundo o autor, promove “o deslocamento do ponto de sustentação do poder de polícia de uma ‘natural e imanente’ competência da Administração para o que tenho referido, neste texto, como ‘bloco da legalidade’.” Sustenta aquele doutrinador que “o poder de polícia, pois, enquanto função administrativa, como toda ela, é de ser entendido, como dever-poder, como atividade sub-legal” e que, “por isso mesmo, de outra parte, parece-me equivocada a alusão a ele como faculdade discricionária”. 183 A processualidade no Direito Administrativo, RT, p. 73/74: “Sob outro aspecto pode se associar processo administrativo e Constituição: o processo administrativo representa um dos meios pelos quais, na atividade administrativa, se concretizam princípios e normas constitucionais; significa, portanto, um núcleo que abriga regras substanciais da atuação administrativa e do ordenamento, de modo conforme aos princípios constitucionais”. 184 Poder de Polícia: Função administrativa e princípio da legalidade: o chamado direito alternativo, Revista Trimestral de Direito Público 1, p. 95/96. 136 No que se refere à discricionariedade eventualmente resultante do exercício daquela espécie de função administrativa, Eros Roberto Grau entende que “à administração não pertinem funções discricionárias”, posto que “há, sim, atos em que ela pode exercitar margem de discricionariedade e atos a respeito dos quais a atividade administrativa é totalmente vinculada”. Assevera o ministro que o “poder de polícia consubstancia atividade sub-legal, função administrativa, dever-poder, e que a Administração, pois, no seu exercício, está abrangida por um vínculo imposto à sua vontade (dever)” e que “deve exercitá-lo prestando devido acatamento à legalidade, regra de conteúdo de sua atuação. Ou não deve – isto é, não pode – exercitá-lo”. Conclui o autor ponderando que “se o caso de dever exercitá-lo – isto é, se houver norma dispondo neste sentido – pode, ao fazê-lo, fazer tudo quanto deva fazer, mas apenas isso, nada mais”, e que “não pode fazer mais do que deve fazer”. Segundo Carlos Ari Sundfeld,185 “inexiste poder para a Administração Pública que não seja concedido pela lei: o que ela não concede expressamente, nega-lhe implicitamente” e “por isso, seus agentes não dispõem de liberdade – existente apenas para os indivíduos considerados como tais – mas de competências, hauridas e limitadas na lei”. Registra ainda Sundfeld, logo a seguir, que “a ligação da Administração Pública com a lei é, portanto, extensa e inafastável, podendo ser resumida como segue: a) seus atos não podem contrariar, implícita ou explicitamente, a letra, o espírito ou a finalidade da lei; b) a Administração não pode agir quando a lei não autoriza expressamente, pelo que nada pode exigir ou vedar aos particulares que não esteja previamente imposto nela”. 185 Direito Administrativo Ordenador, Malheiros, São Paulo, 1997, 1ª ed., 3ª. tiragem, p. 29/30. 137 Abordando a questão sob um ângulo ínsito aos processos administrativos sancionatórios, Rafael Munhoz de Mello186 anota que, “além da necessária previsão em lei tanto da infração como da sanção (princípio da legalidade), é preciso que haja na lei formal uma completa descrição da situação de fato que autoriza o exercício da competência punitiva, restringindo ao máximo o campo da discricionariedade administrativa (...)”. Ainda de acordo com Munhoz, “os três princípios – lex scripta, lex certa e lex praevia – estão intimamente relacionados: a sanção administrativa só será validamente aplicada se estiver prevista em lei formal anterior ao fato, que descreve com clareza a conduta ilícita e a própria medida punitiva”. No mesmo diapasão, tratando do princípio da tipicidade, o qual decorre do próprio princípio da legalidade, Nelson Eizirik187 leciona que “(...) da mesma forma que ocorre no direito penal, também no contexto do direito administrativo sancionador é necessário, além da lex praevia (princípio da legalidade ou reserva legal), também a lex certa (princípio da tipicidade), de vez que para que alguém seja punido é indispensável que tenha o prévio conhecimento da proibição da prática de determinada conduta”. Conforme o doutrinador, “o princípio da legalidade, garantia basilar do Estado Democrático de Direito, destina-se a resguardar a liberdade e os direitos do cidadão frente à atuação arbitrária do Poder Publico”, sendo que “o princípio é objeto de dupla menção constitucional”, já que “prescreve a Constituição, primeiramente, que ‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’ (...), e também que a Administração, por se encontrar sujeita ao referido princípio, apenas poderá proceder quando e conforme autorizada pelo ordenamento jurídico vigente (Constituição Federal, art. 37, caput)”. 186 Princípios Constitucionais de Direito Administrativo Sancionador, As sanções administrativas à luz da Constituição Federal de 1988, Malheiros, São Paulo, 2007, p. 119. 187 Ob. cit. p. 279 e 284. 138 Nessa mesma senda, Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari188 afirmam que “o princípio da legalidade, expressamente previsto no art. 37 da Constituição Federal, significa que a administração pública é uma atividade que se desenvolve debaixo da lei, na forma da lei, nos limites da lei e para atingir fins assinalados pela lei”. Advertem que “entenda-se por ‘lei’ tanto uma específica modalidade de ato normativo quanto o sistema jurídico como um todo, compreendendo, evidentemente, a Constituição Federal”. Frisam os autores189 que “é sempre necessária a previsão legislativa como condição de validade de uma atuação administrativa: mas isso, porém, não e suficiente”, posto entenderem que “não basta a existência de uma previsão geral e abstrata: é essencial que, no caso concreto, tenham efetivamente acontecido os fatos aos quais a lei estipulou uma consequência”. Ressaltam os doutrinadores que “essas considerações são especialmente valiosas no caso de atos praticados no curso ou na decisão do processo administrativo por autoridade investida de competência discricionária”, na medida em que, conforme explicitam, “está totalmente superado o entendimento segundo o qual a discricionariedade que a lei confere ao agente legitima qualquer conduta e – pior que isso – impede o exame pelo Poder Judiciário”. 188 Processo Administrativo, Malheiros, São Paulo, 2001, p. 55/6. Silvana Bussab Endres. A imprescindibilidade da motivação do ato administrativo em face do princípio da legalidade, in Princípios Informadores do Direito Administrativo, p. 212: “A doutrina assim enfocou essa questão: ‘Sendo assim, os atos administrativos encontram-se jungidos ao disposto na lei que prevê sua edição, só podendo ser editados na hipótese de ocorrerem no plano fático as circunstâncias que a própria lei estabelece como necessárias ao exercício da competência atribuída. Assim, de um lado, o ato administrativo para ser válido deve apoiar-se numa disposição legal que o preveja e, ao mesmo tempo, deverá ser emanado apenas e tão somente se a situação de fato concretamente verificada for aquela que a própria lei contempla como autorizadora da sua emanação. ‘Todo ato administrativo, para ser válido, deve apoiar-se numa dupla demonstração: a) de existência de lei autorizadora da sua emanação: o denominado motivo legal; e, b) da verificação concreta da situação fática para a qual a lei previu o cabimento daquele ato: o denominado motivo de fato’.” 189 139 A propósito, deve ser registrado que, da simples leitura do dispositivo legal acima reproduzido (art. 44, da Lei 4.595/64), resta cabalmente evidenciado que os mesmos não descrevem, de forma alguma e, como exigido, nenhum fato típico, não se erigindo, assim, em preceitos primários incriminadores, de modo a possibilitar que sejam cotejados com uma ação ou omissão humana, para fins de verificação de eventual ilicitude. O caput daquele artigo simplesmente enuncia as penalidades que a seguir enumera, a serem aplicadas caso verificadas infrações aos seus dispositivos ou a normas infralegais dele derivadas, ao passo que o seu parágrafo 4º tem a natureza de agravante genérico, prevendo a imposição de penas de maior rigor, caso materializadas as situações que expressamente menciona. Importante notar que também nossos tribunais, ao se manifestarem especificamente a respeito dessa questão, revelam absoluta harmonia com o posicionamento doutrinário, concluindo pela atipicidade da norma sob exame. “II – DO MÉRITO No mérito, com razão a parte autora. (...) Repita-se, mais um vez, que a descrição pormenorizada de qualquer penalidade deve estar expressa em lei. Nesse sentido, tendo em vista que o art. 44, § 4° da Lei 4595/64 n ão descreve os fatos tidos pela parte ré como ilícitos, não existe embasamento legal para a penalidade combatida nos autos, devendo esta ser anulada, portanto. Conforme já decidiu o E. Tribunal Regional Federal da 4ª Região: “No direito penal não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. O mesmo princípio da legalidade é aplicável no Direito Administrativo. Não há infração 140 administrativa sem que a descrição da infração e sua pena estejam previstas em lei. Não estando o fato subsumido no tipo descrito na lei, o ato é atípico e impunível no âmbito administrativo”. (5ª Turma, Autos n°89.0405127-4, j .29.08.1996, DJU 16.10.1996, p. 78726, Relator Juiz João Surreaux Chagas). Sobre o tema, Silvânio Covas e Adriana Laporta Cardinali190 informam que “no Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, grande discussão rodeia o conceito de ‘infração grave’ na condução dos interesses da instituição financeira, que consta da Lei 4.595/64, dado que muitas das sanções aplicadas pelo Banco Central do Brasil se fundamentam no cometimento dessa conduta, dotada de amplitude em sua definição”. Aduzem que “em algumas oportunidades tem havido manifestação no sentido de que a sanção administrativa decorrente de infração grave, ainda que embasada em conceito genérico, é admissível desde que, na motivação do ato administrativo, seja possível aferir o correto enquadramento da falta e a adequada dosagem da pena”. Sustentam aqueles autores, com a nossa inteira concordância, que “para a aplicação da penalidade nos termos do art. 44, § 4º, da Lei 4.595/64 é necessária a exteriorização dos motivos da decisão da autarquia, com a indicação dos preceitos legais violados, o que deve ocorrer, inclusive, já na intimação”. Isso porque, segundo também entendem, “se a conduta não é vedada por lei, não há que se falar em infração grave”, pois “é o que dispõe o Decreto-Lei nº 448/69, cujo objeto é aplicação de penalidades às instituições financeiras, às sociedades e empresas integrantes do sistema de distribuição de títulos ou valores mobiliários e aos seus agentes autônomos (...)”. 190 Ob. cit. p. 141. 141 De acordo aos mesmos autores, “não é correto o apenamento do administrado, quando da inexistência de norma violada, ou melhor, quando a conduta praticada, o fato, não se encontra proibido no ordenamento jurídico vigente. Essa conclusão decorre não só do princípio da motivação, mas também do próprio princípio constitucional da legalidade, inserto no art. 5º, inciso II”. Concluem ponderando, com absoluta pertinência, que “o enquadramento da conduta como falta grave é de competência administrativa, tratando-se de atividade discricionária, mas não arbitrária, a ser exercida nos estritos limites da lei”. Naquilo que respeita especificamente à discussão a respeito da caracterização de determinada conduta como infração grave, bem ilustra a questão o processo administrativo punitivo Pt. nº. 0601347264, instaurado pelo Banco Central do Brasil, no qual os administradores de instituição financeira são acusados de “deferir sistematicamente, operações de crédito sem a observância dos princípios de seletividade, garantia, liquidez e diversificação de riscos, em desacordo com as práticas de boa gestão e segurança operacional, o que caracteriza infração de natureza grave”, o que, segundo a acusação formulada, viria a caracterizar violação ao dispositivo legal acima referido e reproduzido. Acerca da correta utilização do conceito indeterminado “infração grave”, deve ser observado que o DL 448/69 concede a autorização legal ao Banco Central do Brasil para caracterizar uma determinada infração como de natureza grave, porém estabelecendo os requisitos ou condições que devem ser observados para que um apontado ilícito administrativo venha a ser considerado como uma falta grave. Assim, aquela norma estabelece, em seu artigo 1º, que “o descumprimento de normas legais ou regulamentares pelas instituições financeiras, sociedade e empresas integrantes do sistema de distribuição de 142 títulos e valores mobiliários, ou pelos seus agentes autônomos, contribuindo para gerar indisciplina ou para afetar a normalidade do mercado financeiro e de capitais será por decisão do Banco Central do Brasil, considerado falta grave e por ele punido com inabilitação temporária (...)”. O preceito legal acima transcrito não deixa qualquer margem a dúvidas no que se refere às condições exigidas para a caracterização da chamada infração grave, na medida em que expressamente exige a presença de elementos relacionados à conduta tida como ilícita no sentido de que a mesma tenha contribuído para “gerar indisciplina ou para afetar a normalidade do mercado financeiro e de capitais”. Afora isso, necessário também se faz que a autoridade administrativa promova a devida motivação do ato acusatório que veio a praticar, demonstrando a ocorrência, no mundo fenomênico, daquelas circunstâncias mencionadas no dispositivo legal antes referido. No entanto, não foi isso o que ocorreu no caso amostrado e, via de regra, em todos dessa natureza, nos quais a Administração Pública não se preocupa em evidenciar que as condutas pretensamente ilícitas tenham sido de alguma forma exteriorizadas, de modo a contaminar o mercado financeiro ou de capitais. Assim, muito embora referidas condutas tenham seus eventuais efeitos restritos ao âmbito interno da própria instituição financeira, sem que exista a mínima comprovação nos autos em sentido contrário, acabam por ensejar, ao arrepio da lei, a instauração de processos administrativos e a conseqüente punição dos administrados sob a acusação de haverem praticado infração de natureza grave, cuja pena prevista é a inabilitação para o exercício de cargos em instituições financeiras. 143 Assim se passa na medida em que, nesses casos, a Administração Publica, ou seja, o Banco Central do Brasil, de forma equivocada e a pretexto de exercício de competência discricionária, no caso, de forma ilegítima, entender estar autorizada a conferir concretude ao conceito jurídico indeterminado veiculado no normativo, qualificando como graves determinados comportamentos, de forma absolutamente dissociada do direito posto. 144 d - quanto ao princípio da presunção de inocência Estabelece a Constituição Federal, em seu artigo 5º. Inciso LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, preceito este que concretiza o princípio da presunção de inocência no campo específico do direito penal, mas que tem sido transportado, com ampla concordância doutrinária, para quaisquer processos de natureza sancionatória,191 A propósito, vale ressaltar que tanto a abordagem doutrinária do princípio, quanto a sua invocação como vigoroso argumento de defesa ocorrem, ordinariamente, tendo como pressuposto um processo daquela espécie já instaurado e em pleno curso na instância própria.192 No entanto, o acurado exame do princípio conduz a uma necessária ampliação do seu espectro de incidência, já que o mesmo comporta diferentes facetas que vêm a lhe conferir variado conteúdo e a demandar sua aplicação em situações outras que não unicamente àquela acima referida, sob pena de não vir a se materializar a garantia constitucionalmente assegurada, na sua devida extensão.193 191 Daniel Ferreira. ob. cit. p. 119: “Reportando ao direito administrativo sancionador, significa dizer que se impõe à Administração somente ao final de regular processo, inclusive após esgotada a via recursal reconhecer, como tal, o infrator. Antes disso só haverá um juízo de probabilidade fática e, no máximo, uma presunção de veracidade acerca do fato que serviu como suporte para a edição de um auto de infração, não sendo constitucionalmente de se admitir imediata imposição de sanção.” 