PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Vanessa da Silva
Alfred Tennyson e o ideal orgânico de civilização
MESTRADO EM HISTÓRIA
SÃO PAULO
2010
Vanessa da Silva
Alfred Tennyson e o ideal orgânico de civilização
MESTRADO EM HISTÓRIA
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora
da
Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção
do título de Mestre em História sob a
orientação do Profa. Doutora Maria
Odila Leite da Silva Dias.
SÃO PAULO
2010
Banca Examinadora
___________________________________________
___________________________________________
___________________________________________
À memória de meu pai,
que me ensinou a amar as
histórias de muitas pessoas...
À Andrea Rossini, que me faz
perceber que as pessoas podem
ser sempre melhores...
SILVA, Vanessa. Alfred Tennyson e o ideal orgânico de civilização. Dissertação de mestrado,
PUCSP, 2010.
Resumo
A presente pesquisa evidencia como o poeta Alfred Tennyson cultivou
valores de civilidade, envoltos por uma moral conservadora, na formação da
chamada cultura nacional da Inglaterra vitoriana. Para tanto, tornou-se
necessário entendermos a maneira como Tennyson abordou a organicidade
social, em oposição à denominada “Era da mecanização”.
O poeta, que foi laureado pela realeza inglesa, é parte de um movimento,
da Inglaterra do século XIX, que retoma a Idade Média para tentar forjar uma
tradição nacional. Esse movimento, conhecido como “renascimento medieval”,
contribuiu para a construção de valores, que resultaram na formação da
sociedade atual. Somado a isso, Alfred Tennyson, que ficou conhecido como a
voz da Inglaterra vitoriana, possui raríssimos estudos históricos sobre seus
poemas, o que o torna um autor que ainda tem muito a ser estudado.
Neste trabalho, analisamos os poemas The Coming of Arthur, Merlin and
Vivien e Merlin and The Gleam, como principais documentos históricos.
Abordamos principalmente o personagem Merlin. Algumas vezes focamos na
análise do corpo do personagem, outras vezes na identificação que o poeta
estabeleceu com o mago. Por meio dos posicionamentos e da “voz” de Merlin,
observamos a sociedade orgânica defendida pelo poeta.
Essa maneira (orgânica) de perceber a sociedade estava relacionada com
a construção de uma cultura nacional. Cultura que, segundo Tennyson, deveria
ser construída e consolidada por meio da educação da população. A maneira
de educar, para o autor, dava-se por meio de seus poemas, que carregavam
ideais de civilidade e moralidade.
Palavras-chave: orgânico, corpo, mecânico, cultura nacional, civilidade.
SILVA, Vanessa. Alfred Tennyson and the civilization organic ideal. Master's Degree
Thesis, PUCSP, 2010.
Abstract
The present research evidences how the poet Alfred Tennyson, developed
the values of the courtesy, surrounded by a conservationist moral, in the
constitution of the culture named national culture form the Victorian England. To
achieve that, it became necessary for us to understand how Tennyson
approached the social organic stage, opposite to the denominated Mechanical
Age.
The poet, who was laureate by the English royalty, is part of a
movement, from England of the XIX century, which goes back to the Middle
Ages to try to manipulate a national tradition. This movement, known as
medieval revival, contributed to the values building, which resulted in the
present society development. Added to this, Alfred Tennyson, was known as
the voice of the Victorian England, who has really few historical studies of his
poems, what makes him an author who still have a lot of things to be studied.
In this essay, we have analyzed the poems The Coming of Arthur, Merlin
and Vivien and Merlin and The Gleam, as the main historical documents. We
have approached mainly the Merlin character. We have focused sometimes on
the analyzing of the character body, and sometimes on the identification which
the poet established with the wizard. Through Merlin´s positioning and “voice”,
we have observed the organic society defended by the poet.
This (organically) way of observing the society was related to the building
of a national culture. This culture, according to Tennyson, should be built and
consolidated by people education. The way of educating, to the author,
happened through his poems, which carried morality and courtesy ideals.
Key words: organic, body, mechanic, national culture, courtesy.
Sumário
Agradecimentos........................................................................
II
Introdução................................................................................. 02
Capítulo 1. Constituindo idílios.................................................. 10
Capítulo 2. Merlin e os ideais de civilização de Tennyson ....... 47
Capítulo 3. Percepções sobre Tennyson.................................. 77
Considerações Finais............................................................... 101
Bibliografia................................................................................ 104
Agradecimentos
A Pontifícia Universidade Católica de São Paulo me abrigou desde a
graduação. Foi nas salas do chamado “prédio velho” que me encantei com as
primeiras aulas do curso de História e de lá não tive mais vontade de sair. Por
essa vivência, desde a graduação até o curso de mestrado, agradeço à PUCSP. Neste momento, seria injusta se não agradecesse também a CAPES pelo
incentivo financeiro, sem o qual seria impossível cursar e concluir o mestrado.
À Profa. Dra. Estefânia Knotz Canguçú Fraga, sou grata pelas primeiras
leituras, que ajudaram no desenvolvimento do primeiro capítulo. Aos Profs. Drs.
Amilcar Torrão Filho e Elias Thomé Saliba, agradeço pela cuidadosa e delicada
leitura do texto de qualificação. Ao Prof. Dr. Antonio Pedro Tota devo um
agradecimento especial. Como aluna, pelas aulas que tanto contribuíram para
minha formação. Como pessoa, pelos momentos em que estendeu suas mãos
nos instantes em que o mundo acadêmico parecia tão inviável e distante.
Nesse processo, também estive acompanhada por pessoas que se
revelaram de extrema importância. Alguns se fizeram presentes indicando
leituras, discutindo textos, outros evidenciaram o companheirismo e a amizade
em momentos difíceis. Dentre essas pessoas, não poderia deixar de citar
alguns nomes como o de Gisele Santana, Marta de Jesus, Eugênio Alvim,
Cesar Luis Ruta, Cássio Marafante, Sylas Rizzo, Maria Auxiliadora Dias Guzzo,
Adriano Marangoni, Breno Ferreira, Fernando Camargo, Ithamar Padilha e
Samantha Peres. A todos, muito obrigada pelos momentos que juntos
vivenciamos.
Sou grata, especialmente, à minha querida Gabriela Idesti, que
acompanhou o processo de produção deste trabalho e que se faz presente em
minha vida, partilhando seu carinho, sorriso e amor. À Bianca Zucchi, amiga,
que realizou a primeira leitura da primeira versão do capítulo 1. Lembro-me das
pertinentes sugestões e do cuidado na forma de falar, cuidado que ultrapassa
as fronteiras do mundo acadêmico. Da mesma maneira agradeço ao amigo
Henrique José da Silva, pelas excelentes contribuições e pelas palavras em
momentos em que o cansaço era maior do que a vontade de seguir.
À Profa. Dra. Maria Odila Leite da Silva Dias sou grata pela orientação
deste trabalho, sem a qual a sua realização seria inevitável. Mas,
principalmente, sou muito grata pela oportunidade de conhecer, me tornar
amiga e viver momentos inesquecíveis ao lado de uma das pessoas mais
sensíveis e humanas com quem já convivi.
Não posso deixar de falar em pessoas sem as quais minha vida hoje teria
bem menos sentido. Agradeço à vida, que me proporcionou a convivência e a
proximidade que tenho com meus irmãos Wellington da Silva e Cláudia J.
Marques Silva bem como com meus sobrinhos João Batista G. M. Silva e
Sarah G. M. Silva. Sem falar em quem dá sentido à minha vida, meu filho,
Guilherme Gravino, a quem amo de maneira única e quem espero ter sempre
perto.
Para finalizar, destaco quem foi essencial para minha formação, não
apenas como historiadora, mas como ser humano. A quem devo mais do que
agradecimentos. Devo amor, companheirismo e lealdade. À Fernanda Moraes
dos Santos, irmã de tantos anos, que esteve e está ao meu lado. Com quem
compartilho o sentimento de indignação diante da injustiça e da dor dos outros,
com quem compartilho bom humor e amizade fortalecedora. À Minha mãe
Fortunata Gravino e minha avó Maria Dentello Gravino, que são parte de mim.
Foram elas que me ensinaram que mulheres são mais fortalezas do que
fragilidade e são elas o meu norte em diferentes âmbitos e momentos de minha
vida.
À amiga e Profa. (Dra.) Yone deCarvalho, que me proporcionou uma visão
de mundo livre de estereótipos, que tornou-se a minha segunda mãe, que
consegue sempre me fazer enxergar além. E à minha irmã Andrea Rossini,
com quem divido alegrias, tristezas, vida, desânimo, sorrisos, sorrisos e mais
sorrisos. É ela quem me faz ver que posso ser melhor e que posso confiar em
mim. É com ela que tenho construído, a cada dia, vínculos a mais...
“A sociedade afastou um homem do outro”.
(William Wordsworth)
Introdução
“Sem dúvida, não rejeito as mudanças;
mas gostaria que as mudanças fossem feitas com
o intuito de conservar”.
(Edmund Burke, in: Reflexões sobre a revolução em França)
Alfred Tennyson (1809-1892) foi poeta Laureado da rainha Vitória. Pode
ser situado em um grupo de intelectuais que participaram do chamado
medievalismo vitoriano – termo utilizado para designar artistas da Inglaterra do
século XIX que retomaram temas da Idade Média e representaram, na maioria
das vezes, o período medieval como uma idade áurea, uma referência
civilizacional.
Tennyson também expressou o vitorianismo, principalmente, por sua
aceitação dos costumes e convenções de seu tempo. Como poeta laureado,
além da produção de poemas de cunho político, dedicou a versão de 1862 da
obra Idylls of the King à memória do príncipe Albert, cujo falecimento data de
1861. Motivo pelo qual, para Swinburne, a obra deveria ser chamada “Morte
D’Albert”. Nas biografias de Tennyson, observamos que foi sua figura pública e
nacionalista que o fez um dos poetas mais populares – senão o mais popular –
da era vitoriana. Nenhum escritor foi de forma tão completa um poeta nacional.
Henry James, em 1875, disse que os versos de Tennyson tornaram-se parte da
sociedade de seu tempo.
Autor de uma vasta produção literária, preocupava-se com os rumos que
a Inglaterra tomava. Um dos motivos para as inquietações de Tennyson era o
aumento do número de eleitores após as reformas parlamentares inglesas.
Assim, situou-se entre os autores mais conservadores da Inglaterra.
Concordava com Edmund Burke, ao defender as mudanças graduais e
seguras, sem participações populares (como ocorreu na Revolução Francesa).
Ao mesmo tempo, concordava com Thomas Carlyle, em relação à
existência de heróis que deveriam ser tomados como exemplo para a
sociedade. Heróis como rei Arthur ou seu amigo Arthur Hallam, considerados
pelo poeta representações ideais de condutas morais, não poderiam ser
2
comparados com os homens do cotidiano, com os homens “reais”, fator este
que impossibilitava a formação de sociedades consideradas “perfeitas”.
Carlyle estudou vários tipos do que denominou como heróis, relacionou
esses heróis à história do mundo. Para o autor, o homem “bom”, com
“inteligência superior” aos demais, estava, muitas vezes, predestinado a se
tornar herói: “... a história universal, a história daquilo que o homem tem
realizado neste mundo, é no fundo a história dos grandes homens que aqui tem
laborado. Eles foram os condutores de homens, estes grandes homens, os
modeladores, padrões e, em sentido amplo, criadores de tudo o que a massa
geral dos homens imaginou fazer ou atingir (...) a alma de toda a história
universal, pode justamente considerar-se, seria a história destes”.
Esta visão dos “grandes homens”, como responsáveis pela história do
mundo, que exclui a participação da maior parte da população do processo
histórico, colocando-a como “massa”, reduz os homens a seres atados, alijando
sua condição de indivíduos.
Mas os “heróis”, que podem ser também imaginários, tinham uma função
definida: vinham para o mundo “concreto”, davam seus exemplos e partiam.
Ainda que deixassem abertas as portas para um possível regresso, o mundo
não era o lugar desses homens idealizados. Seus exemplos mostravam
também os limites humanos. Nenhum homem, em nenhuma sociedade,
alcançaria os ideais de conduta iguais aos de um “herói”.
Esse olhar para a história não se reduzia ao pessimismo. Tennyson
percebia sua época como alguém que vivia entre humanos, inseridos num
mundo concreto e, justamente por isso, não era possível construir uma
civilização idealizada. Entretanto, era possível a constituição de um ideal de
civilização, conquistado por meio da educação, do cultivo, da disseminação de
um tipo de cultura que levasse aos homens e mulheres de seu tempo uma
moral que não valorizasse apenas as atitudes individualistas, e sim, as ações
de cada indivíduo, que contribuiriam ativamente para o bem do mundo em que
viviam.
Dentre os seus objetivos, estava a construção de uma Inglaterra onde as
relações humanas não fossem mecanizadas e um pequeno grupo conduzisse o
país para o progresso. Para Tennyson, o progresso não estava vinculado às
3
instituições industriais liberais e à democracia, mas a uma nova e nostálgica
moral que estaria por vir.
Assim, evidenciar o orgânico na obra de Tennyson é relevante, já que, em
alguns de seus poemas, ele apontava para a sociedade orgânica, em
detrimento da sociedade mecanizada e pensava na importância de forjar
corpos saudáveis e educados para se submeter à sociedade, servir a pátria e
construir uma cultura nacional. Esse “orgânico” estava vinculado à realização
das vontades dos indivíduos, vontades estas que impulsionariam a história.
Segundo o poeta, essas vontades passavam – ou deveriam passar – por
um processo de regeneração moral e, por isso, ele preocupava-se tanto em dar
exemplos de conduta para seus leitores. Sua tentativa de associar poesia e
vida devia-se ao fato de perceber na poesia uma possibilidade de educar a
população.
Na sociedade inglesa do século XIX existiu uma preocupação em relação
à conduta dos indivíduos. O resultado foi a criação de mecanismos
disciplinares, utilizando, por exemplo, exercícios físicos. O objetivo era uma
espécie de adequação das posturas e gestos que os corpos apresentariam
socialmente. Nesse sentido, o corpo ganhou destaque nas relações humanas,
o que antes deveria ser escondido e submetido à alma, agora estaria
submetido à tentativa da obtenção máxima de energia para o trabalho. O
funcionamento do corpo foi associado ao funcionamento das máquinas.
Portanto, era necessário guardar energia para a produção.
Além disso, adequar corpos para o trabalho tornou-se fundamental para
os industrialistas, os quais entendiam que era preciso potencializar e
rentabilizar as capacidades de cada indivíduo para o desenvolvimento de seu
trabalho, “medir os gestos para melhor economizá-los”. Medir os gestos
significava, também, controlá-los. Os estabelecimentos industriais impunham
uma vigilância constante sobre os movimentos dos operários, havia uma
repetição de movimentos especializados e precisos para a obtenção dos
índices elevados de produtividade. Os exercícios físicos contribuíam para a
eficácia desses movimentos e da disciplina.
Longe de serem exercícios apenas para o prazer ou para a melhoria da
saúde, estavam vinculados a objetivos morais, sociais e ideológicos. Por isso,
4
havia a necessidade de fornecer aos operários do período vitoriano os
chamados “divertimentos racionais”. Um “divertimento” que contribuía com a
difusão da disciplina e com o aumento de produção nas fábricas.
Havia também a ideia do combate a um suposto sedentarismo, ideia que
pode ser relacionada à difusão do darwinismo social, que disseminou certo
‘medo’ da deterioração física da espécie humana. “Ter um corpo sadio e bem
treinado parecia, pois, cada vez mais importante. Herbert Spencer lançou então
o seu célebre aforismo: ‘Ser uma nação de bons animais é a primeira condição
da prosperidade nacional”.
O liberalismo, o industrialismo e o imperialismo inglês relacionavam-se
com a tentativa de formar gerações obedientes. Em outras palavras, era
preciso instaurar uma ordem como a dos mais fortes, pois os organismos mais
fracos, segundo o darwinismo (social), estavam fadados ao fim. O corpo
passou a ser lugar de trabalho, seu funcionamento relacionava-se também ao
mecânico.
Uma questão tornou-se relevante para o período: como igualar a
produtividade do corpo a das máquinas? O corpo apresentava um limite: a
fadiga. Assim, alguns cientistas do século XIX preocuparam-se em estudar e,
se possível fosse, abolir a fadiga, para que o corpo aumentasse sua
capacidade produtiva. Em outras palavras, havia uma valorização do mecânico
em detrimento do orgânico.
Além disso, os esportes passaram a contribuir com o princípio da
competição. Assim, autores como Thomas Carlyle e John Ruskin os viram
como parte dos mecanismos liberais. Embora parecessem fontes de
satisfação, os novos esportes foram considerados – pelos opositores do
liberalismo – como portadores dos germes da desintegração social. Tennyson,
que
foi
adepto
do
pensamento
de Carlyle,
também
se
posicionou
contrariamente à mecanização desenfreada que o liberalismo industrial inglês
provocava. Foi nesse contexto que resgatou corpos e posturas que não
valorizavam os princípios cultivados pelo liberalismo industrial.
Carlyle percebeu que o processo de mecanização expandiu-se até as
últimas conseqüências, de forma a atingir o corpo dos homens. Para o autor,
até mesmo o raciocínio estava submetido a uma experiência mecânica do
5
cérebro. “o intelecto, o poder humano de conhecimento e de crença, havia-se
tornado quase sinônimo de lógica, ou seja, o mero poder de organizar e de
comunicar; seu instrumento não sendo mais a meditação, porém o argumento”
.
Assim, Tennyson representou, através de seus personagens, modelos de
comportamentos que considerou como favoráveis ou desfavoráveis à
sociedade. Era uma tentativa de combater os avanços dos ideais industriais e
liberais que se consolidavam na Inglaterra do século XIX. Isso não significa que
Tennyson defendia a participação popular e operária. Ao contrário, entendia
que era necessário o resgate de ideais aristocráticos para difundir e consolidar
o que considerava como civilização. Para o poeta, era o Estado que deveria
prover o melhor para a população. Tennyson não defendeu pensamentos
democráticos, as mudanças que propunha eram similares ao pensamento de
Edmund Burke: mudanças com intuito de conservar e, por que não dizer, de
constituir uma sociedade com base em tradições inventadas.
