Prometeu Revisitado: Acidentes e a Teoria Organizacional
Autoria: Paulo Cesar Vaz Guimarães, Mário Aquino Alves
Para o analista organizacional, a opção pelo olhar sobre os acidentes decorre do fato de eles
serem um tipo de evento que alcança uma situação limite, quando o burlesco sai de cena e os
reais valores se manifestam. Em termos mais formais, representam um evento focalizador,
que perfaz um acontecimento capaz de alterar a formulação da agenda de um campo e
catalizar a mobilização em torno de si, quando os grupos procuram expandir seu raio
influência.
Dessa forma, o presente artigo é um ensaio teórico que tem como objetivo demonstrar como
as principais correntes hoje predominantes na análise organizacional dos acidentes – Normal
Accidents Theory (NAT) e High Reliability Theory (HRT) – são aprofundamentos de aspectos
sublinhados por Barry Turner em sua Man Made Disaster.
Barry Turner alinhavou um modelo ideal, segundo a tradição weberiana, denominado Man
Made Disaster (MMD), que inovou ao realçar a latência que as causas dos desastres possuem,
o que era relegado. A hegemonia dos trabalhos até então atinha-se ao momento de eclosão e
dos ajustes seguintes, sem a dimensão temporal ampliada. Mais importante, no entanto, foi o
reconhecimento explícito de que os desastres são eventos sócio-técnicos, nos quais há um
gerenciamento negligente ao não conseguir ler os sinais que o período de incubação
proporciona. Abriu-se a porta para que a análise organizacional pudesse se desenvolver, quase
que de forma concomitante.
Uma das linhagens é a Normal Accidents Theory (NAT), desenvolvida a partir dos trabalhos
de Charles Perrow. Com base em seus estudos sobre os sistemas envolvidos nas modernas
tecnologias de produção, conclui que há a proliferação de esquemas em que predominam
interações complexas entre cada unidade do processo produtivo, sem ser possível antecipar
quais e quando ocorrerão. Concorre para esse estado de coisas a predominância de alto
acoplamento entre as unidades, o que acelera os processos disruptivos e dificulta a
intervenção para solucioná-los. Como Perrow vincula os eventos ao contexto social, político e
econômico das organizações, seu aparato mostra-se competente para descrever o fenômeno
organizacional em sua abrangência macro.
A outra das linhagens é a High Reliability Theory (HRT), identificada com os trabalhos de
Karl Weick e sua abordagem de sensemaking, optando por acolher os aspectos microscópicos
da vida organizacional. Em termos sintéticos, a ação de sensemaking é aquela em que os
atores da organização procuram dar sentido ao que fazem, interpretando e explicando a
organização. Os maiores esforços de sensemaking são verificados quando o mundo é
percebido como sendo diferente do esperado e os atores têm dificuldades de discernir como se
engajar no mundo.
Ambas as linhagens são significativas ao propiciar a clareza das mais diversas dimensões e
permanecerão de valia. Neste trabalho, advoga-se que a conjuminação dos aportes das duas
linhagens estrutura uma abordagem centrípeta - um verdadeiro “caleidoscópio” -, vital para
que resulte elementos para uma leitura mais integrada das relações entre os atores sociais.
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Introdução
Para o analista organizacional, a opção pelo olhar sobre os acidentes decorre do fato de eles
serem um tipo de evento que alcança uma situação limite, quando o burlesco sai de cena e os
reais valores se manifestam. Em termos mais formais, representam um evento focalizador,
que perfaz um acontecimento capaz de alterar a formulação da agenda de um campo e
catalizar a mobilização em torno de si, quando os grupos procuram expandir seu raio
influência. Tal posição é defendida por Birkland (1998), que concorda com o posicionamento
mais difundido de que a agenda política é afetada pelos grupos, porém acrescenta que a
natureza dos eventos também tem seu papel. Klein (2008) leva essa concepção ao extremo,
argumentando que empresas poderosas e segmentos do governo aproveitam essas verdadeiras
“janelas de oportunidade” para aprovarem legislações e adotarem medidas que não seriam
aplicáveis em uma situação rotineira. A ideia da autora não pode ser desconsiderada, mas,
como é recente, a polêmica ativada requisita um tempo para que o contraponto de outras
visões ganhe corpo. Por exemplo, Birkland e Nath (2001) chamaram a atenção de que as
empresas nem se deram conta do aspecto político associado aos acidentes. Para eles, a
literatura permanece com sua tônica normativa, prescrevendo um receituário que não revela a
dimensão política dos acidentes e que muitas vezes desemboca em um desdém pela
pluralidade da democracia.
De qualquer forma, o assunto tem recebido contribuições de fôlego, muito em função da
evolução que a questão ambiental assumiu nas últimas décadas. No campo organizacional,
Gephart et al. (2009), em uma ampla revisão, dividiram seis correntes de influência: a
antropologia simbólica; a sociedade de risco (BECK, 2006) a estruturacionista (GIDDENS,
1999), a perspectiva da governamentalidade (FOUCAULT, 1995), a perspectiva dos
acidentes normais (PERROW, 1994, 1999[1984]) e a perspectiva cognitiva do sensemaking
(WEICK, 1990, 1993, 1995, 1998, 2004). Dessas abordagens, interessa aos propósitos deste
artigo, tanto a perspectiva de acidentes normais quanto a de sensemaking.
Tendo por preocupação os estudos que procuram dissecar os fenômenos organizacionais
associados aos acidentes, decidiu-se que esta revisão seria conduzida explorando estas duas
últimas linhagens, uma vez que é nelas em que as organizações são as unidades de análise. As
outras certamente devem ser utilizadas para incrementar o conhecimento sobre as facetas que
os desastres possuem, possibilitando, inclusive, a compreensão mais refinada do papel
desempenhado pelas organizações.
A abordagem de Perrow (1999[1984], 1994) traz a problemática do risco para o interior da
teoria organizacional. Com base em seus estudos sobre os sistemas envolvidos nas modernas
tecnologias de produção, conclui que há a proliferação de esquemas em que predominam
interações complexas entre cada unidade do processo produtivo, sem ser possível antecipar
quais e quando ocorrerão. Concorre para esse estado de coisas a predominância de alto
acoplamento entre as unidades, o que acelera os processos disruptivos e dificulta a
intervenção para solucioná-los. Como Perrow vincula os eventos ao contexto social, político e
econômico das organizações, seu aparato mostra-se competente para descrever o fenômeno
organizacional em sua abrangência macro.