192 Silvânio Covas e Adriana Laporta Cardinali. ob. cit. p. 122: “Trata-se de um dos pilares do Estado de Direito, segundo o qual há uma presunção juris tantum da não culpabilidade daqueles que figurem como réus nos processos penais condenatórios. A mera existência do processo não torna o réu culpado, pelo contrário, o seu ‘estado de inocência’ permanece até que transitada em julgado a sentença penal condenatória, a única que pode afastar essa presunção.” José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, 27ª ed., Malheiros, São Paulo, 2006, p. 441: “Garantias da presunção de inocência, segundo as quais ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória (LVII) (...); a garantia de inocência e de que ninguém deve sofrer sanção sem culpa é que fundamenta a prescrição do inciso LXXV, segundo o qual ‘o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença’.” 193 Derecho Administrativo Sancionador, Alejandro Nieto, Cuarta Edición totalmente reformada, Tecnos, Madrid, 2005. 145 Vale dizer que uma das conseqüências mais importantes do princípio da presunção de inocência diz respeito à distribuição do ônus da prova, o qual, nos processos da espécie, conduzidos pelos órgãos reguladores de mercado tratados nesse trabalho compete, sempre, à autoridade administrativa que exerce o poder de polícia. Essa questão está diretamente relacionada à exigência de justa causa quando da formulação de acusação aos administrados, inserindo-se dentre os amplos direitos constitucionais que lhes são garantidos, no sentido de que não venham os mesmos a ser indevidamente indiciados ou denunciados quando não se revelem presentes os elementos minimamente necessários para tanto.194 Tais garantias, ordinariamente invocadas nos domínios do Direito Penal devem, sob pena de manifesta ilegalidade, serem observadas no contexto do Direito Administrativo Sancionatório, na medida em que a falta das condições exigidas pela lei vêm a determinar a rejeição da intimação ou acusação em processos administrativos punitivos, sempre que não sejam agregados aos autos informações ou documentos que possam minimamente fundamentá-las, no que respeita aos requisitos da materialidade e autoria. Naquilo que diz respeito especificamente à materialidade, a peça acusatória deverá estar embasada em fatos que restem devidamente demonstrados, sendo de se afastar quaisquer acusações originadas de meras conjecturas ou suposições. No que se refere à autoria, cumpre à acusação deixar evidenciados os elementos que apontem, ainda que de forma indiciária, observados os limites e 194 Fernando da Costa Tourinho, Processo Penal, Vol 1, Saraiva, São Paulo, 1977, p. 486: “Procurou o legislador evitar acusações temerárias, sem qualquer fundamento (...). Não basta a simples afirmação que houve crime e que fulano ou sicrano foi seu autor. É preciso que o pedido da acusação consubstanciado na denúncia ou queixa, seja afinal apreciado, que no limiar da ação veja o magistrado se o que se pede traz a nota da idoneidade.” 146 condições em que essa espécie de prova é admitida em processos punitivos, a eventual ação ou omissão praticada pelo administrado e que o vincule à conduta tida como reprovável, de modo a justificar a responsabilidade que a Administração Publica deseja lhe imputar. A atuação repressiva das autoridades administrativas somente poderá ser legitimamente levada a cabo quando resulte estritamente necessária, idônea e proporcional aos objetivos perseguidos em sua atuação.195 Por força disso, a instauração de procedimentos administrativos e a aplicação de penalidades nessa esfera, quando ausentes os princípios que devem reger a atuação do Poder Público, vêm sendo questionadas em virtude dos danos que efetivamente causam sobre a honra e a imagem dos administrados, particularmente em segmentos da economia nos quais aqueles valores se apresentem como elementos indissociáveis. A esse respeito, oportuno registrar que a vigente Constituição Federal estabelece em seu artigo 37, § 6º., que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa”. Trata-se, no caso, de efetiva previsão de responsabilidade de natureza objetiva, a qual prescinde, com sabido, de considerações subjetivas relativamente à conduta do agente, nada importando se a mesma se apresenta de maneira culposa ou dolosa, bastando apenas a demonstração do nexo causal e do prejuízo sofrido pelo administrado.196 195 Nelson Eizirik, Reforma das S/A & Mercado de Capitais, Renovar, Rio de Janeiro, 1997, p. 179. Egon Bockmann Moreira, Processo Administrativo – Princípios Constitucionais e a Lei 9.784/99, Malheiros, São Paulo, 2000, p. 106: “Em face daqueles que sofreram a lesão a responsabilidade administrativa é ‘objetiva’, porque não necessita da prova de dolo ou culpa do causador do dano. A justificação do indenizar abstrai o elemento subjetivo. Tampouco é relevante a legalidade ou ilegalidade da conduta danosa. O dever de reparar prescinde dessas informações. Inexiste 196 147 É inquestionável que o preceito constitucional estabelecendo o dever de reparar o prejuízo causado aplica-se à atuação da Administração Pública no exercício do poder de polícia, mormente por ocasião da indevida instauração de processos administrativos punitivos desprovidos de elementos necessários à demonstração, ainda que minimamente, da materialidade e da autoria e, mais ainda, nos casos em que, eventualmente, vier a ser caracterizado o desvio de poder.197 Assim se passa de vez que, como observa a respeito Luiz Roberto Barroso, a própria instauração do processo administrativo sancionatório gera, inegavelmente, um constrangimento e será injustificável e abusivo se 198 desproporcional ou descabido. Disso resulta que a atuação dos participantes do mercado, sejam pessoas físicas ou jurídicas, por repousar, basicamente, na reputação pelos mesmos desfrutada, virá a sofrer de imediato e, muitas vezes, de maneira irremediável, os reflexos negativos decorrentes de seu indevido indiciamento em processos de cunho repressivo.199 Em que pesem a clareza e a gravidade das ponderações doutrinárias pertinentes ao tema, a Comissão de Valores Mobiliários tem pautado suas qualquer subordinação à qualidade da conduta do agente, mas unicamente ao objeto da reparação: o prejuízo.” 197 Egon Bockmann Moreira, ob. cit. 119: “Por outro lado, também a instalação ex officio indevida gera responsabilidade à Administração. Imagine-se a hipótese de processo de apuração de responsabilidade funcional instalado espontaneamente pela autoridade lastreado em pura perseguição pessoal. Trata-se de nítido desvio de poder, apto a gerar danos patrimoniais e morais,, que importa responsabilidade da Administração.” 198 Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais 17/96, Banco Central do Brasil – Comunicação ao Ministério Público para fins penais: “A repercussão negativa sobre o nome e a imagem do investigado ou do acusado não é apenas uma evidência que decorre da observação da realidade. A própria ordem jurídica a reconhece e procura criar instrumentos aptos a evitar um dano inútil à imagem das pessoas quando não há elementos de suspeita suficientes para submetêlos a essa restrição.” 199 Modesto Carvalhosa e Nelson Eizirik, A nova lei das S/A, Saraiva, 2000, p. 510: “O exercício de atividades no âmbito do mercado de capitais depende primordialmente da credibilidade e da reputação que o profissional desfruta no mercado. Assim, a divulgação de instauração de inquérito administrativo contra determinada pessoa causará prejuízos imediatos e praticamente irreparáveis à imagem de tal pessoa perante o mercado.” 148 decisões, em considerável contingente de casos, no sentido da instauração de processos administrativos punitivos, de forma a ignorar o princípio da presunção de inocência, promovendo, de forma alheia ao regime jurídico aplicável, uma verdadeira inversão do ônus da prova. Ou seja, primeiro aquele ente autárquico acusa e, depois, os administrados é que devem demonstrar as razões que justifiquem a sua inocência ou não participação nos ilícitos que lhes são apontados. Assim é que em diversas vezes aquela autarquia formula as acusações que vem a entender como devidas e promove a conseqüente responsabilização dos administrados, sem contudo agregar aos pertinentes processos os elementos de convicção suficientes quanto a deixar ao menos evidenciadas a materialidade e a autoria. Isso vem ocorrendo principalmente em processos sancionatórios instaurados em virtude de aquela entidade concluir pelo questionamento, quanto à licitude, de determinadas operações conduzidas no âmbito do mercado de capitais, em bolsas de valores ou de mercados futuros, decididas e implementadas por investidores institucionais, especificamente por entidades de previdência privada. Nesses casos, a Comissão de Valores Mobiliários, de forma atentatória aos limites próprios ao exercício de seu poder de polícia, particularmente quanto à competência discricionária que lhe é deferida para formular acusações às pessoas sujeitas à sua fiscalização, vem promovendo indiscriminado chamamento aos autos dos mais diversos integrantes do mercado de valores mobiliários. Assim é que, a pretexto de um suposto e nunca demonstrado conluio entre um formidável universo de participantes do mercado, aquele órgão regulador vem formulando acusações, indistintamente, sem promover a necessária 149 individualização das ações ou omissões praticadas por cada um dos acusados, representados, nesses casos, por entidades de previdência privadas, seus gerentes financeiros, corretoras de valores e seus diretores e operadores e, ainda, comitentes que tenham, de qualquer forma, comprado ou vendido, ainda que não diretamente, valores mobiliários cuja negociação foi iniciada por aqueles investidores institucionais e ofertadas publicamente ao mercado. Dessa forma veio a ocorrer, por exemplo quando da instauração do Processo Administrativo Sancionador CVM – 16/2005, no qual aquela autarquia concluiu que “configurado ficou, assim, que as operações ora investigadas constituíram ‘esquema’ que, com grande sucesso, proporcionou às contrapartes da CENTRUS resultados extraordinariamente positivos em detrimento desta, tendo referido ‘esquema’ consistido na montagem e execução de operações envolvendo o lançamento de opções, por parte da Fundação, a preços bem inferiores aos preços justos”. Àquela ocasião, concluiu-se ainda que “tal ‘esquema’, em que a CENTRUS sempre foi colocada numa posição indevida de desequilíbrio perante os demais participantes da operação, envolveu além de diretores e gerentes da CENTRUS (...), a rede formada pelas corretoras e profissionais a elas ligados (...), os quais participaram ativamente na montagem e minuciosa execução desse ‘esquema’ ora relatado, bem como formada pelos comitentes que receberam os vultosos lucros aqui tratados (...)”. Foi com base na pressuposta existência de um “esquema” dessa ordem e magnitude, congregando imensa variedade de agentes do mercado de valores mobiliários, envolvendo instituições, administradores e comitentes, que se promoveu a instauração daquele processo administrativo, formulando idênticas acusações dirigidas a mais de 170 (cento e setenta) pessoas físicas e jurídicas. 150 No que se refere especificamente ao teor das acusações perpetradas, observa-se uma injustificável identidade, na medida em que todos os supostamente envolvidos foram chamados aos autos para apresentarem suas razões de defesa em virtude de “terem participado de parte das 217 operações investigadas no presente inquérito, no mercado à vista e/ou de opções, de 1997 a 2001”, envolvendo a Fundação Banco Central de Previdência Privada – CENTRUS. Em complemento àquelas acusações, veio a ser também entendido, em relação a tais operações que, no que diz respeito a todas aquelas pessoas, “ficou configurada a ocorrência de práticas não eqüitativas, de operações fraudulentas e de criação de condições artificiais de demanda, oferta e preço de valores mobiliários, práticas essas definidas, respectivamente, pelas alíneas “d”, “c” e “a” do item II, e vedadas pelo item I, ambos da Instrução CVM nº 08/79”. Releva ainda notar que, precedentemente à instauração do mencionado processo administrativo, ainda na fase de inquérito, a Comissão de Valores Mobiliários notificou cerca de mais de 3 (três) centenas de pessoas para que respondessem questões que lhes foram formuladas, a fim de instruir aquele procedimento que veio a originar o processo administrativo de que se trata. Importante ainda salientar que, certamente, com base em experiências similares anteriores, a decisão a ser prolatada pelo Colegiado daquela Comissão de Valores Mobiliários decidirá, se for o caso, pela efetiva responsabilização e conseqüente imposição de penalidades a apenas algumas poucas pessoas, em relação às quais venha a restar devidamente comprovadas a materialidade e a autoria. No entanto, até que alcançado esse resultado, ainda em primeira instância administrativa, cerca de 170 (cento e setenta) pessoas terão sido submetidas às agruras de um processo administrativo, sendo colocadas na 151 indevida posição de acusados, tendo seus nomes publicamente divulgados no próprio sítio eletrônico daquela autarquia na rede mundial de computadores e, mais ainda, tendo que demonstrar a sua inocência diante de acusações aleatoriamente formuladas. Do mesmo modo veio a ocorrer quando da instauração do Processo Administrativo Sancionador 03/05, no qual a Comissão de Valores Mobiliários concluiu que “os negócios realizados pela FACEB de 1999 a 2001 (...) compunham operações estruturadas que consistiam na compra de papéis, no mercado à vista e o lançamento (venda) simultâneo de uma série de opções de compra sobre essas ações”. Segundo o relatório então produzido e que veio a embasar as acusações formuladas, “não bastasse a FACEB efetuar operações estruturadas que limitavam os lucros, em caso de alta dos ativos subjacentes e que não limitavam o prejuízo, em caso de baixa desses ativos, a fundação, por ocasião do lançamento das opções, recebia prêmios consideravelmente inferiores aos preços justos calculados pelo modelo de Black & Scholes”. Nesse processo administrativo, particularmente quanto às sociedades corretoras que intermediaram as operações, as quais são em número superior a uma dezena, o órgão regulador posicionou-se no sentido de que as mesmas “participaram ativamente na montagem e minuciosa execução desse esquema ora relatado em que a FACEB sempre era colocada numa posição indevida de desequilíbrio perante os demais participantes das operações”. Quanto aos comitentes que atuaram na compra e venda daqueles valores mobiliários, cuja quantidade é superior a 5 (cinco) dezenas, concluiu-se que “(...) sem a efetiva participação dos comitentes com estreita ligação entre si e com as corretoras envolvidas, o esquema não poderia ter sido implementado”, 152 como também que “os lucros auferidos pelas contrapartes da FACEB já estavam fixados por ocasião do lançamento das opções”. Mais uma vez, com fundamento na suposta existência desse fabuloso esquema, envolvendo essa enorme quantidade de pessoas e instituições, a Comissão de Valores Mobiliários promoveu o indiciamento de todos aqueles que considerou terem dele participado, sem contudo provar a materialidade, representada pela suposta existência do conluio ou mesmo a autoria, ou seja, a efetiva participação nele de cada um dos acusados. O processo em questão veio a ser julgado no mês de julho do corrente ano de 2008 e o Colegiado da mesma Comissão de Valores Mobiliários, unanimemente, decidiu pela improcedência das acusações formuladas, absolvendo todos que houvera anteriormente acusado. Casos desse jaez denotam, já numa primeira aproximação, a falta de plausibilidade, decorrente de mero exercício de lógica, quanto à existência em um mercado caracterizado por extrema volatilidade e pela possibilidade de interferência nos ambientes bursáteis operacionais, por parte de qualquer interessado, de um “esquema” do qual participe tão expressivo número de pessoas. Posto isso, ressalta evidente a despreocupação da autoridade administrativa em observar o regime jurídico que lhe é aplicável, entendendo estar, por força da competência discricionária que lhe é, diga-se de passagem, limitadamente deferida, autorizada a promover a indiscriminada responsabilização de administrados. 