Em Gareth and Lynette, por exemplo, Gareth é a representação do
homem espiritual como homem humilde. Já Lynette representava as
aparências, as máscaras sociais, era a própria alegoria da tolice, cujos olhos
não enxergavam nada além do mundo exterior. Descreveu o poeta em relação
à personagem: “... And lightly was her slender nose / Tip-tilted like petal of a
flower”.
Mas, é Gareth o personagem que mais se destacou no poema por ser
“espiritualizado”. O idílio representou o homem espiritual que, livrando-se de
seus temores, alcançou a salvação. Nesse sentido, Lyonnors – irmã de
Lynette, a quem Gareth salvou – é a representação da alma, que estava
aprisionada e precisava ser liberta.
Dessa maneira, Tennyson utilizava seus personagens para representar e
valorizar determinadas condutas, em detrimento das aparências, como os
gestos e corpos “fabricados” pelos exercícios e pelos novos esportes, que
podem remeter à Lynette, (personagem que valorizava as aparências). Os
corpos valorosos relacionavam-se, em especial, a condutas cheias do que
Tennyson considerava virtudes, como a humildade de Gareth e a ideia de
vencer os próprios medos alcançando, dessa maneira, a maior vitória.
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Lembremos que a Matéria Arturiana, tema dos poemas que serão
analisados neste trabalho, é retomada por Tennyson, pois Camelot
representava uma sociedade virtuosa e não mecanizada. A vida na corte de
Arthur parecia impor o controle das paixões do corpo, as condutas das
personagens eram pautadas também no código de cavalaria, vinculado ao
período medieval. Em sua obra, Idylls of the King, Tennyson se baseou em
uma versão do século XV, escrita por Thomas Malory, o que significa que os
poemas de Tennyson comportam personagens e episódios que perpassam
outros períodos históricos e que também foram representados no século XIX.
Essa trama temporal está presente em The Coming of Arthur (1869),
Merlin and Vivien (1857) e Merlin and The Gleam (1889). Os corpos presentes
ou ausentes, suas marcas, gestos e palavras marcam as múltiplas
temporalidades presentes nos poemas. Os corpos eram valorizados por
Tennyson enquanto organismos em oposição a mecanismos. Nesse sentido,
Tennyson buscou o período medieval. Era como se buscasse na Idade Média a
retórica moral que parecia se perder no século XIX, um século em que a
ciência parecia não se vincular com uma “ética moralizante”, mas com a
mecanização das relações, do corpo, do trabalho, do social.
Surgiu – ao mesmo tempo – o medo que a “carne”, o desejo, pudesse
tocar a multidão. Tennyson construiu uma Idade Média que portasse os
exemplos de conduta que pudessem ser seguidos, os “heróis” descritos pelo
poeta eram parte da tentativa de evitar tanto a mecanização das relações
humanas quanto as paixões desenfreadas que, eventualmente, pudessem
tomar a tão temida “multidão”.
Enfim, as representações dos corpos nas obras literárias, e dentre elas,
as de Tennyson, ligam o particular com o geral. Para remontarmos o processo
histórico, é necessário desvendarmos essa teia de significações, onde tanto
homens quanto signos são parte dos elementos que, relacionados, nos
remetem ao que entendemos por realidade. Realidade que se constroi a partir
do trabalho humano, onde homens são produtores e consumidores de signos.
É, de fato, um trabalho cultural e só é possível entendê-lo se inserido em seu
contexto, trazendo à luz, além das múltiplas temporalidades, a percepção do
autor em relação à sua própria sociedade.
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Para tanto, num primeiro capitulo, abordamos o contexto inglês do século
XIX, a questão da cultura nacional, o corpo e o orgânico. Algumas vezes
partimos das obras de Tennyson, outras, apenas situamos o poeta em meio
aos autores de sua contemporaneidade. Mais do que isso, apresentamos
trechos da obra Idylls of the King, com o objetivo de familiarizarmos o leitor com
os “Idílios” de Arthur e com o trabalho que Tennyson realizou no decorrer de
aproximadamente 20 anos.
No capítulo 2, analisamos o personagem Merlin, utilizando os poemas The
Coming of Arthur e Merlin and Vivien, da obra Idylls of The King, evidenciando
de que modo a tradição e os ideais de civilização de Tennyson estão
relacionados ao corpo, ao orgânico e ao medievalismo vitoriano no século XIX.
Dessa maneira, relacionamos as representações dos corpos de Merlin, feitas
pelo poeta, com o processo cultural do medievalismo vitoriano e com os ideais
de civilização que formam o que Tennyson entendia por nação inglesa,
formando teias e conexões entre indivíduos, sociedades e temporalidades.
Para tanto, entendemos que é necessário pensarmos em algumas
questões, tais como quando a personagem Merlin fala. Sobre o que fala? Sua
voz pode ser relacionada com a voz narrativa do próprio poeta? Em que
sentido a voz do profeta remete aos posicionamentos do próprio Tennyson?
Em que medida Merlin pode ser a própria representação da função do poeta na
sociedade inglesa do século XIX?
No terceiro capitulo, tratamos das percepções sobre Alfred Tennyson, os
valores que atribuía à nação inglesa. Para tanto, utilizamos principalmente
Merlin and The Gleam – considerado uma biografia literária do poeta. Olhamos
para Tennyson, por meio das percepções que evidenciou na personagem
Merlin. Além de pensarmos o por quê do poeta ter assinado Merlin nos poemas
The Third Of February e Hands All Round produzidos para o periódico The
Examiner.
Entendemos que as percepções que o poeta tinha de seu próprio tempo,
de si mesmo e de sua sociedade estão presentes em suas palavras, nas
formas que representou suas personagens, em especial de Merlin, que foi a
personagem escolhida para a realização de sua biografia literária. Por que essa
8
identificação? O que de Tennyson está presente no personagem Merlin? São
questões que procuramos responder.
O mago apareceu associado às histórias do rei Arthur pela primeira vez
nas versões de Geoffrey de Monmouth, provavelmente datadas do século XII.
No século XIII, a obra Merlin, de Robert de Boron, o colocou como personagem
que possibilitou a criação da sociedade arturiana. Merlin foi representado como
aquele que estava na origem de tudo o que se passava. Nessa versão o corpo
de Merlin sofre metamorfoses que remetem a diversos tipos sociais medievais,
como o lenhador, o ancião e o homem de boa aparência. O autor mesclou
características célticas e cristãs, portanto, Merlin remete ao druida, como
conselheiro do rei e sacerdote. Suas palavras e conselhos são profecias.
A posição de Merlin como conselheiro real, associada à conduta cristã e
às profecias que dizia, o tornou ideal para representar a voz do próprio
Tennyson em alguns poemas. Essa identificação não se construiu por acaso,
mas porque, na Inglaterra do século XIX, o poeta era visto como alguém que
possuía uma visão profunda e privilegiada de sua sociedade e das pessoas
que ali viviam. Quem melhor do que o próprio Merlin para representar os
posicionamentos de Tennyson? Ao utilizar a figura do mago, o poeta associou
a voz profética do mago à sua própria voz.
Entendemos, também, que é necessário olharmos com respeito para
outra sociedade e para outro período histórico. Cada sociedade, ou
comunidade, tem sua forma especifica de cultivar suas relações humanas,
sociais e econômicas. Viver de acordo com nossos próprios ideais é essencial,
mas compreender e respeitar os ideais alheios, que muitas vezes nos são
estranhos, também o é. Se não é possível apontarmos, ao longo da história
humana, duas pessoas exatamente iguais, como apontar uma cultura
homogênea? Os processos de cultura são seleções, destacam determinados
aspectos. Essa heterogeneidade é que torna a pesquisa histórica algo
realmente único, algo humano.
9
Capítulo 1 – Constituindo idílios
“Far, far away...”
“Our wills are ours, to make them Thine.”
(Alfred Tennyson)
As palavras “Far, far away...” parecem se desencontrar da ideia
evidenciada em “Our wills are ours, make them Thine”. Uma, vinculava-se com
um tipo de fuga da realidade, outra, apresentava-se engajada a um suposto
real. As duas sentenças foram expressas por Alfred Tennyson. A primeira,
além de título de um poema, remetia a um estado de transe em que o poeta
entrava repetindo a frase por algumas vezes. A segunda relacionava-se com a
preocupação do poeta ao observar e criticar o mundo cada vez mais centrado
em desejos individuais. Essa preocupação fez com que Tennyson, na chamada
“era mecânica”, voltasse seu olhar para o orgânico.
Na tentativa de construir valores culturais organicamente fundidos numa
cultura nacional, em oposição à sociedade inglesa “mecanizada” do século XIX,
o autor retomou temas do período medieval. Era como se buscasse em outro
tempo histórico o exemplo de uma sociedade ideal, orgânica e civilizada. O
poeta dava continuidade ao trabalho que intelectuais da geração de Southey
começaram já na primeira metade do mesmo século: “(...) criar valores novos
para o mundo novo que surgia”1.
A cultura nacional, para Tennyson, vinculava-se com a constituição de
uma Inglaterra em que valores – conservadores – pudessem ser consolidados
e, até mesmo, forjados. Posicionando-se contra a ideia de que homens e
mulheres fossem entendidos como máquinas, apresentou em seus poemas
uma visão orgânica da sociedade, onde não negava a individualidade de cada
pessoa, mas entendia que essas “individualidades” deveriam trabalhar em
função de um corpo maior: o corpo da nação.
Nesse sentido, seus poemas evidenciam diferentes tipos de atitudes e
comportamentos individuais que se relacionam com a prosperidade ou com
1
DIAS, Maria Odila da Silva O fardo do homem branco – Southey, historiador do Brasil. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1974. pp. 24.
10
ruína social. Os corpos dos personagens exemplificam as maneiras de agir que
podem ou não ser consideradas ideais pelo autor, esses comportamentos,
posicionamentos e posturas ligam-se diretamente com o funcionamento do
corpo social que normalmente representa a própria nação inglesa.
É possível, portanto, relacionarmos os corpos dos personagens de
Tennyson com a chamada “cultura nacional”, pois as maneiras que o poeta
representou os corpos apontam para a percepção que teve do contexto em que
viveu e, para o que entendia como cultura nacional inglesa do século XIX.
Esses “novos valores” da literatura e da poesia constituíam, em fins do século
XIX, a cultura nacional da Inglaterra. Para o poeta, o ato de “pensar” a nação
passava pelas formas de apreender um mundo orgânico e equilibrado. Assim,
as evidências dos corpos nos poemas de Tennyson relacionavam-se com as
funções que os diferentes tipos sociais, exerciam na sociedade vitoriana. O
poeta descrevia os corpos de seus personagens, atribuía-lhes gestos e
palavras correspondentes ao seus ideais de civilidade.
Para o poeta, esta civilidade estava intrinsecamente ligada à sociabilidade
e aos valores morais que deveriam manter a ordem social em seu conjunto e
não somente a virtudes privadas – que remetiam ao respeito ao próximo. Era
necessário, segundo Tennyson, pensar e cultivar o progresso da nação, sendo
que esse cultivo estava relacionado à difusão de uma cultura nacional
vinculada aos modos de ser e de perceber a sociedade – os aspectos morais,
que deveriam combinar leis, costumes e maneiras de agir.
A tentativa era a de cultivar, como disse Elias Thomé Saliba, “(...) a naçãopovo, esta armação articulada e orgânica, una e indivisível, resultado do
esforço ancestral coletivo do povo, de geração a geração. O desenlace da
história, a consumação do tempo, seria marcado, assim, pelo advento dos
povos, a ‘primavera dos povos’, símbolo do amanhecer de uma era de
regeneração humana, de realização completa e quase definitiva da própria
justiça social”2. Essa nação coletiva foi buscada pela construção de uma
cultura nacional, baseada em tradições muitas vezes inventadas.
As poesias de Tennyson evidenciam, também, o que o poeta entendia
como pertencimento dos personagens à cultura nacional, diretamente
2
SALIBA, E. Thomé. As Utopias Românticas. São Paulo: Brasiliense, 1991. pp. 59.
11
relacionados ao Estado, que passou a ser visto por Tennyson como instituição
essencial para o funcionamento da ordem e do progresso. Era necessário, sob
o controle do Estado, formar, determinar e valorizar certos hábitos morais, civis
e sociais. A nação passou a ser relacionada com um organismo, onde as
atividades humanas estavam intrinsecamente ligadas. “O homem individual
passa a existir em função do grupo, em função da sociedade – realidade
coletiva, isto é, menos uma criação voluntária ou pacto político que uma
realidade anterior e independente de cada indivíduo concreto, com sua própria
lei de desenvolvimento e seus próprios fins”3.
Nesse espaço complexo, de percepções múltiplas, foram tecidos ideais de
cultura e civilização, ideais que geraram e forjaram os idílios da sociedade
inglesa do século XIX e que estavam relacionados ao conceito de organismo.
O corpo humano foi posto em destaque seja através de seus atributos
biológicos, para os que pensavam em termos de uma eugenia, seja como um
organismo regulado como mecanismos de engenharia.
Era necessário disciplinar, educar, constituir corpos que trabalhassem
para o funcionamento de uma ordem determinada, ainda que existissem
discordâncias em relação a qual deveria ser a ordem estabelecida, uma coisa
estava clara: era preciso disciplinar os corpos de cada indivíduo, para o
funcionamento do coletivo.
Assim, as produções artísticas, científicas e filosóficas projetavam ideais
de civilização no sentido que “... o surgimento de novas unidades de integração
(e de governo) sempre é expressão de mudanças estruturais na sociedade, ou
seja, nas relações humanas. (...) O processo ‘civilizador’ visto a partir dos
padrões de conduta e de controle de pulsões. A mesma tendência que, se
considerada do ponto de vista das relações humanas, aparece como um
processo de integração em andamento, um aumento na diferenciação de
funções sociais e na sua interdependência e da eventual formação de unidades
ainda maiores de integração, de cuja evolução e fortuna o indivíduo depende,
saiba disso ou não.”4
3
Idem, ibidem. pp. 56
ELIAS, Norbert. O processo civilizador – formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1993, 2 vol. pp. 83.
4
12
Os corpos dos cidadãos deveriam ser forjados por e submetidos a
vontade da nação. As expressões vitorianismo e vitoriano5, carregavam ideais
civilizatórios, que definiam concepções burguesas de corpos. Lembremos que
esse foi o momento em que as Revoluções Industrial e Francesa já estavam
consolidadas e começaram a ser questionadas por pensadores do período6.
O catolicismo do movimento de Oxford, os evangélicos, os utilitaristas,
assim como o socialismo, o darwinismo e o agnosticismo científico foram todos
aspectos da diversidade do período vitoriano. Tanto quanto os escritos de
Thomas Carlyle e John Ruskin, o criticismo de Matthew Arnold, o realismo de
George Elliott. Mais do que qualquer outro fator, o que fez de todos eles
vitorianos foi o senso de responsabilidade social.
A construção de uma literatura moderna está vinculada com todas essas
mudanças e questionamentos da sociedade vitoriana, local onde o orgânico
tornou-se objeto central de muitos autores, como foi o caso de Coleridge. A
utilização do termo orgânico passou a ser relacionado com o corpo, entendido
como organismo passível de modificações e de controle.
O funcionamento do corpo foi, muitas vezes, associado ao da máquina7.
Segundo Carlyle, vivia-se numa “Era Mecânica” e parecia não existir limites
para essa mecanização. Para Maria Stella Bresciani, Carlyle entendia que o
mecânico tornara-se a verdadeira divindade daquela sociedade. Deixando claro
que o autor não se posicionava contra as máquinas, que representavam para
ele o triunfo dos homens sobre a natureza, o problema estava em como elas
eram utilizadas. Com base nesta ideia, Carlyle chegou a um “prognóstico
sombrio”8: “Se os homens perderam sua fé em Deus, seu único recurso contra
5
Embora o termo vitorianismo, utilizado para designar o século XIX inglês, tenha surgido dois anos após
a ascensão da rainha Vitória (1837-1901), tornou-se expressão de toda uma época
6
Os questionamentos em relação a Revolução Industrial serão abordados no decorrer do trabalho. Sobre a
Revolução Francesa, enquanto franceses – como Jules Michelet – se decepcionaram, pois os ideais de
igualdade e de participação da população não se concretizaram pós-revolução, na Inglaterra, muitos (já no
século XVIII), como Edmund Burke, olham para a França revolucionária como anti-exemplo. A ideia era
evitar uma grande participação da população na política inglesa.
7
Bresciani discorre sobre a condição dos Homens reduzidos a autômatos, especialmente na Inglaterra do
século XIX, momento em que foram totalmente atados à concepção mecânica do mundo. Segundo a
autora, autômatos eram os personagens literários e os trabalhadores da Inglaterra, que foram esvaziados
de sua identidade, adquirindo a posição de massa e de classe. In: BRESCIANI. 1984-1985 Op. Cit. pp.
54.
8
BRESCIANI, Maria Stella. A compaixão pelos pobres no século XIX: um sentimento político. SILVA,
Márcio Seligmann (org). Palavra e imagem: memória e escritura. Chapecó: Argos, 2006. pp. 110.
13
o Não-Deus cego da Necessidade e do Mecanismo, que os atinge como uma
máquina a vapor universal assustadora [...] é, com ou sem esperança, a
revolta”9.
Esta ideia evidencia o quanto a atividades mecânicas foram relacionadas
com o funcionamento do corpo. A crença de que se vivia numa Era da máquina
tornou possível a construção de alegorias da sociedade e do corpo como
máquina ou maquinário, ainda segundo Carlyle, as “...maneiras de pensar e de
sentir se tornaram mecânicas [...] O coração e o cérebro dos homens tornaramse tão mecânicos como suas mãos”10. Em contraposição a essa mecanização,
Tennyson procurou resgatar valores que estivessem vinculados à civilidade, à
uma sociedade em que o orgânico pudesse ser valorizado em detrimento de
ações e corpos mecanizados.