Weick (1990, 1993, 1995, 2005), com sua abordagem do sensemaking, também monta
guarida na teoria das organizações, optando por acolher os aspectos microscópicos da vida
organizacional. Em termos sintéticos, a ação de sensemaking é aquela em que os atores da
organização procuram dar sentido ao que fazem, interpretando e explicando a organização. Os
maiores esforços de sensemaking são verificados quando o mundo é percebido como sendo
diferente do esperado, ou quando os atores têm dificuldades de discernir como se engajar no
mundo (WEICK; SUTCLIFFE, 2005).
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Pela perspectiva organizacional é factível admitir que o trabalho de Barry Turner (1976,
1994) seja seminal (PIDGEON; O´LEARY, 2000, p. 15). Não que esse ramo de estudo não
tenha tangenciado a questão dos desastres; basta lembrar que o objeto de análise do grande
Selznick – o Tennessee Valley Authority (TVA), naquela que talvez seja a primeira obra da
teoria organizacional, tinha entre suas funções o controle das cheias para impedir novas
ocorrências de inundações (SELZNICK, 1966). O que Turner alcançou foi a construção de
um arcabouço teórico robusto o suficiente para alicerçar novas gerações de pesquisadores que,
a partir das inúmeras pistas fornecidas pelo seu modelo, até os dias de hoje aperfeiçoam o
conhecimento sobre a gênese e desdobramentos dos desastres decorrentes da ação humana.
Este é um ensaio teórico que tem como objetivo demonstrar como as principais correntes hoje
predominantes na análise organizacional dos acidentes – Normal Accidents Theory (NAT) e
High Reliability Theory (HRT) – são aprofundamentos de aspectos sublinhados por Barry
Turner em sua Man Made Disaster. É certo que as contribuições estão sendo significativas ao
propiciar a clareza das mais diversas dimensões e permanecerão de valia. Por outro lado,
advoga-se também que a conjuminação dos aportes das duas escolas consegue estruturar uma
abordagem centrípeta, formando um verdadeiro “caleidoscópio”, vital para que a resultante dê
elementos para uma leitura mais integrada das relações entre os atores sociais e situações
criticas em organizações.
A seleção pelas abordagens centradas nas organizações também decorre da escassez de
estudos com este teor no Brasil. Na revisão da literatura, encontraram-se exemplos da
sociologia dos acidentes (MATTEDI; BUTZKE, 2001; MARANDOLA JR; HOGAN, 2004;
ACSELRAD, 2006; VALENCIO et al., 2009), da influência de Beck (GUIVANT, 1998;
ACSELRAD; MELLO, 2002; DEMAJOROVIC, 2003), e de saúde e segurança no trabalho
(FREITAS et al., 1995; FREITAS; AMORIM, 2001; GANDRA et al., 2005). Em nenhum
deles a teoria organizacional predominou.
Prometeu traz a luz e o fogo: Barry Turner e a Man Made Disaster
Os anos 60 foram um período no qual as preocupações com o modelo de desenvolvimento
econômico adquiriram uma conotação diferente, quando o processo de urbanização e a
ampliação da esfera produtiva desvelaram problemas que até então eram apenas potenciais,
tais como os acidentes de maior envergadura. Já neste primeiro momento, Barry Turner,
professor de sociologia da Universidade de Exeter, Inglaterra, alertou que o foco principal
estava sendo direcionado para aspectos secundários (TURNER, 1976). Cônscio das
dificuldades inerentes à tratamento das incertezas futuras, o autor asseverava que as ações das
organizações eram mais determinadas por “regras de bolso” e por procedimentos costumeiros,
capazes de gerar um clima de tranqüilidade para o processo decisório. Fortemente
influenciado pela premissa da racionalidade limitada (SIMON, 1997 [1945]), Turner
reconhecia que a realidade é caracterizada por problemas pouco estruturados, de difícil
enunciado. Para as organizações, restaria tão-somente adotar seus próprios critérios para
selecionar o que olhar e o que não olhar.
Em termos sintéticos, o argumento de Turner dizia que os esforços estavam sendo
direcionados, de forma predominante, para o entendimento do que havia acontecido de errado.
A preocupação ficava circunscrita às manifestações aparentes, em uma autêntica investigação
da gênese do evento. Segundo sua opinião, a partir de tal modelo o que vinha a tona eram
falhas de natureza humana ou tecnológica, havendo sempre um culpado bem delineado, fosse
um trabalhador fosse um equipamento. Por esse caminho, o autor era “desmascarado” e
recebia a execração pública em múltiplas arenas. Na sequência, contudo, novos eventos de
natureza similar tinham vez, sem que houvesse vozes capazes de prevê-los, até por que,
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afinal, não seria viável a antecipação da vontade humana. Para Turner, a circularidade do
pensamento não era cabível e condenava parcelas da sociedade ao fenecimento. Claramente,
algo estava equivocado e necessitava ser revisto. Sua proposição básica consistiu no
redirecionamento dos holofotes, no sentido de deixar um pouco na penumbra os elementos
restritos do instante da tragédia e tentar iluminar os percursos que desembocaram no evento.
Somente assim poder-se-ia identificar o fenômeno criado e compreender os motivos pelos
quais ele não foi previsto.
A pesquisa que Turner (1976, 1981, 1994) empreendeu para elaborar sua perspectiva sobre os
acidentes contemplou uma série de desastres de larga escala que, conquanto potencialmente
previsíveis e evitáveis, mostraram-se inesperados e graves a ponto de provocarem a
reavaliação dos procedimentos administrativos para evitar sua repetição no futuro. A sua
conclusão sublinhou que a frequente iniciativa de encontrar o culpado estava equivocada, haja
vista que, no mais das vezes, a erupção dos acidentes correspondia a um resultado fruto das
condições sociais e organizacionais, e não a uma conseqüência de uma intervenção individual.
O primeiro elemento destacado por Turner era a rigidez nos valores e percepções dos padrões
organizacionais. O argumento é que o credo cristalizado ao longo da prática acaba por
reforçar atitudes que influenciam o processo decisório, sem considerar alterações exógenas. O
agravante é que as vozes dissonantes tendem a ser abafadas ou expurgadas, reduzindo a
diversidade de olhares, configurando um processo de imbreeding. Ou seja, a organização
delimita suas transações com o ambiente externo e inibe a inovação e reduz a capacidade de
resposta diante de novos vetores de força.