153 e - quanto ao princípio da “non reformatio in pejus” Em sede de direito penal pátrio, decorre do seu próprio regime jurídico, conforme amplo entendimento doutrinário a respeito, que o recurso eventualmente interposto junto à instância ad quem, por parte daquele que veio a ser punido pelo julgador a quo, não pode resultar em reforma, para pior, da pena que lhe fora anteriormente imposta. Dessa forma, a decisão proferida no julgamento anterior da questão não pode, em sede de recurso voluntário, vir a ser objeto de decisão que venha a impor penalidade mais gravosa, piorando a situação do recorrente, por força da aplicação do princípio da non reformatio in pejus. Este posicionamento, em virtude da já comentada aplicação de princípios de direito penal ao direito administrativo sancionatório, tendo em vista a comum natureza punitiva de ambas as províncias do direito,200 como também referido em outra passagem, tem sido reiteradamente observado nos julgamentos das instâncias administrativas recursais, particularmente pelo Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional. Assim é que, passadas praticamente 3 (três) décadas de funcionamento daquele órgão colegiado, não há um único registro de julgamento em que a decisão de primeira instância, proferida pelo Banco Central do Brasil ou 200 Edílson Pereira Nobre Júnior. Sanções Administrativas e princípios de direito penal, Revista de Direito Administrativa, 219:127, 2000. p. 128: “Essa distinção ontológica, no entanto, não pode olvidar que, tanto no ilícito criminal como no administrativo. está-se diante de uma situação ensejadora da manifestação punitiva do Estado. Segue, em linha de princípio, nada haver a obstar, antes a recomendar, serem os postulados vetores da aplicação das punições criminais, cuja sistematização doutrinária e legislativa é bem anterior á ordenação das sanções administrativas, a estas aplicáveis. Há necessidade, porém, de restarem sempre consideradas as peculiaridades das últimas.” 154 pela Comissão de Valores Mobiliários, tenha sido reformada com a imposição, ao administrado, de pena mais severa do que aquela já aplicada. Dessa maneira, o comentado princípio vem se conservando respeitado, por força da robustez dos fundamentos que o justificam, os quais vêm a se constituir em desdobramentos da aplicação de outros princípios e valores que visam assegurar certas garantias constitucionais e determinados direitos fundamentais originados de lenta e sólida construção na ciência do Direito e que estão devidamente consagrados. Um fundamento basilar e que dá sustentação à aplicação do princípio da non reformatio in pejus reside na própria Constituição, a qual estabelece em seu artigo 5º, inciso LV, que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Evidentemente, não restaria garantido o direito constitucionalmente deferido se não pudesse o mesmo ser exercido na amplitude que lhe confere a norma, caso o litigante se visse constrangido quanto à decisão de recorrer, diante da possibilidade de que o invocado reexame da matéria pudesse lhe ser prejudicial. Por certo, resultaria fragilizado o princípio do contraditório na sua devida magnitude, posto que em muitas situações estaria impedido o seu desenvolvimento na plenitude que lhe atribui o texto constitucional, na medida em que o litigante deixaria de exercê-lo tendo em vista o risco envolvido, o que não se coaduna com a natureza do direito em questão. 155 Essa hipotética limitação relativamente a direito constitucionalmente garantido certamente viria a retirar a efetividade, no plano jurídico, da garantia do duplo grau de jurisdição, o qual se erige em imperativo de ordem pública, como entendido por Sérgio Ferraz e Adilson de Abreu Dallari.201 Do mesmo teor é a posição de Lúcia Valle Figueiredo, ao afirmar que “finalmente, há proibição da reformatio in pejus, não obstante o princípio da legalidade que preside toda a atividade administrativa”, e que “se houvesse a possibilidade de ser agravada a pena, por evidente que esse fato obstaculizaria a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição”. Posto isso, afigura-se sólida a posição doutrinária a respeito do tema no sentido de que a proibição da reformatio in pejus tem fundamentos de natureza constitucional, já que amparada não só no princípio garantidor da ampla defesa e do contraditório, mas também na garantia do duplo grau de jurisdição. Aliás, já antes da promulgação de nossa vigente constituição, Régis Fernandes de Oliveira202 explanava que “dedutível também dos princípios constitucionais que dão sustentação à posição dos que são acusados perante a Administração Pública é a inadmissibilidade de julgamento que possa piorar a situação do administrado quando apenas ele for o recorrente. Se o recurso é, como se viu, garantia do particular, nenhum sentido jurídico terá que pudesse o 201 Ob. cit. p. 179: “Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (...) direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior. Ora, como ao processo administrativo se aplicam as mesmas garantais do judicial (Constituição Federal, art. 5º,LIV e LV), como ‘os direitos e garantais expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais que a República Federativa do Brasil seja parte’ (Constituição Federal, art. 5º, § 2º, segue-se, inelutavelmente,que o duplo grau constitui garantia constitucional inarredável do processo administrativo).” 202 Processo administrativo e judicial (coisa julgada administrativa, RDTributário 58, São Paulo. RT, 1985, p. 100/01: “Seria absurdo jurídico que a Constituição Federal assegurasse os recursos inerentes à ampla defesa (§ 15, do art.153) e se pudesse admitir que tal garantia fosse utilizada em detrimento do administrado (...). Em suma, não tem aplicação no direito administrativo, à semelhança do direito penal (art. 617 do CPP), a reformatio in pejus”. 156 superior hierárquico, órgão colegiado competente para decidir, aumentar a pena imposta em primeiro grau”. Com base na vigente constituição, Adilson Dallari e Sérgio Ferraz203 entendem que os enunciados dos incisos LIV e LV, do artigo 5º rejeitam qualquer possibilidade de reformatio in pejus e, lembrando a estatura constitucional daqueles dispositivos, os autores em questão reafirmam a proibição da reforma para pior, ainda que isso venha a ser textualmente admitido por qualquer lei. Não obstante todas as posições doutrinárias referidas, o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, em questão de ordem suscitada pelo procurador da Fazenda Nacional que atuava junto àquele colegiado, veio a examinar o tema, precedentemente ao julgamento do Recurso 4.987, cujos recorrentes eram a KPMG – Auditores Independente e seu diretor. Os recorrentes já haviam sido penalizados em primeira instância administrativa pelo Banco Central do Brasil, que lhes aplicou pena pecuniária por suposta omissão no exercício de seus deveres, relativamente às normas de contabilidade e de auditoria, no conhecido episódio relativo ao Banco Nacional S/A, envolvendo contas-corrente fantasmas criadas com o fim de encobrir créditos inadimplentes que, se devidamente reconhecidos nos registros contábeis daquela instituição financeira, comprometeriam a sua situação patrimonial e provocariam a atuação do órgão regulador. 203 Ob. cit. p. 155: “Outra conseqüência das anteriores posições e do que dispõem dos incisos LIV e LV do art. 5º da Lei Maior é a rejeição, aqui, à reformatio in pejus (e pouco importa que leis a aceitem textualmente, pois a vedação é de estatura constitucional). A tutela da ampla defesa envolve a possibilidade de, sem ser surpreendida, a parte rebater acusações, alegações, argumentos ou interpretações tais como dialeticamente postos, para evitar sanções ou prejuízos. Ver sua posição agravada sem contraditório, quando sequer houve recurso da parte contrária, é validar a restrita defesa, e não a ampla defesa de que cuida a Constituição (...).” 157 Naquela ocasião, o procurador da Fazenda Nacional que oficiava no caso entendia, dada a gravidade dos fatos, que deveria a pena imposta ser majorada e, por isso, elaborou parecer a respeito e o submeteu à decisão do Colegiado para que este decidisse acerca da possibilidade de admissão da reformatio in pejus, mudando orientação até então observada naquela instância administrativa. O argumento central desenvolvido pelo representante da Fazenda Nacional era no sentido de que a Lei 9.784/99, a qual disciplina o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, expressamente autorizaria a reforma para pior, ao prescrever, em seu artigo 64, que “o órgão competente para decidir o recurso poderá confirmar, modificar, anular ou revogar, total ou parcialmente, a decisão recorrida, se a matéria for de sua competência”. Em complemento e referendando a tese proposta, no entendimento de seu autor, o parágrafo único daquele dispositivo estabelece que “se da aplicação do disposto neste artigo puder decorrer gravame à situação do recorrente, este deverá ser cientificado para que formule suas alegações antes da decisão” (grifamos). Interpretando conjuntamente esses dois dispositivos, o citado procurador da Fazenda Nacional concluiu que havia expressa autorização legal para a admissão, em sede administrativa, da reformatio in pejus, exigindo porém a norma que fosse o recorrente cientificado, a fim de formular alegações específicas a respeito antes da decisão, o que demandaria que essa questão fosse preliminarmente discutida. Quanto à alegada permissão legal, trata-se de interpretação meramente literal, isolada e que não resiste a uma abordagem sistemática, na 158 medida em que a possibilidade de reforma para pior é repelida pelo próprio regramento processual penal e, mais ainda, pela lei paulista de processo administrativo que, em seu artigo 49, veda expressamente a hipótese aventada. Afora isso, o artigo 65, caput, da mesma Lei 9.784/99, é expresso ao prever que “os processos administrativos de que resultem sanções poderão ser revistos, a qualquer tempo, a pedido ou de ofício, quando surgirem fatos novos ou circunstâncias relevantes suscetíveis de justificar a inadequação da sanção aplicada” e ao comandar, no seu parágrafo único, que “da revisão do processo não poderá resultar agravamento da sanção” (grifamos). Neste último dispositivo transcrito, o legislador foi expresso ao proibir a reformatio in pejus, de maneira clara e, ao contrário do pretendido, não há qualquer certeza quanto à sua admissão, nos temos da dicção do artigo 64 anteriormente citado, o que não permite, desse modo, assumir a conclusão sobre existência de autorização legal quanto à aceitabilidade do incremento da pena em instância administrativa recursal. Deve ser notado, ainda, que no caso do artigo 65, o legislador referese especificamente a sanção, o que não ocorre relativamente ao artigo 64, o que se explica pelo simples fato de que a lei respectiva disciplina o gênero processo administrativo, no âmbito da Administração Pública Federal, sendo que aquele de natureza sancionatória, aqui sob foco, é apenas uma de suas espécies. Assim, quando o legislador faz menção a processo do qual resulta sanção, preocupou-se em marcar a incidência do princípio da non reformatio in pejus, proibindo eventual agravamento da sanção, ao passo que, no artigo 64, ao fazer referência à ocorrência de eventual gravame, não está se reportando ao aspecto sancionatório e, por isso, a questão não foi objeto de previsão. 159 Evidentemente que, em processos administrativos de outras espécies, tais como os homologatórios ou mesmo naqueles próprios de certames de licitação, poderão ocorrer decisões administrativas que não apresentem conteúdo sancionatório, mas que, certamente, poderão resultar em gravame para a situação do recorrente. Somadas essas considerações àquelas outras de natureza constitucional já comentadas e que se traduzem nas garantias da ampla defesa, do contraditório e do duplo grau de jurisdição, é inevitável concluir que o ordenamento jurídico brasileiro, considerado na sua integralidade, rejeita qualquer possibilidade de aplicação da reformatio in pejus. Apesar disso, a questão foi posta em julgamento e o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional decidiu, por maioria de votos, acatar a tese apresentada e admitir a possibilidade de impor pena mais gravosa que a sofrida pelo recorrente em decisão de primeira instância administrativa. Como conseqüência daquela decisão de caráter preliminar ao julgamento do caso concreto de que se trata, foi aberto novo prazo aos recorrentes a fim de que, em sessão seguinte, tivessem a oportunidade de apresentar suas alegações a respeito. Assustados com a possibilidade que se apresentava, principalmente no que se refere ao recorrente pessoa física, ao qual poderia ser imposta, em tese, a pena de inabilitação para o exercício de sua profissão, os recorrentes desistiram do recurso e acataram a pena pecuniária que já lhes havia sido imposta, 160 Não resta a menor dúvida de que ficaram prejudicados, no caso, a possibilidade de exercício pleno e efetivo da ampla defesa e do contraditório, bem como desrespeitada foi a garantia do duplo grau de jurisdição, sendo os recorrentes constrangidos a não se valerem de prerrogativas constitucionalmente asseguradas. 161 VI – REGIMES ESPECIAIS 1. Noções introdutórias Preliminarmente, cabe registrar que, muito embora a nossa vigente Constituição, a exemplo de outras anteriores, consagre a livre iniciativa e a economia de mercado, afastada não está a presença impositiva do Estado, particularmente do Banco Central do Brasil, relativamente às atividades desenvolvidas pelos intermediários financeiros. Essa participação do órgão regulador ocorre seja autorizando a inclusão daqueles agentes nos mercados, seja fiscalizando-os e também determinando a saída dos mesmos e gerindo, por meio de regimes especiais, aqueles que se revelaram sem condições técnicas ou financeiras de permanecer atuando, da mesma forma com vinha fazendo, nos seus respectivos mercados. A respeito, confira-se a ponderação lançada por Francisco José de Siqueira.204 Posto isso, é oportuno o oferecimento de algumas informações a respeito da disciplina legal pertinente, a qual prescreve que instituições financeiras e demais sociedades autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil sujeitam-se a regime jurídico diferenciado, particularmente quanto às soluções legais cabíveis diante de crises experimentadas pelas mesmas, notadamente as de insolvência. 