A poesia teve papel fundamental nessa tentativa de “educação” do corpo,
do orgânico, na sociedade vitoriana. Em meados do século XIX a grande
circularidade dos poemas favoreceu a divulgação de ideais dos escritores. Os
poemas eram publicados em periódicos, como material público para recitação,
comumente eram copiados de livros, memorizados e ensaiados para
declamações particulares (em família) ou sociais (em escolas, por exemplo).
Alfred Tennyson foi poeta relevante nesse contexto. Ficou conhecido
como a voz da Inglaterra, com seus poemas difundiu ideais de autentica cultura
nacional inglesa, contribuindo para consolidar a imagem do poeta como uma
espécie de bardo, visionário – imagem já difundidas por alguns românticos,
como John Ruskin.
Por relacionar a função do poeta com a do bardo Tennyson identificou-se
com o personagem Merlin. O mago estava presente na literatura inglesa desde
o período medieval como aquele que via o passado e previa o futuro, suas
palavras, sua voz, eram proféticas. Assim também, para Tennyson, era o poeta
na sociedade vitoriana: aquele que tinha a visão mais sensível sobre o mundo
em que vivia, quem era capaz de enxergar o que os outros homens e mulheres
não percebiam, o que possuía o caráter profético e, portanto, deveria ser
respeitado por sua sabedoria.
9
CARLYLE, Thomas. in: Idem, ibidem. Pp. 110 – 111.
Idem, ibidem. pp. 112.
10
14
Apropriando-se dessa imagem de bardo, Tennyson abordou, na maioria
das vezes, temas sociais e políticos, especialmente após tornar-se poeta
laureado. As transformações pelas quais a Inglaterra passava, as inquietações
e inseguranças percebidas pelo poeta eram comumente temas de seus
escritos. Como exemplo, podemos citar as reformas parlamentares que
inquietaram Tennyson. O autor se posicionava contra a ampliação da
participação política, por não enxergar na população inglesa elementos
civilizatórios que assegurassem a ordem social.
Lembremos que as reformas parlamentares ocorridas na Inglaterra, que
ampliariam a participação política da população, foram alvo de muita polêmica.
Os conservadores, como reação diante dessas reformas, procuraram
reinterpretar e reinventar a tradição inglesa, que deveria ser reconstituída e
forjada naquele momento. Nessa construção de uma tradição, cada um dos
indivíduos era responsável pelo funcionamento da sociedade.
Alfred Tennyson através de seus poemas de ampla circulação resgatou
comportamentos que pareciam se localizar num passado longínquo, mas que,
na verdade, foram constituídos pelo próprio poeta.
“Far other was the song that once I heard
By this huge oak, sung nearly where we sit:
For here we met, some tem or twelve of us,
To chase a creature that was current then
In these wild woods, the hart with golden horns.
It was the time when first the question rose
About the founding of a Table Round,
That was to be, for love of God and men
And noble deeds, the flower of all the world.
And each incited each to noble deeds”11.
A tentativa relacionava-se “Não mais a recuperação mecanicista do
passado como um mero ‘conjunto de probabilidades’, (...), mas uma
11
TENNYSON, A. “Idylls of the King”. In: DORÉ, Gustave. Doré’s illustrations for “Idylls of the
King”. New York: Dover Publications, INC., 1995. pp. 26.
15
recuperação compreensiva, humana, com profunda empatia, do passado – que
projetasse, como um facho de luz, o sentimento interior dos indivíduos e dos
povos, em busca de sua própria identidade”12. Tratava-se de restituir a “cor
local” e o devir do processo histórico.
Essa preocupação em “garantir” a estabilidade e o progresso futuro
tornava-se mais forte diante de problemas sociais vivenciados pela Inglaterra
daquele período. A época de Tennyson foi um momento em que um dos
maiores problemas de Londres foram as epidemias de cólera. Numa cidade
onde não havia rede de esgoto, onde os bairros operários não eram assistidos
por políticas de higiene e saúde pública, surgiu como alegoria da cidade uma
imagem orgânica: o “monstro”. Segundo Bresciani, a cidade industrial parecia
negar a natureza, era vista como a maior representação do maquinismo. “A
representação do processo de produção materializado na fábrica – o moinho
satânico devorador de homens – desdobra-se até atingir a dimensão imaginária
da cidade”13.
Ao descrever os bairros onde se localizava a classe operária, Engels
relatou que as casas eram construídas sem planejamento, em ruas estreitas e
sujas, com cheiros nauseantes. No interior das casas, os porões eram usados
como moradia e era comum o acúmulo de detritos e água suja, essas casas
abrigavam crianças e mulheres doentes e desnutridas. No centro de Londres,
coexistiam, lado a lado, ruas largas com mansões e parques públicos e
ruazinhas com casas miseráveis e uma população de pessoas pobres vistas
como uma ameaça para a ordem social.
“Essas extensas, miseráveis e incontroláveis massas de pessoas
submersas no East End, esse meio milhão de pessoas convertidas por uma
legislação adversa e pela caridade, ao pauperismo, assustavam os
contemporâneos por terem um vínculo irregular com o trabalho, por
conseguirem sobreviver às expensas do roubo e do jogo, por escaparem às
possibilidades classificatórias do pobre trabalhador respeitável. Assustavam
ainda mais por não serem nítidos, na prática, os limites entre o trabalhador e o
resíduo; mesmo entre as pessoas que ganhavam sua vida trabalhando (e a
12
13
SALIBA, E. Tomé. As Utopias Românticas. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 53-54.
BRESCIANI. 1984-1985. Op. cit. pp. 55
16
definição inglesa para homem pobre dizia ser aquele que precisa trabalhar com
suas mãos para se manter a si e a sua família), algumas tinham uma situação
indefinida dada a má fama de suas reputações, embora elas fossem vitais para
a vida cotidiana da cidade: os construtores de ferrovias (land navigators ou
simplesmente navies), os vendedores ambulantes e os limpadores de chaminé
estavam entre esses indesejáveis do mundo civilizado”14.
Existia uma imagem contraditória em relação às cidades industriais15. A
coexistência de arquiteturas góticas e modernas, as concentrações de pessoas
que formavam a famigerada multidão, remetia ao orgânico, apresentando
possibilidades de ações submetidas às paixões e aos sentimentos impulsivos,
e ao mesmo tempo, essa mesma multidão parecia não possuir mais traços de
humanidade, como se estivesse moldada pelo ambiente em que vivia. Essa
imagem contraditória se misturava a ponto de ser difícil a distinção entre o que
era orgânico e o que era mecânico nas cidades, como bem afirmou Bresciani:
“É difícil delinear uma nítida divisão entre representações mecânicas e
orgânicas de maneira a estabelecer duas linhagens de sensibilidade. Até onde
se pode afirmar, por exemplo, a independência da concepção mecânica da
dupla circulação sanguínea, do corpo orgânico que a contém?”16
Esse era o mundo da sociedade industrial, que acelerou seu
desenvolvimento após 1850, quando delineou na Europa a separação entre os
países do carvão-vapor e os do cavalo de tração. Nesse período, a Inglaterra
dominou o mercado. Tudo parecia levar ao triunfo da mecânica. Ao realizar as
tarefas mais meticulosas, a máquina-ferramenta passou a desempenhar uma
série de serviços, seja com madeira, metal ou outros materiais. Ao longo dos
anos foi aumentando sua precisão. O cientificismo distanciava-se da metafísica
transcendental para se atrelar a um suposto real. Foi o momento em que o
corpo tornou-se centro tanto das ciências – da biologia, da medicina e de
políticas sanitárias – quanto das formas de poder. Os corpos dos indivíduos
14
(CHESNEY, Kellow. In: BRESCIANI, Maria Stella M. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo
da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 1994. pp. 40.
15
As cidades pareciam provocar sensações que se aproximavam do que Burke chamou de “sublime”, um
forte impacto emocional que parecia inibir a razão. Sobre o “Sublime” ver: BURKE, Edmund. Uma
investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do Sublime e do Belo. Campinas, SP: Papirus;
Editora da Universidade de Campinas, 1993.
16
BRESCIANI. 1984-1985. Op. cit. pp. 56
17
deveriam ser disciplinados a fim de manter e colaborar com o funcionamento
da nação.
A disciplinarização dos corpos e a polêmica sobre o orgânico e o
mecânico também foram evidenciados no campo da medicina experimental.
Muitos médicos, com o objetivo de compreender as doenças, acabaram
valorizando mais o laboratório, o que resultou numa medicina baseada nas
experiências, onde os corpos apareciam como máquinas vivas e um dos
principais objetivos era compreender seus mecanismos.
Na Inglaterra, as pesquisas eram realizadas em institutos como o Instituto
de Medicina Pneumática de Bristol. Na segunda metade do século XIX,
surgiram teorias, como a de Claude Bernard, que defendiam a ideia de que o
corpo não era uma máquina viva, mas sim um complexo orgânico, cujos
elementos (órgãos) estavam associados e precisavam de água, calor e
oxigênio para a sobrevivência.
O debate sobre a natureza humana e sobre as possíveis estruturas do
corpo inseriam-se em questões que estavam além de práticas medicinais;
estavam associados a um conflito existente entre materialistas e espiritualistas,
mecanicistas e vitalistas. No caso do vitalismo, ocorreu um abandono do ideal
da alma como geradora da vida, mas foi inserida a ideia de força vital, que não
era definida nem localizada. Essa força tornou-se, segundo o vitalismo, o motor
da vida e a fonte de doença e de saúde. Os homens foram entendidos e
inseridos como parte de um corpo maior, o corpo social.
Política e filosofia estavam associadas a outras instâncias da sociedade,
como a medicina. Os conflitos ideológicos se apresentavam também na
maneira de lidar com as práticas medicinais, pois os corpos não eram vistos
como se fossem movidos apenas por sensações.
“Para Cabanis, como para muitos médicos de sua época, a medicina deve
ser o pivô dessa ciência do homem em nome da metáfora organicista que
pretende que o corpo social funcione como o corpo humano. A medicina (...) é,
antes de tudo, antropológica. Querendo conhecer o homem em sua inteireza,
ela é levada a refletir as relações entre o físico e o moral”.17
17
FAURE, Oliver. O olhar dos médicos. In: CORBIN, A.; COURTINE, J.; VIGARELLO, G., 2008. Op.
cit. pp. 45.
18
É nesse sentido, de uma relação entre o físico e a moral, que cuidados
com a saúde foram utilizados como forma de controle moral e social. O corpo
tornou-se lugar de desregramento social e, por isso, havia a necessidade de
compreendê-lo e controlá-lo em várias instâncias da sociedade. Práticas como
o higienismo social, deveriam a todo custo evitar a “degradação” da sociedade.
Somado
ao
desenvolvimento
mecânico,
a
ciência
também
foi
considerada cada vez mais precisa, pois era vista como único elemento que
permitia ao homem resolver seus problemas e questionamentos que há muito o
rondavam. Ao mesmo tempo, as transformações foram “(...) também
acentuadamente irregulares: os avanços nas ciências naturais não geravam
automaticamente aperfeiçoamentos nos tratamentos médicos; o levantamento
de informações sobre as condições de vida dos operários não se refletia
rapidamente em reformas sociais. E tradicionais arranjos sociais, tais como a
vida familiar, foram conturbados pelo choque entre as novas necessidades e os
antigos hábitos. As mudanças no século XIX foram, pois, mais freqüentemente
perturbadoras do que estimulantes.”18
A Inglaterra não vivenciou apenas momentos de progresso tecnológico,
científico e artístico. Apesar da tentativa de manter certa “paz” (interna e
externa), foram estes os anos de apogeu da política imperialista, os ingleses
acabaram se envolvendo na Guerra da Criméia (1853-1856)19. Tennyson
escreveu The Charge of the Light Brigade, um poema sobre a batalha de
Balaclava, da Guerra da Criméia. Neste poema, explorou a força militar do
coletivo, quando os soldados deixavam de ser indivíduos para comporem um
só corpo, a brigada em luta, celebrando neste caso o massacre coletivo dessa
brigada heróica. Os corpos também eram instrumentos de guerras e, para isso,
era preciso obediência e disciplina.
Nesse contexto, os poemas também constituíam, em si mesmo, um tipo
de corpo, aquele que carregava as vozes de grupos sociais e políticos.
Tennyson utilizou seu poema para criticar e apontar o que entendia como erros
18
GAY, Peter. A educação dos Sentidos – a experiência burguesa da rainha Vitória a Freud. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988. pp. 43.
19
Na Guerra da Criméia, o Reino Unido se aliou com a França, com o reino de Piemonte-Sardenha e com
o Império Turco-Otomano. O objetivo era impedir o aumento da influência russa na região dos Bálcãs.
Em tempos de imperialismo, os ingleses temiam que os russos lhes tirassem o controle de regiões como
os estreitos de Bósforo e Dardanelos, cortando-lhes a comunicação com a Índia.
19
dos dirigentes ingleses. Naquele momento, o poeta questionava os rumos que
a nação inglesa tomava. Escolheu como tema uma batalha em que a Inglaterra
foi derrotada e questionou: quando teria cessado a glória da Inglaterra?
“Storm’d at with shot and shell,
While horse and hero fell,
They that had fought so well
Came thro’ the jaws of Death,
Back from the mouth of Hell,
All that was left of them,
Left of six hundred.
When can their glory fade?
O the wild charge they made!
All the world wonder’d.
Honor the charge they made!
Honor the Light Brigade,
Noble six hundred!
No excerto percebemos que, para o poeta, os corpos dos que lutaram
pela Inglaterra, ocupavam o lugar do corpo do herói, espaço da nobreza de
tempos passados, de quem cumpriu sua função para com a nação. Mas, ainda
assim, foram massacrados e poucos sobreviveram. Então, o poeta questiona:
“When can their glory fade?”. A voz de Tennyson buscava uma resposta
através de um questionamento. A culpa da “queda” não era da brigada, eles
cumpriram com seu papel. De quem era então? Estava posta a voz política do
poeta por meio de sua poesia.
Após essa guerra, a rainha Vitória enfrentou um período político de
grande turbulência. Ocorreu o primeiro motim indiano, em 1857, além da
ameaça de uma guerra europeia, devido às lutas pela Unificação Italiana. Nos
anos que se seguiram, os problemas da rainha, como a morte de sua mãe e de
Albert, ambas em 1861, contribuíram para aumentar o clima de tensão
existente em seu reinado. Nesses anos, Alfred Tennyson trabalhou a favor da
20
realeza, divulgou seus ideais e cultivou corpos que enalteceriam a imagem
real.
No século XIX, muitos artistas20 utilizaram a Idade Média como referência
de um período áureo que parecia perdido. Ao retomá-la, evidenciavam
problemas que enxergavam em sua contemporaneidade. Para tanto, as raízes
do presente foram amplamente buscadas no passado, tornando possível à
memória e à imaginação recriarem famílias, sociedades, a literatura e a própria
história de outros tempos e outros meios. Tennyson utilizou temas medievais,
como a própria Matéria arturiana, para evidenciar problemas do século XIX
inglês, mas também para cultivar novos ideais de civilização.
Na Inglaterra, o movimento liberal construiu um ideal que relacionava o
futuro ao progresso. Mas esse ideal chocava-se com uma sociedade em que
grande parte da população estava submetida a péssimas condições de
trabalho na indústria, o corpo do operário, não era apenas o disciplinado, mas
também era o corpo como lugar da exploração. O operariado estava “de fora”
do organismo social.
Além disso, as promessas de progresso trazidas pelas novas técnicas
contrapunham-se ao medo do desconhecido. A mercadoria industrializada, que
era símbolo da abundância trazida pela Revolução Industrial, parecia substituir
valores que tinham por base as relações humanas. A industrialização
carregava elementos bastante contraditórios, o que fez autores como Edmund
Burke e William Cobbett, em fins do XVIII e início do XIX, posicionarem-se
contra os novos rumos que a nação tomava. Defendiam uma Inglaterra “mais
antiga”, que remetia aos tempos passados. E contribuíram grandemente para a
formação de tradições que questionavam a democratização do sistema eleitoral
e o industrialismo liberal no século XIX.
Sobre a Reform Bill, Tennyson posicionou-se a favor do pensamento de
Carlyle, que enxergava nas reformas o falecimento da sociedade conservadora
e de seus valores políticos. Para Tennyson, a liberdade seria obra do próprio
Estado e nunca da iniciativa de reformas eleitorais. Parece que para o poeta os
eleitores individualmente ou a ampliação do direito de voto ameaçava a
20
Podemos citar artistas como William Wordsworth, William Morris, Dante Gabriel Rossetti, William
Blake Richmond, William Davis.
21
concepção de organismo social, aqui muito associada a idéia do próprio Estado
mais do que a sociedade civil inglesa.
“The state within herself concludes
The Power to change, as in the seed,
The model of her future form,
And liberty indeed”21.
Assim, os trabalhadores, que ganhavam participação na vida política
inglesa, só poderiam representar – para o poeta – uma ameaça. Pelo mesmo
motivo, o aumento da participação popular por meio dos votos, relacionado ao
industrialismo e ao liberalismo, foi alvo de oposições e críticas na Inglaterra.
Resultou numa série de produções artísticas e literárias com características
conservadoras, que retomavam o que se entendia por “tradição”, por exemplo,
a vida bucólica e artesanal dos camponeses, antes de serem sacrificados pela
Revolução industrial.
Tennyson em seus poemas representou as multidões como “bestas”,
“selvagens”, “pagãos”. “And still from time to time the heathen host / Swarmed
overseas, and harried what was left”22. Nesta passagem, o poeta narra que de
“tempos em tempos”, a multidão de pagãos chegava de além mar devastando
o reino do rei Leodegran, pai de Guinevere, evidenciando que a ideia de
“multidão” remetia à desordem e à destruição.
