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O DISPOSITIVO GRUPAL1
Ana Maria Del Cueto
Ana Maria Fernández
A. INTRODUÇÃO
As teorias sobre “o Grupal”, encontram-se, sem dúvida, em déficit em relação
ao nível de formulações alcançado por outras disciplinas “Psi” . Mesmo assim, par4ecenos que um dos maiores méritos dos profissionais que trabalham com grupos tem sido
a criatividade de inumeráveis e inovadores recursos técnicos.
Durante os últimos anos na Argentina houve um afrouxamento no trabalho de
elaboração teórica do grupal, assim como também uma diminuição dos profissionais
dedicados a esta atividade, especialmente na área hospitalar, bem como no âmbito do
exercício privado da profissão. Certamente não tem sido alheia a este estado de
coisas a caracterização de “subversivas” que tais atividades obtiveram por parte das
autoridades da ditadura.
Não podemos evitar a pergunta: que fantasmas levantaram os grupos para
obter tal qualificação?
Essa plêiade de novas técnicas que surgiram nos anos 70, por sua vez, ao serem
“suprimidas”, não puderam aperfeiçoar-se ou abandonar-se ao seu espontâneo vir a
ser, e então permaneceu contido um interessante processo técnico-teóricoinstitucional que agora, em melhores condições, devemos recuperar, revisar, repensar. É sob esta orientação que apresentamos algumas de nossas reflexões.
Pois bem, o apresentado nestas primeiras linhas se refere a uma conjuntura
imediata, porém num sentido mais geral gostaríamos de assinalar dois aspectos que
nos parecem relevantes; isto, obviamente, sem excluir muitos outros que, sem dúvida,
confluem nesta questão.
Por um lado, as psicoterapias grupais se realizaram sempre à margem das
Instituições Psicanalíticas. Esta marginalidade marcou o movimento grupalista na
Argentina com muitos de seus melhores ganhos, porém também com parte de suas
limitações.
Por outro lado, acreditamos que o próprio objeto real a estudar, o grupo,
oferece uma série de dificuldades, quando focalizamos sua abordagem a partir dos
critérios epistemológicos com os quais tradicionalmente temos lidado em nosso meio.
Uma eventual “Teoria nos Grupos” não pode constituir seu objeto teórico. Não pode,
nem poderá, dadas as características específicas dos “acontecimentos” dos quais
deverá dar conta.
Acreditamos que os grupos constituem, a nível da teoria, mais que um “objeto
teórico”, um campo de problemáticas, onde se produzem múltiplos atravessamentos,
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BAREMBLIT, G. (organizador). Lo grupal 2 – Bueños Aires, Ed. Búsqueda, 1985.
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impossíveis de abordar por uma única disciplina. Nos grupos reais se produzem
permanentemente efeitos de atravessamentos de inscrições desejantes,
institucionais, históricas, sociais, políticas, etc.
Portanto, pensamos que podemos avançar em sua teorização se enfocamos a
mesma desde uma transversalidade, a qual implica renunciar a dar conta dos
acontecimentos grupais desde um só corpo teórico: a psicanálise, a sociologia, a teoria
da comunicação, etc. Propomos, assim, abordar este campo de problemática no próprio
âmago de sua complexidade e atravessamentos.
Se evocamos a etimologia da palavra grupo, o termo é de origem recente.
Provém do italiano Groppo ou Gruppo cujo sentido foi, em um primeiro momento, “nó”,
e só mais tarde vai fazer alusão a conjunto-reunião. Os lingüistas o derivam do antigo
provençal “gropinudo”, e supõem que é um derivado do germano ocidental Kruppo –
Masa redondeada, originando-se este último significado da idéia de “círculo”.
Ou seja, a etimologia da palavra proporciona duas “linhas de forças”, como diz
Anzieu: por um lado, “nó”, e por outro, “círculo”.