204 Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, Ano 4, nº 12, abril-junho de 2001.RT, São Paulo, Instituições Financeiras: regimes especiais no direito brasileiro, p.66: “No universo dos negócios, o exercício da atividade bancária está sujeito a vínculos e controles especiais, tanto na sua organização quanto no seu desenvolvimento, por se tratar de função de notório interesse público. Logo, a constituição e funcionamento das empresas bancárias dependem de autorização do Poder Público, sendo condicionada à realização de determinado capital mínimo, dentre outros requisitos legais. Além disso, durante todo o ciclo de vida das empresas bancárias, são instituídos controles técnicos e jurídicos para o seu regular funcionamento, podendo a autoridade pública das instruções de caráter vinculante sobre as operações e serviços, critérios de gestão e relações com o mercado.” 162 Esse regime apartado daquele ordinariamente aplicável às empresas em geral, quando atingidas por problemas de inadimplência ou insolvência, é tradicional no direito brasileiro já de longa data e, de resto, acompanha as soluções também encampadas pela maioria dos ordenamentos jurídicos alienígenas. As justificativas mais importantes para a adoção desse modelo residem, por um lado, no fato de que os intermediários financeiros operam com poupança de terceiros, o que exigiria um tratamento diferenciado e, por outro lado, da constatação de que instituições financeiras exercem uma atuação central no contexto econômico, como financiadores ou mesmo como executores de políticas determinadas pelos agentes governamentais, pelo que seria descabido, por exemplo, que qualquer credor pudesse postular, em juízo, a falência de uma instituição desse gênero. Nesse sentido as observações da lavra de Frederico Viana Rodrigues.205 Desse modo, fica evidenciado o interesse público que o justifica, como reconhecido por Rubens Requião.206 ao asseverar que “assim, devido a esse controle que o Estado se reserva manter sobre certas empresas, em virtude do interesse coletivo e público que decorre de seu objeto, constituíram os juristas dois institutos para servirem-lhes de instrumento, em caso de insolvência dessas 205 Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, Ano 8, nº 28, abril/junho de 2005, Saneamento e Liquidação de instituições de crédito, p. 173/174: “Certas empresas, em razão da relevância que desempenham, no meio social em que se inserem, envolvem interesses que transcendem os fins privatísticos do empreendimento. Assumindo conotação ‘quase pública’. Dentre tais empresas estão as desenvolvidas por instituições de crédito, cujo objeto consiste na captação de recursos da economia popular para, por sua conta e risco, empregá-los em operações de crédito. Porque atuam como gestoras – em nome e interesses próprios – de recursos de terceiros, as instituições de crédito submetem-se a forte intervencionismo estatal. Esse intervencionismo justifica-se pela imprescindibilidade do elemento confiança nas operações de crédito e pela proteção dos depósitos bancários. Além disso como, como as instituições de crédito são fundamentais para o sistema de pagamentos, e porque atuam como intermediárias da moeda e do crédito no sistema econômico, existe elevada correlação entre sua saúde financeira e a estabilidade macroeconômica do país. Como o desequilíbrio de instituições de crédito pode acarretar inúmeras consequências nefastas para a economia e para a política econômica, cabe ao Estado acompanhá-las de perto, zelando pela estabilidade e eficiência do sistema financeiro.” 206 Curso de Direito Falimentar, Saraiva, 1989. 163 empresas. Surgiram, por isso o instituto da intervenção e o da liquidação extrajudicial (...)”. Nessa passagem, é interessante deixar marcado que, em decorrência da natureza do interesse que fundamenta os regimes especiais, é inquestionável que a disciplina jurídica que se lhes aplica é de Direito Publico, no geral, e de Direito Administrativo, em particular. Portanto, o Banco Central do Brasil, autarquia competente para decretar os regimes aos quais se reporta, bem como para nomear os seus executores, sua longa manus e, ainda, para supervisionar e decidir, em última instância, sobre os rumos dos processos da espécie, submete-se às regras próprias estabelecidas para as entidades componentes da Administração Pública, nos termos da Constituição Federal e normas infra-constitucionais. Consequentemente, os atos praticados pelo Banco Central do Brasil, envolvendo a decretação, o curso e o encerramento daqueles regimes especiais, qualificam-se como atos administrativos, com todas as conseqüências jurídicas daí advindas, especialmente quanto aos requisitos ou elementos de existência, validade e perfeição. Naquilo que diz respeito especificamente aos distintos regimes especiais aplicáveis às sociedades alcançadas pelo poder de polícia do Banco Central do Brasil, caberiam alguns breves comentário acerca de suas diferentes espécies, assinalando que as normas de regência estabelecem e disciplinam 3 (três) diversas formas, quais sejam, a intervenção, a liquidação extrajudicial e a administração especial temporária. 164 De início, cabe anotar que o conjunto normativo incidente sobre esses regimes jurídicos exorbitantes da lei comum cinge-se, basicamente, à Lei 6.024, de 13 de março de 1.974, ao Decreto-Lei 2.321, de 25 de fevereiro de 1.987/ 87 e à Lei 9.447, de 14 de março de 1997. A Lei 6.024/74 que, de acordo com seu preâmbulo, dispõe sobre a intervenção e a liquidação extrajudicial de instituições financeiras e dá outras providências, fornece todo o aparato legal disciplinador dos regimes mencionados, esgotando inclusive o aspecto procedimental no âmbito administrativo. O Decreto-Lei 2.321/87, como expressamente menciona, institui, em defesa das finanças públicas, regime de administração especial temporária, nas instituições financeiras privadas e públicas não federais. A seu turno, a Lei 9.447/97 estabeleceu a responsabilidade solidária dos controladores de instituições submetidas a quaisquer dos regimes especiais previstos nas leis antes referidas, trouxe novas disposições sobre a indisponibilidade de bens dos respectivos administradores e também proclamou a possibilidade de responsabilização das empresas de auditoria e dos auditores independentes. Aquela mesma lei cuidou ainda de baixar disposições acerca de privatização de instituições cujas ações tenham sido desapropriadas na forma do disposto no DL 2.321/87, bem como trouxe a possibilidade de o Banco Central do Brasil atuar de forma preventiva, de modo a promover a manutenção da organização empresarial, como atesta Francisco José de Siqueira.207 207 Ob. cit. p. 67: “No entanto, com o advento da Lei 9.447, de 1997 (...), foram introduzidas mudanças importantes na legislação bancária, especialmente com relação aos poderes atribuídos ao Banco Central na condição de regulador do sistema financeiro e de guardião da estabilidade monetária, de atuar no fortalecimento e no saneamento do mercado, com o objetivo de prevenir e solucionar crises de liquidez ou solvência de instituições bancárias. Até então, diante de situações tais, o Banco Central tinha como alternativa a decretação do regime de intervenção, de liquidação extrajudicial ou de administração especial temporária, na forma da regulamentação própria. A nova legislação faculta ao Banco Central determinar aos controladores da instituição que adotem as 165 Esse último diploma facultou ainda ao Banco Central do Brasil, desde que materializados os pressupostos autorizadores da decretação dos regimes de intervenção e de liquidação extrajudicial, determinar a capitalização, a transferência do controle acionário ou a reorganização societária, mediante fusão, cisão ou incorporação das respectivas entidades. Em vista disso, prescreveu que não implementadas as medidas acima, no prazo estabelecido pelo Banco Central do Brasil, este decretaria o regime especial cabível. Nos termos da Lei 6.024/74, caberá a decretação de intervenção quando se verificarem anormalidades nos negócios sociais da instituição, caracterizadas, principalmente, por prejuízos que sujeitem os seus credores a riscos anormais ou quando ocorridas reiteradas infrações à legislação, não regularizadas após determinação do Banco Central do Brasil. O regime em questão será decretado ex-officio pelo Banco Central do Brasil ou por solicitação dos próprios administradores e terá a duração de (6) seis meses, prorrogável por igual período, sendo executado por interventor nomeado no ato da decretação do regime com plenos poderes de gestão, à exceção da prática de atos que impliquem disposição ou oneração do patrimônio do intervindo ou que ocasionem admissão ou demissão de pessoal, os quais não prescindem da necessária autorização daquela autarquia. Submetida à intervenção, a instituição não mais pode atuar no sistema e, além de serem afastados da administração de seus respectivos cargos, os seus até então administradores ficarão com todos os seus bens indisponíveis, os quais ficam resguardos para garantir os eventuais prejuízos causados à providências cautelares por ela instituídas, objetivando a recuperação da empresa, sem prejuízo das hipóteses de decretação de regime especial, caso tais determinações não sejam cumpridas ou, mesmo que o sejam, não surtam a desejada eficácia.” 166 instituição e não cobertos pelos seus recursos próprios, apurados em ação de responsabilidade civil, na forma da Lei 6.024/74. Ainda conforme a lei de regência, a intervenção cessará quando, a critério do Banco Central do Brasil, a situação da entidade se houver normalizado ou se decretada a liquidação extrajudicial ou a falência da sociedade. Em resumo, pode-se dizer que a intervenção, enquanto espécie mais branda dentre os regimes especiais, aplicar-se-ia quando a instituição estivesse sendo mal gerida, demandando a intervenção do Banco Central do Brasil com o propósito de promover o devido saneamento e, após isso, seria devolvida aos seus administradores e voltaria a ocupar o seu espaço no mercado em que vinha atuando. No entanto, aquele desiderato que foi o móvel de sua instituição jamais veio a ser atingido em nenhum caso, pelo simples fato de que nos mercados financeiro e de capitais a fidúcia ou confiança dos depositantes e investidores é elemento indissociável e, uma vez posta em dúvida a credibilidade da instituição, por via da decretação de regime especial, provoca-se, naturalmente, o afastamento definitivo da instituição daqueles ambientes. Desse modo, o desfecho natural do regime de intervenção, desde que no seu curso não se alcance uma solução de mercado, é a decretação, findo o prazo legalmente estabelecido, de outro regime especial, desta feita mais ostensivo, qual seja, a liquidação extrajudicial. O regime de liquidação extrajudicial de instituições submetidas ao poder de polícia de que é titular o Banco Central do Brasil caracteriza-se por ser uma forma excepcional de extinção da empresa, conduzida no âmbito administrativo, implementando-se a realização dos seus ativos e o pagamento 167 seus passivos, em estrita observância ao concurso de credores que em virtude dele se instaura. Na essência, sua finalidade, consoante se depreende dos termos da Lei 6.024/74 é, além de preservar a higidez do sistema financeiro como um todo, assegurar proteção, principalmente, aos interesses de depositantes e investidores em geral. A mesma lei já antes referida estabelece que será decretado o regime de liquidação extrajudicial quando presentes as causas enumeradas no seu artigo 15, dentre as quais avultam aquelas relacionadas a problemas de liquidez que comprometam a situação econômico-financeira da instituição, especialmente quando deixar de satisfazer com pontualidade seus compromissos ou apresente prejuízos que exponham seus credores quirografários a risco anormal. Também será a empresa afastada de seus negócios normais e passará a ser gerida, no caso, por um liquidante com poderes de gestão limitados apenas quanto aos atos relativos à complementação de negócios pendentes ou que impliquem oneração ou alienação de bens, os quais, igualmente ao que se passa no regime de intervenção, dependem de expressa autorização do Banco Central do Brasil. Uma vez decretada, a liquidação extrajudicial produzirá como principais efeitos imediatos a suspensão das ações e execuções iniciadas sobre direitos e interesses relativos ao acervo da entidade e o vencimento antecipado de suas obrigações. Diferentemente do que ocorre no processo de intervenção, não há o estabelecimento de um prazo fatal para a cessação do regime, a qual poderá 168 ocorrer caso os interessados, apresentando as necessárias condições de garantia, tomarem para si o prosseguimento do negócio, ou ainda com a aprovação das contas finais do liquidante e baixa no registro competente e, por último, caso seja decretada a falência da liquidanda. Por força da decretação do regime, os então administradores perderão os seus mandatos, bem como seus bens serão tornados indisponíveis, visando aos mesmos fins já referidos em passagem anterior, quando da abordagem acerca do regime de intervenção. Por último, o Regime de Administração Especial Temporária (RAET) poderá ser decretado pelo Banco Central do Brasil em virtude de razões idênticas àquelas aplicáveis aos demais regimes e, ainda, em razão da prática reiterada de operações contrárias às diretrizes governamentais, da existência de passivo a descoberto ou do descumprimento de normas referentes à conta de Reservas Bancárias e, ainda, em virtude de gestão temerária. Decretado o regime também serão afastados os administradores, passando a instituição a ser gerida por um conselho diretor nomeado pelo Banco Central do Brasil, munidos de poderes da mesma amplitude e restrições dos demais regimes. Uma das notas características dessa modalidade de regime excepcional é que a decretação do mesmo não afetará a curso regular dos negócios da entidade, a qual permanecerá atuando no seu segmento, prosseguindo na realização de todas as atividades próprias do mercado em que já vinha atuando. Outra característica distintiva é que poderiam ser utilizados recursos públicos visando ao saneamento da instituição, em contrapartida à cessão de 169 créditos, direitos e ações para o Banco Central do Brasil, estabelecendo também a lei as garantias a serem oferecidas. O regime em questão não tem prazo de duração estabelecido e pode cessar se a União assumir o controle acionário da instituição, se ocorrer incorporação, cisão ou transferência do controle acionário, se a situação da instituição se houver normalizado, ou se ocorrer a decretação de sua liquidação extrajudicial. O estatuto legal de que se trata prevê ainda a possibilidade de desapropriação das ações da instituição por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, sendo a União imitida na posse daqueles títulos. Na verdade, essa espécie de regime especial veio a criar uma situação absolutamente diferenciada em um contexto que, por natureza, já é excepcional, na medida em que decorrente de norma editada em um ambiente econômico-financeiro bastante específico e claramente destinada a um determinado segmento do mercado bancário. Àquela época, os bancos estaduais passavam por séria crise financeira e esse foi o instrumento legal que veio a premiá-los com um regime jurídico bastante peculiar, devendo ainda ser considerado que naquele momento era possível a utilização de recursos públicos para o saneamento daquelas instituições, como lembra o já citado Francisco José de Siqueira.208 208 Ob. cit. p. 51: “Como alternativa ao regime de intervenção, o governo brasileiro, nos termos do Dec.