Independente dos debates teóricos, a Inglaterra passou por três Reform
Acts, em 1832, 1867 e 1884. Esses Atos estenderam o direito de voto para os
cidadãos que tinham, até o momento, seus direitos civis cerceados. O primeiro
Ato privilegiou as cidades industriais do Norte, que tiveram um grande
crescimento com a consolidação da indústria, pois se transformou em um novo
distrito, a nova divisão da representação parlamentar, garantindo muitos votos
aos empresários industriais. Além disso, ampliou e estendeu o direito de voto
21
TENNYSON, Alfred, citado in: HARRISON, Antony H. Victorian poets and the politics of culture –
discourse and ideology. Charlottesville & London: University Press of Virginia, 1998. pp. 50.
22
TENNYSON, Alfred. “Idylls of the King”. In: CUMBERLEGE, G. Poetical Works – including the
plays. London: Oxford University Press, 1954. pp. 288.
22
para as classes médias23, fato que fez aumentar o eleitorado de 217.000 para
435.000 eleitores. Significava aproximadamente que de cada cinco homens,
um tinha direito de votar. Muitos conservadores entendiam que essa reforma
permitiu às classes médias compartilhar o poder junto com as classes mais
altas.
Para Tennyson as reformas do eleitorado comprometiam o organismo
social da Inglaterra. Os Reform Acts de 1867 ampliaram novamente o direito de
voto, estendendo esse direito a muitos operários. Duplicaram o eleitorado para
quase dois milhões de pessoas na Inglaterra e Gales. Esse foi o Ato que levou
alguns autores como Matthew Arnold e John Ruskin24 a escreverem,
respectivamente, Culture and Anarchy e Crown of Wild Olive, pois temiam que
a democracia nascente destruísse o que entendiam por cultura.
Ao ampliar ainda mais a participação eleitoral, a Reform Bill de 1884 e o
Redistribution Act, de 1885, triplicaram o eleitorado, pois estenderam o poder
de voto a muitos trabalhadores agrícolas. O voto tornava-se cada vez mais um
direito e não um privilégio de poucos, era parte da constituição do que foi
denominado como corpo social, onde os cidadãos ganhavam maior
participação na vida política da nação inglesa.
Esse aumento da participação popular no sistema político inglês trouxe
para os conservadores o medo de revoluções e de mudanças que
consideravam brutais para a ordem social. Foi justamente por perceber a
população como multidão que, para Tennyson, o aumento da participação
popular ameaçava o bom funcionamento da Inglaterra. Também por esse
motivo, o poeta entendia que essa massa populacional, que incluía os
trabalhadores, deveria ser educada. Não estamos dizendo que o poeta era
favorável às condições de miséria da população, mas que acreditava que o
23
Segundo Arnold Hauser, no século XIX, o que se entende por classe média é uma parte da sociedade
com muitas diferenças de fortunas, e um so padrão cultural de. Ou, nas palavras do próprio Hauser: “O
século XIX, efetivamente, já é absolutamente dominado pela classe média, dentro da qual existem, sem
dúvida, nítidas diferenças em fortuna, mas não em padrões culturais; a única separação profunda é a
existente entre os que partilham dos privilégios da cultura e os que deles são excuídos”. In: HAUSER,
Arnold. História social da literatura e da arte. Tomo II. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1972. pp.703.
24
Arnold coloca a ideia de cultura como alternativa para a “anarquia”, já que a entende como estudo e
busca. Para fazer isso se opõe ao utilitarismo (relacionado à indústria) e ao crescimento “desordenado” da
classe operária. Ruskin, também fez oposição ao industrialismo. E pensou a cultura relacionada à arte.
Para ele, a arte é uma atividade de todo o ser e não apenas de uma faculdade “estética”.
23
governo e as decisões políticas cabiam ao Estado institucionalizado e não aos
trabalhadores.
Ao mesmo tempo, surgiu um sentimento de injustiça perante as condições
de vida dessa “multidão” que vivia na pobreza. Autores como Carlyle, Stuart
Mill, Tennyson, de maneiras bem diversas, transitaram entre esses sentimentos
de injustiça e medo. Para esses pensadores, a civilização parecia ameaçada e,
nesse sentido, era preciso educar a massa populacional – independente de
como e do que cada um valorizava no ensino e na educação, a ideia de educar
era essencial.
No caso de Tennyson, a poesia era a maneira de lançar sua voz e, se
possível, atingir os leitores e ouvintes. Dentre muitos escritos, o poeta utilizou a
Idade Média para dar exemplos de condutas que considerava corretas ou
destrutivas para a sociedade. Tennyson também estava inserido num amplo
grupo de autores que retomaram temas medievais em suas obras – movimento
que ficou conhecido como renascimento medieval vitoriano.
O renascimento medieval vitoriano, iniciado em fins do século XVIII,
ganhou força no século XIX. Nesse movimento, ocorreu o resgate da história e
de ideais considerados medievais por meio dos discursos de um grupo de
autores que permeavam as práticas comportamentais dos homens e mulheres
da Inglaterra. Para tanto, os meios utilizados foram a arquitetura, a literatura, a
teologia e os entretenimentos populares de forma geral. Era comum o uso de
termos como cavalaria, dignidade, coragem, abnegação, cortesia, nobreza,
honra, dever e fidelidade.
Alfred Tennyson foi um dos poetas que difundiram esses ideais em seus
trabalhos. Sua obra mais famosa, Idylls of the King, apresentava não apenas o
“vocabulário medieval”, mas personagens e temas da Idade Média. As
personagens de Tennyson, nessa obra, formam um sistema de valores e um
código de conduta que prevalecia na literatura da Inglaterra vitoriana, seja para
a crítica social ou para o enobrecimento desses valores.
A crítica social realizada por Tennyson relacionava-se às questões das
aparências e das atitudes em que as ações individuais prevaleciam em
detrimento do coletivo, da sociedade. Assim, alguns personagens foram
exemplos de más condutas. Suas atitudes levam Camelot ao fim. Nesse
24
sentido, a traição de Guinevere a Arthur foi entendida como atitude que trouxe
uma “confusão” para a Távola Redonda:
“...this is all woman’s grief,
That she [Guinevere] is a woman, whose disloyal life
Hath wrought congusion in the Table Round
Which good King Arthur founded, years ago,
With signs and miracles and wonders, there
At Camelot, ere the coming of the Queen”25.
Ao
mesmo
tempo,
Tennyson
também
utilizou
personagens
que
evidenciam os bons costumes, o que o poeta entendia por civilidade, os valores
que deveriam ser seguidos para que a Inglaterra se aproximasse, cada vez
mais, da glória e do progresso.
Não apenas Tennyson, mas a própria literatura inglesa deste período
contribuiu com a formação de um conceito de cultura relacionada ao cultivo e a
educação do organismo social. A ideia de cultura, que antes designava as artes
em geral, no fim do século passou a relacionar-se com a própria vida,
englobando todos os aspectos da vida: o material, o intelectual e o espiritual.
Essas transformações da ideia de cultura, não eram acidentais, elas foram
engendradas na concretude social do século XIX, “cultura não foi apenas uma
resposta aos novos métodos de produção – à nova Indústria. Ligava-se
também aos novos tipos de relações pessoais e sociais, constituindo, (...), um
reconhecimento de separação prática e uma forma de acentuar alternativas. A
ideia de cultura seria mais simples se fosse resposta ao industrialismo apenas;
foi, porém, resposta a novos desenvolvimentos políticos e sociais; isto é, à
Democracia”26. Para Tennyson, democracia e cultura nacional eram universos
que se chocavam, um ameaçando o outro.
Não podemos esquecer que as transformações na relação entre autor e
público no século XIX também foram resultados da sociedade industrializada –
no sentido em que as produções literárias tornaram-se mercadorias, como
25
TENNYSON, A. In: DORÉ, G. 1995. Op. cit. pp. 62.
WILLIAMS, Raymond. Cultura e sociedade – 1780-1950. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1969. pp. 19-20.
26
25
qualquer outro objeto produzido nas indústrias. Esse fator, juntamente com a
ampliação da participação popular na política inglesa, em oposição à
probabilidade das relações humanas tornarem-se cada vez mais mecanizadas,
motivou autores como John Ruskin, Samuel T. Coleridge, Thomas Carlyle a
questionar o industrialismo e a democracia nascentes.
Assim, artistas, como alguns românticos, engajaram-se no estudo e na
crítica da sociedade de seu tempo. Parte deles se via como artesãos em meio
ao fim do modo de produção artesanal. Era comum a arte ser relacionada ao
artesanato, no sentido que o artista concebia e fazia seus produtos com suas
próprias mãos. Essa produção artística que se opunha ao modo de vida
acelerado e mecanizado da Inglaterra industrial contribuiu para elevar artistas e
literatos a uma posição social de destaque.
Um dos principais autores que contribuiu com o desenvolvimento dessa
ideia foi John Ruskin. Baseado numa teoria classicista colocou a arte numa
instância idealizada, como se para Ruskin a visão do artista estivesse muito
além da visão de outros indivíduos. Mas, mesmo com tentativas, como a de
Ruskin, na sociedade industrial a literatura - e as artes em geral – entraram
para a esfera mercadológica. Os livros, que já não eram produtos artesanais
desde a invenção da prensa de Gutenberg, passaram no século XIX, por
mudanças culturais e sociais que remetiam ao consumo e a venda, ou à
mercadoria.
Com a ideia de um público vinculado à aceitação e venda dos livros, a
literatura passou a ser um dos vários tipos especializados de produção, estava
exposta às condições mercadológicas27. Redundando numa necessidade
crescente de valorização da literatura e, ao mesmo tempo, da existência de
escritores de caráter independente e autônomo. Para Raymond Williams,
“Essas mudanças afetaram os escritores de várias maneiras. Para os
afortunados, houve progresso no grau de independência e de status social – o
escritor transformou-se num acabado ‘profissional’. Mas as mudanças
27
É importante lembrarmos que existia outro espaço para as produções dos escritores, as instituições. Em
relação a Tennyson, como poeta laureado, o próprio Estado patrocinava sua produção literária.
26
equivaleram também à instituição do ‘Mercado’, como forma típica de relação
entre escritor e a sociedade.”28.
Estava posto um conflito sobre a função do autor: por vezes, parecia que
o público respeitava as posições dos artistas, com uma espécie de
cordialidade, apenas por viverem os mesmos problemas sociais. Em outros
momentos, era como se os escritores tivessem a obrigação de agradar seus
leitores para que seus livros fossem vendidos. Surgia uma instituição
impessoal: o mercado literário. Mas, concomitantemente, a produção poética
parecia resistir à mercantilização do mundo burguês, por conter elementos
como inspiração criadora, liberdade de expressão e originalidade.
Surgiu, como foi dito anteriormente, uma reação romântica de valorização
do artista. Apesar de suas especificidades, os românticos passaram a valorizar
os artistas como aqueles que traduziam a realidade, utilizando, para tanto, sua
imaginação, numa visão mítica da arte e de seus produtores. Relacionavam as
produções artísticas com objetos autônomos, que possuíam uma espécie de
“leis próprias” vinculadas à escrita e à linguagem de cada um dos gênios das
artes.
Parecia existir uma necessidade de moldar a cultura na sociedade inglesa
daquele período, como se houvesse um medo, não do fim do mundo num
sentido cristão, mas do fim da civilização. “(...) There was no fear that the end
of the world was in sight: at that time the possibility seemed incompatible with
science. However there was a fear of the end of civilization, a sort of millennium
whose destructive forces would no longer be the angels of the Apocalypse, but
either Socialism or the Machine or the Yellow Peril. In the case of particularly
sensitive natures, this fear became sheer anguish; it took the form either of
insolent rebellion against an unstable society, or of an escape into the worlds of
dreams”29.
Dessa maneira, se na era vitoriana, a arte já era a da reprodutibilidade
técnica30 e as obras não eram mais um bem único, mas poderiam ser
28
WILLIAMS, 1969, Op. cit pp. 55.
JULLIAN, Philippe. Dreamers of Decadence – symbolist painters of the 1890s. New
York/Washington: Praeger Publishers, 1975. pp. 25. Fala das representações do corpo
30
O termo era da reprodutibilidade técnica é utilizado por BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na época
de suas técnicas de reprodução”. In: Textos Escolhidos, XLVIII. São Paulo: Abril Cultural, 1975.
29
27
reproduzidas, o melhor a fazer era encontrar uma maneira de explorar essa
reprodutibilidade, fosse para questionar ideais civilizacionais, ou para propor
novas formas de civilização. Por esse motivo, o que nos importa não é o critério
de autenticidade, mas sim, a função da arte, que se relacionava com um novo
âmbito, uma nova práxis: a política
Alfred Tennyson estava inserido nesse contexto. Nascido em 6 de agosto
de 1809, em Somersby, Lincolnshire, foi o quarto filho de doze crianças de
George e de Elizabeth Tennyson. O poeta, como outros homens de sua família
desenvolveu a epilepsia, a qual considerava uma doença vergonhosa, além de
problemas psíquicos. O pai de Tennyson tornou-se, ao longo dos anos,
paranóico e violento.
Em 1827, Alfred saiu da atmosfera turbulenta de sua casa, trilhando o
caminho de seus irmãos mais velhos para o Trinity College, Cambridge. Lugar
em que entrou em contato com a filosofia do século XIX. Em 1828, numa
premiação de poemas, Alfred ganhou uma medalha de ouro ao escrever
Timbuctoo. Os irmãos Tennyson tornaram-se conhecidos em Cambridge por
seus poemas.
A poesia de Alfred estava intrinsecamente relacionada com suas
experiências e vivências. Como escreveu Hallam Tennyson (filho de Alfred),
em Alfred Lord Tennyson, A Memoir by his son: “(...) For my own part, I feel
strongly that no biographer could so truly give him as he gives himself in his
own works”31.
Alfred Tennyson começou a escrever poesia ainda novo, no estilo de Lord
Byron. Porém, somente a partir de 1829, quando se filiou a um clube literário
denominado The Apostles é que publicou sua primeira obra, Poems (1830). O
grupo reunia-se para discutir filosofia e outras questões e, além disso, era
composto por nomes como Arthur Henry Hallam, James Spedding, Edward
Lushington – que mais tarde casou-se como Cecília Tennyson – e Richard
Spedding. Muitos se tornaram famosos e entraram para o Dictionary of National
Biography.
31
TENNYSON, Hallam. Alfred Lord Tennyson, a memoir by his son – vol I. New York: The MacMillan
Company, 1889. pp. XI.
28
Dentre esses autores, o mais importante para Tennyson foi Arthur Hallam.
Eles nutriam uma grande amizade e numa visita a Somersby – depois de
quatro anos de amizade – Hallam conheceu e ficou noivo de Emily Tennyson,
irmã de Alfred. Mas em 1833, Arthur faleceu. Tinha apenas 22 anos e sua
morte abalou profundamente Tennyson.
A fragilidade psíquica do poeta o tornava mais sensível às criticas. Em
1832, quando John Wilson Croker, critico literário, se pronunciou duramente em
relação a alguns poemas de Tennyson, o poeta passou nove anos sem
nenhuma publicação. Em 1842, Poems fez de Tennyson um poeta popular. E
em 1845, passou a receber uma remuneração governamental para a produção
de seus poemas.
O sucesso de poemas como The Princess e In Memoriam levou Tennyson
a ser indicado, em 1850, como poeta Laureado. Fator que finalmente o
estabeleceu como o poeta mais popular da era vitoriana. A admiração do
príncipe Albert pelos poemas de Tennyson ajudou o último a ocupar a posição
de poeta nacional.
In memoriam (1850), como indica o próprio título, foi escrito em memória
de Hallam. Nele Tennyson uniu o Arthur rei com seu amigo Arthur, ambos
idealizados.
“To sleep I give my powers away;
My will is bondsman to the dark;
I sit within a helmless bark,
And with my heart I muse and say:
O heart, how fares it with thee now,
That thou should’st fail from thy desire,
Who scarcely darest to inquire
‘What is it makes me beat so low?”32
Em In Memorian, Tennyson passou a demonstrar que o ato de vontade
própria deve estar relacionado com o mundo. O poeta negou uma concepção
32
Tennyson, Alfred. The poetical works. New York: G. W. Carleton & Co. Publishers, 1883. pp. 410.
29
mecanicista do universo e enunciou que, não seria por meio de um plano
determinista, e sim por meio de escolhas, que as relações entre os homens
poderiam ser novamente humanizadas. Essas “escolhas” deveriam visar, para
o poeta, o bem da nação. Nesse sentido, Tennyson entendia a sociedade como
orgânica, as ações humanas não estavam “pré-determinadas” e “mecanizadas”
e, por isso, deveriam ser “civilizadas”.
Para Tennyson, essas escolhas sempre passavam pelo âmbito moral, e,
portanto, interferiam diretamente no mundo, daí a importância de moldar os
indivíduos que formam o corpo social. Nesse sentido, em In Memoriam, o poeta
apresentou uma das principais questões tratadas em Idylls of the King: a de
homens que violavam as liberdades dos outros em nome de suas vontades
individuais.
Após a morte de Albert (1861), como retribuição à ajuda dispensada pelo
príncipe, Tennyson dedicou a edição da obra Idylls oh The King, de 1862, à
memória do príncipe.
“These to His Memory – since He held them dear,
Perchance as finding there unconsciously
Some image of himself – I dedicate,
I dedicate, I consecrate with tears –
These Idylls.
And indeed He seems to me
Scarce other than my King’s ideal Knight33,
‘Who reverenced his conscience as his King;”34
Depois disso, a rainha Vitória convocou o poeta à corte diversas vezes. E
no fim de sua vida, ganhou outros títulos, como o de Lorde. Lord Alfred
Tennyson morreu em 6 de Outubro de 1892, aos 83 anos de idade.
33
Na primeira versão dessa dedicatória o verso “my King’s ideal Knight”, aparecia como “my own ideal
Knight”, a modificação ocorreu porque os leitores de Tennyson diziam que o rei Arthur era uma
representação do príncipe Albert.
34
TENNYSON. 1954. Op. cit. pp. 287.