O segundo ponto levantado pelo autor, em uma tradução livre, é o problema do engodo. O que
se percebeu é a forte tendência de haver o destaque de aspectos secundários, que são mais
estruturados do que as demais dimensões do problema. Face a um conjunto que não consegue
ser compreendido em sua totalidade, os atores se calçam naquelas facetas que possuem mais
segurança, deixando ao largo as questões centrais. Outro movimento assíduo é o descaso com
as opiniões proferidas por pessoas externas à organização. Partindo da premissa de que os
profissionais internos estão mais preparados para entender e lidar com o trabalho, acaba-se
desprestigiando outros saberes. No limite, pode-se chegar a beira da insensatez, tal qual
definido por Tuchman (1986), quando as opções para uma encruzilhada são conhecidas e
verbalizadas, só que são descartadas por aqueles que devem decidir.
Uma terceira condição encontrada e com grande impacto no agir organizacional está na
comunicação interna das informações. Nos casos abordados por Turner, a presença de
ambigüidade nos alertas, ordens e controles foi marcante, o que associado a informações
equivocadas entre as áreas, desencadeou desencontros entre os níveis gerenciais.
Também com potencial disruptivo é a presença de pessoas estranhas aos serviços que lidam
com substâncias perigosas e procedimentos de risco. A advertência pode parecer prosaica já
que, a rigor, locais susceptíveis não deveriam estar ao acesso de pessoal não qualificado.
Perrow (2007) ensina, entretanto, que até instalações de alta segurança como usinas nucleares
podem permitir a entrada sub-reptícia de estranhos. Acontece ainda que não é apenas em áreas
claramente perigosas que a questão aflora, como bem ilustra o lembrete de Turner (1976) de
que mesmo a evacuação de um cinema pode ter pessoas indevidas em locais indevidos.
Ainda contribui para a conflagração dos acidentes a vigência de regulações obsoletas, que
logicamente não são obedecidas e com isso catalisam comportamentos descuidados. A
desatenção vira regra e a justificativa inicial que o aparato regulador possuía fica esquecida.
Por fim, pode emergir situações em que o perigo é desprezado. Tanto pode ser que a ameaça
seja entendida como de somenos, como haver o conflito de opiniões, dando azo à inércia.
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Outra possibilidade é que as pessoas atuem para minimizar o problema e considerem que o
perigo foi sanado, quando não o foi.
A partir desse anteparo, Turner alinhavou um modelo ideal, segundo a tradição weberiana,
denominado Man Made Disaster (MMD), que inovou ao realçar a latência que as causas dos
desastres possuem, o que era relegado. A hegemonia dos trabalhos até então atinha-se ao
momento de eclosão e dos ajustes seguintes, sem a dimensão temporal ampliada. Mais
importante, no entanto, foi o reconhecimento explícito de que os desastres são eventos sóciotécnicos (PIDGEON, 1997), nos quais há um gerenciamento negligente ao não conseguir ler
os sinais que o período de incubação proporciona (TURNER, 1994). Abriu-s a porta para que
a análise organizacional pudesse entrar.
Na concepção de Gherardi (1998), o MMD chega a ser um fato cultural em si ao cunhar uma
frase que ficou incrustada no mundo científico e que também superou os muros da academia.
Tamanho papel deriva de ser a primeira obra que distingue os desastres naturais daqueles
provocados pelo homem, reforçando que os últimos não são atos divinos. Em termos
analíticos, o MMD trouxe uma abordagem abrangente, capaz de englobar as múltiplas
possibilidades para um fenômeno organizacional complexo, em todo o seu espectro de
ocorrência. Com o fito de explorar sua potência explicativa, contemplando inclusive suas
fragilidades, utilizar-se-á, a seguir, a crítica de Gephart (1984), a qual apareceu pouco tempo
após a divulgação do modelo e que continua, em muitos aspectos, válida.
Robert Gephart, professor da Universidade de Alberta, Canadá, redigiu sua tese de doutorado
no período próximo das publicações de Turner sobre o MMD, e uma de suas inquietações era
que os modelos das organizações formais, tradicional objeto de atenção da teoria
organizacional, não eram aplicáveis às organizações emergentes no final dos anos 70,
principalmente nas situações caracterizadas por fortes relações interorganizacionais. Para
eventos desestruturantes como os acidentes, então, a adequação era ainda mais distante. No
vazio encontrado, o autor foi um dos poucos a perceber imediatamente a riqueza da
elaboração de Turner e conseguiu lançar peias em balizas seguras com os alicerces do
modelo, quando este deixou de priorizar os efeitos sociais dos desastres e descortinou os
fatores organizacionais presentes (GEPHART, 1984). A aproximação, porém, não se deu sem
controvérsias. Na opinião de Gephart, Turner haveria conseguido pressentir as dificuldades
com as abordagens tradicionais, só que teria desprezado a dimensão política e o papel que o
poder desempenha nas relações sociais. Em razão dessas limitações, procurou ampliar as
características do modelo MMD, chegando, inclusive, a propor uma nomenclatura diversa,
que denominou Organizationally Based Environmental Disasters (OBED). O resultado que
obteve foi interessante ao detalhar aspectos que estavam subentendidos, mas não é razoável
admitir que tenha desenhado uma inflexão. A rigor, sua ótica está inserida no arrazoado de
Turner, conferindo ao MMD uma clareza aos papéis desempenhados pelos atores sociais, mas
não é aceitável dizer que seja um novo constructo teórico. Considera-se que Gephart carregou
o MMD com adjetivos, sem que isso desmereça qualquer dos dois autores. O resultado é um
modelo que influenciou as correntes seguintes, que se tornaram hegemônicas e se digladiam
na atualidade (PERROW, 2009)
Prometeu Acorrentado: a Normal Accidents Theory
A teoria que passou a ser conhecida como acidentes normais (NAT) está associada aos
trabalhos de Charles Perrow, professor aposentado da Universidade de Yale, uma das
principais referências na teoria organizacional desde a publicação de seu clássico sobre as
organizações complexas, nos idos de 1970, e que se envolveu, segundo sua própria opinião,
de forma inesperada na avaliação do acidente nuclear de Three Mile Island (PERROW, 2004,
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p. 9). Após esse contato, o autor se deteve na investigação de outros eventos de natureza
similar, buscando cotejar seus insights e consolidar um referencial mais amplo para a
compreensão dos fenômenos organizacionais envoltos nos acidentes. Tal busca teve como
primeiro grande produto a redação da obra na qual cunhou o termo acidentes normais
(PERROW, 1999 [1984]), a qual teve forte repercussão, seja por parte de aliados seja por
antagonistas (no campo das ideias, é claro).