-Lei 2.321, de 25.02.1987, sob o propósito declarado de defender as finanças públicas, instituiu o regime de administração especial temporária, cuja decretação não afeta o curso regular dos negócios nem o funcionamento normal da instituição bancária. Afinal, dispunha o novo texto legal que, decretado esse regime especial, o Banco Central poderia, como objetivo de prover o saneamento econômico ou financeiro da instituição, utilizar recursos da reserva monetária ou, não sendo esses suficientes, adiantá-los a esse título, depois incluindo os valores correspondentes na proposta orçamentária do exercício subseqüente, conforme estabelecia o art. 9º, par. ún. do aludido decreto-lei.” 170 Conseqüentemente, vários bancos foram ungidos pelo regime então criado, tendo sido o controle acionário dos mesmos, num primeiro momento, transferido para a União e, depois, foram privatizados, como foi o caso tanto do Banco do Estado de São Paulo – BANESPA, quanto do Banco do Estado do Rio de Janeiro – BANERJ. Posto isso, cumpre assentar que, em quaisquer dos casos de regime especial, o Banco Central do Brasil procederá a inquérito, conduzido por uma comissão pelo mesmo nomeada, com já antes referido, com amplos poderes de investigação e que deverá apresentar, no prazo estabelecido, relatório no qual apontará as causas do regime, o montante dos prejuízos causados, se for o caso, e informará os administradores que estiveram à frente da instituição nos últimos 5 (cinco) anos. Deve ser destacado que o arcabouço normativo básico dos regimes especiais e que tem se mantido intacto já de longa data, não obstante a extraordinária gama de transformações sociais, econômicas e políticas ocorridas ao longo do tempo, sempre provocou uma série considerável de questionamentos quanto à natureza de seus dispositivos, bem como no que se refere à sua própria constitucionalidade. Assim, são comuns discussões acerca do caráter discricionário ou vinculado do ato da autoridade monetária que decreta o regime especial que entende cabível, entendendo alguns que não há uniformidade no enquadramento da questão e das respectivas soluções, as quais são diferenciadas quanto ao tratamento conferido aos administrados. Também vicejam embates acerca da natureza sancionatória ou não de alguns efeitos ex lege decorrentes do próprio ato administrativo que submete a instituição a regime especial, dentre eles o afastamento dos administradores dos cargos que até então ocupavam e, nos casos de intervenção e de liquidação 171 extrajudicial, a própria retirada da instituição do segmento em que atuava ou mesmo a conseqüente indisponibilidade que passa a onerar os bens dos então administradores, tida por alguns como atentatória ao direito de propriedade constitucionalmente garantido. Verifica-se também a presença de opiniões contraditórias acerca da necessidade de observância do direito de defesa previamente à decretação de regime especial, concedendo aos administradores a oportunidade de proporem soluções, oferecerem esclarecimentos, ou mesmo de demonstrarem que não se fazem presentes razões que justifiquem a adoção de medida tão extremada. Por força disso é que algumas dessas questões serão enfrentadas logo adiante, dada a importância de que se revestem, quando se buscará trazer para discussão considerações envolvendo as posições existentes a respeito de cada uma delas. 172 2. Decretação/cessação: ato discricionário ou vinculado ? No plano estritamente de direito positivo, dispõe a Lei 6.024/74, em seu artigo 1º, que “as instituições financeiras privadas e as públicas não federais, assim como as cooperativas de crédito, estão sujeitas, nos termos desta Lei, à intervenção e à liquidação extrajudicial, em ambos os casos efetuada e decretada pelo Banco Central do Brasil, sem prejuízo do disposto nos artigos 137 e 138 do Decreto-lei nº. 2627, de 26 de setembro de 1940, ou à falência, nos temos da legislação vigente”. O artigo 2º daquela mesma lei estabelece que, basicamente, far-se-á a intervenção quando a entidade sofrer prejuízo, decorrente de má administração, que sujeite a risco os seus credores ou quando forem verificadas reiteradas infrações aos dispositivos da legislação bancária, não regularizadas após determinação do Banco Central do Brasil. No artigo 15, da mesma norma, são arroladas como causas de decretação da liquidação extrajudicial as ocorrências que comprometam a situação patrimonial da instituição, especialmente quando deixar de satisfazer compromisso, bem como quando violadas gravemente normas legais e estatutárias pertinentes ou ainda quando sofrer prejuízo que sujeite a risco anormal os seus credores quirografários. Por sua vez, o Decreto-lei nº. 2.321, de 25 de fevereiro de 1987, prescreve, no seu artigo 1º, que “o Banco Central do Brasil poderá decretar regime de administração especial temporária, na forma regulada por este decreto-lei, nas instituições financeiras privadas e públicas não federais, autorizadas a funcionar nos termos da Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964 (...)”. Em sua parte final, o artigo enumera como causas para decretação do regime especial a prática reiterada de operações contrárias às diretrizes de 173 política econômica ou financeira traçadas em lei federal, a existência de passivo a descoberto, o descumprimento das normas referentes à conta de Reservas Bancárias mantida junto ao Banco Central do Brasil, a gestão temerária ou fraudulenta por seus administradores ou a ocorrência de quaisquer das situações previstas no artigo 2º, da Lei 6.024, de 13 de março de 1974. Posto isso, cabe definir se o ato administrativo praticado pelo Banco Central do Brasil, submetendo uma instituição subordinada ao seu poder de polícia a um dos regimes especiais previstos naquelas normas, caso verificado qualquer dos pressupostos legalmente previstos, caracterizar-se-ia como exercício de competência discricionária ou vinculada. Fundamentalmente, o objetivo é saber se o legislador ordinário, ao baixar os dispositivos legais antes aludidos, conferiu à Administração Pública, no caso ao Banco Central do Brasil, a possibilidade de exercer alguma margem de apreciação subjetiva, no sentido de adotar ou não aquelas medidas extremas legalmente previstas. Examinando, mais uma vez, os conceitos de discricionariedade e vinculação, Maria Sylvia Zanella Di Pietro209 diz que “pode-se, pois, concluir que a atuação da Administração Pública no exercício da função administrativa é vinculada quando a lei estabelece a única solução possível diante de determinada situação de fato; ela fixa todos os requisitos cuja existência a Administração deve limitar a constatar, sem qualquer margem de apreciação subjetiva”. Na mesma passagem, a autora afirma que “a atuação é discricionária quando a Administração, diante do caso concreto, tem a possibilidade de apreciá- 209 Direito Administrativo, 3ª ed., Ed. Atlas, p. 161 174 la segundo critérios de oportunidade e conveniência e escolher uma dentre duas ou mais soluções, todas válidas para o Direito“. Normalmente, é possível inferir dos próprios termos da lei se a atuação da Administração Pública será vinculada ou discricionária, no sentido de conceder ou não ao seu destinatário alguma margem de discricionariedade, concedendo-lhe ou negando-lhe, expressa ou implicitamente, a possibilidade de decidir pela prática do ato ou mesmo, dentre vários deles, juridicamente legítimos, escolher a alternativa que se apresente como a mais indicada. No caso presente, entendemos que o legislador ordinário não tomou para si a totalidade da competência discricionária de que poderia, em tese, dispor, na medida em que, como sugere o conjunto normativo pertinente, transferiu parte dela para o executor ou aplicador das normas, ou seja, o Banco Central do Brasil. Examinando os textos legais, nas passagens em que fazem expressa menção à decretação de regimes especiais pelo Banco Central do Brasil, parece-nos que a dicção dos mesmos não permite que se extraia um comando imperativo, mas sim faculta ao ente público, diante de certas situações que a própria lei enumera, decretar um regime especial e, ainda, dentre as espécies possíveis, optar por uma delas. Quanto ao artigo 1º, do Decreto-Lei 2.321/87, não há qualquer dúvida sobre a natureza discricionária da competência outorgada, posto estar ali estabelecido que “o Banco Central do Brasil poderá decretar regime de administração especial temporária, na forma prevista por este decreto-lei (...)”. 175 Já o artigo 1º, da Lei 6.024/74, prescreve que “as instituições financeiras privadas e as públicas não federais, assim como as cooperativas de crédito, estão sujeitas, nos termos desta lei, à intervenção ou à liquidação extrajudicial (..)”. No que toca à intervenção, diz o artigo 2º, da mesma lei, que “far-seá a intervenção quando se verificarem as seguintes anormalidades (...)”, ao passo que o artigo 15, do mesmo diploma legal preconiza que “decretar-se á liquidação extrajudicial da instituição financeira”, enumerando a seguir situações que a ensejariam. No entanto, o parágrafo primeiro do próprio artigo 15 dispõe que “o Banco Central do Brasil decidirá sobre a gravidade dos fatos determinantes da liquidação extrajudicial considerando as repercussões deste sobre os interesses dos mercados financeiro e de capitais, e, poderá, em lugar da liquidação, efetuar a intervenção, se julgar esta medida suficiente para a normalização dos negócios da instituição e preservação daqueles interesses”. Evidentemente, trata-se de norma que atribui uma faculdade ao ente regulador que, com fundamento nos próprios interesses dos mercados, os quais, em última instância, representam o interesse público envolvido, poderá avaliar, discricionariamente, qual a medida que melhor venha a atender àqueles objetivos e decretar a medida que lhe pareça a mais conveniente e oportuna. Para além disso, é a Lei 9.447, de 14 de março de 1997, já referida em passagem anterior, que elucida de forma definitiva a indagação trazida à discussão, deixando assentado o caráter discricionário conferido à competência outorgada ao Banco Central do Brasil, no sentido de decretar ou não um dos regimes especiais, já que remete àquela entidade a faculdade de, 176 preliminarmente, e a seu critério, lançar mão de outros instrumentos típicos do exercício de poder de polícia, nas situações da espécie. Nesse sentido, prevê o artigo 5º da mencionada lei que, verificado um daqueles pressupostos que autorizariam a decretação de regime especial, fica facultado ao Banco Central do Brasil, visando justamente tutelar o interesse público pertinente, determinar que a instituição financeira promova ou a capitalização da empresa, ou a transferência de seu controle acionário ou, ainda, a reorganização societária, mediante incorporação, fusão ou cisão. Nos termos da mesma norma, determinada qualquer daquelas medidas e verificada a sua não implementação, decretar-se-á o regime especial cabível.210 Além disso, o caráter discricionário daqueles dispositivos emana do fato de que determinadas situações neles previstas demandam uma ação valorativa do destinatário da norma, seja quando se referem expressamente a prejuízo que sujeite a risco anormal a instituição, seja na passagem em que se faz menção a ocorrências que comprometam a situação econômica ou financeira da instituição, ou ainda quando aponta a eventual existência de passivo a descoberto. Certamente, a definição acerca daqueles eventos não pode prescindir da intermediação do órgão regulador na aplicação da lei, considerando não só a sua proximidade dos fatos, mas principalmente os aspectos de natureza 210 “Art. 5º. Verificada ocorrência de qualquer das hipóteses previstas nos arts. 2º e 15, da Lei nº. 6.024, de 1974 e no art. 1º do Decreto-Lei nº. 2.321, de 1987, é facultado ao Banco Central do Brasil, visando assegurar a normalidade da economia pública e resguardas os interesses dos depositantes, investidores e demais credores, sem prejuízo da posterior adoção dos regimes de intervenção, liquidação extrajudicial ou administração especial temporária, determinar as seguintes medidas: I – capitalização da sociedade, com o aporte de recursos necessários ao seu soerguimento, em montante por ele fixado: II – transferência do controle acionário; III – reorganização societária, inclusive mediante incorporação, fusão ou cisão. Parágrafo único. Não implementadas as medidas de que trata este artigo no prazo estabelecido pelo Banco Central do Brasil, decretar-se-á o regime especial cabível.” 177 estritamente técnica que obrigatoriamente deverão orientar a conclusão acerca da presença ou não daqueles pressupostos aventados na descrição legal. A fim de referendar a conclusão posta, cabe considerar que a própria definição acerca da existência de passivo a descoberto está condicionada ao critério técnico observado pelo Banco Central do Brasil, no sentido de resolver deduzir ou não do patrimônio contábil de instituição sob sua fiscalização créditos que, a seu juízo, não tenham perspectivas de realização. A propósito, importante assinalar que as normas que regem a atuação do Banco Central do Brasil, particularmente no que se refere ao exercício do poder de policia que lhe é correlato, têm como escopo resguardar, como já frisado, o interesse público representado pelos valores inerentes à estabilidade e solidez do Sistema Financeiro Nacional e, assim, resguardar os interesses dos investidores e credores, como acentuado no art. 9º, da Lei 4595/64 e na Resolução 1065/85, do Conselho Monetário Nacional. Consequentemente, o Banco Central do Brasil, no cumprimento de suas atribuições legais de proceder à fiscalização das instituições sujeitas ao seu poder de polícia, percebendo que algum daqueles interesses legalmente tutelados restou agredido, tem à sua disposição, como já mencionado, o devido aparato legal que lhe autoriza atuar, de forma preventiva ou repressiva, implementando as medidas que, ao amparo da lei, venha a entender cabíveis, como também reconhece Francisco José de Siqueira.211 211 Ob. cit. p. 45: “Nesse contexto, pois, a função de saneamento do mercado, a cargo do Banco Central, não se restringe ao afastamento das instituições bancárias, por dificuldades verificadas no sem ambiente operacional. Tem o governo a responsabilidade de atuar preventivamente, evitando que o mal ocorra. Daí, é necessário aparelhar a autoridade pública, responsável pela condução desse processo, de um arsenal normativo suficiente para lhe permitir o manejo oportuno dos mecanismos postos à sua disposição, visando o saneamento do sistema bancário, com a solução dos problemas de liquidez, momentânea, que são inevitáveis nesse segmento da atividade econômica.” 178 O instrumental que lhe disponibiliza o legislador ordinário se estende desde uma simples interpelação solicitando esclarecimentos e adoção de medidas corretivas, passando pela instauração de processos administrativos punitivos, o que pode provocar as espécies de sanções em outra parte comentadas, culminando na decretação de regimes especiais, o que, a nosso ver, como será oportunamente abordado, também provoca o surgimento, ex lege, de sanções de natureza administrativa. Nota-se, pois, que caberá ao Banco Central do Brasil, em cada caso, observados os parâmetros discricionários legalmente estabelecidos, de forma implícita ou explicita, adotar a medida que venha a entender adequada para o caso e que, repita-se, deverá se ater aos limites traçados pelo regime jurídicoadministrativo. Sobre o tema, Luiz Alfredo Paulin,212 em trabalho no qual muito embora aborde a questão relativa à obrigatoriedade ou não de instauração de processo administrativo sancionatório pelo Banco Central do Brasil, diante da constatação de condutas administrativamente ilícitas, faz algumas observações importantes a respeito e que, certamente, são válidas também para as situações ora enfrentadas. Naquele artigo, o autor, discorrendo sobre “os instrumentos que são colocados à disposição das autoridades, objetivando a normalidade no mercado financeiro, bem como quais os parâmetros para a utilização de cada um deles”, assevera que “em verdade, a ocorrência de uma dada conduta em desconformidade com as normas ou regulamentos, coloca a autoridade diante de algumas alternativas”. 212 Dos meios passíveis de utilização pelo Banco Central do Brasil, no combate às irregularidades praticadas por instituições financeiras, Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, Ano 2, nº. 6, RT, São Paulo, setembro/dezembro de 1999, p. 90/105. 