30
Durante sua longa vida, Tennyson idealizou em seus trabalhos, o que
deveria ser a verdadeira cultura nacional: um modo de vida que, se seguido,
construiria um ideal de civilização. “What this new mass audience was to read
was of concern to politicians, educationists and writers alike. To ‘educate the
poor man before making him our master’ was, as Tennyson Said, ‘one of the
great social questions impending in England’ (Mem., I, 249). The issue was
thoroughly debated in the periodical press of the period; it particularly coloured
the literary reviews where the ‘democratic’ duties of authors where consistently
stressed”35.
Dessa maneira, a literatura pode ser entendida como manifestação da
percepção que os artistas têm de sua contemporaneidade. Em cada poema
dos Idylls, a percepção do mundo inglês do século XIX pode ser evidenciada
por meio de vestígios medievais. Essas tramas textuais teceram a releitura de
um mito conhecido mundialmente, em especial dos ingleses: a lenda arturiana
e a Matéria da Bretanha
Os primeiros poemas que Tennyson produziu sobre o rei Arthur e os
cavaleiros da Távola Redonda foram Enid, Guinevere, Elaine e Vivien, cuja
publicação datou de 1859. Esses poemas compunham a primeira compilação
já intitulada Idylls of The King. A partir daí, o poeta continuou a traçar os
caminhos de Arthur quando, em 1869, publicou mais quatro poemas: The
Coming of Arthur; The Holy Grail, Pelleas and Ettard e The Passing of Arthur este era seu original Morte d’Arthur de 1842.
Esses poemas foram marcados pela releitura de autores medievais,
evidenciando a influência da Idade Média na obra de Tennyson. Sobre o
nascimento de Arthur, por exemplo, baseou-se em Geoffrey de Monmouth,
clérigo galês, provavelmente do século XII, que escreveu Historia Regum
Breitannie, Prophetia Merlini e Vita Merlini. Foi também na obra de Monmouth
que o personagem Merlin apareceu pela primeira vez com esse nome e que
Arthur foi inserido na linhagem real inglesa.
Tennyson tornou-se tão popular que Kathleen Tillotson escreveu que
em1870 já não havia mais ninguém que não conhecesse o nome do poeta. Sir
Alfred já conseguira um público relevante. E no início do mesmo ano, o autor
35
PALMER, D. J. Tennyson. London: G. Bells & Sons, 1973. pp. 52-53.
31
terminou seu empreendimento literário com mais três poemas: The Last
Tournament, Gareth and Lynette e Balin and Balan.
É importante lembrarmos que Tennyson não se baseou apenas em
versões medievais da legenda arturiana, mas também na versão moderna de
Thomas Malory, século XV, chamada A morte de Arhtur – a primeira em que as
histórias de Arthur e de seus cavaleiros foram reunidas. Assim, Idylls of The
King abordam múltiplas temporalidades. As experiências de vida em sociedade
podem ser apreendidas por meio dos vestígios dessas multiplicidades
temporais.
Por meio das vivências – e da cultura na qual os personagens estão
inseridos – é possível pensar em pluralidades de sujeitos e construções de
subjetividades. Dessa maneira é relevante reconstituir o processo histórico
utilizando os traços culturais que Tennyson deixou em suas obras, segundo
Merleau-Ponty, através da cultura é possível alcançar outras vivências. Pois,
“(...) Pela ação de cultura, instalo-me em vidas que não são a minha, confrontoas, manifesto-as uma à outra, torno-as compossíveis numa ordem de verdade,
faço-me responsável por todas, suscito uma vida universal – assim como me
instalo de vez no espaço pela presença viva e espessa de meu corpo”36.
Na sociedade burguesa do século XIX, o discurso de Tennyson sobre
indivíduos girava menos em torno do pecado e da salvação, da morte e da
eternidade, do que em torno do que concerne ao orgânico em contraposição ao
mecânico. A imagem formada era a do corpo que se contrapunha à
mecanização, evidenciando o caráter orgânico da sociedade. Nesse sentido,
Tennyson utilizou alguns personagens para retratar modelos vinculados a uma
Idade Média idealizada de forma que pudesse indicar e, até mesmo, tentar
solucionar problemas de sua contemporaneidade.
Entendemos
que
as
imagens
orgânicas
da
sociedade
estavam
relacionadas ao corpo dos personagens, pois esses corpos representavam
atitudes e ações utilizadas pelo poeta como maneira de exemplificar
comportamentos ideais de conduta. Dessa maneira, o corpo era parte de um
“...esforço
cultural para
conciliar,
nas diferentes
perspectivas
que o
caracterizam, um conjunto de tarefas afetivas, cognitivas, intelectuais,
36
MERLEAU-PONTY, Maurice. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. pp. 115.
32
conscientes e inconscientes, práticas e emocionais, cujo resultado foi o fato de
que o corpo (...) ocupasse uma posição privilegiada para a compreensão e a
produção do humano, do social, do político e do simbólico.37”
A metáfora estava posta: o funcionamento da sociedade desenvolvia-se
de maneira similar ao funcionamento do corpo humano. Assim, se o corpo das
pessoas depende das funções de cada órgão que o compõem, da mesma
maneira o (bom) funcionamento social dependia, para Tennyson, da ação de
cada indivíduo, que representava aqui o organismo que compunha o corpo
social. A ideia de “corpo” relacionava-se diretamente com a questão do
“orgânico”.
Nesse sentido, a percepção de corpo é também lugar da cultura e do
imaginário, de suas tensões, ausências e questionamentos. Sendo o corpo
ponto da ligação entre cultura e sociedade e, por conseqüência, o local da
interação do natural e do social. Fato que faz dele um tema privilegiado.
Evidenciamos ainda que, para melhor entendermos as ideias de cultura e
corpo no século XIX, é preciso atentar para as percepções do poeta. Os corpos
representados pelo poeta são marcados pelas percepções que teve de sua
contemporaneidade e pela busca de outro tipo de civilização. Antes de
abordarmos a personagem Merlin, como dissemos na introdução deste
trabalho, apresentaremos brevemente algumas passagens da obra Idylls of the
King, com o objetivo de situar melhor o leitor e ampliar sua percepção da obra
de Tennyson. Em The Coming of Arthur, o rei foi apresentado como aquele que
destruiu as “bestas” – representadas no poema como animais: cachorro
selvagem, lobo, porco e urso.
Vimos que a palavra “bestas” pode remeter aos trabalhadores do século
XIX inglês. Era comum no período utilizar metáforas de animais e de
populações consideradas selvagens para designá-los. Para um grupo
heterogêneo, mas elitista da Inglaterra do século XIX, no qual Tennyson estava
inserido, os trabalhadores não eram vistos como indivíduos produtores de
cultura, principalmente de um tipo de cultura relacionada à arte. Autores como
John Ruskin, Samuel T. Coleridge, Thomas Carlyle, não percebiam, ou não
consideravam que os operários também eram importantes agentes culturais.
37
GOMÉZ. Op. cit. pp. 82.
33
Mas, além disso, no caso específico de Tennyson, o termo pode indicar
também pessoas/personagens que o poeta considerava ter conduta moral
duvidosa, como Vivien, Mark e Mordred.
O poeta discorreu ainda sobre a legitimidade da realeza de Arthur,
colocando Merlin como personagem que sabe a “verdade” sobre essa
legitimidade, mas deixou claro que o que mais importava eram os feitos do rei,
que lutava pela primeira vez em Cameliar, terras do pai de Guinevere.
A questão relevante para Tennyson não foi, portanto, a do mero
nascimento de Arthur, mas sim a da instauração de uma nova sociedade.
Cameliar estava sendo destruída pelas “bestas” e Arthur foi quem as derrotou.
Nesse ato fundou a ordem da Távola Redonda como uma nova ordem
civilizatória.
“And still from time to time the heathen host
Swarm’d overseas, and harried what was left.
And so there grew great tracts of wilderness,
Wherein the beast was ever more and more,
But man was less and less, till Arthur came.
(...)
And thro’ the puissance of his Table Round,
Drew all their petty princedoms under him,
Their King and head, and made a realm, and reign’d”38.
Arthur era o exemplo a ser seguido. Mas, havia um grande problema para
os possíveis “seguidores” de Arthur: como atingir o ideal “perfeito” de conduta
representado pelas ações do rei? Tennyson construiu um personagem tão
idealizado que era impossível para alguém que não fosse um herói seguir o
exemplo e as orientações de Arthur. Esse fator já indicava a possibilidade da
decadência de Camelot.
Se para Tennyson seguir o exemplo de um indivíduo idealizado era
impossível, tornava-se necessário educar os corpos “moralmente imperfeitos”.
Assim como ocorreu com Gareth, no idílio Gareth and Lynette. Em um dos
38
TENNYSON, 1954. Op. cit. pp. 287-288.
34
combates enfrentados por Gareth, ele lutou contra o Cavaleiro da Alegoria, a
representação da morte. Fisicamente, o Cavaleiro da Alegoria é como um
monstro, pode transitar como um fantasma, não cavalga de dia e não tem
piedade alguma, mata homens, mulheres e até bebês. Ao lutar contra ele,
Gareth venceu a morte.
“At once Sir Lancelot’s charger fiercely neigh’d,
And Death’s dark war-horse bounded forward with him.
Then those that did not blink the terror, saw
That Death was cast to ground, and slowly rose.
But with one stroke Sir Gareth split the skull.
Half fell to right and half to left and lay”39.
Essa é a representação de um homem espiritual, que foi desnudado de
todos os seus temores alcançando a salvação (venceu a morte), enquanto
Lyonnors, a quem Gareth aventurou-se para libertar, pode ser pensada como
símbolo da própria alma, que está aprisionada e precisa ser liberta. Tennyson
evidenciava no idílio, que as almas precisavam ser libertas de seus corpos, de
suas carnes. Não era apenas uma pregação religiosa, mas principalmente
moral.
A alma nesse caso refere-se ao que não é mecanizado, ela é parte do
corpo, mas, se o corpo for pensado como lugar do mecânico, como máquina
que pode ser explorada pela anatomia e pela fisiologia, a alma estava distante
de todo esse processo de mecanização corporal, por isso, precisava ser liberta.
A salvação do individuo como ser humano, e não mecânico, poderia levar a
sociedade à ruína e ao fracasso, caso os indivíduos não desenvolvessem
condutas civilizadas, daí a preocupação em educar a multidão. Tennyson, mais
uma vez, evidenciava o “medo” do fim da “civilização”.
A perda dos ideais civilizatórios e as conseqüências trágicas dessa perda
para a sociedade foram temas preferidos pelo poeta. Assim, em The Passing of
Arthur, Tennyson associou a morte de Arthur – rei – com a morte de Hallam,
39
TENNYSON, A., 1954. Op. cit. pp. 317.40 TENNYSON, A. In: DORÉ, G. 1995. Op. cit. pp. 2.
35
Excluído: ¶
que de certa forma contribuiu para a descrença que o poeta tinha do mundo em
que vivia.
Se pensarmos na relação entre Arthur Hallam – rei Arthur, temos a
confirmação que Tennyson escrevia ao mesmo tempo sobre si, sobre sua dor
diante da ausência de seu grande amigo, daquele que considerava um
exemplo de conduta e, concomitantemente, remetendo-se para a sua
contemporaneidade, escrevia sobre a impossibilidade de se alcançar a
sociedade ideal.
A morte de Hallam representou o fim da perspectiva de um mundo
“melhor” e foi retomada pelo poeta na figura de um rei que levou consigo ideais
civilizacionais. Mas quando pensamos no mito arturiano não podemos nos
esquecer que a volta do rei ainda se apresentava como possibilidade, os ideais
que estavam destruídos naquele momento poderiam ser restabelecidos. Afinal,
Arthur ainda era esperado.
Para Tennyson, tanto a trajetória de Hallam, quanto do rei Arthur,
deixaram marcas na sociedade em que viveram, foram exemplos de conduta e
de vivência. Parecia, portanto, que existiam possibilidades de melhoria social e,
essas possibilidades, relacionavam-se com o comportamento e atitude de cada
indivíduo perante o meio ao qual estava vinculado.
Assim,Tennyson organizou os poemas da versão dos Idylls of the King, de
1889, numa sequência que mostrava os cavaleiros da Távola e mulheres,
como Guinevere e Vivien, como sintomas de uma sociedade “concreta”, muitos
personagem representavam os erros, as aparências, a falsidade, condutas que
levaram a sociedade ideal (Camelot) ao seu fim. Diferente desses
personagens, Arthur representava, para o poeta, o corpo de um rei poderoso,
de porte grande, diferente de todos os que já haviam sido imaginados, o único
capaz de enfrentar, nos primeiros idílios, as ‘bestas’ pagãs que destruiriam seu
reinado.
“He look’d and saw that all was ruinous.
Here stood a shatter’d archway plumed with fern;
And here had fall’n a great part of a tower,
Whole, like a crag that tumbles from the cliff,
36
And high above a piece of turret stair,
Worn by the feet that now were silent, wound
Bare to the sun, and monstrous ivy-stems
Claspt the gray walls with hairy-fibres arms,
And suck’d the joining of the stones, and look’d
A knot, beneath, of snakes, aloft, a grove.”40
O excerto parece transportar o público para outro espaço e tempo. Para
um tempo mítico, tempo de um rei que era exemplo de conduta, um tempo
medieval, onde Arthur era o único considerado capaz de resgatar os humanos,
desde que reconhecido e seguido como um modelo. O rei portava a
possibilidade da salvação para os homens e mulheres, da “salvação” social,
pode ser pensado como a representação da nação, do corpo social. Mas, sua
imagem mítica de perfeição acabou trazendo, em si mesma, a impossibilidade
dessa salvação no sentido que humano nenhum conseguiria agir como Arthur.
Além disso, no século XIX, muitos poemas eram comumente recitados,
essa prática pode, por si só, rememorar a oralidade também utilizada para
recitar poemas na Idade Média. Como se, por meio da voz, portanto do corpo,
mais um traço de uma tradição – considerada exemplo de conduta –, pudesse
ser resgatado. O ato de parar para recitar e ouvir poemas parecia se opor a
uma sociedade cujo símbolo era o do trem expresso.
Para Tennyson, o amor de Lancelot e de Guinevere foi um dos presságios
de destruição da Távola. O poeta não condenou Guinevere e a fez responsável
pela destruição daquele mundo glorioso, justamente porque aquele mundo já
estava fadado à decadência. Ainda assim, o fragmento a seguir mostra o
adultério de Guinevere, inexoravelmente presa ao seu corpo, ela não pode
esconder-se de si mesma, de sua consciência, sabe que não atingiu a
expectativa de Arthur.
“Then she (Said), “the end is come
And I am shamed for ever;” and he said
“Mine be the shame; mine was the sin: but rise,
And fly to my strong castle overseas:
37
There will I hide thee, till my life shall end,
There hold thee with my life against the world.”
She answer’d “Lancelot, wilt thou hold me so?
Nay friend, for we have taken our farewells.
Would God, that thou couldst hide me from myself!
Mine is the shame, for I was wife, and thou
Unwedded: yet rise now, and let us fly,
For I will draw me into sanctuary,
And bide my doom.” So Lancelot got her horse,
Set her thereon, and mounted on his own,
And then they rode to the divided way,
There kiss’d, and parted weeping.”41
No período medieval, corpo e alma eram inseparáveis um do outro. A
alma era o guia, detentora dos segredos do corpo, modeladora tanto do corpo
quanto do espírito até que a sociedade da corte passou a exigir, no século XIX,
o rompimento com o primado da alma. Seu lugar passou a ser ocupado por
uma vigilância interna que a moral vitoriana chamava de consciência. Se, no
período medieval, o fator da desagregação do Universo Arturiano estava
relacionado à incipiente emergência do indivíduo, no século XIX eram as ações
dos indivíduos, devidamente disciplinados e reprimidos, que determinavam o
curso dos acontecimentos, por isso, era preciso esconder a paixão e, se
possível, se esconder da paixão. Poupar o corpo desse sentimento era poupar
energia para o trabalho.
Nesse sentido, os idílios podem ser considerados uma forma de narrativa
exemplar para educar os que ouvem e os que leem os poemas. Para
Tennyson, os valores materiais da sociedade do século XIX – como o
industrialismo e o liberalismo – eram obstáculos decisivos para a concretização
de um mundo idealizado. O poeta evidenciou através do rei Arthur, que um
modelo de conduta idealizado não pode manter a ordem e alcançar certa
civilidade, ou seja, voltou-se para um passado em que buscava a harmonia
social por meio da luta, para mostrar um mundo em que atitudes individualistas
predominavam, e que não poderia ser redimido.
41
TENNYSON, 1954. Op. cit. pp. 425.
38
No momento em que Lancelot propõe a Guinevere fugir com ele a fim de
viverem juntos, escondidos de todos, ela responde: “Would God that thou
couldst hide me from myself! Mine is the shame, for I was wife (...)”42. Essa fala
representa não só a consciência da rainha que a incomodava, mas também se
refere aos seus erros. Ela sabe que sua atitude contribuiu para a destruição da
sociedade arturiana. O mesmo sentido foi retomado pelo poeta no momento
em que Guinevere já havia fugido para um santuário no qual ela se refugiou e
onde se encontrou com uma noviça que desconhecia a fisionomia da rainha.
Disse a noviça:
“Then to her own sad heart mutter’d the Queen,
“Will the child kill me with her inoccent talk?”
But openly she answer’d, “must not I,
If this false traitor have displaced his lord,
Grieve with the common grief of all the realm?”
“Yeah,” said the maid, “this all woman’s grief,
That she is a woman, whose disloyal life
Hath wrought confusion in the Table Round
Which good King Arthur founded, years ago,
With signs and miracles and wonders, there
At Camelot, ere the coming of the Queen”.43
Podemos relacionar esse “peso” da ação individual, com a questão do
corpo e da nação na sociedade do século XIX. Para Tennyson a nação estava
intrinsecamente relacionada aos indivíduos, que determinariam, por meio de
suas atitudes e comportamentos, os rumos da Inglaterra. Assim como a ação
dos personagens dos idílios provocaram a ruína de Camelot. Segundo Fredric
Jameson, o conceito de alegoria nacional remete à ideia “em que o contar da
história individual e a experiência individual não podem deixar de (...) envolver
todo o árduo contar da própria coletividade”44. Nesse sentido, a nação deveria
42
TENNYSON. 1954 Op. cit. pp. 425.