Deriva sua existência na linguagem cotidiana de um termo técnico empregado
nas artes para designar a um conjunto de indivíduos esculpidos ou pintados que
compõem um tema. Os artistas franceses, entre eles Massard, o importaram nos
meados do século XVII; aparece assim, na França, o termo “groupe”, porém só em
meados do século XVIII designará uma reunião de pessoas.
O termo “circulo” derivaria de uma tradição celta: Cavaleiros da Távola
Redonda, que com sua Ordem dos Templários retoma em sua acepção a idéia de
igualdade: todos devem estar à mesma distância do centro.
Esta referência etimológica é para nós algo mais que uma remissão à história de
um vocábulo. Se resgatamos esta imagem de nó é porque no trajeto epistemológico que
assumimos permite avançar na teorização do grupal.
Estamos aqui na presença também de nós teóricos. Emaranhados campos de
problemáticas, necessitam de teorização no próprio centro de sua complexidade.
Múltiplos fios de diferentes cores ou intensidades formam um “nó”; porém são seus
emaranhados que constituem sua “realidade”.
Nesta idéia, o efetivamente registrável não são os fios, mas sim o nó; portanto,
embora em sua constituição estejam presentes fios desejantes, econômicos, sóciohistóricos, políticos, etc, não nos orientamos a encontrar o Objeto teórico dos grupos,
mas sim os nós problemáticos caleidoscopicamente atravessados pelas múltiplas
inscrições que os constituem.
No mesmo sentido, torna-se necessário superar a velha antinomia IndivíduoSociedade; e por outro lado gostaríamos de evitar ecleticismos teóricos. Pensamos que
deveremos recorrer às diferentes disciplinas presentes em tal atravessamento,
operando com elas como, nas palavras de Foucault, com uma “caixa de ferramentas”.
Assim, pensaremos os grupos como espaços táticos onde se dá a produção de
efeitos singulares e inéditos.
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Tentaremos desenvolver nosso pensamento em relação aos grupos em um
movimento duplo:
Os grupos não são ilhas, isto é, têm sempre uma inscrição institucional, seja
tal inscrição real ou imaginária. Aqui nos diferenciamos da tradição da chamada
“dinâmica dos grupos”, que concebeu os acontecimentos grupais como fenômenos em si
mesmos, isolando-os de inscrições mais amplas.
Neste sentido, consideramos que o chamado contexto, seja institucional e/ou
social, é, a rigor, texto do grupo. Ou seja, não existe uma realidade externa que
produz maiores ou menores efeitos de influência sobre os acontecimentos grupais,
mas sim são parte do próprio texto grupal, em suas diversas modulações; são, enfim,
fundante de cada grupo; mais que cenografia, o drama grupal.
Parece-nos altamente ilustrativo a esse respeito o desenvolvimento de Pavlovski
referente ao profundo emaranhado do fantasmático social e o imaginário grupal nos
anos recentes da ditadura, quando nos grupos começaram a aparecer personagens
investidos de suspeitas terroríficas.
Usamos aqui o termo texto em um sentido muito mais abrangente que o
simplesmente discursivo. Por sua vez, acreditamos que a distinção clássica de textocontexto fica demarcada na velha antinomia Indivíduo-Sociedade, onde o de “fora” de
um grupo influi sobre o de “dentro”. Dentro desta demarcação da questão poderíamos
diferenciar as correntes grupalistas segundo dêem estas maior ou menor importância
à influência do fora sobre o dentro.
Pelo contrário, se pensamos o grupo como um nó, desfazem-se o dentro-fora,
em cima - embaixo, e começamos a pensar em termos de complexo emaranhado de
múltiplas inscrições. Agora, tudo está ali: todas as inscrições estão presentes em
cada acontecimento grupal. Isto, sem dúvida, implica aceitar que em um grupo estão
se produzindo muito mais acontecimentos do que podemos dar conta. Neste sentido,
analogias como as mencionadas acima, têm facilitado a leitura da grupalidade, criando
muitas vezes a ilusão de apreender a totalidade deste objeto que pretendemos
abarcar. Ao nosso ver, essas ilusões não têm podido escapar a um certo reducionismo,
do qual tentamos nos desprender.