179 Após efetuar assertivas sobre ditas alternativas, o tratadista considera que “a despeito de admitir a possibilidade de a autoridade escolher o instrumento convincente para combater irregularidades, deve-se reconhecer inexistir espaço para uma escolha fora de parâmetros, isto é, arbitrária”. Com base na premissa acima, conclui o autor que deve a autoridade orientar a sua escolha tendo como referências principalmente o princípio da proporcionalidade e o dever de eficiência, os quais se desconsiderados poderão comprometer irremediavelmente a conduta do administrador público e redundar na invalidade do ato. Em vista de todo o exposto, afigura-se como entendimento abrigado pela segurança jurídica concluir que, no caso de decisão pela decretação ou não de regimes especiais, a decisão proferida pela entidade reguladora de mercado reveste-se de caráter discricionário, o que, entretanto, jamais pode significar que é dado à Administração Pública o poder de, a seu exclusivo talante, decidir por critérios absolutamente subjetivos, desagregados do regime jurídico que lhe é peculiar e obrigatório. Não fora por outras razões também de ordem jurídica, a Administração Pública está jungida, dentre outros, ao princípio da razoabilidade, de anterior construção doutrinária e jurisprudencial e, hoje, positivado no art. 2º., da já referida Lei 9.784/99, conforme exposto por Celso Antônio Bandeira de Mello.213 213 Curso de Direito Administrativo, 11ª ed., Malheiros, p. 66: “Enuncia-se com este princípio que a Administração, ao atuar no exercício da discrição, terá de obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e respeitosas das finalidades que presidiram a outorga da competência exercida. Vale dizer: pretende-se colocar em claro que não serão apenas inconvenientes, mas também ilegítimas – e, portanto, jurisdicionalmente invalidáveis – as condutas desarrazoadas, bizarras, incoerentes ou praticadas em desconsideração às situações e circunstâncias que seriam atendidas por quem tivesse atributos normais de prudência, sensatez e disposição de acatamento às finalidades da lei atributiva da discrição manejada. Com efeito, o fato de a lei conferir ao administrador certa liberdade (margem de discrição), significa que lhe deferiu o encargo de adotar, ante à diversidade 180 Claro está, dessa forma, que ainda quando Administração Pública tenha sua atuação pautada pela discricionariedade, esta deverá estar associada à observância do princípio da razoabilidade e que este, a seu turno, é balizado pelo princípio da finalidade, o qual se constitui em vetor máximo da própria ciência do direito, conforme assevera Carlos Maximiliano214 e que, de forma especial, deve nortear todos os atos administrativos. Mas a questão acerca do exercício de competência discricionária não se esgota naquilo que se refere ao momento de decisão pela decretação ou não de regimes especiais, cabendo ser cogitada também no que se refere à decisão pela cessação ou não daquelas situações extravagantes, tendo presentes as normas específicas sobre a questão. de situações a serem enfrentadas, a providência mais adequada a cada qual delas. Não significa, como é evidente, que lhe seja outorgado o poder de agir ao sabor exclusivo de seu arbítrio, de seus humores, paixões pessoais, excentricidades ou critérios personalíssimos, e muito menos significa, que liberou a Administração para manipular a regra de direito de maneira a sacar dela efeitos não pretendidos nem assumidos pela lei aplicanda. Em outras palavras: ninguém poderia aceitar como critério exegético de uma lei, que esta sufrague providências insensatas que o administrador queira tomar; é dizer, que avalize previamente condutas desarrazoadas, pois isto corresponderia a irrogar dislates à própria regra de direito. Deveras: se com outorga de discrição administrativa pretende-se evitar a prévia adoção em lei de uma solução rígida, única – e por isso incapaz de servir adequadamente para satisfazer, em todos os casos, o interesse público estabelecido na regra aplicanda – é porque através dela visa-se à obtenção da medida ideal que, em cada situação, atenda de modo perfeito à finalidade da lei.É óbvio que uma medida administrativa desarrazoada, incapaz de passar com sucessos pelo crivo da razoabilidade, não pode estar conforme à finalidade da lei. Donde, se padecer deste defeito, será, necessariamente, violadora do princípio da finalidade. Isto equivale a dizer que será ilegítima, conforme visto, pois a finalidade integra a própria lei. Em conseqüência será anulável pelo Poder Judiciário, a instâncias do interessado. Fácil é ver, pois, que o princípio da razoabilidade fundamenta-se nos mesmos preceitos que arrimam constitucionalmente os princípios da legalidade (arts. 5º, II, 37 e 84) e da finalidade (os mesmos e mais art. 5º, LXIX, nos termos já apontados ).” 214 Hermenêutica e Aplicação do Direito, 11ª ed., Forense, São Paulo, p. 151/52: “Considera-se o Direito como uma ciência primariamente normativa ou finalística; por isso mesmo sua interpretação há de ser, na essência, teleológica. O hermeneuta sempre terá em vista o fim da lei, o resultado que a mesma precisa atingir em sua atuação prática. A norma enfeixa um conjunto de providências protetoras, julgadas necessárias para satisfazer certas exigências econômicas e sociais; será interpretada de modo que melhor corresponde àquela finalidade e assegure plenamente a tutela de interesse para a qual foi redigida.” 181 O artigo 7º, da Lei 6.024/74, estabelece que a intervenção cessará quando, a critério do Banco Central do Brasil, a situação da entidade se houver normalizado, ou se decretada a liquidação extrajudicial ou falência da sociedade. Pela própria dicção do texto legal, parece-nos que a hipótese de normalização da entidade, ocorrente a critério do Banco Central do Brasil, como veio a ser facultado pelo legislador ordinário, está a indicar claramente a possibilidade do exercício de competência discricionária por parte do ente regulador. Da mesma forma acreditamos que se possa concluir naquilo que se relaciona ao término do regime de administração especial temporária, no caso da alínea “b”, do artigo 14, do Decreto-lei 2.321/87 que, igualmente, prevê a cessação do regime “quando, a critério do Banco Central do Brasil, a situação da instituição se houver normalizado”. Evidentemente, a conclusão acerca da dita normalização da instituição financeira não pode resultar, sob pena de invalidade do ato administrativo respectivo, de decisão arbitrária da autoridade administrativa, como já comentado, posto que se encontra submetida ao regime jurídico-administrativo, devendo sua atuação ser guiada, principalmente, pela correta observância dos princípios que lhe são ínsitos. No que tem a ver com a liquidação extrajudicial, determina o artigo 19, da Lei 6.024/74, que cessará aquele regime “se os interessados, apresentando as necessárias condições de garantia, julgadas a critério do Banco Central do Brasil, tomarem a si o prosseguimento das atividades econômicas da empresa”. 182 Como se extrai do dispositivo legal, a cessação daquela situação excepcional está condicionada a duas distintas manifestações de vontade, representadas, de um lado, pela apresentação de proposta dos interessados e, de outro, pela concordância do Banco Central do Brasil no que se refere aos aspectos aventados na norma de regência. Por certo, naquilo que diz respeito à postura do ente público, está explicitado o deferimento de alguma atuação discricionária no que concerne à aceitabilidade das garantias oferecidas, cabendo, no entanto, verificar onde estaria localizada essa discricionariedade e, consequentemente, determinar o seu raio de atuação. A mesma observação se aplica aos casos de cessação da intervenção ou do regime de administração especial temporária, posto que os dispositivos legais pertinentes também deferem ao Banco Central alguma competência discricionária no que respeita a considerar normalizada a situação das instituições submetidas àqueles regimes excepcionais. Conforme relata Maria Sylvia Zanella di Pietro,215 é aceito que as normas jurídicas compõem-se de duas partes, constituídas pela sua própria hipótese, onde são descritos os fatos possíveis de se verificar no mundo fenomênico e, ainda, pelo seu mandamento, onde são definidas as consequências jurídicas resultantes dos fatos descritos, de modo que, em se realizando a hipótese, segue-se a aplicação do mandamento. 215 Ob. cit. p. 78: “Se se analisa qualquer estado de coisas consideradas pelo Direito, como por exemplo uma resolução parlamentar, um ato administrativo, uma sentença judicial, um delito, podem-se distinguir dois elementos: um deles é um ato sensorialmente perceptível, que tem lugar no tempo e no espaço, um acontecimento exterior, o mais das vezes uma conduta humana; o outro é um sentido assim como imanente ou aderente a esse ato ou acontecimento, uma significação específica”, ou seja, a significação do ato perante o direito. A partir daí, reconhece-se que as normas jurídicas constam de duas partes: hipótese da norma, onde se descrevem os fatos que podem ocorrer, e o mandamento da norma, onde se definem as consequências jurídicas dos fatos descritos. Ocorrendo o fato que a hipótese da norma descreve, incide o mandamento.” 183 Ainda segundo a mesma autora, “a discricionariedade está na hipótese da norma quando os pressupostos de fato por ela enunciados (motivos do ato administrativo) são descritos mediante os chamados conceitos práticos, ou seja, determinados por meio de palavras vagas, imprecisas, como pobreza e notável saber”. Continua a doutrinadora: “a discricionariedade está no mandamento quando a norma facultar um comportamento, ao invés de exigi-lo”, ao passo que “está na finalidade, quando esta é expressa por meio dos referidos conceitos práticos, como moralidade pública”. Na específica situação sob análise, presente que a norma elege como pressuposto a apresentação de “necessárias condições de garantia, julgadas a critério do Banco Central do Brasil (...)”, é forçoso concluir que a discricionariedade reside na hipótese da norma, posto que colocado à apreciação do aplicador na norma um daquele denominados conceitos práticos, dotados de certa imprecisão de conteúdo e que demandam a intermediação do destinatário da regra. Nesse sentido e em artigo tratando exatamente dessa questão, Celso Antônio Bandeira de Mello216 entende que é precisamente no tópico da hipótese legal que se localiza, no caso, a outorga de competência discricionária, estando o Banco Central do Brasil, diante da autorização legal, investido na competência de se manifestar e concluir sobre a existência das garantias necessárias ou satisfatórias quanto ao atendimento do interesse público. 216 Direito Administrativo Contemporâneo, Estudos em Homenagem ao Professor Manoel de Oliveira Franco Sobrinho, Vinculação e Discrição nas Liquidações Extrajudiciais, Editora Fórum, Belo Horizonte, 2004. p. 107: “Sua discrição – que efetivamente existe – reside em outro tópico, pois concerne sobre a existência ou inexistência de garantias necessárias à conveniência pública. A análise a ser feita segundo o critério do Banco Central não é relativa à continuidade ou cessação da medida; é relativa à subsistência de garantias satisfatórias, em face de conveniências gerais”. 184 Já no que diz respeito ao mandamento da norma, presente o seu caráter imperativo, não subsiste qualquer dúvida, sob nossa ótica, quanto a se tratar de caso típico de competência vinculada, na medida em que o comando é no sentido de que cessará a liquidação, uma vez considerado atendido o pressuposto descrito na hipótese, como também reconhece o mesmo Celso Antônio Bandeira de Mello217 no artigo antes referido. Como adverte o doutrinador em passagem adiante, “no caso vertente, o mandamento, isto é, o conteúdo prescritivo da norma, nega qualquer discrição, ou seja, ao invés de facultar, impõe. Enuncia em termos objetivos e inadversáveis qual o único admissível comportamento do BACEN perante qualquer das hipóteses arroladas no artigo 19 (...)”. A advertência endereçada pelo doutrinador alcança também a decisão da autoridade administrativa pela cessação dos regimes de intervenção e de administração especial temporária, em virtude de os pertinentes dispositivos comandarem de forma imperativa ao adotar, no que respeita aos respectivos mandamentos das normas, a comum expressão “cessará”. Trata-se, pois, de norma que vincula o comportamento do agente administrativo naquilo que respeita aos mandamentos das normas aplicáveis, apontando-lhe de modo peremptório a única atitude que, consoante entende o legislador, virá a realizar o interesse público objetivado, conforme atesta o mesmo Celso Antônio Bandeira de Mello.218 217 Ob. cit.: “Em suma: não há discrição no mandamento da norma (“cessará”). A discrição existente decorre de que a integração da hipótese (na letra “a”) depende de um juízo subjetivo do BACEN (“a critério do Banco Central”). Com efeito, o art. 19 não diz, na letra “a”, que “oferecidas as garantias necessárias, o Banco Central, a seu critério, cessará a liquidação”, mas, pelo contrário, diz que ‘a liquidação cessará se os interessados, apresentando as necessárias condições de garantia, julgadas a critério... etc.’.” 218 Ob. cit. p. 33: “Se a lei regula vinculadamente a conduta administrativa, está com isto declarando saber qual o comportamento único que, a seu juízo, atenderá com exatidão, nos casos 185 A propósito, acresce ainda pontuar que, uma vez materializada a proposta de encerramento do regime, e sendo consideradas satisfatórias as garantias apresentadas ou sendo normalizada a situação das instituições, não subsistiria razão para que a autoridade administrativa viesse a concluir, a seu talante, pela continuidade do regime especial, sob pena de ofensa, inclusive, ao princípio da eficiência, expressamente positivado no art. 37, da Constituição Federal. Não encontraria respaldo jurídico pretender a Administração Pública estender no tempo, mobilizando pessoas e recursos, um regime excepcional que já exauriu as suas finalidades, não apresenta mais uma justa causa e cuja manutenção não mais atende o interesse público. Nesse sentido têm se manifestado nossas instâncias jurisdicionais, como exemplifica o acórdão a seguir: “Administrativo – Banco Central do Brasil – Sociedade Corretora – Liquidação Extrajudicial – Ausência de Justa Causa – Falta do Serviço – Lei nº 6.024/74, art. 15. - A liquidação extrajudicial de instituição financeira é decretada, de ofício, quando ocorrência que comprometa financeira ou econômica, a se constata sua situação tal como a impontualidade na satisfação dos compromissos ou a caracterização de situação que autorize a decretação da falência (Lei nº 6.024/74, art. 15, I, a). - É descabida e ilegal a liquidação extrajudicial de empresa que, embora se encontre em débito com o concretos, o interesse público por ela almejado. Daí que pré-selecionou o ato a ser praticado e o fez obrigatório, excluindo qualquer interferência do administrador na apreciação dos fatos deflagradores da aplicação da norma e qualquer avaliação quanto à providência mais adequada para atender a finalidade legal.” 186 seu banco custodiante, mantenha suficiente lastro em letras financeiras do tesouro, sob custódia do Banco Central, o que desautoriza a denúncia do convênio para a prestação de serviços relativos ao Sistema Especial de Liquidação e Custódia – SELIC. - Constatada a ausência de justa causa para a liquidação extrajudicial, pressuposto já fático que baseada inexistente, em com pronunciamento subseqüente de inexistência de prejuízo – arquivamento do inquérito com base no art. 44 da Lei nº 6.024/74, configura-se falta do serviço, impondo-se a desconstituição do ato interventivo. - Apelação e remessa oficial desprovidas.” (Apelação em 91.01.062506/DF, Mandado Rel. Juiz de Segurança Vicente Leal, nº j. 06.04.1992, maioria). 