Não é temerário afirmar que muito da ressonância deve-se à simplicidade dos conceitos
formulados, aliada a uma redação clara e não esotérica. Outra possibilidade do impacto está
em uma das principais conclusões do trabalho: existem empreendimentos que, a despeito das
medidas de segurança adotadas e demais procedimentos, apresentam potencial disruptivo que
podem comprometer vidas humanas.
O constructo teórico dos acidentes normais calca-se em duas dimensões centrais: as interações
e os acoplamentos entre componentes e entre sistemas. As interações são ou lineares ou
complexas. No primeiro caso, o que se tem pela frente são situações esperadas e familiares, e
mesmo quando não planejadas, são muito visíveis. Já as interações complexas caracterizam-se
pelo inusitado, sem serem planejadas e, quando compreensíveis, o são apenas em momentos
posteriores.
A alguém pode surgir a indagação do por que a anteposição dos conceitos de complexidade e
linearidade, se ambos não são antípodas. Para um evento complexo, afinal, esperar-se-ia, no
pólo oposto, um evento simples; para um evento linear, na outra margem ter-se-ia um evento
não-linear. Perrow nos ensina que as interações são lineares quando são facilmente
compreendidas, e o adjetivo simples denota algo pouco sofisticado, com poucas engrenagens
e de fácil gerenciamento. A não-linearidade, por seu turno, não está impregnada da noção de
incompreensão (PERROW, 1999 [1984]). O autor adverte que o batizado de uma interação
vem da predominância de um ou outro aspecto. Nas coisas concretas usualmente encontra-se
as duas possibilidades; por exemplo, a fabricação de medicamentos é uma linha de produção
linear, e longe está de ser simples. O analista precisa ter o discernimento de distinguir as
facetas mais relevantes, sem ter à mão regras de bolso. O cuidado que Perrow avisa é que não
há identidade entre os conceitos de linearidade com as condições físicas e materiais, nem a
complexidade está umbilicalmente presa a tecnologias de última geração. Ou seja, a
empreitada tem que ter a sua condução de maneira laboriosa e longe está de ser trivial.
Um parâmetro que Perrow (1999 [1984]) fornece é uma lista resumida de atributos que
costumam estar presentes em sistemas complexos, a saber: proximidade das partes; conexões
entre componentes sem seguir uma sequência; sequências de feedback não intencionais;
muitos parâmetros de controle com potenciais interações; fontes indiretas de informação; e,
entendimento limitado de alguns processos. Esses atributos, com “sinal negativo”, encontramse nos sistemas lineares. Conquanto possa transparecer que uma condição linear seja
preferível de sorte a facilitar o gerenciamento das organizações, a ideia não é exeqüível e tão
pouco desejada. A limitação prática para linearizar a vida das organizações está no próprio
conhecimento disponível, que não tem um acervo capaz de alterar, do jeito pretendido, todas
as interações. Em outro sentido, a redução dos modelos de interação para um padrão único
solaparia a diversidade e a criatividade que a multiplicidade propicia.
A dimensão do acoplamento (coupling) sugere atentar para a flexibilidade que as
organizações possuem para administrar o tempo entre uma operação e outra em seus sistemas,
o que concorre para a maior ou menor possibilidade de ajustes nos procedimentos, na
alocação de recursos e na implementação de correções. A depender do grau observado, os
acoplamentos podem ser justos ou frouxos (loose). A situação de acoplamento justo é
essencialmente dependente dos tempos planejados para a ocorrência das ações. Isso pode
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derivar da eficiência viabilizada pelo projeto e também pela gestão da operação. A opinião de
Perrow (1999 [1984]) é que o mais freqüente, ainda assim, explica-se pela inelasticidade do
funcionamento. A operação de um alto-forno em siderurgias, por exemplo, tem fases bem
demarcadas que não são alteradas porque a temperatura não pode baixar de determinado
ponto. Se acontecer algum atraso na entrada de insumos, o consumo de energia pouco se
alterará, incorrendo em prejuízos econômicos; se o problema for na alimentação de
combustível, será certa a quebra de equipamentos; e se houver pane nos controles de emissão,
vidas poderão ser comprometidas, com pouquíssima margem para planos de contingência.
Para os sistemas de acoplamento frouxo a espera é factível, sem afetar o produto e suas
características essenciais. Os planos de contingência são capazes de serem ativados, e em
algumas situações nem isso é requerido; basta aguardar em standby que o fluxo normal de
matéria e energia será recomposto.
Um aspecto bastante peculiar dos acoplamentos justos, como mencionado, é que a sequência
das ações é rígida. Destarte, no mais das vezes há um único caminho de produção, enquanto a
tecnologia vigorar. Uma imagem que ilustra o fenômeno é o caso dos automóveis de passeio,
que até a pouco tempo ou usavam gasolina ou álcool. Depois da invenção do motor flexível,
os usuários têm a capacidade de escolha e, numa emergência, poderão recorrer ao combustível
que estiver ao acesso. Ou seja, de um acoplamento justo passou-se para o acoplamento
frouxo.
Como desdobramento das características enunciadas, infere-se que a capacidade de resposta
frente a falhas é mais viável diante de sistemas pouco acoplados. Quando o que está em
operação consiste em um sistema de acoplamento justo, é admissível o planejamento de zonas
de amortecimento e de mecanismos de redundância. E, dependendo da envergadura dos
acontecimentos, a funcionalidade do que foi implantado poderá ficar reduzida a zero
(CLARKE; PERROW, 1996), além do que a redundância pode vir a ampliar o problema
(SAGAN, 2004). No acoplamento frouxo, pelo contrário, até a inexistência de medidas
elementares de segurança é capaz de não se fazer sentir, sendo suprida por uma ação
emergencial pensada no clamor do problema.
Não obstante sua teoria tenha lhe rendido o epíteto de pessimista, Perrow (1994) prescreveu
seis características que os sistemas podem assumir para reduzir falhas: experiência com
operações em escala; experiência com as fases críticas da operação; processamento das
informações sobre os erros; proximidade com as elites pelo motivo do poder estar nelas
concentrado; controle organizacional sobre os integrantes da organização, sem esquecer que
a intensidade e forma de controle precisa ser adequado ao trabalho; e, densidade
organizacional externa rica para que os atores de fora insuflem as medidas de segurança. A
observância destas características não garante que os desastres deixarão de aparecer nos
noticiários, só que, ao invés da prevalência de sistemas indutores de erros, ter-se-ão sistemas
com dinâmicas preventivas. Perrow permanece coerente com seu postulado de que há
situações que sempre terão potencial disruptivo; sua ressalva é que a mudança de sistemas
indutores é capaz de reduzir a probabilidade dos pequenos erros que se transformam em
cataclismas. Sem dúvida, um otimista bem informado.