A corrente da Análise Institucional é quem nos últimos anos tem marcado com
mais força a inserção dos grupos nas instituições; sem dúvida, pensamos que tal
corrente subestima a especificidade propriamente dita dos acontecimentos grupais.
Estes não são meros espelhos da instituição na qual estão inseridos, mas pelo
contrário, produzem formas próprias.
E aqui vamos ao outro polo do duplo movimento que anunciamos mais acima, que é
a necessidade de não desconsiderar a grupalidade, ou seja, o específico do
acontecer grupal.
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B. O DISPOSITIVO GRUPAL
Para a abordagem do dispositivo grupal fizemos um quadro (p. 6).
Dados um tempo, um espaço, um número de pessoas e algum objetivo comum,
criam-se as condições de possibilidade para que um agrupamento se constitua em um
grupo. Tempo, espaço, número de pessoas e objetivo, conformam um dispositivo, isto
é, uma virtualidade, porém específica e própria desse grupo e não de outro.
Embora consideremos elementos manifestos e elementos latentes no acontecer
grupal, isto não é algo fixo; qualquer dos elementos do dispositivo pode desencadear
efeitos, pode operar a partir da latência em um dado momento.
Por exemplo, quando, em março de 1984, se realizou uma primeira reunião de
cátedra de Psicologia Social, as pessoas convocadas para essa primeira reunião eram
seis. Só o titular conhecia a todos, de resto só dois ou três se conheciam entre si. No
meio da reunião, nos demos conta que nos havíamos colocado ao longo da mesa, três e
três. Porém, não de qualquer maneira; de um lado haviam se sentado os três futuros
integrantes que haviam permanecido no país e do outro os três que haviam voltado
recentemente do exílio.
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Processo
Grupal
Serialidade
Repetição
DISPOSITIVO
GRUPAL
Interjogo de
Papéis
Formação
Grupais
Emergentes
Porta-vozes
Lideranças
Saboteadores
Depositários
Grupo
Criatividade
Rede de identificações
cruzadas
Ilusões grupal
Mito grupal
A instituição
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Havia, sem dúvida, operado ali um efeito de latência, anterior, não só à
constituição do grupo como tal, mas também anterior à própria constituição de um
plano discursivo.
Observe-se que na enumeração dos elementos que formarão essa virtualidade
que é o dispositivo grupal, temos substituído o tradicional termo tarefa, por objetivo
comum. Isto, mais que responder a jogos semânticos, obedece a várias questões. Em
primeiro lugar, coincidimos com De Brasi, quando propõe que tal termo pode levar a
confusões, quando nos referimos a grupos terapêuticos. Dado que pensamos que são os
mesmos acontecimentos que vão se produzir nos grupos, sejam estes terapêuticos, de
aprendizagem, recreativos, empresariais, etc, preferimos utilizar um termo mais
abrangente.
Por outro lado, não podemos deixar de assinalar nossa impressão com relação ao
termo tarefa, já que pensamos que pode produzir-se no seu emprego, um deslizamento
de sentido para ideologias produtivistas.
I. O Processo Grupal
Neste ítem deveríamos incluir o que classicamente se tem chamado Dinâmica de
Grupos. Cremos que este termo se encontra historicamente vinculado à
microsociologia – geralmente empresarial – americana, embora também com certo
desenvolvimento na França.