TENNYSON. 1954 Op. cit pp. 427
44
BHABBA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998. pp. 200.
43
39
– para Tennyson – estar inscrita nos corpos na forma de identidade e de
cultura nacional.
No fragmento onde Guinevere e Lancelot se despedem, observamos que
os personagens desejam ficar juntos, mas a consciência da rainha os
recrimina. Um peso moralista obriga os amantes a se separarem. Eles se
separam em nome de um bem maior: a civilização representada por Arthur. Era
a representação de um modelo ideal de civilização. Num fragmento do poema
Guinevere, a Rainha atira-se aos pés de Arthur, pedindo perdão. Nesse
momento, seu corpo estava literalmente aos pés do rei. O Rei olha para ela
com grande dor, como quem perdoa, mas mesmo amando-a e perdoando-a,
nega-se a ficar com ela, pois Arthur é o modelo de uma moral, de uma atitude
que deveria ser preservada em nome e a favor do corpo social.
“I did not come to curse thee, Guinevere,
I, whose vast pity almost makes me die
To see thee, laying there thy golden head,
My pride in happier summers, at my feet.
(...)
(...) all is past, the sin is sinn’d, and I,
Lo! I forgive thee, as Eternal God
Forgives: do thou for thine own soul the rest.
But how to take last leave of all I loved?
(...)
Let no man dream but that I Love thee still
(...)
And while she grovell’d at his feet,
She felt the King’s breath Wander o’er her neck
And, in the darkness o’er her fallen head,
Perceived the waving of this hands that blest”45.
45
TENNYSON. 1954, Op. cit. pp. 431-432.
40
Lembremos também as múltiplas temporalidades das fontes que
perpassam os Idylls of the King. Embora, como já dissemos, o poeta tenha se
baseado principalmente numa obra do século XV (Thomas Malory), seus
poemas retomaram o período medieval, como se fosse um tempo mítico, um
tempo áureo. Esse tempo mítico, sob inúmeros aspectos, diz respeito a época
vitoriana, momento em que a obra foi produzida.
Existe um movimento do tempo e entre os tempos, não apenas na
retomada e na representação da Idade Média no século XIX, mas também
dentro da narrativa literária: a obra foi inspirada numa versão do século XV,
que já era uma releitura de versões anteriores. Além disso, nossa bagagem
cultural – a própria contemporaneidade da pesquisadora – também está
inserida na análise de nossa fonte documental.
Idylls of the King não são apenas parte do movimento de busca pelos
vitorianos de um passado ideal, localizado entre os séculos XIII e XV, nem
apenas o diálogo de Tennyson com tradições históricas que lhe eram caras. Os
Idílios foram o produto de uma relação estética criada a partir de múltiplas
dimensões: a das palavras que constroem os poemas, das imagens que tais
palavras formam, da releitura de outro período histórico (Idade Média), da
modernidade da obra de Malory, de um modo de ver a sociedade vitoriana e,
finalmente, também o produto de nossa leitura a partir de nossa
contemporaneidade. Assim, o universo dos idílios precisa ser pensado como
uma totalidade de sentidos que estão intrinsecamente relacionados com uma
consciência temporal, onde é possível pensarmos em cada um dos tempos e
nas relações entre eles.
Para abordar essa multiplicidade temporal nos Idylls of the King, um dos
nossos objetos de estudo será o corpo do personagem Merlin, evidenciando
que o corpo será abordado em relação ao orgânico, e não como objeto
principal e exclusivo deste trabalho. Como, no século XIX, a ideia do orgânico
foi colocada em evidência – de certa maneira em oposição ao mecanicismo –,
o orgânico passou a ser destacado e relacionado com a cultura. Tentaremos
compreender o processo que destacou o orgânico, como resposta a um
mecanicismo industrial. Momento em que o corpo apareceu como resposta a
um industrialismo, mas uma resposta vinculada à cultura, já que os corpos
41
deveriam ser educados e utilizados para o bom funcionamento social. No
conceito
de
organismo
social,
Corpo,
civilização
e
cultura
estavam
relacionados.
As nações foram vinculadas à ideia de organismo social. O discurso
veiculado era de que para o bom funcionamento da sociedade, era necessário
harmonizar todos os membros, o que significava que os indivíduos – como
membros de um corpo maior – deveriam obedecer ao Estado, para manter a
ordem e o progresso de seu país.
Se na sociedade medieval, um dos principais elementos de garantia da
ordem social foi a religiosidade, no século XIX estava em construção um
conceito de cultura que substituía a religião. Ainda que esse conceito estivesse
de certa maneira relacionado com uma moral religiosa, o principal objetivo a
ser alcançado era a manutenção de uma sociedade ordenada, e essa
manutenção estava intrinsecamente ligada com a idéia de organicidade da
nação.
Assim, Tennyson utilizou também personagens míticos. Ao rememorar
Arthur e seus cavaleiros, representou figuras que são parte da Matéria Bretã,
uma Matéria mitificada desde o período medieval. É interessante pensarmos
por que no século XIX, momento em que a ciência se consolidava como
detentora da “verdade”, nosso autor retomou não apenas o período medieval,
mas uma história mítica.
O Mito Arturiano cumpria importantes funções na obra de Tennyson. Era
uma exaltação à realeza inglesa, tanto pela dedicatória feita ao Príncipe Albert
e pela construção de uma imagem ideal de Arthur, quanto pelo fato do autor
contar os idílios em forma de poesia. Os mitos eram também exemplos de
vivências. Cada um daqueles personagens míticos carregavam as marcas de
sua trajetória e as características de suas personalidades.
Tennyson utilizou esses elementos como exemplo de boa ou má conduta.
Abordou personagens conhecidos, marcos da cultura e das tradições
britânicas, como meio de educar seus leitores. Como sabemos, o poeta, na
sociedade daquele período era, muitas vezes, tido como alguém que
enxergava mais do que os outros indivíduos.
42
Não podemos reduzir os mitos apenas a exemplos de conduta. Eles
portam uma experiência de vida, eles possibilitam rememorar episódios, nos
transportam para outra temporalidade, a temporalidade das sensações e nesse
momento, o autor atinge seu público, transportando-o para outra dimensão
temporal e espacial, faz com que, por meio de suas percepções, tenham outras
experiências, vivenciem – muitas vezes, de maneira inconsciente – o
inacabamento da obra de arte. Dessa maneira, o mito vivifica o orgânico,
enquanto a ciência o mecaniza46.
Assim, entendemos que o mito da Legenda Arturiana, enquanto evocação
para a permanência de costumes ligados as tradições britânicas, contribuiu
para a oposição a uma cultura mecanizada pela indústria e pelo liberalismo, o
que significa que a Legenda pode ser considerada, por si só, um recurso da
imaginação do poeta para resgatar uma sociedade existente antes da
industrialização. Sociedade que Tennyson representou de maneira idealizada,
justamente porque projetava nela um ideal civilizatório. Mas, de antemão, sabe
que sua existência não é possível e mostra através das ações dos homens e
das mulheres que dela participavam que – Camelot – a nova sociedade
formada por Arthur, estava fadada ao fracasso e a destruição de seus mais
preciosos valores.
Nesse período já havia a percepção de que as ações dos indivíduos
estavam diretamente relacionadas com o curso dos acontecimentos, com o
desenrolar da própria história47. Por isso, a escolha do mito e a maneira de
contá-lo eram relevantes, na medida em que poderia incutir no público para o
qual eram narrados os valores antes veiculados pela religião. Não podemos
nos esquecer de que a ciência ganhava mais espaço, em detrimento da
religiosidade. A ruptura entre corpo e alma, entre o físico e o espiritual já havia
acontecido, mesmo que o discurso sobre o corpo submetido à alma ainda
estivesse presente na religiosidade cristã.
46
É relevante destacar que importantes autores debateram sobre a questão do orgânico e do mecânico na
sociedade inglesa do século XIX. Sobre o mecânico Thomas Carlyle, que como já dissemos no presente
trabalho, enxergava na Inglaterra de sua contemporaneidade uma era da máquina. Além de Carlyle,
podemos citar também Stuart Mill, que colocou a política no patamar de “arte” e de “convenção
humana”. Para Mill, as instituições deviam a sua origem somente ao pensamento e reflexões humanas,
atribuindo para as instituições um caráter orgânico e não mecânico.
47
É importante lembrarmos que a Revolução Francesa foi um dos movimentos que mais contribuiu com a
ideia dos Homens como agentes históricos.
43
Embora o corpo não fosse mais considerado apenas o receptáculo da
alma, o bom funcionamento social atrelou-se a uma conduta moral individual.
Foi essa conduta que Tennyson tentou difundir por meio de suas obras. Era
uma tentativa de “educar” a sociedade vitoriana e, ao mesmo tempo, enfatizava
um dos sentidos da criação artística daquele período: a ação de “educar”.
As representações do orgânico, ou seja, de personagens inteiramente
dedicados a servir a realeza de que fazem parte, adquiriram em Idylls of The
King, uma função social. A junção entre o orgânico e o social remetia à ideia de
que o primeiro garantiria o funcionamento e a ordem do segundo. Havia certo
“peso” da ação individual, pois a nação era entendida como um corpo coletivo.
Nesse sentido, o organismo social trazia a possibilidade de ser representado,
educado, fabricado e forjado, podendo constituir um ideal de civilização.
Pensemos, então, na relação entre Tennyson e a personagem Merlin.
Entendemos que existe um vínculo entre um e outro, pois o poeta se
identificava diretamente com a personagem. Duas vezes, Alfred Tennyson, ao
escrever para o periódico The Examiner, assinou Merlin. Mais do que isso, em
sua autobiografia literária, o autor se colocou como se fosse o próprio mago.
Nesse sentido, buscaremos a presença de Tennyson nos feitos da personagem
Merlin.
É necessário lembrarmos que Tennyson produziu idílios durante toda sua
vida. A palavra idílios está no título de uma das principais obras de Tennyson –
Idylls of the King. Foi ele quem a denominou idílios. Mas, por que Tennyson
escolheu idílios como corpo da maioria de seus poemas?
Primeiro, o uso do idílio já era em si mesmo um tipo de revival: o autor
retomou os idílios devido à influência do período Alexandrino da literatura
grega. Assim como a Escola de Alexandria, no século III a.C., preocupava-se
em relacionar poesia e vida, Tennyson tentava colocar a poesia em contato
direto com a vida. Por isso, não remetia apenas à subjetividade (ao tão famoso
“eu” do movimento romântico, que influenciou os primeiros poemas de
Tennyson), mas somou a missão da subjetividade poética ao dever do cidadão
para com os fenômenos públicos do mundo em que viveu.
Tennyson se utilizou de imagens e figuras literárias para descrever em
seus poemas pinturas ou quadros visuais muito nítidos e coloridos para
44
comporem a sequência narrativa dos poemas. Ao mesmo tempo, cada um
desses idílios podem ser entendidos, e lidos, fora do contexto da obra inteira.
Um exemplo disso foi a criação em ordem não cronológica dos poemas dos
Idylls of the King.
Os idílios também estão vinculados com a própria vida do poeta. Pois, ao
escrever os poemas da literatura arturiana, Alfred Tennyson realizou seus
idílios. Não só recriando as aventuras de Arthur, de Merlin e dos Cavaleiros,
mas também passando por alguns lugares atribuídos à Legenda Arturiana.
Idylls of the King é composto por poemas que foram produzidos ao longo
da vida do poeta, uma obra que, para ser concluída, levou cerca de 20 anos.
Significa que os propósitos de Tennyson, em relação à cultura, civilização,
moralidade, entre outros, estão presentes nesses poemas. Utilizando a forma
idílica, suas palavras ligavam-se à tradição da própria Inglaterra, por meio das
histórias de Arthur e de seus cavaleiros.
Tennyson misturou o drama, o narrativo e o lírico para produzir um novo
tipo de poesia. Em seus idílios –- o poeta trouxe uma nova percepção do que
se entendia por literatura moderna. Ele associou vida e poesia. Tennyson
reviveu nos Idílios não somente o conceito de cultura nacional e de organismo
social da nação vitoriana como, através da missão heróica dos personagens
lendários da idade Media, transformou a sua poesia em missão civilizadora.
Em The Coming of Arthur, Merlin foi associado com a sabedoria, além de
ser todo tempo vinculado ao rei Arthur. O poeta evidenciou o mago como o
mais sábio homem que já serviu Uther pela sua mágica, aquele que superou
seu mestre – Bleys – e o único que poderia provar para Leodegran (pai de
Guinevere) ser Arthur realmente filho legítimo de Uther, ou seja, que possuía
legitimidade real. Dessa maneira, o poeta vinculou o Merlin e Arthur, a partir
daí, não foi mais possível dissociar um personagem do outro. Era a ligação
entre o corpo da realeza e a visão do poeta da Inglaterra como um organismo
social milenar.
Outro poema da obra Idylls of the King que analisaremos é Merlin and
Vivien. Esse poema é parte da primeira versão dos Idylls, juntamente com
Enid, Lancelot and Elaine e Guinevere. O titulo era The True and the False. Em
Merlin and Vivien, esta seduziu Merlin e acabou aprisionando-o com um
45
encanto que aprendeu com o próprio mago. Ainda que o poema destaque a
perversidade, a malícia e a maldade de Vivien, Merlin deixou-se seduzir como
um homem apaixonado. Seria a representação da sabedoria do mundo
aprisionada pelos impulsos e paixões humanas? Quais seriam os significados
do aprisionamento do corpo portador da sabedoria?
O último poema de que trataremos de forma detalhada não faz parte da
obra Idylls of the King, mas é de extrema importância para pensarmos o
relacionamento entre o poeta e o personagem mítico. É a biografia literária
Merlin and The Gleam. Nele, Merlin narrou sua história desde a infância.
Durante toda a sua vida, ele está próximo a aura (“Gleam”) que vem também
de Arthur. Tennyson unificou seu amigo Arhtur Hallam e o personagem rei
Arthur, que pode ser considerado uma representação da realeza britânica. Era
o poeta narrando seu próprio idílio, por meio dos idílios arturianos. Estava
tecida a teia das temporalidades.
46
Capítulo 2 – Merlin e os ideais de civilização de Tennyson
“As tradições estruturam o ser social pela prova do corpo”.
(D. Le Breton, citado por Alain Corbin, in: História do Corpo)
O uso da voz profética conferia autoridade aos narradores das diversas
poesias de Alfred Tennyson. A manipulação de uma variedade de discursos
criou mundos e costumes ilusórios e contribuiu para cultivar os valores do
vitorianismo, constituindo e gerando parte importante daquela cultura. Os
poemas remetiam ao que o poeta considerava tradição e esse fator legitimava
as palavras proferidas por Tennyson.
Era importante que os narradores criados por Alfred Tennyson
possuíssem
autoridade
ao
proferir suas
palavras.
Nesse
sentido, a
personagem Merlin ganhou força no decorrer da sua produção. A voz do mago
foi uma das mais utilizadas pelo poeta. O personagem já estava vinculado ao
imaginário da população inglesa como o responsável direto pela transmissão
da Legenda e, consequentemente, como o grande narrador, bardo e profeta.
Além disso, o vínculo de Merlin com o rei Arthur era conhecido, o que favorecia
o posicionamento do poeta como quem exaltava a realeza britânica.
Merlin não foi escolhido aleatoriamente, pois a escolha tinha em si um
propósito. No imaginário popular, o mago estava relacionado com histórias da
tradição britânica. Apesar das diferenças entre as inúmeras versões da
Legenda Arturiana, a imagem do mágico ligava-se principalmente a dois
fatores: a construção de Camelot e o uso de poderosas palavras.
A força da palavra é a maior das características de Merlin, assim como a
dos poetas da era vitoriana. A voz pode ser pensada como a primeira e, talvez
a principal, evidencia da presença de Merlin na obra de Tennyson. Muitos
posicionamentos políticos e sociais do poeta foram ditos por meio das profecias
ou da voz (sábia) de Merlin. Voz que revela a consciência histórica do autor, no
sentido que em seus idílios estão entrelaçadas as questões espirituais, sociais
e políticas. Na primeira aparição de Merlin, em The Coming of Arthur,
Tennyson utilizou a fala de um conselheiro do rei Leodegran e apresentou o
mago como o mais sábio dos homens.
47
“Then spake the hoary chamberlain and said,
"Sir King, there be but two old men that know:
And each is twice as old as I; and one
Is Merlin, the wise man that ever served
King Uther through his magic art; and one
Is Merlin's master (so they call him) Bleys,
Who taught him magic; but the scholar ran
Before the master, and so far, that Bleys
Laid magic by, and sat him down, and wrote
All things and whatsoever Merlin did
In one great annal-book, where after-years
Will learn the secret of our Arthur's birth."48
O rei Leodegran buscava a verdade sobre a legitimidade de Arthur.
Tennyson aproveitou-se para evidenciar que Merlin era o homem mais sábio
que já serviu o rei Uther com sua mágica – “Is Merlin, the wise man that ever
served / King Uther through his magic art”. Essa apresentação nos faz pensar
que o poeta precisava ratificar para seu público, quem efetivamente era Merlin.
A ideia do serviço, tão comum na Idade Média, estava além da sabedoria,
revelava caráter, estava vinculada com a fidelidade de Merlin à realeza, ao
mesmo tempo, que Tennyson deixava clara sua posição de fidelidade em
relação à realeza britânica.
Não podemos nos esquecer que nesse período os termos medievais
estavam em pleno vigor, devido ao medievalismo vitoriano, o poeta, então,
utilizou a expressão servir49 posicionando-se politicamente: o “mais sábio”,
aquele que superou seu próprio mestre, serviu ao rei! E não a qualquer rei,
mas o do reino inglês.
48
TENNYSON. 1954, Op. cit. pp. 290.