Uma contribuição significativa para o aperfeiçoamento na NAT veio pelas mãos de Scott
Sagan (1994), quando se deteve no problema da proliferação das armas nucleares e salientou
suas preocupações com os aspectos políticos que podem favorecer os acidentes. Indo mais
além do que reforçar ou subtrair nuance do modelo, Sagan, como Perrow (1994) admitiu,
descortinou os pilares teóricos da NAT. Nessa lide, um primeiro aspecto foi direcionar os
holofotes para os modelos organizacionais que a sustentam, em específico, a influência de
Weber, que ajuda a explicar a preocupação com o poder, e a centralidade das teorias da
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racionalidade limitada e do garbage can. O argumento básico é que os sistemas de elevado
risco possuem graus acentuados de incerteza e, na vigência de uma prática estilo garbage can,
predominará situações com objetivos nebulosos, equívocos e confusão, o que convida uma
postura pessimista em relação aos acontecimentos. Neste ponto as tintas podem ter sido
carregadas, lembrando que Cohen et al. (1972) não afirmaram que seu modelo leva à
desgraça, e sim que a racionalidade limitada contribui para que as decisões façam uso de
respostas já prontas. Pela faceta do poder, Sagan tornou mais explícito que os interesses de
grupo atuam de forma incessante na conformação dos sistemas indutores de erro. O que
instiga na proposição é que o foco não está no risco, que hoje tende a ser mais estudado pelos
múltiplos campos do conhecimento, e sim no poder que as elites armazenam para estruturar
sistemas que impõem risco aos demais grupos da sociedade. Mesmo que a elite e a alta
hierarquia da organização intentem a estabilização de sistemas preventivos, os choques com
os grupos poderão anular a iniciativa.
Merece ser frisado que os embates são escondidos e ficam dissimulados em ações da
organização, difíceis de serem delimitados. Muito recorrente nessa tergiversação é o uso dos
planos, seja para implantação, operação ou remediação dos empreendimentos, e de relatórios
de avaliação. Tais peças acabam perfazendo um instrumento simbólico, dando segurança ao
pessoal interno e passando um quadro estável e confiável aos demais. Segurança essa que
pode ser utópica, pois os planos têm por rotina destacar algumas variáveis, e as que não estão
neles inclusas, ficam escondidas e despercebidas (WEICK; SUTCLIFFE, 2001). Com imensa
criatividade, Clarke (1999) batizou estes documentos como fantasias.
Uma década depois, também com arguta percepção, Birkland (2009) desenvolveu a mesma
hipótese para os documentos produzidos pelas organizações para explicar acidentes, e como o
acontecido teria permitido o aprendizado. Na análise do autor, as peças produzidas são
fantasiosas e dificultam o aprendizado. Um exemplo que pode ser usado como ilustração das
visões antagônicas sobre o mesmo fenômeno é o da Shell, face aos problemas ambientais que
vem sofrendo no mundo. Quando se estudam os relatórios anuais da empresa, o que
transparece é uma cosmologia estruturada que fornece balizas seguras para o agir da empresa.
Ao se comparar com o posicionamento de outros, o que vem a mente é que os mundos são
diferentes (para uma melhor perspectiva, ver também TSOUKAS, 1999).
Cumpre reconhecer que os aportes são válidos e necessários, embora nenhum deles acarrete
mudanças significativas perante o conceito inicial dos acidentes normais. Concordando com
Weick (2004), a simplicidade do modelo dá-lhe uma funcionalidade heurística grande e seu
uso disseminado que, a despeito do incômodo que aflige seu criador, estimula a reflexão, e
isso não é pouco.
No escopo da teoria organizacional, a formulação de Perrow cataliza a discussão já tomando
como parâmetro seus aspectos basilares, como interdependência, coordenação, diferenciação
e processos (WEICK, 2004), permitindo um piso sólido para situar em que condições o
fenômeno em questão se encontra. Além do mais, a ferramenta dá conta de contemplar
diferentes níveis de análise, ora em um âmbito macro, como estrutura e tecnologias, ora em
recortes que favorecem saliências do nível micro, como processos. Snook (2000), com
primazia, por exemplo, valeu-se desse potencial e elaborou uma pesquisa sofisticada que
conseguiu iluminar o evento por múltiplos níveis de análise: abordou-o pelas perspectivas dos
indivíduos, dos grupos e das organizações. Para aqueles familiarizados com os estudos
organizacionais, é compreensível a dificuldade que se tem para tanto e o investimento elevado
para se atingir um mapa coerente e consistente. A NAT, portanto, é um recurso viável e
demonstra a força que uma metáfora, com toda a sua carga simbólica, possui para aguçar a
mente humana.
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Prometeu Liberto: a High Reliability Theory
Conforme foi citado, a inserção de Perrow no assunto específico dos acidentes decorreu da
repercussão do ocorrido nas instalações de Three Mile Island, evento que lhe permitiu
formular o conceito de acidentes normais e publicá-lo em uma das primeiras obras que
analisaram o problema. Nessa mesma obra, Todd La Porte (1996) deu início ao que veio a ser
consagrado como a teoria das organizações de alta confiabilidade (HRT) (RIGMA, 2003). Se
compartilharam a manjedoura, o transcorrer dos anos levou os dois infantes para locais
próximos, com grande paralelismo. Algumas correntes têm fé que eles sejam convergentes ou
pelo menos complementares; outras não vislumbram tais possibilidades nem no infinito.
A maturação do pensar de La Porte (1996) teve lugar principalmente nas salas de Berkeley,
California, onde se associou aos pesquisadores da instituição e juntos construíram uma
corrente de pensamento sobre os acidentes e as organizações. O mote que desenvolveram era
entender como sistemas de operação em larga escala alcançavam níveis extraordinários de
segurança e produção, nas mais diversas situações. O feito precisava ser entendido para
clarear como essas organizações permitiam que a interdependência entre as operações, que
são intensas nas tecnologias recentes, seguissem padrões de confiabilidade. A busca era por
soluções para a pergunta formulada por Turner e Perrow, sobre como gerenciar e coordenar a
capilaridade da rede montada pelas unidades do sistema, principalmente nas situações de
maior pressão. Afinal, era vital a compreensão de como se desenvolvia o processo decisório,
face a situações rotineiras e face à excepcionalidade, potencial ou efetiva. Nesse intento, os
autores previam que a dissecção das regras e valores, formais e informais, era inevitável pelo
fato de descortinarem os elementos constitutivos da cultura organizacional. A hipótese era que
somente com a interpretação das idiossincrasias profundas, arraigadas na “alma” da
organização, conseguir-se-ia aventar as razões pela dinâmica do cotidiano.