187 3. Sanções “ex lege” Numa primeira aproximação do tema, é de se assinalar que é inseparável da idéia de sanção, no seu sentido amplo, a noção de dever jurídico como pressuposto necessário para a sua imposição, o qual é representado pela obrigação dirigida aos sujeitos de direito no sentido de observar o seu dever genérico de subordinar-se à lei e de abster-se do ilícito, conforme explicitado por Hans Kelsen.219 O mesmo Kelsen220 desenvolveu o conceito de direito jurídico, entendendo-o como aspecto correlato do dever jurídico, em vista da sua característica de faculdade da qual dispõe alguém, em vista daquele dever estabelecido, de obter a conduta à qual um outro está juridicamente obrigado, sendo que, nas relações aqui tratadas, o titular desse direito seria a própria Administração Pública. O autor221 cuidou também de construir o conceito de responsabilidade jurídica, entendendo-a como a atribuição a alguém do resultado de uma conduta antijurídica, pelo que deverá o faltoso arcar com a respectiva 219 Teoria Geral do Direito e do Estado, Martins Fontes, 2000, 3ª ed., 2ª tiragem, ps. 83/84: “Ele está juridicamente obrigado a abster-se do delito; se o delito for certa ação positiva, ele é obrigado a não empreender essa ação. Um indivíduo está juridicamente obrigado à conduta cujo oposto é a sanção dirigida contra ele (ou contra os indivíduos que tem contra ele certa relação juridicamente determinada. Ele ‘viola’ o seu dever (ou obrigação), ou, o que redunda no mesmo, ele comete um delito quando se comporta de maneira tal que sua conduta seja a condição de uma sanção; ele cumpre seu dever (obrigação), ou, o que redunda no mesmo, se abstém de cometer um delito, quando sua conduta é oposta a este. Assim, estar juridicamente obrigado a certa conduta significa que a conduta contrária é um delito e, como tal, é a condição de uma sanção estipulada por uma norma jurídica; assim, estar juridicamente obrigado significa ser o sujeito potencial de um delito, um delinquente potencial”. 220 Ob. citada, p. 108: “Se o direito for um direito jurídico, ele é necessariamente um direito sobre a conduta de outra pessoa, um direito de obter a conduta à qual o outro está juridicamente obrigado. Um direito jurídico pressupõe um dever de outra pessoa. Isso é auto-evidente caso falemos de um direito sobre a conduta de outra pessoa”. 221 Ob. cit. ps. 93 e 99: “Um conceito relacionado ao de dever jurídico é o conceito de responsabilidade jurídica. Dizer que uma pessoa é juridicamente responsável por certa conduta ou que ela arca com a responsabilidade jurídica por essa conduta significa que ela está sujeita a sanção em caso de conta contrária”. Ainda conforme o autor: “No direito dos povos civilizados, o indivíduo que é obrigado a certa conduta normalmente também é o responsável por essa conduta”. 188 responsabilização, por vezes imputada por aquele que tinha o direito jurídico de exigir o comportamento fixado pelo ordenamento jurídico, fazendo surgir, desse modo, a possibilidade de aplicação da correspondente sanção. Segundo Bobbio222, o grupo social organizado, com a pretensão de contrapor-se à ausência de eficácia da sanção interna, bem como evitar também os inconvenientes da sanção externa não institucionalizada, representados pela desproporção entre violação e resposta, criou o instituto da sanção e, dessa forma, além de regular as condutas das pessoas, passou também a estabelecer a reação cabível diante de comportamentos em desconformidade com a ordem estabelecida. Ainda de acordo com o autor, a sanção jurídica se distingue das demais categorias típicas de outras ciências sociais por se traduzir em uma resposta externa e institucionalizada da sociedade e que integra e completa, organicamente, ao lado do preceito primário, o conjunto normativo. Assim, distingue-se da sanção moral por ser externa, bem como se diferencia da social por ser institucionalizada. Cabe ainda agregar que, num sentido abstrato, a sanção considerada de maneira genérica, sem a sua efetiva associação a um regime jurídico peculiar e, portanto, como instituto da teoria geral do direito, nada mais é do que a resposta do aparelho estatal, em quaisquer de sua variadas formas, a um comportamento indesejável, conforme atesta Hugo de Brito Machado.223 222 Teoria da Norma Jurídica, Edipro, São Paulo, 2003: “Com o objetivo de evitar os inconvenientes da sanção interna, isto é, sua escassa eficácia, e os da sanção externa não institucionalizada, sobretudo a falta de proporção entre violação e resposta, o grupo social institucionaliza a sanção, ou seja, além de regular os comportamentos dos cidadãos, regula também a reação aos comportamentos contrários. Esta sanção se distingue da moral por ser externa, isto é, por ser uma resposta de grupo, e da social por ser institucionalizada, isto é, por ser regulada, em geral, com as mesmas formas e através das mesmas fontes de produção das regras primárias.” 223 Ilícito tributário, Revista dos Tribunais 709:287, 1994: “Sanção é o meio de que se vale a ordem jurídica para desestimular o comportamento ilícito. Pode limitar-se a compelir o responsável pela inobservância da norma ao cumprimento de seu dever, e pode constituir num castigo, numa penalidade, a esse cominada.” 189 Considerado o exposto, interessante trazer à discussão o pensamento manifestado por Daniel Ferreira224 que, após elaborar a definição de sanção, na sua abrangência ampla, procede ao seu confinamento aos lindes administrativos e nessa órbita restrita a entende como “a direta e imediata conseqüência jurídica, restritiva de direitos, de caráter repressivo, a ser imposta no exercício da função administrativa, em virtude de um comportamento juridicamente proibido, comissivo ou omissivo”. No dizer de Celso Antônio de Bandeira de Mello,225 infração e sanção administrativa são conceitos estreitamente ligados, previstos em diferentes partes da norma jurídica e que demandam estudo conjunto a fim de evitar qualquer prejuízo quanto à inteligência acerca da compreensão de cada um daqueles temas. Na lição do autor, infração administrativa é o não cumprimento, de forma consciente, de uma norma de natureza administrativa para a qual o ordenamento prevê uma sanção a ser imposta e decidida por uma autoridade no exercício da função administrativa, Também é oportuno ressaltar que o mesmo Daniel Ferreira226, ao empreender a classificação das sanções administrativas sob o prisma das restrições delas originadas, considera que as mesmas são orientadas na direção de atingir o patrimônio moral ou econômico dos administrados ou, ainda, 224 Sanções Administrativas, Malheiros, 2001, p. 25: “(...) a direta e imediata conseqüência jurídica, restritiva de direitos, de caráter repressivo, determinada pela norma jurídica a um comportamento proibido nela previsto, comissivo ou omissivo, dos seus destinatários.” 225 Curso de Direito Administrativo, 22ª ed., Malheiros, São Paulo, 2007. 226 Ob. cit. ps. 45/46: “(...) para mantermos fidelidade ao nosso conceito de sanção, o primordial parâmetro para classificação das sanções deve ser o da própria conseqüência (restrição de direitos) imposta a cada caso concreto. Em razão disso, podem ser as sanções: a) restritivas da liberdade – que, por isso mesmo, só podem ocorrer com pessoas (...); b) restritivas de atividades (de pessoa humana ou jurídica) – aqui inseridas as de inabilitação, perda ou suspensão de direitos (de dirigir, de fabricar, etc.); interdição ou fechamento de estabelecimentos; intervenção administrativa; suspensão e demissão de servidor (...); c) restritivas do patrimônio moral (de pessoa humana ou jurídica) – são aquelas constitutivas de admoestações ao infrator, como as de advertência, repreensão e censura; d) restritivas do patrimônio econômico (da pessoa humana ou jurídica) – ou seja, as de natureza pecuniária (multas) e as de perda de bens (...).” 190 objetivando cercear-lhes a liberdade ou o exercício de atividades, enumerando dentre estas últimas a inabilitação, a interdição ou fechamento de estabelecimento e a intervenção administrativa, classificação esta que guarda semelhança com a proposta por Adolfo Carretero Perez e Adolfo Carretero Sanches.227 Posto o conceito de sanção administrativa e deixando consignado que se percebe uma certa homogeneidade entre os autores no enfrentamento da questão, não fugindo, na essência, do conceito acima reproduzido, impõe-se verificar os modos pelos quais se procede à aplicação das sanções daquela natureza, buscando elucidação acerca da exigência ou não, em qualquer caso, de serem as mesmas precedidas do respectivo procedimento administrativo e do correlato direito de prévia defesa. A abordagem proposta remete à discussão acerca da autoexecutoriedade, atributo próprio dos atos administrativos em geral, sendo que neste particular, Hely Lopes Meirelles228 enfatiza que, “com efeito, no uso desse poder, a Administração impõe diretamente as medidas ou sanções de polícia administrativa necessárias à contenção da atividade social que ela visa a obstar”. O mesmo autor afirma ainda que “a Administração só pode aplicar sanções sumariamente e sem defesa (principalmente as de interdição de atividade, apreensão ou destruição de coisas) nos casos urgentes que ponham em risco a segurança ou a saúde pública, ou quando se tratar de infração instantânea surpreendida na sua flagrância, aquela ou esta comprovada pelo respectivo auto de infração”. 227 Derecho Administrativo Sancionador, Editoriales de Derecho Reunidas, 1995, Segunda Edición, ps. 177/78. 228 Ob. cit. p. 129. Conforme o autor, o TJSP entendeu que: “exigir-se prévia autorização do Poder Judiciário equivale a negar-se o próprio poder de polícia administrativa, cujo ato tem de ser sumário, direto e imediato, sem as delongas e complicações de um processo judiciário prévio. Ao particular que se sentir prejudicado pelo ato de polícia da Administração é que cabe recorrer ao Judiciário, uma vez que não pode fazer justiça pelas próprias mãos”. 191 Pondo-se em concordância com Hely Lopes Meirelles, no sentido de que as sanções administrativas “em virtude do princípio da auto-executoriedade do ato de polícia são elas impostas e executadas pela própria Administração em procedimentos administrativos sumários e compatíveis com as exigências do interesse público”, Álvaro Lazzarini229 anota que, “porém, mister se torna deixar bem claro que, como dito, tais meios coercitivos devem estar, previamente, indicados na lei específica que disciplina a matéria policiada”. A seu turno, Celso Antônio Bandeira de Mello230, mirando a questão também sob o ângulo da auto-executoriedade, leciona que “todas essas providências, mencionadas exemplificativamente, têm lugar em três diferentes hipóteses: a) quando a lei expressamente autorizar; b) quando a adoção da medida for urgente e não comportar as delongas naturais do pronunciamento judicial sem sacrifício ou risco para a coletividade; c) quando inexistir outra via de direito capaz de assegurar a satisfação do interesse público que a Administração está obrigada a defender em cumprimento à medida de polícia”. Como consequência das premissas doutrinárias invocadas, é possível afirmar que, verificadas determinadas situações específicas, afigurandose premente a necessidade de imediata preservação do interesse público subjacente e, mais importante ainda, existindo a necessária autorização legal, a Administração Pública pode aplicar sanções que decorram diretamente do texto da lei, independentemente da instauração de procedimento administrativo específico e afastando a obrigatoriedade de oferecimento de precedente direito de defesa. 229 Estudos de Direito Administrativo, RT, 2ª edição, 1999, p. 197. Ob. cit. p. 728/29: “as medidas de polícia administrativa freqüentemente são auto-executórias: isto é, pode a Administração promover, por si mesma, independentemente de remeter-se ao Pode Judiciário, a conformação do comportamento do particular às injunções dela emanadas, sem necessidade de um prévio juízo de cognição e ulterior juízo de execução processado perante as autoridades judiciárias”. 230 192 A propósito, confira-se o posicionamento de Régis Fernandes de Oliveira,231 invocando o ensinamento do professor Oswaldo Aranha Bandeira de Mello e sustentando as diferentes possibilidades que se abrem para a Administração Pública de implementar as sanções administrativas por diferentes modos, seja executando meramente a lei que possibilita a cominação direta da sanção, seja instaurando, quando necessário, o respectivo processo administrativo, seja, ainda, à vista da infração e ouvido o administrado, impondo a sanção cabível. Apresentando o conceito de sanção administrativa e estampados os meios pelos quais pode a mesma ser implementada, cumpre trazer à discussão as restrições de direito originadas da decretação de regimes especiais e que passam a incidir sobre a instituição financeira e seus administradores a partir do exato momento da decretação do regime pelo Banco Central do Brasil, qualificando-se, pois, como efeitos ex lege dos atos administrativos instauradores daquelas situações excepcionais. Dentre os ditos efeitos, pode-se mencionar, naquilo que interessa aos objetivos desse trabalho, a indisponibilidade de bens dos administradores e afastamento dos mesmos dos cargos que ocupavam na instituição, bem como na submissão desta a um regime excepcional e da sua retirada do segmento em que 231 Infrações e Sanções Administrativas, RT 1985, ps. 65/66: “A sanção pode defluir diretamente do texto legal, hipótese em que será vinculada, bem como pode ser imposta mediante procedimento administrativo ou simples ato. No primeiro caso, como diz o Prof. O. A. Bandeira de Mello, ‘além da sanção administrativa aplicada especificamente, ante a verificação da inobservância da norma jurídica ou de ordem administrativa, há a sanção legal que comina genericamente uma penalidade pela inobservância do preceito normativo. Então, a ação da Administração se reduz à mera execução do preceito’. No segundo, tendo a Administração ciência da prática de uma infração, mas por ter dúvidas quanto à sua configuração ou, inclusive, sobre quem é no seu autor, instaura o procedimento próprio para apurar a falta e seu autor, terminando, após a sequência de atos, por um ato final, que imporá a sanção ou arquivará o procedimento. Também nos casos em que a lei expressamente exige apuração completa ou prévia defesa do infrator (...). No terceiro caso, cuidase de ato único, isto é, à vista da infração e independentemente de maiores indagações – à só vista da infração – a Administração aplica a sanção, ouvindo, antes, evidentemente, o infrator. A oitiva do infrator é fundamental para a regularidade da punição.” 193 atuava, nos casos de intervenção e de liquidação extrajudicial, todos vindo a caracterizar, segundo entendemos, efetivas sanções de natureza administrativa. Assim entendemos porque consubstanciam efetivas restrições impostas pela Administração Pública no exercício do denominado poder de polícia, dirigidas aos administrados, seja a empresa ou seus administradores, por haverem deixado de cumprir o regramento que se lhes aplica, ou seja, não observaram os deveres jurídicos aos quais estão adstritos, consoante se extrai do contido nos artigos 2º. e 15, da Lei 6.024/74 ou no art. 1º. do DL 2.321/87, normativos estes notadamente enfeixados no regime jurídico-administrativo. Com efeito, o artigo 2º, da Lei 6.024/74, ao referir como causa suficiente à decretação do regime de intervenção a existência de prejuízos decorrente de má administração, por certo está impondo um dever jurídico de boa administração, o qual, se não obtido, importa em uma conduta administrativamente não desejável e, portanto ilícita, daí seguindo-se a conseqüência jurídica prevista, ou seja, a possibilidade de imposição de sanção administrativa. O mesmo silogismo aplica-se às demais situações previstas em outras passagens daquele mesmo artigo, ou naquelas descritas no artigo 15, da mesma Lei 6.024/74, ao tratar da liquidação extrajudicial ou, ainda, àquelas outras condutas arroladas no artigo 1º. do Decreto-Lei 2.321/87 e que ensejam a possibilidade de decretação do regime de administração especial temporária. Trata-se de hipóteses caracterizadoras de infrações administrativas e, por isso, determinam a conseqüência juridicamente prevista, qual seja, a imposição de sanção administrativa. Oportuno citar novamente Daniel Ferreira,232 que entende a infração administrativa como sendo “o comportamento voluntário, violador de norma de conduta que o contempla, que enseja a aplicação de uma 232 Ob. cit. p. 63. 