Embora não possamos ignorar os aportes pioneiros desta escola ao
funcionamento dos grupos, tais como os estudos sobre a influência de diferentes tipos
de liderança, sobre as dificuldades na tomada de decisões, a mudança e a resistência à
mudança, a abordagem dos jogos tensionais dentro de um grupo, etc, pensamos que
uma teorização deverá trazer maior esclarecimento em relação ao tema da dinâmica
dos grupos. Poderíamos propor que nossas maiores diferenças em relação a essa
corrente se focalizam no seguinte:
a. A dinâmica de grupos conforma uma abordagem dos acontecimentos grupais
centrada no manifesto;
b. Tais acontecimentos são considerados como fenômenos em si mesmos (os
grupos ilhas);
c. Determinam um manejo particular com relação às tensões grupais: para esta
corrente as tensões grupais diminuem contanto que o grupo possa realizar uma
discussão democrática das mesmas. Assim, as tensões de um grupo de
operários em uma empresa diminuirão desde que possam discutir livremente
seus conflitos... Por outro lado, promove-se aqui uma discussão da democracia
entendida como livre discussão;
d. Tendem a uma explicação do grupal por modelos fisicalistas, mecanicistas.
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A esse respeito, pensamos que uma eventual recuperação dos estudos de K.
Lewin sobre Dinâmica de Grupos deve vir acompanhada de uma discriminação dos
aspectos de alta saturação ideológica presentes em suas propostas2.
Neste sentido parece-nos interessante Lapassade, quando propõe: “desvinculada
de seus modelos mecanicistas, a dinâmica de grupos conduz, a rigor, a uma dialética
dos grupos. O emprego do termo dialética se justifica, se por ele se pretende
designar uma lógica do inacabado, da ação sempre recomeçada. O grupo, a organização,
será uma totalização em curso que nunca é totalidade atualizada... A dialética será
para nós, portanto, simplesmente o movimento sempre inacabado dos grupos.
Em nossa reflexão sobre o grupal abordaremos, então, o processo grupal,
prestando atenção à constante dialética que abarca, em permanentes jogos
caleidoscópicos, a:
Serialidade
Repetição – Reprodução
Grupo
Transformação – Criatividade
1. Serialidade
Grupo
Aqui tentaremos focalizar o processo grupal mais que como jogos tensionais
de forças, como uma dialética de uma totalização em processo, com a intenção de
nos desvincularmos dos modelos mecanicistas que tradicionalmente têm operado nesta
temática. A partir daí, nos formularemos uma pergunta: como é que de um conjunto de
pessoas se estrutura um grupo? Ou, dito de outra maneira, como passamos da
dispersão à coesão? Da serialidade ao grupo? Para Sartre, o grupo se constitui contra
a série. A vida dos grupos é uma permanente tensão entre esses dois pólos extremos.
Portanto, será esta tensão a que constituirá o motor da dialética dos grupos. Embora
um Grupo se constitua contra a serialidade, sempre tende a voltar à mesma. Não
esqueçamos que os Grupos sempre têm vida efêmera. Assim, contêm a possibilidade
de dissolução em organização e a virtualidade de estruturação na dispersão.
Em sua tensão contra a série um grupo deverá juramentar-se, diz Sartre. Aqui,
talvez, deveríamos fazer referências aos termos enquadre, contrato, etc, como um
aspecto dessa juramentação, ou melhor, como sua forma explícita ou visível. Em suas
formas implícitas incluiríamos a produção de formações imaginárias grupais próprias e
únicas de cada grupo.
Neste sentido pensamos que um grupo se estrutura como tal, mais que por
sua tarefa, quando vai consolidando um conglomerado de representações
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A corrente inaugurada por Pichón Rivière em nosso país, embora utilize muitos aportes
lewinianos, não se assemelha com tal teoria nos itens a e c, embora possamos dizer que mantém certos
ranços do ponto b.
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imaginárias comuns (rede de identificações cruzadas, ilusão e mitos grupais,
sendo a instituição o disparador do imaginário grupal).
É por isso que pensamos que a tarefa é convocante de um grupo, mais que
estruturante do mesmo.