Entre as características encontradas, os adeptos da HRT inferiram que esse tipo de
organização possuía, antes de tudo, uma competência técnica distinta para, na possibilidade de
uma situação de emergência, iminente ou não, reordenar seu funcionamento para lidar com a
ameaça (BOIN; SCHUMAN, 2008). Para tanto, os processos de recrutamento, seleção e
treinamento eram priorizados. Um dos campos que recebiam mais ênfase no aperfeiçoamento
do pessoal compreendia as medidas essenciais para o elevado desempenho operacional, desde
a montagem de bancos de dados sobre o passado até a construção de modelos de simulação
para o futuro. Tudo isso sem perder a flexibilidade, conquistada, notadamente, por meio da
implantação de sistemas de redundância. Ou seja, se algum caminho enfrentasse um obstáculo
ou um comportamento dissonante, sempre haveria uma alternativa de bypass, até mesmo
quando a gênese da dificuldade se localizasse na estrutura de autoridade. Portanto, a variante
não se restringe a um relé, açambarcando mecanismos de contestação do processo decisório.
Na ênfase de Roberts et al. (2008), o que está por trás é a criação de uma sistemática que
permite que os modelos mentais das pessoas sejam respeitados, treinando-as a interagir com
freqüência de maneira a garantir que consigam interpretar o ambiente e atuar de pronto,
podendo ser exigida a elaboração de novos modelos mentais. No clamor do momento, as
pessoas estarão preparadas para desempenhar papéis distintos do usual e a recorrer a
estratégias contingenciais de comunicação e decisão, sem melindres ou mal estar. Como
corolário, é esperada uma estrutura descentralizada que se imponha, criando espaços para a
decisão entre um pequeno número de participantes, que tenha respaldo institucional Tal qual
no modelo da NAT, aqui também a prevalência do garbage can é esperada.
Uma advertência fundamental, expressada pelos seguidores da HRT, é que uma organização,
em termos individuais, não consegue mesclar todas as possíveis características nas suas
fronteiras organizacionais (BOIN; SCHULMAN, 2008). O quadro que se configuraria
9
conteria, além de toda a complexidade dos fenômenos associados aos acidentes, um adicional
de complexidade gerencial que levasse em conta processos internos sofisticados. Isso posto,
opções devem ser feitas, as quais serão parametrizadas por forças internas e pelos
constrangimentos externos.
A rigor, a limitação para as competências a serem aperfeiçoadas é uma condicionante para
toda e qualquer organização, não sendo demérito. O que causa espécie, antes sim, é discernir
se as peculiaridades que transformam a organização em altamente confiável são do livre
arbítrio de seus membros, treinados para a lide, ou são produto das forças externas que
impõem a mudança. Sabendo que até os dias de hoje, a despeito dos avanços, o número de
exemplos empiricamente avaliados são poucos, Boin e Schulman (2008) enfatizam que, mais
do que uma emancipação endógena, os apelos para a assunção das características prescritas
pela HRT podem vir da regulação pública, de uma liderança isolada, sem vínculos robustos
com a organização, ou realmente da evolução institucional.
Também como desdobramento da escassez de exemplos no universo pesquisado, muito do
que foi dito talvez tenha sido conseqüência de vieses do analista, que selecionou organizações
de um mesmo cluster, sem poder ser afirmado, mais peremptoriamente, relações causais entre
características e desempenho. A saída desse estado de coisas, com toda a certeza, passa pela
ampliação dos estudos, incluindo aquelas organizações que não tenham sofrido desastres e
não estão embebidas pelo caldo da HRT, e as que eram julgadas como altamente confiáveis e
assim mesmo vieram a enfrentar situações negativas.
Cônscios do imperativo, os propagadores da HRT reconheceram quer era imprescindível
ampliarem o número de casos e as ferramentas utilizadas, visando dar solidez ao seu edifício
(ROCHLIN, 1996). O que se viu na sequência é que a intenção de ganhar envergadura estava
com limitações de recursos. A expansão para outras organizações e o aprofundamento das
múltiplas variáveis não se mostravam exeqüíveis. Logo, como alternativa seus principais
idealizadores procuraram estimular os centros de pesquisa a testarem as hipóteses e aplicarem
o modelo, no âmbito de governabilidade de cada um. É um movimento que vem ocorrendo,
mas que ainda sofre críticas por ser entendida, por alguns, como mais uma lista de adjetivos
do que uma teoria (SHRIVASTAVA et al., 2009).
Não obstante os comentários mais ácidos terem alguma procedência, no contexto a
contribuição de Weick é distinta e deve ocupar posição de destaque no pódio. Esse autor
sempre esteve muito próximo do clube de Berkeley e aportou sua perspectiva de psicólogo
social ao fenômeno estudado pela HRT. Tendo escrito em parceria com alguns integrantes da
Califórnia, o professor da Universidade de Michigan encontrou em Kathleen Sutcliffe uma
colaboradora que, juntos, redigiram uma obra de referência que pode evitar que a HRT
tantalize seus partidários. Com um título provocador, Weick e Sutcliffe (2001) iniciam seu
trabalho apresentando, de forma caricatural, o modelo de Turner para situar o inesperado: uma
pessoa tem uma ideia, atua, não consegue compreender o contexto dos eventos, algo sai do
previsto e tem-se um resultado inesperado. A partir dessa simples imagem, os autores
conseguem alertar que as organizações, seguindo a expectativa da HRT, precisam ser
gerenciadas em um formato diferente.
Nesse intento, Weick e Sutcliffe (2006) apontam que as mudanças devem ser feitas no sentido
de torná-las atentas (mindfulness), o que implica que as organizações altamente confiáveis
sejam capazes de perceber com mais acuidade o inesperado e lidar com ele, seja contendo-o
ou, na debacle, restaurar o funcionamento rotineiro. Em tom mais enfático, o convite feito é
para que, quando coisas erradas aflorem, ao invés de os gerentes acusarem qualquer
funcionário, peça ou organização, apresentem competência para a análise mais abrangente.