194 direta e imediata conseqüência jurídica, restritiva de direitos, de caráter repressivo”. Importar considerar ainda, nessa passagem, o conceito de sanção administrativa de autoria de Susana Lorenzo233 que, invocando Guido Zanobini, define-a, de modo singelo e preciso, como o evento danoso (menoscabo) imposto por um órgão estatal, atuando na função administrativa, como conseqüência da violação de um dever imposto por uma norma. Na essência, o conceito acima em nada se contrapõe àquele de Fábio Medina Osório,234 mais longo e detalhado e elaborado com a intenção de extremá-lo de outras medidas aflitivas impostas pela Administração Pública ou pelo Judiciário, conforme assevera o autor, tais como as medidas de polícia, as medidas rescisórias, as medidas de ressarcimento ao erário e, por último, as medidas coativas e preventivas. A fim de ressaltar a natureza de sanção que entendemos marcar as conseqüências jurídicas ex lege ora tratadas, e para possibilitar a confrontação com as medidas de polícia e as medidas coativas ou preventivas aventadas pelo autor antes referido, e que poderiam suscitar alguma discussão, caberiam alguns comentários a respeito, a fim de afastar qualquer possibilidade de identificação. No que se refere às medidas de polícia, informa Fábio Medina Osório235 que “é certo que as medidas de polícia podem estar ligadas ao cometimento ou ao perigo de cometimento de um fato ilícito, mas tal circunstância 233 Ob. cit. p. 8. Ob. cit. p.80: “Consiste a sanção administrativa, portanto, em um mal ou castigo, com alcance geral e potencial pro futuro, imposto pela Administração Pública, materialmente considerada, pelo Judiciário, ou por corporações de direito público, a um administrado, agente público, indivíduo ou pessoa jurídica, sujeitos ou não a especiais relações de sujeição com o Estado, como conseqüência de uma conduta ilegal, tipificada em norma proibitiva, com uma finalidade repressora ou disciplinar, no âmbito de aplicação formal e material do Direito Administrativo.” 235 Ob. cit. p.81 e segs. 234 195 não lhes confere um caráter punitivo, um enquadramento no conceito de sanções administrativas”. Isso porque, complementa o autor, os efeitos de uma sanção administrativa significam uma privação de direitos que já existiam ou a imposição de obrigações originais aos administrados, com a finalidade de intimidar e reprimir. Conclui o autor afirmando que “quando o Estado veda ao indivíduo um exercício de um direito para o qual não estava habilitado, não há falar-se propriamente em sanção administrativa. Nessa linha de raciocínio, o fechamento ou a interdição de uma atividade iniciada pelo particular sem a necessária autorização do Poder Público não constitui sanção administrativa, pois em realidade se trata de uma medida adotada para o restabelecimento da legalidade, como poder legítimo da Administração”. Como se vê, as características apontadas não guardam qualquer relação com os efeitos ex lege da decretação de regimes especiais, já que nesses casos ocorrem restrições ao exercício de direitos pré-existentes, tais como o direito de administrar uma instituição, de dispor o administrador de seus próprios bens ou de continuar a sua empresa, o que vem a imprimir-lhes a natureza de sanções administrativas. No que diz respeito às medidas coativas ou preventivas, o próprio autor desfaz qualquer possibilidade de equiparação com os efeitos decorrentes da decretação de regime especial já amplamente referidos, ao asseverar que naquelas “o objetivo é, justamente, evitar a ocorrência de determinados fatos, impedir que se consume uma violação da ordem jurídica”. Prossegue o autor afirmando que “as sanções administrativas, ao contrário, são conseqüências do cometimento de uma infração administrativa, constituindo uma repressão” e que “o pressuposto é, nessa seara, a realização de 196 um comportamento proibido, representando, enfim um posterius, ao passo que no campo das medidas preventivas outro é o pressuposto, dado que inexiste pretensão de uma resposta cabal a um fato ilícito”. Posto isso, importa aduzir que os efeitos ex lege dos quais se cuida têm natureza sancionatória também em virtude de materializarem efetivas incursões desfavoráveis nas esferas de interesses e de direitos e liberdades dos seus destinatários, gravando uma restrição em relação ao seu patrimônio, afastando-os do exercício de suas atividades profissionais, submetendo as empresas que administravam a um regime especial e retirando-as dos segmentos para os quais estavam anteriormente autorizadas a atuar, nos casos legalmente previstos. É de se notar que, nestes casos, as normas de regência, a fim de preservar o interesse público inerente, na extensão devida e com a urgência requerida, autoriza a Administração Pública a adotar as medidas nela enumeradas, caso presentes os pressupostos legalmente previstos, independentemente da defesa dos destinatários, tratando-se, pois, de autênticas e legítimas sanções administrativas ex lege. Por fim, deve ser encarecido que a discussão acerca da questão proposta assume considerável importância tendo em vista os reflexos resultantes do fato de as consequências ex lege ora tratadas serem consideradas como sanções administrativas decorrentes da decretação de regimes especiais. Isso porque, revestidas daquela natureza sancionatória, importantes conseqüências serão produzidas em relação aos punidos, notadamente no que diz respeito, dentre outros, à perda da primariedade dessas pessoas para fins de reincidência, ou mesmo para efeitos de considerações a propósito do princípio do non bis in idem. 197 VII - CONCLUSÕES A discricionariedade só é exercitável mediante prévia autorização normativa e deve, por isso, limitar-se às fronteiras estabelecidas pelo próprio ordenamento jurídico, tendo em vista principalmente a finalidade que expressa ou implicitamente a norma permissiva buscou alcançar. Os direitos subjetivos, aí incluídos os decorrentes da outorga de poder discricionário, não são de caráter absoluto e demandam que a sua fruição, pelos seus titulares, não se revele abusiva, sob pena de adentrarem para o campo da ilicitude. A possibilidade conferida aos sujeitos de direito de agirem ou de não agirem ou mesmo a faculdade de assumirem uma dentre várias condutas igualmente legítimas, sob o ponto de vista jurídico, não é exclusividade do regime jurídico de direito público, fazendo-se presente, ainda que sob outra denominação, em sede de direito privado, particularmente em matéria de direito civil. No campo do direito privado, a maior ou menor intensidade dos comandos legais em relação aos sujeitos de direito decorre do fato de as normas se apresentarem, respectivamente, como de imperatividade absoluta ou de imperatividade relativa. No âmbito do direito público, especificamente em sede de direito administrativo, as normas pertinentes se apresentam, relativamente aos agentes públicos, vinculando totalmente o seu modo de agir ou lhes conferindo uma certa margem de apreciação discricionária. O elemento distintivo entre os atos discricionários privados e os atos discricionários públicos reside na obrigatoriedade imposta a esses últimos de se 198 produzirem tendo em vista a realização de um interesse público contido explícita ou implicitamente na norma. Nos casos de competência vinculada, a norma estabelece todos os pressupostos e condições que devem ser observados relativamente à conduta do seu destinatário, vinculado-o completamente aos estritos enunciados do comando legal. Diversamente, quando a norma defere o exercício de competência discricionária, remete ao agente público a possibilidade de assumir uma certa margem de apreciação subjetiva, relativamente a algumas das condições de exercício do poder atribuído à administração. Quando diante de conceitos indeterminados, ainda que possam se apresentar como igualmente válidas mais de uma solução para um caso concreto, a decisão não fica posta à livre e completa apreciação da administração, cabendolhe observar o balizamento imposto pelo ordenamento jurídico, particularmente o decorrente da aplicação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Com o objetivo de estabelecer limitações ao exercício do poder discricionário por parte da Administração Pública, foram criadas ao longo do tempo várias técnicas visando à redução da discricionariedade ou mesmo a sua submissão ao crivo do Poder Judiciário, quando a mesma viesse a se situar além dos marcos legais estabelecidos. A pioneira das técnicas de redução da discricionariedade teve como fundamento o reconhecimento de que existem elementos regrados relativos aos atos discricionários no tocante à forma, à competência, aos procedimentos, à finalidade e ao tempo, de sorte que a validade dos atos pertinentes fica condicionada à observância daqueles elementos. 199 Dentre tais elementos assume relevante importância o concernente à finalidade do ato, na medida em que, segundo expressiva corrente doutrinária, o ato só restará legitimado se respeitada a finalidade expressa ou implicitamente definida na regra de competência. O requisito da finalidade restará desatendido, caracterizando-se assim o desvio de poder, não somente se o ato visou a um interesse privado, mas também quando o interesse, ainda que público, seja diverso daquele objetivado pela norma de regência. De acordo com a técnica de controle exercida em função dos fatos que determinaram a produção do ato discricionário, os motivos alegados pela administração e que justificariam a prática do ato assumem a condição de pressuposto necessário para a sua legitimidade, pelo que devem encontrar perfeita correspondência com a realidade dos fatos. Uma vez enunciados pelo agente os motivos que justificariam a prática do ato, ainda que não houvesse obrigatoriedade para tanto, a validade do mesmo fica na dependência de terem aqueles fatos realmente ocorrido e que justificassem a prática do ato. A técnica da redução da discricionariedade ou da sua submissão ao controle judicial com base nos princípios gerais do direito tem como premissa a assertiva de que o legislador, nos casos em que outorga competência discricionária para a administração, não derroga, em favor dessa, a totalidade do ordenamento jurídico e, portanto, continuará o agente público sujeito ao mesmo, especialmente no que se refere à observância daqueles princípios antes referidos. Os princípios gerais do direito não constituem uma mera abstração ou uma pálida invocação aos ideais de justiça ou mesmo uma chamada à consciência moral ou discricionária do aplicador da lei, mas sim uma das formas 200 de expressão do direito, direcionada à solução de conflitos de interesses concretos. É possível constatar, em meio ao ordenamento jurídico brasileiro, a presença de uma série de princípios acolhidos expressa ou implicitamente pela Constituição e que, além de limitar o exercício da discricionariedade administrativa, orientam também a elaboração legislativa e, ainda, ampliam a esfera de ação do Poder Judiciário no enfrentamento da questão. O exercício do poder de polícia, enquanto atividade de conformação dos interesses individuais ao interesse coletivo, materializa-se, por vezes, em incursões restritivas na esfera de direitos dos administrados, sujeitando-se, para tanto, especialmente no que se refere ao exercício de competência discricionária, aos parâmetros legais postos. A AdminIstração Pública, no exercício prático da competência discricionária que lhe é deferida para o exercício de poder de polícia, adota entendimentos e posturas que extrapolam os limites legais demarcados pelo legislador e que revelam ausência de sintonia com o posicionamento doutrinário. Os órgãos reguladores dos mercados financeiro e de capitais têm à sua disposição um arcabouço legal prevendo uma série de medidas típicas do exercício do poder de polícia, conferindo-lhes a possibilidade de adotar a medida que se venha a atender como a mais indicada diante da ocorrência de comportamentos assumidos pelos administrados e que não estejam em conformidade com as normas pertinentes às suas atividades. Tanto no âmbito da Comissão de Valores Mobiliários, quanto na esfera própria do Banco Central do Brasil, a instauração de processos administrativos não é a única nem obrigatória atitude a ser tomada por aqueles entes reguladores. 201 A decisão do Banco Central do Brasil de submeter a regime especial instituição sujeita a seu poder de polícia é de natureza discricionária, tendo em vista os termos das próprias leis de regência, bem como os conceitos de natureza prática ou indeterminada que consubstanciam os pressupostos para tanto exigidos. Não obstante isso, as decisões da espécie não podem se revestir de caráter arbitrário, assumidas ao talante da vontade estatal, devendo estar devidamente amparadas pelo regime jurídico-administrativo e respeitados, principalmente, os princípios jurídicos que lhes são pertinentes. No que respeita à cessação ou término de regimes especiais, a lei confere ao Banco Central do Brasil certa margem de discricionariedade no que se refere apenas e tão somente às situações em que aquela competência se localiza na hipótese das normas de regência. Alguns efeitos ex lege decorrentes dos próprios atos administrativos instauradores de regimes especiais possuem a natureza de sanções administrativas e, portanto, devem ser assim consideradas para todos os fins de direito, particularmente naquilo que se refere à aplicação do princípio do non bis in idem. O ordenamento jurídico brasileiro, considerado na sua integralidade, repele claramente a possibilidade de aplicação, inclusive em sede de direito administrativo sancionatório, da reformatio in pejus, pelo que não poderá o reexame do litígio resultar em imposição de pena mais gravosa que a já decidida em primeira instância. Eventual não observância da proibição de que se trata caracterizará não acatamento, a um só tempo, das garantais da ampla defesa e do 202 contraditório, bem como impedirá a aplicação do princípio do duplo grau de jurisdição. De maneira genérica, considerado o tema desenvolvido nessa dissertação, pode-se concluir que a Administração Pública, ao exercitar a competência discricionária que lhe é deferida na implementação do poder de polícia no âmbito dos mercados financeiro e de capitais, exorbita dos limites legalmente demarcados pelas normas respectivas e situa-se em desconformidade com o posicionamento doutrinário pertinente. 203 VIII - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALESSI, Renato. Sistema Istituzionale del Diritto Ammnistrativo Italiano, Dott Antonino Giufré, Milão, 1953. ARAÚJO, Edmir Netto de. Os princípios administrativos na Constituição de 1988, Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, n. 34, p. 133-142, dez. 1990. ___________ Do negócio jurídico administrativo, RT. São Paulo, 1992. BARROSO, Luiz Roberto. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no Direito Constitucional. Revista dos Tribunais. 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