A expressão servir vem de servos, que pode significar: conservado, aquele que guarda, escravos. O
conceito moderno de servidão remete às relações sociais e à relação com a terra, onde o que definia o
estatuto do trabalhador rural era a submissão â um senhor ou dominus. Essa relação era de sujeição e, ao
mesmo tempo, de dependência e reciprocidade, ainda que fosse uma reciprocidade desigual ou vertical.
Além disso, o serviço poderia remeter também a uma relação entre senhores, no sentido em que um serve
ao outro, o trabalho de um permite e dá condições para o trabalho do outro.
49
48
Merlin serviu ao rei utilizando sua mágica. Tennyson revelou que o mago
não era um conselheiro comum, mas aquele que superou seu próprio mestre
em encantamentos. É uma remissão aos druidas celtas: personificações de
mágicos, poetas, místicos, profetas e, também, juízes supremos – na esfera
pública e privada – da sociedade a qual estavam inseridos.
Por isso, também, Merlin é o personagem mais próximo das versões
medievais e um dos personagens mais alegóricos de Tennyson. Caracteriza
uma espécie de druida cristianizado, assim como em alguns autores da Idade
Média, dentre eles, podemos citar Geoffrey of Monmouth e Robert de Boron.
Essas características do personagem, entendidas, pelo poeta, como medievais
foram uma das maneiras que Tennyson encontrou para garantir a legitimidade
de suas próprias posições sociais e políticas, as falas de Merlin, não são falas,
são profecias, assim como as do poeta.
Se, na sociedade vitoriana, a voz do poeta era a do profeta (e os poderes
culturais dos trabalhos literários dependiam das argumentações contidas em
suas práticas discursivas), Tennyson encontrou embasamento naquilo que
considerava essencial: a tradição inglesa. A escolha é, em si, reveladora, pois
Merlin não é apenas parte de um conjunto de histórias mitológicas, mas ele
próprio constitui um mito, sua origem está em outra temporalidade e ele
carrega as marcas desses tempos múltiplos pelos quais passou.
Esses tempos existentes em Merlin estão além do medieval e do próprio
século XIX, pois Tennyson vinculou o personagem à magia. Merlin transita
entre o sobrenatural e o temporal, em suas falas, traz colocações complexas e
que não se apresentam de modo objetivo, por isso pode ser considerado uma
das principais alegorias usadas pelo poeta.
Em versões medievais, como a de Robert de Boron, Merlin sofre
metamorfoses, nestas, ele representa tipos sociais com funções especificas na
sociedade. Nesse sentido, a alegoria se apresenta de forma direta, sabemos
de quem o autor está tratando, suas criticas e questionamentos são expostos
para o leitor. O Merlin de Tennyson sempre deixa algum tipo de mistério a ser
decifrado. Por exemplo, o mistério do nascimento de Arthur. O autor lembra,
que foi Bleys, em seus anais, quem contou e registrou tudo que Merlin havia
49
feito. Nesse livro, estava dito que após muitos anos, seria revelado para o leitor
o segredo do nascimento rei – que não foi revelado por Merlin de forma direta.
“...And wrote / All things and whatsoever Merlin did / In one great annalbook, where after-years / Will learn the secret of our Arthur's birth", estava
posto o mistério: a dúvida sobre o nascimento de Arthur. O poeta anunciou que
nem ele e nem o mago revelariam a “verdade” sobre a legitimidade do rei no
decorrer dos idílios. É como se o que importasse para Tennyson, não fossem
os fatos em si, mas seus processos.
O poeta parecia mais preocupado com a trajetória das viagens
vivenciadas em cada idílio50. A disposição em que o autor colocou seus
poemas na última versão da obra Idylls of the King (1889), fez com que os
idílios parecessem tecidos uns nos outros, de maneira entrelaçada,
constituindo homens e mulheres, condutas e culturas, evidenciando o período
áureo e a decadência da sociedade Arturiana. Assim como todas as
sociedades, Camelot teve seu auge, mas seu fim foi constituído pelo poeta
durante o decorrer dos idílios, por meio das ações de todas as personagens.
Nessa trama, Merlin é – além do próprio Arthur – figura central que, desde o
início, sabe que aquela sociedade entraria em decadência.
Assim, o primeiro corpo de Merlin, é o corpo portador da sabedoria51. No
século XIX as ciências tinham ocupado seu lugar na sociedade inglesa. O
corpo tornava-se objeto da ciência. Para autores como Tennyson52, elas
representavam a mecanização, vinculada à indústria que ganhava mais força a
cada dia. Os corpos Eram manuseados através da anatomia, da Biologia e da
fisiologia como algo mecânico, não como lugar do prazer, da dor, do amor, das
paixões, enfim, não como lugar de sensações e percepções.
Quando Tennyson apresentou Merlin como personagem que porta a
sabedoria, referia-se ao orgânico. A ideia de sabedoria estava relacionada com
a antiguidade greco-romana e com o período medieval, não com o cientificismo
50
Idílio é um gênero literário alexandrino e remete a um tipo de poetização que apresenta um desejo de
fuga do mundo urbano para uma sociedade idealizada, normalmente com características bucólicas, que se
encontra no passado.
51
É importante lembrarmos que nos poemas de Tennyson, o uso de metáforas e alegorias é freqüente,
nesse sentido, Merlin representa a alegoria da sabedoria. Sabedoria também expressa nos poemas por
meio dos vestígios do corpo do mago: voz, ausência etc.
52
Cabe a observação de que Tennyson não se posicionava contra os avanços científicos, mas contra as
utilizações meramente “mecanizadas” desse “progresso das técnicas” e das ciências.
50
do século XIX. O sábio, não é o cientista que olha para o corpo como se ele
fosse apenas um complexo mecânico que precisasse ter seus mecanismos
decifrados, para que, como as indústrias, alcançassem o progresso.
Para o poeta, o corpo portador da sabedoria “enxergava” mais do que
qualquer outro, pois sabia que a existência passava não apenas pelos
mecanismos de funcionamento dos órgãos, mas por sensações, não por algo
mecânico, mas humano. O ser humano estava envolvido numa complexa teia
onde
indivíduo
e
mundo
(externo)
constituíam-se,
confundiam-se
e
completavam-se.
As ações humanas estavam diretamente relacionadas com os caminhos
que suas sociedades tomavam. Por isso, para o poeta, era tão importante
conduzir, de alguma maneira, as ações das pessoas na sociedade vitoriana.
Tennyson entendia que as ações desses homens e mulheres poderiam levar a
Inglaterra ao progresso, ou, à decadência.
“(...) Nessa nova perspectiva culturalista, o corpo aparece como resultado
de uma construção, de um equilíbrio estabelecido entre o dentro e o fora, entre
a carne e o mundo. Um conjunto de regras, uma trabalho cotidiano das
aparências, de complexos rituais de interação, a liberdade de que cada um
dispõe para lidar com o estilo comum, com as posturas, as atitudes
determinadas, os modos usuais de olhar, de portar-se, de mover-se compõem
a fábrica social do corpo. (...) Até a própria transgressão manifesta a força do
contexto social e ideológico”53.
Resulta que, para Tennyson, era preciso construir uma cultura permeada
por valores ligados à moral. Seus poemas foram a maneira encontrada para
divulgar e, quem sabe, cultivar valores que pareciam se perder em meio à
sociedade liberal e industrial. Esses valores ligavam-se a uma história que o
poeta considerava tradicional e que passava por outros períodos temporais,
não importando se ela era mítica ou não, o objetivo era o cultivo de ideais
civilizatórios na sociedade em que vivia, era o sentido do medievalismo
vitoriano.
Assim, foi a
personagem de Merlin que
costurou
a teia dos
acontecimentos para a formação de Camelot, a civilização idealizada. O mago
53
CORBIN, A.; COURTINE, J. J.; VIGARELLO, G., 2008. Op. cit. pp. 8 – 9.
51
separou Arthur de uma sociedade corrompida em seus costumes e o entregou
para ser criado por Sir. Anton, velho cavaleiro e amigo do rei Uther.
“... all before his time
Was Arthur born, and all as soon as Born
Deliver’d at a secret postern-gate
To Merlin, to be holden far apart,
Until his hour should come; because the lords
Of that fierce Day were as the lords of this,
Wild beasts, and surely would have torn the child
Piecemeal among them, had they known; for each
But sought to rule for his own self and hand (...)”54.
A ideia de que Arthur não poderia crescer entre os lordes, pode ser
entendida como uma critica a elite inglesa da contemporaneidade do autor. As
expressões Wild beasts e torn the child tem um sentido alegórico. Ao utilizá-las
o poeta realizava uma crítica política e social. Para Tennyson, a elite que
dominava a Inglaterra era um corpo corrompido, selvagem, que governava
segundo suas próprias vontades55. Colocar o futuro rei nesse meio significava
corrompê-lo, despedaçar os valores e bons costumes dos quais Arthur era
portador.
É importante lembrarmos que Tennyson posicionava-se contra as
medidas liberais que predominavam na sociedade inglesa daquele período;
Além disso, entendia algumas medidas, como as reformas parlamentares
inglesas, como possibilidade de atraso, afinal, para o poeta, a nação deveria
assumir o controle social e não ampliar a participação política da população.
Tennyson não concordava com essas mudanças, ele era favorável a
melhoria de vida da população, mas sempre de forma gradual e sem alterações
bruscas da ordem política, por isso, também apoiava a realeza. A ideia de uma
54
TENNYSON. 1954, Op. cit. pp. 290 – 291.
Essa ideia de uma elite corrupta remete, ao mesmo tempo, aos lordes do reino de Uther e à Inglaterra
do século XIX. Além disso, a expressão Wild beasts, não está relacionada aqui com a multidão (como
evidenciamos no primeiro capítulo), o que nos faz entender que a ideia de “bestas”, para Tennyson,
associa-se muito mais a uma postura não-civilizada, não importando se essa postura aparece entre
trabalhadores, multidões, lordes ou liberais.
55
52
realeza forte, em teoria, implicava a diminuição da participação da população.
Aos olhos do poeta, o corpo social civilizado poderia contribuir com a nação,
mas não ocupar o lugar da soberania, que cabia ao Estado.
Portanto, para Tennyson, as mudanças políticas, de características
democráticas, ocorridas na Inglaterra eram evidências de instabilidade.
Provavelmente, as percepções do poeta, sobre seu próprio tempo, contribuíram
para uma busca de tradições que estavam vinculadas com o passado, ainda
que forjado. Se partirmos da afirmação de Hobsbawm: de que as tradições
“são reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a
situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição
quase que obrigatória”56, podemos situar Tennyson num movimento que, por
meio de suas obras, contribuía para a formação da tradição inglesa. Não foi
coincidência, que na década seguinte, os cerimoniais da realeza passaram a
ser encenados com uma nova aura. Era parte da invenção das tradições57.
Nesse contexto, foi Merlin que teceu tempos e sentidos no poema. O
mago, que havia servido ao rei Uther, sabia da legitimidade de Arthur, separou
a criança para que fosse educada por um cavaleiro fiel – Sir. Anton –, e foi
quem apresentou Arthur para ser coroado rei. Ao realizar tais façanhas
transitou entre os tempos: o personagem que esteve, em outros tempos,
servindo a Uther, também serviu a Arthur, mas principalmente, serviu a um
ideal de civilização representado por Camelot.
A construção dessa sociedade só foi possível pela ação do personagem
que ligou os tempos de Uther ao de Arthur: Merlin, que, nesse momento, pode
ser pensado como representação do próprio poeta – no sentido que Tennyson
resgatou e difundiu o que entendia por tradição britânica, para tanto, transitou
entre a Idade Média e o século XIX.
Merlin cumpriu no poema função similar a dos poetas na sociedade
vitoriana. Além de transitar entre os tempos, desvendou o encoberto, zelou
pela existência de uma sociedade ideal. Se, por um lado, Tennyson buscou o
passado medieval para forjar uma tradição a altura das grandezas dos valores
britânicos; por outro lado, utilizou Merlin como aquele que contribuiu para a
56
HOBSBAWM, Eric & RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2008. pp. 10.
57
Termo utilizado por Eric Hobsbawm in: HOBSBAWM, 2008. Op. cit.
53
constituição dessa sociedade idealizada. Para isso, o mago interferiu no
passado através de Uther.
“... Wherefore Merlin took the child,
And gave him to Sir Anton, an old Knight
And ancient friend to Uther; and his wife
Nursed the Young prince, and reared him with her own;
And no man knew. And ever since the lords
Have foughten like wild beasts among themselves,
So that the realm has gone to wreck (...)”58.
As palavras old Knight e ancient friend, remetem à outra temporalidade,
ao passado, tempo em que as “bestas” disputaram o poder até levar aquela
civilização à destruição. Já, o tempo de Arthur, em The Coming of Arthur,
referia-se ao presente, diz Tennyson no mesmo poema: “(...) but now, / This
year, when Merlin (for his hour had come) / Brought Arthur forth, and set him in
the hall, / Proclaiming, ‘Here is Uther’s heir, your king”59. Foi assim que o poeta
mostrou Merlin como o sábio que transitou e interferiu no passado e no
presente e revelou, mais uma vez, sua concepção de história.
As sociedades tem seu início, alcançam seu apogeu e se perdem, até
atingirem a destruição. Assim foi com a sociedade governada por Uther, assim
seria com Camelot e quiçá com a própria Inglaterra de Tennyson, caso sua
população não fosse educada através de modelos de comportamento
civilizatórios. Merlin, concomitantemente, contribuiu para a fundação de
Camelot e para levar condutas que Tennyson considerava ideais, ainda assim,
a decadência das sociedades, seja a de Uther ou a de Arthur, ocorreu devido à
conduta humana.
As ações dos indivíduos determinavam, juntamente com a história, o
curso dos acontecimentos. Para o poeta, a história era cíclica e as sociedades
estavam fadadas à decadência, mas essa decadência ocorria por meio das
ações de homens e mulheres. No caso da sociedade que Uther governou,
58
59
TENNYSON. 1954, Op. cit. pp. 291.
TENNYSON. 1954, Op. cit. pp. 291.
54
Tennyson foi claro: os lordes lutaram entre si como bestas selvagens, o que
levou o reino à destruição. A disputa pelo poder, a vontade de cada lorde de
realizar os próprios desejos, o pensar apenas em si, provocou o fim daquela
sociedade. Era a forma como o poeta criticava as ações individualistas da
Inglaterra do século XIX, era a evidência do medo de que as ações
consideradas, pelo poeta, bárbaras, não civilizadas, pudessem levar ao
fracasso a nação inglesa.
Por isso, Tennyson valorizou uma conduta “civilizatória”, o ato de servir.
Merlin, corpo portador da sabedoria, entregou Arthur para que fosse criado por
Sir Anton e por sua esposa. Anton foi colocado por Merlin na posição de
vassalo leal, foi aquele que serviu Uther como cavaleiro e como amigo. Ao
descrever essas características de Anton, o poeta destacou parte do que
entendia como modelos civilizados de comportamento: amizade e lealdade.
Aqui, entendemos também, um dos motivos pelos quais Tennyson buscou a
representação do ideal de civilização na Idade Média. Foi nesse período da
história que a ideia de fidelidade e do servir se fez presente. O medievalismo
vitoriano serviu de base para que o poeta cultivasse, por meio das
personagens lendárias, os comportamentos ideais.
O corpo era entendido como receptáculo das ameaças que poderiam
pesar sobre a sociedade, lugar de todo desregramento e, portanto, da eventual
decadência. Era preciso controlá-lo. Para isso, foram utilizadas várias formas:
as vozes educadoras dos poetas e o seu foco em modelos ideais de
comportamento, as descobertas do funcionamento dos órgãos do corpo e, até
mesmo, as teorias que foram incorporadas às ciências sociais naquele período,
como o darwinismo.
A
representação
do
corpo
no
século
XIX
vinculava-se,
concomitantemente, ao corpo como um organismo animado pelas leis da física
e da química e com o corpo entendido como organismo social. Ainda que o
corpo estivesse inserido em uma genealogia familiar, ele não estava isolado, o
que significava que suas vivências poderiam modificar seu comportamento, sua
moral. Suas ações estavam sujeitas às influências da sociedade, fator
evidenciado por Tennyson ao narrar como o rei Arthur foi retirado do meio em
que seus pais viviam. Talvez, possamos até dizer que, para o poeta, o Homem
55
não nascia bom, precisava ser educado, mas, a sociedade poderia corrompê-lo
ainda mais.
Para Tennyson, as ações individuais deveriam ser pensadas como parte
do social, com o objetivo de colaborar com o bom e harmônico funcionamento
de um corpo maior – o corpo social60. Por esse motivo, cada um dos indivíduos
deveria ser educado para que não fosse corrompido pelos maus costumes que
pareciam prevalecer, na visão do poeta, na Inglaterra do século XIX. Para isso,
os sentidos deveriam ser disciplinados.
Dentre esses sentidos, o olhar apresentava um grande perigo. Era preciso
ajuda para discipliná-lo, os gestos de vivacidade, por exemplo, eram
controlados. Era necessária a moderação, principalmente para as mulheres. A
forma como se sentava, ficava em pé ou caminhava, precisava ser controlada.
Os gestos eram objeto de permanente vigilância. Considerando o perigo do
olhar, era necessário lutar contra a vontade de ver e de ser vista. Eram formas
de comportamento que estavam carregadas de moralidade.
O corpo expressivo precisava ser velado. Ainda que existissem as
tentativas de decifrá-lo mecanicamente, seja por meio da fisiologia, medicina,
biologia ou anatomia, suas características orgânicas e, portanto, vivas, eram
uma ameaça para a instauração e permanência de costumes ligados à moral
vitoriana. Ao representar o corpo e as funções que o mesmo deveria
desempenhar socialmente, Tennyson tinha em suas mãos um leque de
possibilidades.