2. Repetição – Reprodução
Criatividade – Transformação
Nesta vida efêmera dos grupos, poderemos falar de grupos criativos e de
grupos repetitivos? Talvez sim. Porém, o que nos interessa ressaltar é que todo grupo
abriga em seu interior aspectos repetitivos e aspectos transformadores em uma
dialética permanente. A existência de grupos que tendem a desenvolver mais um polo
que outro obedece a uma diversidade de fatores. Determinados estilos de
coordenação favorecem sua tendência em um ou em outro sentido. Isto está
indissoluvelmente ligado aos objetivos explícitos e implícitos que a instituição – real ou
imaginária – na qual se inscrevem os grupos, tenha estabelecido, como também às
ilusões e mitos grupais nos quais se estrutura o grupo, à rede de identificações que
une seus membros, e também os aspectos transferenciais estabelecidos com a
coordenação e a instituição.
Por outro lado, podemos encontrar grupos que contenham em seu interior a
contradição de desenvolver conteúdos novos, porém dentro de formas organizativas
tradicionais.
O tema da repetição – transformação nos remete a um aspecto muito velado nas
teorizações sobre Grupos, que é o problema do poder nos grupos, as relações de
saber-poder em seu interior; por exemplo, o exercício da violência simbólica, a
circulação de micropoderes nos grupos, etc.
Neste aspecto, faz-se necessário, ao nosso ver, repensar a problemática da
transgressão.
Tradicionalmente, em psicanálise, tendemos a considerar como
transgressivo o modo de relacionar-se de determinados sujeitos cuja transgressão
refere-se à proibição do incesto ou seus equivalentes simbólicos.
Porém, muitas vezes, pode-se omitir que a transgressão constitui uma poderosa
força questionadora do instituído, sempre operante nos grupos, como também nos
indivíduos.
Na linha do que estamos expondo, parece-nos de utilidade o aporte de Guattari,
quando demarca os Grupos-Objeto e Grupos-Sujeito. Neste sentido, nos gruposobjeto todo desviante será visto como um transgressor, como um eventual perigo a
expulsar; e assim se formarão os heterodoxos e os ortodoxos, as seitas, as rupturas
de escolas, etc.
Pelo contrário, grupo-sujeito será aquele com capacidade para enunciar algo;
isto se torna possível pelo suporte da transvesalidade, enquanto dimensão permanente
da instituição na qual o grupo está inserida. Assim, toda possibilidade de intervenção
criadora dependerá da capacidade de tornar manifesto o sujeito da instituição (o
“inconsciente institucional”). É preciso assinalar que as duas classes de grupos estão
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em constante oscilação: um grupo-sujeito está sempre ameaçado à sujeição, um grupo
submetido (submisso) em alguns casos pode assumir um papel de alto nível
transformador.
II.O Interjogo de Papéis
Em uma brevíssima síntese diremos que, para Pichón-Rivière, o grupo se
estrutura sobre a base do interjogo de mecanismos de assunção e de atribuição
de Papéis.
1. O Conceito de Papel
O conceito de papel tem uma larga tradição nos aportes da antropologia, da
sociologia e da psicologia social funcionalista. Um dos autores mais importantes que
utiliza tal conceito é, sem dúvida, George Mead. Através do conceito de papel, aborda,
em seu livro “Espirito, Persona e Sociedade”, o estudo das relações interpessoais, os
vínculos sociais, etc.
Na tradição dramática, o papel é um modo de identificar-se imaginariamente
com um personagem; assim, um papel em uma obra teatral existe independentemente
do ator particular que o encarne.
Nesse sentido, um papel social também tem uma existência independentemente
de quem o desempenha; assim poderíamos dizer que na sociedade os papéis préexistem aos indivíduos, sob formas de condutas a serem assumidas em função da
situação ocupada, ou seja, da posição.
Etmologicamente, o termo “rol” (papel) provém do francês “role”, que tem, por
sua vez, uma origem latina: “rotulus”. Estes termos se referem a um papel, “rollo”,
onde se anotavam determinadas coisas; na época medieval se anotavam neste “rollo”,
por exemplo, o intercâmbio ou o embarque de mercadorias. “Rollo” era também o papel,
ou a fala, que os atores deviam recitar. É a partir do século XVIII que o termo “rol”
(papel) começou a ser empregado em seu sentido figurado, como função social ou
profissão.