10
Uma grande contribuição desta obra está na capacidade de síntese da HRT, remodelando-a em
uma linguagem direta, sem perder o brilho, chegando a desenhar instrumentos para a autoavaliação das organizações. Sabendo da aversão que o autor principal possui para elaborar
guias, imagina-se que estivesse muito seguro da pertinência e necessidade de sua “ousadia”. A
espinha dorsal do argumento é as organizações confiáveis, para serem atentas, devem
respeitar cinco quesitos (WEICK, SUTCLIFFE, 2001): preocupação com as falhas; relutância
em simplificar as interpretações; sensibilidade para com as operações; compromisso com a
resiliência; e, deferência ao saber.
A centralidade das falhas é inequívoca: a organização confiável requer atenção permanente
sobre as falhas, independente da gravidade. Todos seus integrantes são estimulados, e até
recompensados, pela detecção de uma anomalia ou pela simples elucubração de que algo está
errado. No limite, não importa se houve um mero indício que não se comprovou, a função é
impedir o desencadeamento do que Vaughan (2005) denominou normalização (banalização)
do desvio. Também não fica em questão o fato da pessoa reconhecer que errou e divulgar o
que e como aconteceu. A premissa subjacente é que notícias ruins podem implicar em outras
mais amargas, portanto é razoável o debate público e não a execração organizacional. O bom
profissional, então, deixa de ser somente o que atinge metas e resultados, ainda mais
lembrando que essas organizações formam quadros competentes, sujeitos a poucos erros; o
bom profissional é aquele que desempenha a contento suas obrigações e reporta as falhas que
porventura apareçam (ou dêem sinais que surgirão).
A relutância com simplificações é conseqüência do reconhecimento da racionalidade limitada
das pessoas frente à complexidade do real. Para fugir da tendência de fragmentar e enquadrar
qualquer coisa que aconteça nos modelos e conceitos prevalecentes, a HRT instiga seus
integrantes a fazer o exercício constante de olhar por prismas diferentes. Também busca
imprimir uma gestão que busque colaboradores com vivências distintas, além de incitar o
contato com o público externo. Adotar essas medidas sem criar celeumas insolúveis não é
trivial, e demanda mecanismos de negociação e resolução de conflitos sofisticados para que
não vicejem melindres e rusgas.
A obtenção de resultados satisfatórios para os dois quesitos acima aludem o imperativo das
organizações estarem focadas “na ponta” do trabalho. O distanciamento do cotidiano das
fronteiras da organização facilita ruídos na comunicação e a construção de imagens que
poderão distorcer, à exaustão, a realidade. Ao mesmo tempo, afora a dissonância, uma
possibilidade pouco remota é a cristalização de papéis entendidos enquanto mais ou menos
importantes, o que desemboca na falta de prestígio para aqueles inseridos nas operações
finalísticas. E é exatamente a familiaridade com a produção que permite o aprendizado e a
inovação, e no caso dos acidentes, a identificação das evidências, como Turner denominou,
que incubam e anunciam as rupturas.
Sobre o aprendizado, cabe reconhecer que de pouco adiantaria a atenção nas falhas e no dia a
dia da organização, se os processos de trabalho não o autorizarem. Afinal, a preocupação em
legitimar o erro enquanto factível, com vistas a que não se repita, é uma forma de dizer que a
organização não pode esclerosar e que a resiliência é fundamental. Ou seja, a experiência,
submetida a uma reflexão crítica, ou a uma “imaginação disciplinada”, parafraseando Weick
(1989), é uma salvaguarda perante o inesperado.
Por fim, o último quesito, referente a legitimidade do saber, remete a uma preocupação
presente no modelo de Turner e que também foi incorporada por Perrow: a centralização do
processo decisório segundo critérios de competência hierárquica traz elevadas probabilidades
de equívocos. Uma diferença para esses autores da HRT é que o processo de descentralização
deve ser fluído o suficiente para que as decisões migrem, conforme o termo por eles utilizado,
11
para onde o saber estiver. Ou seja, a hierarquia teria seu papel mas subsumido a contingência.
O risco de uma decisão superior ser a primeira peça da queda das peças do dominó restringe
os caprichos de status e impõe graus de liberdade, que para serem factíveis, carecem de um
caldo cultural adequado. Sua gestão da cultura organizacional, portanto, seria de inestimável
valia para o aperfeiçoamento das organizações.
Sutcliffe bem se apercebeu da relevância que a cultura organizacional, que sempre fora
cultivada pelos arquitetos da HRT e desprezada pela NAT, teria para a elaboração teórica.
Assim, Barton e Sutcliffe (2009) e seu co-autor demonstram que transformações de caráter
micro concorrem para o aperfeiçoamento das organizações.
Pelos indícios que podem ser localizados, a HRT vem ganhando fôlego, independente da
crítica de que os estudos não estipulam conclusivamente a relação causal das variáveis com os
resultados. Os autores aceitam e valorizam a preocupação (WEICK; SUTCLIFFE, 2006), só
que defendem que para interpretar uma gama de variações em um fenômeno, requer-se a
ampliação dos conceitos utilizados para estabelecer as correlações. É de se esperar, por
conseguinte, a abertura de novas trincheiras.
Fim da Saga? Prometeu Recorre ao Caleidoscópio
As duas linhas de pensamento que hoje predominam na análise organizacional dos acidentes
começaram a ser formalizadas simultaneamente, no início dos anos 80, a partir do legado de
Turner, e no percurso a tensão não se desfez. Em determinado momento, representantes da
HRT assentiram que o caráter complementar existia, só que foram peremptoriamente
rechaçados, como pode ser visto na publicação dos artigos do Journal of Contingencies and
Crisis Management, de dezembro de 1994. A partir daí a comunicação ficou comprometida,
com cada partido delimitando sua atuação. Cabe a ressalva que no campo de batalha, Weick
sempre teve o passe livre para os dois lados: adepto explícito da HRT, enquanto editor da
Administrative Science Quarterly, foi quem publicou o ensaio de Perrow que viria a gerar seu
livro de 1984, e com ele mantém relação respeitosa, que está transparente no uso de que cada
qual faz do trabalho alheio. Contudo, não foi capaz de aproximar os contendores.
Em paralelo aos mais dogmáticos, certos autores acreditavam que a colaboração seria
frutífera. Rijpma (1997), por exemplo, concluiu que a NAT poderia explicar a confiabilidade
e que a HRT dava conta não apenas do desempenho das organizações, mas também dos
fatores que acentuam a propensão aos acidentes. Em uma posição salomônica apregoou que
“HRT may prevent practioners from over-pessimism induced by NAT. NAT may reduce overoptimism with regard to the success of reliability-enhancing strategies” (RIJPMA, 1997, p.