A teoria do papel, desde a ótica da sociologia funcionalista, desenvolveu-se em
função do conceito de posição: uma posição define um mínimo de comportamento
obrigatório para o indivíduo, ainda que não possa garantir que este desempenhará tal
comportamento com perfeição. Desde esta concepção se denominará papel ao
desempenho real de uma pessoa em uma situação dada, ou seja, papel é a maneira pela
qual uma pessoa desempenha o que é requerido por sua posição. Por sua vez, papel é o
aspecto dinâmico do status. Com este termo se alude a uma espécie de marca de
identificação social que coloca os indivíduos em relação com outros indivíduos. O como
uma pessoa se comporta dependerá, em grande medida, do status em que se encontre,
da posição particular que ocupe em seu meio social.
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Para Pichón-Rivière, papel “é um modelo organizado de conduta relativo a uma
certa posição do indivíduo em uma rede de interação, ligado a expectativas
próprias e dos outros”.
Distinguem-se papéis formais ou prescritos como aqueles que estão
determinados pela posição que um sujeito ocupa em uma determinada organização ou
instituição; assim, o papel social remete, como dizíamos, a um lugar ou status. Papéis
informais são os que os sujeitos desempenham numa dada situação, no aqui e agora, e
que dependem da rede de interação grupal.
Como dizíamos anteriormente, para Pichón-Rivière, a estrutura e a função de um
grupo serão dadas pelo interjogo dos mecanismos de atribuição e de assunção de
papéis; estes representam modelos de conduta correspondentes à posição (relativa)
dos indivíduos nessa rede de interações, e estão ligados às expectativas próprias e às
de outros membros dos grupo. Dessa maneira, o papel, e seu nível, o status, se ligam a
direitos, deveres e à ideologias que contribuem para a coesão da unidade.
2. Aportes de Pichón-Rivière
Os mecanismos de assunção e de atribuição de papéis fazem referência à
posição na qual cada um dos integrantes de um grupo se liga nesta rede de interação;
tal rede estará intimamente relacionada com a história individual desse indivíduo,
tanto como à sua forma de inserção no grupo. A tarefa que tal grupo realize constitui
sua finalidade e estará baseada, fundamentalmente:
a. No explícito:
No objetivo que tal grupo se dê (recreativo, terapêutico, de aprendizagem,
etc).
b. No implícito:
Na elaboração das ansiedades básicas: o medo da perda (ansiedade
depressiva), e o medo do ataque (ansiedade paranóide). Estas duas
ansiedades configuram a situação básica de resistência à mudança.
O papel do coordenador, para Pichón-Riviére, consiste um esclarecer, através
de pontuações e interpretações, as manifestações de condutas estereotipadas que
dificultam a aprendizagem e a comunicação. Ou seja, toda interpretação deve
favorecer o nível de operatividade de um grupo. Para isto deverá incluir sempre a
leitura dos níveis horizontal e vertical do acontecer grupal, que permitirão a ruptura
do estereótipo.
Sobre estes delineamentos, Pichón elabora a técnica dos grupos operativos,
para sua leitura do acontecer grupal.
No interjogo de papéis propriamente dito, que, para Pichón, tem um caráter
estruturante no grupo, destacam-se especialmente três papéis que poderíamos
apresentar como prototípicos:
O porta-voz;
O bode expiatório;
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O líder.
Estes papéis não são fixos ou estereotipados, mas sim funcionais e rotativos; ou
seja, em cada situação grupal um indivíduo assumirá tal ou qual papel de acordo com a
situação gerada no aqui e agora grupal.
Por porta-voz, entende-se “o membro que em um momento denuncia o
acontecer grupal, as fantasias que o movem, as ansiedades e necessidades da
totalidade do grupo”; portanto não fala por si só, mas por todos. Articula-se nele uma
fantasia inconsciente individual entrecruzada com o acontecer grupal. Faz referencia
aos registros horizontal e vertical de toda situação grupal, onde confluirão a história
pessoal do indivíduo (vertical) e o processo atual no qual o grupo está inserido
(horizontal). Toda interpretação deverá revelar a situação de todos os membros do
grupo, em relação com a tarefa, exemplificando o problema enunciado pelo porta-voz.
Por bode expiatório, entende-se a depositação, em um membro do grupo, de
aspectos negativos ou atemorizantes do mesmo (grupo) ou da tarefa, aparecendo
mecanismos de segregação frente a tal integrante.
Por líder, entende-se a depositação, em um membro do grupo, dos aspectos
positivos; destacam-se diferentes tipos de lideranças: laissez-faíre, autocrático,
democrático, etc.
Ambos os papéis, o de líder e o de bode expiatório, estão intimamente
relacionados, já que um surge para preservar o outro, em virtude do chamado processo
de dissociação que todo grupo desenvolve em sua tarefa de discriminação.
Pichón acrescenta, ainda, o papel de sabotador, que será aquele integrante que
em determinado momento assume a liderança da resistência à mudança.
3. Reformulações
São estes alguns dos conceitos de um pensador tão expressivo como E. PichónRiviére. Sem dúvida, acreditamos ser necessário repensar seus aportes, para que suas
idéias não se estereotipem na repetição, para manter viva a dialética criadora na qual
ele mesmo esteve sempre inserido, e poder avançar, assim, para além de seus próprios
conceitos.
Coincidimos com De Brasi, em sua caracterização deste autor (Pichón), quando
acentua sua figura mais como “desviante institucional” que como grupólogo.
Assim como nos parece inevitável a análise do interjogo de papéis em uma
leitura do grupal, pensamos este interjogo mais como um efeito da latência grupal que
como uma causa estruturante do grupo. Parece-nos mais adequado abordar a
estruturação do grupo a partir da produção de suas formas próprias, isto é, as
formações imaginárias grupais.
Por outro lado, a análise da verticalidade e da horizontalidade grupal não dá
conta da vastidão dos acontecimentos grupais. Dessa forma, poderíamos pensar que
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limitar-nos a esses dois registros nos situa novamente na antinomia Indivíduo –
Sociedade.
Neste sentido, parece-nos frutífero o aporte conceitual da noção de
Transversalidade, porquanto, ao delimitarmos os grupos como campo de problemática,
estes são concebidos como permanentemente atravessados por múltiplas inscrições:
desejantes, institucionais, ideológicas, sócio-históricas, políticas, etc. Assim, a noção
de transversalidade nos parece uma ferramenta válida na intenção de romper com a
idéia dos grupos-ilhas, e também de superar a tradicional antinomia IndivíduoSociedade (da qual não escapa a concepção funcionalista dos papéis).
Ao pensar os grupos desde esta perspectiva, isto é, no caleidoscópio de suas
múltiplas inscrições, criam-se as condições de possibilidade de colocá-los em um campo
de análise mais amplo.
Por que esta noção nos parece uma ferramenta útil para romper com o aporte
de grupo-ilha? Porque ela necessariamente nos remete à ancoragem institucional dos
grupos.
Por que pode ser uma ferramenta útil no sentido de superar a antinomia
Indivíduo-Sociedade? Porque implica um significante social operando, não como
influência sobre o indivíduo, mas como fundante do sujeito. Isto significa que não só
operam no grupo as inscrições edípicas, mas também que haverá uma inscrição social e
histórica fundante, ainda, da dimensão inconsciente.
Falávamos na Introdução de um duplo movimento em nosso enfoque do grupal.
Neste sentido, parece-nos importante destacar que, embora o grupo resulte do
atravessamento mencionado, isto não deve levar-nos a desvalorizar ou omitir a
especificidade das formas próprias que um grupo constitui, enquanto espaço
tático da produção de efeitos singulares e inéditos.
Portanto, em toda leitura da grupalidade, pensamos que a análise do interjogo
de papéis mantém um nível de eficácia válido, desde que sua leitura se inicie com as
reformulações aqui assinaladas.
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O dispositivo Grupal ¹