22). Em uma avaliação posterior, o autor menciona que o debate evoluiu da dicotomia
previsibilidade/imprevisibilidade ao incluir a questão sobre a natureza da gênese dos acidentes
(RIJPMA, 2003). Esta abordagem ficou um pouco forçada uma vez que, desde o intróito,
estava em debate a origem dos problemas; todavia, permitiu ao autor alçar uma conclusão: as
duas perspectivas permaneciam separadas, com ângulos divergentes mais acentuados, o que
levará a um distanciamento maior. Com uma linguagem amarga, profetizou, ao contrário de
sua opinião anterior, que o debate tinha chegado ao fim e que e todo e qualquer ganho seria
independente. As razões são claras: de um lado estão aqueles que argúem que podemos lançar
mãos de sistemas com potencial disruptivo, sendo factível a implantação de medidas de
segurança confiáveis; e do outro lado os que vêem a incrível falibilidade das pessoas, sistemas
e tecnologias, sendo melhor evitá-las (RIJPMA, 2003). Pode-se dizer, então, que a cizânia não
deriva da origem dos acidentes e da viabilidade de gerenciá-los; o cerne da questão é a
cosmologia de cada lado, aparentemente irreconciliáveis.
12
A despeito do ceticismo e do alerta de Rijpma, naturalmente a contenda continua. Hoje a
dimensão da cultura está em relevo (NAEVESTAD, 2008; BOIN; SCHULMAN, 2008;
TURNER; GARY, 2009; BARTON; SUTCLIFFE, 2009;), sem que as discussões sobre a
dinâmica dos aspectos estruturais dos sistemas tenham desaparecido (SHRIVASTVA et al.,
2009; LEVESON et al., 2009). As notícias de aproximação, entretanto, não são alvissareiras.
O debate no campo teórico não avança, atendo-se muito em aspectos pontuais, tanto que
Perrow, deixando um pouco de lado a fleuma que o caracteriza, ontem foi ácido ao clamar
mais por estudos aplicados aos casos concretos, e menos energia no choque conceitual
(PERROW, 2009). Na visão dele, as duas teorias são imprescindíveis, sem esquecer que
devem ser aplicadas corretamente: a NAT focando os sistemas e suas falhas, e a HRT
priorizando o lado humano das organizações.
A fala de Perrow procede, mas deve ser assimilada com um certo cuidado para não entronizar
o entendimento de que uma delas é capaz de explicar um fenômeno sem a colaboração da
outra. Vaughan (1990, 1997, 2005), por exemplo, realçou as falhas que a interação complexa
e o acoplamento justo ocasionaram em dois acidentes da Nasa, considerando ainda o papel
dos grupos de poder, e nem por isso se sentiu impedida de elucubrar ações que poderão ser
implementadas para o aperfeiçoamento da gestão. A tese de Snook (2000), por sua vez,
demonstrou sobejamente que há, de fato, complementaridade. Ao esmiuçar as estórias que
narram como soldados aniquilaram seus companheiros, no que se consagrou como “fogo
amigo”, Snook (2000) chegou a um exemplo de acidente normal em uma organização
altamente confiável.
É possível se afirmar que no segundo lustro dos anos 90, a influência de Turner, ou até
mesmo sua redescoberta, aconteceu em decorrência da segunda edição de seu livro sobre
acidentes feitos pelo homem (RIJPMA, 2003). Até então, segundo Short e Rosa (1998), o
ostracismo na academia e entre os gestores das organizações pública e privadas era quase
absoluto; concorria para tanto a tradição epistemológica da ciência ocidental, que favorece a
racionalidade mais circunscrita. Dela deriva a prática de quebra dos fenômenos em
componentes elementares, os quais são estudados por campos de conhecimento específicos,
cujas fronteiras são ferreamente defendidas por seus integrantes. Como bem assinalam os
autores, os paradigmas são lentes que focalizam alguns aspectos e escondem outros,
favorecendo a disputa entre os times e a dificuldade de mútua compreensão. Não é de se
estranhar, portanto, que o aporte de Turner, destacando a organização enquanto unidade de
análise, ficasse em um ponto cego. Quando da segunda edição em 1997, todavia, as tragédias
feitas pelo homem, como Seveso, Exxon Valdez, Chernobyl e Bhopal, por exemplo, estavam
estampadas no roteiro da humanidade, sem condições de serem apagadas. Nesse contexto, o
modelo de Turner entrou na surdina no mainstrean, sem dele fazer parte mas influenciando-o.
Muito da potência do arcabouço de Turner está na abrangência de sua abordagem, a qual
contém os elementos que os estudiosos que se seguiram se apropriaram. A NAT, de forma
inequívoca, está sedimentada na fase de incubação, quando, por exemplo, privilegia a
distribuição de poder que favorece ou não o processo decisório descentralizado. A HRT, por
seu turno, realça a o papel que os processos de trabalho e de comunicação desempenham na
prevenção de disjunções, e também destaca dimensão da cultura, objeto da primeira pesquisa
de impacto de Turner (1994), no início de sua carreira, e também assunto de suas últimas
publicações (PIDGEON; LEARY, 2000). Não é à toa que Weick e Sutcliffe (2001)
justamente recuperam os escritos antigos de Turner para discorrer sobre a cultura e as
organizações confiáveis.
Weick (1998) vai mais além do que admitir que a contribuição de Turner vincula-se a um
modelo consistente; para ele, o poder explicativo está na abordagem feita que estimula a
13
reflexão. Weick enfatiza que o intelectual britânico, engenheiro que se tornou sociólogo,
descartou as lentes convencionais e entregou, a quem querer pegar, um caleidoscópio. Na
posse dessa ferramenta, o interessado poderá despojar-se dos padrões antigos, gerar padrões
inusitados a partir dos mesmos elementos constitutivos, percebendo então que inúmeras
configurações são possíveis. Cita, com propriedade, a inflexão do pensamento de Turner
quando disse que a apreensão com a entropia dos sistemas poderia ser equivocada, visto que
sistemas negentrópicos é que acabariam por acelerar os processos disjuntivos, o que mostra a
limitação da redundância. Após ser dito, torna-se óbvio que a ordenação das partes, quando
mais em sistemas de alto acoplamento, tem chances de possibilitar uma bola de neve
devastadora; o ponto é que poucas vozes ousaram fazê-lo antes. Tendo em mente a
complexidade do mundo atual, Weick está correto em seu entendimento de que as ferramentas
analíticas precisam provocar e inquietar as pessoas. Diante da incerteza dura perante o porvir,
o que não se precisa é de faróis que estreitem o horizonte.
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Prometeu Revisitado: Acidentes e a Teoria Organizacional