As representações não alcançam as experiências vividas, experiências
que estão relacionadas diretamente com os sentidos humanos e com as
percepções de cada um dos indivíduos sobre suas vivências e sobre sua
contemporaneidade. Mas, por meio delas, o poeta pode destacar os valores
que considerava essenciais para o bom funcionamento social. Nesse sentido,
tentou aproximar poesia e vida. Seria mais fácil atingir seus leitores na medida
em que seus poemas estivessem relacionados com as experiências dos
indivíduos. De maneira que o ato de cultivar, de tentar constituir uma cultura
60
Para Tennyson, o corpo (ou os corpos) era entendido como parte da sociedade, de forma que suas
ações, não-ações e posturas deveriam buscar o bem da coletividade, a ordem e o progresso da nação.
56
relacionada à civilização, fosse incutido nos hábitos de seus leitores. Esse seria
o resultado da junção entre poesia e cultura oficial.
No período vitoriano, a maior parte dos escritores literários e de seu
público acreditava que as personagens deveriam ser as mais realistas
possíveis. A ficção tinha como função evidenciar e explicar a realidade, por
mais fictícia que fosse a obra. Os personagens deviam comportar-se como os
homens e mulheres do período e o tema principal dos escritores eram aspectos
singulares da vida social.
A conduta de Merlin, como a de Tennyson, estava relacionada à de quem
serviu ao rei como vassalo leal. O personagem, não hesitou em utilizar sua
magia a favor de Arthur e se preocupou em posicionar-se como aquele que
esteve ao lado do rei, seja Uther ou Arthur, ele serviu ao reino inglês. Nesse
sentido, por mais incomuns que fossem os personagens, como Merlin, eles
estavam enraizados culturalmente naquela sociedade e revelavam costumes e
maneiras de agir.
“Yet Merlin thro’ his craft,
And while the people clamoured for a king,
Had Arthur crowned (...)”61.
Ou ainda:
“And there I saw mage Merlin, whose vast wit
And hundred winters are but as the hands
Of loyal vassals toiling for their liege”62.
Quando Merlin coroou Arthur, estava a serviço do rei inglês, mas,
principalmente, estava a serviço da nação inglesa. Ainda que Arthur fosse o rei
que personificou as condutas consideradas ideais por Tennyson, o mago já
havia servido Uther, como vassalo e amigo, essas características indicam que
Merlin não servia aos reis por eles mesmos, mas porque eram representantes
61
62
TENNYSON. 1954, Op. cit. pp. 291.
TENNYSON. 1954, Op. cit. pp. 292.
57
da nação, Merlin servia a realeza britânica. Enquanto indivíduo preocupava-se
com o funcionamento de sua sociedade. Através de Merlin, Tennyson
evidenciou que o corpo social poderia contribuir para que a Inglaterra
caminhasse para o progresso, desde que cada um pensasse não em suas
próprias vontades, mas no desenvolvimento social.
Na obra de Tennyson, um dos indivíduos mais indicados para trabalhar a
favor da nação inglesa era Merlin, que foi representado com uma vasta
inteligência, cem invernos e com mãos de vassalos leais. É possível
compreendermos que as mãos de Merlin fossem representadas, como mãos
de vassalos reais. Durante todo o idílio, como dissemos, ele serviu a realeza,
esse é um dos grandes valores civilizatórios que cercam a figura do mago em
The Coming of Arthur. Também entendemos a ênfase do o autor na grandiosa
inteligência e destreza do personagem. Lembremos que desde o início do
poema Merlin foi relacionado com a sabedoria. Mas, por que teria Tennyson
representado o corpo do mago como o corpo que experimentara cem invernos?
Podemos indicar alguns motivos prováveis: a ideia de cem invernos
poderia ser relacionada ao tempo. Merlin além de transitar entre tempos,
também é aquele que carrega os aprendizados, as bagagens de idílios
vivenciados em outros períodos, nesse sentido, a expressão hundred winters,
estaria relacionada com as marcas temporais postas no poema por Tennyson.
Entretanto, não podemos descartar outra possibilidade, a ideia das
estações do ano. O poeta dividiu a obra Idylls of the King de acordo com as
estações, quando Camelot vivenciou tempos áureos era primavera, sua queda
relacionou-se ao inverno. Por que estaria Merlin vinculado com o inverno?
Nossa hipótese é de que o inverno pode representar a decadência, mas
também anunciar a restauração. Não podemos nos esquecer de que as
alegorias através das quais Tennyson representou o corpo de Merlin se
modificavam de acordo com as situações expressas pelo autor, nesse sentido,
o corpo de Merlin poderia ser portador de cem invernos porque vivenciou
outros períodos, presenciou a decadência de outras sociedades (como a de
Uther) e, ao mesmo tempo, porque trouxe novamente a esperança da
restauração social.
58
As ideias de decadência e de restauração social estavam vinculadas ao
medievalismo vitoriano. Para autores daquele período, como Thomas Arnold e
o próprio Tennyson, a tradição vitoriana estava na Idade Média. Porém,
movimentos como Renascimento, Reformas Religiosas, filosofia racionalista do
século XVIII, revolução Francesa e Industrial e as reformas parlamentares – no
caso da Inglaterra – provocaram um rompimento com a antiga ordem europeia.
Assim, autores como Carlyle, Ruskin e Thomas Arnold, relacionavam a
decadência com o modo de vida do mundo feudal. Era a decadência ligada à
perda do que entendiam por tradição inglesa.
Na Inglaterra, no final do século XIX, a sociedade agrícola e feudal, tinha
sido substituída pela democrática e industrial. As mudanças sociais estavam
intrinsecamente ligadas à economia. Banqueiros e industriais, destacaram-se
econômica e politicamente e realizaram as reformas parlamentares; essas, por
sua vez, ampliaram a participação popular, mas, principalmente, ampliaram a
participação política da classe média. O antigo sistema aristocrático foi
substituído pelo laissez-faire. Não foi por coincidência que por volta de 1830,
Southey e Macaulay, relacionaram o mundo dos negócios e da competição
ilimitada a uma batalha entre o conservadorismo e o liberalismo.
Em 1869, quando Tennyson escreveu The Coming of Arthur, a batalha já
parecia
vencida,
o
liberalismo
predominava
em
terras
inglesas.
Concomitantemente, valores, considerados pelo poeta, antigas certezas e
seguranças, não pareciam tão distantes, havia uma possibilidade de
reconstrução das tradições e, esta, era uma necessidade primordial. Nesse
sentido, a mesma sociedade que sofreu a decadência, portava a restauração.
Assim, a imagem do corpo de Merlin, representado por cem invernos, é
mais uma alegoria. Merlin portava a decadência, pelo fato de remeter ao
inverno, ao mesmo tempo, portava a restauração, pois o inverno sempre
antecede a primavera. Foi em personagens medievais, que Tennyson buscou
os valores, as tradições, que constituíam, para ele, um ideal de civilização e,
portanto, de restauração.
No Memoir escrito por Arthur Hallam (filho do poeta), Tennyson disse: “I
am old and I may be wrong, for this generation has assuredly some spirit of
chivalry. We see it in acts of heroism by land and sea, in fights against the slave
59
trade, in our Arctic voyages, in philanthropy, etc. The truth is that the wave
advances and recedes. I tried in my ‘Idylls’ to teach men these things, and the
need of the ideal”63.
Assim, o poeta expressou claramente que ainda via naquela geração, na
sua própria contemporaneidade, algum espírito de cavalaria – mais um termo
relacionado
ao
medievalismo
vitoriano.
Esse
espírito
representava
a
possibilidade de construir e resgatar os valores que Tennyson considerava
essenciais, ou como ele mesmo disse, era preciso ensinar, era preciso fazer
proliferar um ideal. E o poeta tentou evidenciar esse ideal por meio de seus
Idylls.
Dessa maneira, Merlin cumpriu na obra Idylls of the King função similar ao
do poeta na sociedade vitoriana. Foi conselheiro, ensinou até mesmo a
realeza. Merlin presenciou o momento em que Excalibur foi dada para Arthur.
E, além disso, foi o feiticeiro que orientou o rei sobre como agir.
“There likewise I beheld Excalibur
Before him at his crowning borne, the sword
That rose from out the bosom of the lake,
And Arthur row’d across and took it – rich
With jewels, elfin Urim, on the hilt,
Bewildering heart and eye – the blade so bright
That men are blinded by it – on one side,
Graven in the oldest tongue of all this world,
“Take me,” but turn the blade and ye shall see,
And written in the speech ye speak yourself,
“Cast me away!” And sad was Arthur’s face
Taking it, but old Merlin counsell’d him,
“Take thou and strike! The time to cast away
Is yet far-off”. So this great brand the king
Took, and by this Will beat his foemen down”64.
63
TENNYSON, Hallam. Alfred Lord Tennyson, a memoir by his son – vol II. New York: The MacMillan
Company, 1889. pp. 337.
64
TENNYSON. 1954, Op. cit. pp. 292.
60
A presença e, principalmente, os conselhos de Merlin no momento em
que Arthur recebeu Excalibur são de extrema relevância. A espada pode ser
considerada alegoria da ordem, da lei e da justiça. E foi Merlin, representado
pela velhice (old Merlin), que orientou Arthur: “Take thou and strike”. Aqui, mais
uma vez, a voz juntamente com a imagem do velho, expressou o corpo. Esta
ideia pode representar tanto a sabedoria do mago, por sua idade avançada, um
valor que também estava relacionado à sociedade medieval, como também
pode estar relacionada àquele que sempre estava junto da realeza desde os
velhos tempos.
Então, Merlin, cujo corpo estava marcado pelo que era antigo, fosse em
idade, fosse
pelos costumes e valores considerados medievais – como o
serviço –, orientou que Arthur não apenas tomasse a espada, mas que
golpeasse. A voz, como atributo principal do corpo que porta a sabedoria,
orientou que o rei lutasse. É exatamente isso que fez Arthur. Tomou o símbolo
da realeza, símbolo que representou nesse momento do idílio a soberania real,
e jurou derrotar seus inimigos, por sua própria vontade – “...and this will beat
his foemen down”.
Se, através dos seus idílios, Tennyson tentava ensinar valores para a
sociedade em que viveu, nesse fragmento expressou seu ideal político. Arthur
não ampliou a participação da população de seu reino por meio de votos, mas
decidiu por sua própria vontade derrotar seus inimigos. Foi, ocupando o lugar
de rei, portanto, de soberano, e talvez possamos até dizer, ocupando o lugar
da nação, que decidiu sobre o que fazer com o reino. O poeta expressou o
governo que considerava ideal: conservador, sem amplas participações
populares em decisões políticas, mas que buscava o progresso de seu reino,
ainda que para isso, precisasse aniquilar seus inimigos. Era o corpo
governamental como força e liderança do corpo social.
Paralelamente, a fala de Merlin anunciava o fim de Camelot. Quando o
mago disse para Arthur que o tempo de arremessar a espada ainda estava
distante, ele não disse que esse tempo não chegaria, a decadência da
sociedade arturiana era tão certa quanto seu nascimento. O poeta evidenciou
na origem daquela sociedade, no momento em que Arthur tornou-se um rei –
que Camelot teria também seu fim, mas antes, marcou o início dessa
61
sociedade com a alegoria da espada “Before him at his crowning borne, the
sword”. A soberania marcava, desde o início, o reinado de Arthur.
Era mais um indício de que Merlin representava a figura do sábio. Que
sua função aproximava-se da função dos poetas na sociedade inglesa do
século XIX; o mago era quem enxergava além do óbvio, ele conhecia e poderia
até transitar por toda sociedade sem ser visto. Quando Bellicent, irmã de
Arthur, expôs para o rei Leodegran a legitimidade de seu irmão, disse em
relação à primeira vez que Arthur foi ajudá-la, que não sabia se Arthur havia
sido levado por Merlin, quem, “dizem”, pode caminhar sem ser visto.
“Or brought by Merlin, Who, they say, can walk
Unseen at pleasure (...)”65.
O excerto do poema remete a duas evidências. A primeira estava ligada a
dúvida de Bellicent em relação à ação de Arthur. Ela não sabia se ele tinha ido
consolá-la sozinho, ou se foi levado por Merlin, pois naquela sociedade as
pessoas sabiam que o conhecedor de tudo o que se passava era Merlin. A
segunda vinculava-se com a possível invisibilidade do mago. As palavras “they
say”, mostram a dúvida. Não era possível afirmar que Merlin realmente
pudesse andar à vontade sem ser visto, mas sua sabedoria e a forma clara
como enxergava os acontecimentos sociais, indicavam essa possibilidade.
A representação de Merlin nesse momento da narração, também, estava
ligada à função que Tennyson dava aos poetas da Inglaterra de seu tempo.
Teria Merlin, um corpo que pudesse caminhar sem ser visto e, por esse motivo,
sabia de tudo o que se passava? A resposta não importa. O que nos interessa
aqui é a possibilidade do mago exercer controle sobre a invisibilidade do seu
corpo.
As maneiras como os poetas enxergavam a sociedade, na Inglaterra do
século XIX, já dissemos antes, eram consideradas mais amplas e complexas
do que as das outras pessoas. Entendemos que o corpo de Merlin carregava a
possibilidade da invisibilidade, justamente, porque estava relacionado ao corpo
do poeta – corpo que trazia marcas de invisibilidade. Essas marcas estavam na
65
TENNYSON. 1954, Op. cit. pp. 292.
62
voz narrativa do poeta e em suas visões sobre o mundo. E, por isso, o traço
mais forte do poeta era a voz. Se os poemas poderiam ser recitados, ouvir a
voz, não necessariamente seria ver o corpo do poeta, e sim se deparar com
uma presença marcada pela invisibilidade – o corpo do poeta apresentava-se
pela letra e pela voz, não pelo físico.
Dessa maneira a voz de Merlin marcou o idílio, assim como as vozes dos
poetas tentavam marcar a sociedade vitoriana. Como sábio, o mago detinha os
conhecimentos sobre a origem de Arthur, mas não respondeu claramente qual
seria essa “verdadeira” origem. Quando Bellicent indagou ao mago se a história
que Bleys havia contado sobre a origem do rei era a “verdade”, Merlin,
respondeu com charadas:
"But let me tell thee now another tale:
For Bleys, our Merlin's master, as they say,
Died but of late, and sent his cry to me,
To hear him speak before he left his life.
Shrunk like a fairy changeling lay the mage;
And when I entere’d told me that himself
And Merlin ever served about the King,
Uther, before he died; and on the night
When Uther in Tintagil past away
Moaning and wailing for an heir, the two
Left the still King, and passing forth to breathe,
Then from the castle gateway by the chasm
Descending thro’ the dismal night--a night
In which the bounds of heaven and earth were lost—
Beheld, so high upon the dreary deeps
It seeme’d in heaven, a ship, the shape thereof
A dragon wing’d, and all from stem to stern
Bright with a shining people on the decks,
And gone as soon as seen. And then the two
Dropt to the cove, and watch’d the great sea fall,
Wave after wave, each mightier than the last,
63
Till last, a ninth one, gathering half the deep
And full of voices, slowly rose and plunged
Roaring, and all the wave was in a flame:
And down the wave and in the flame was borne
A naked babe, and rode to Merlin's feet,
Who stoopt and caught the babe, and cried, 'The King!
Here is an heir for Uther!' And the fringe
Of that great breaker, sweeping up the strand,
Lash’d at the wizard as he spake the word,
And all at once all round him rose in fire,
So that the child and he were clothed in fire.
And presently thereafter follow’d calm,
Free sky and stars: 'And this same child,' he said,
'Is he who reigns; nor could I part in peace
Till this were told.' And saying this the seer
Went thro’ the strait and dreadful pass of death,
Not ever to be question’d any more
Save on the further side; but when I met
Merlin, and asked him if these things were truth—
The shining dragon and the naked child
Descending in the glory of the seas—
He laugh’d as is his wont, and answer’d me
In riddling triplets of old time, and said:
"'Rain, rain, and sun! a rainbow in the sky!
A young man will be wiser by and by;
An old man's wit may wander ere he die.
Rain, rain, and sun! a rainbow on the lea!
And truth is this to me, and that to thee;
And truth or clothed or naked let it be.
Rain, sun, and rain! and the free blossom blows:
Sun, rain, and sun! and where is he who knows?
64
From the great deep to the great deep he goes”66.
A narração indica uma origem mitológica do rei Arthur. Assim, como as
“civilizações” grandiosas – como Roma, por exemplo, Camelot e seu rei, tinham
uma origem mitológica. Ao relatar essa origem, Tennyson tentou obliterar a
concepção de Arthur relacionada a algumas fontes medievais, como a de
Robert de Boron. Nesta, Arthur teria sido concebido numa noite em que o
marido de Ygerne estava no campo de batalhas. Merlin utilizou filtros mágicos,
fazendo com que Uther ganhasse a aparência do duque e, assim, o rei
concebeu Arthur com Ygerne.
Tennyson não utilizou em sua narração sobre a concepção de Arthur
filtros mágicos, nem explicou exatamente como Arthur era filho de Uther e de
Ygerne. O poeta refutou essa concepção baseada numa relação adúltera e,
mais do que isso, trouxe a dúvida para seus leitores. Arthur poderia ter uma
origem mítica, que não estava relacionada com o adultério. Fator que pode
apresentar mais uma marca de alguém que estava constituindo o que entendia
por tradição, nesse sentido, a Inglaterra não poderia ter um rei cuja origem
estivesse ligada a uma relação desvinculada da moral.
Até na origem mítica, Merlin presenciou a chegada de Arthur. Foi o
feiticeiro que pegou o bebê e o aclamou rei e herdeiro de Uther. Dessa
maneira, o corpo de Merlin, parece se misturar ao corpo do poeta – como
aquele que constituiu e narrou a história. Independente da origem de Arthur foi
sempre Merlin quem o colocou como rei, contribuindo para a ascensão de
Camelot. No poema, o mago montou a trama da narração, assim como, as
mãos do poeta, ao escrever, deram vida às personagens e teceram um fio
narrativo.
Como personagem que constrói a narrativa, Merlin não esclareceu sobre
a verdadeira origem do rei. Mas utilizou enigmas para responder Bellicent. O
verso que se repete nesses enigmas é: “Rain, rain and Sun! A rainbow in
the...!” Essa ideia pode estar relacionada ao fato do arco-íris ser considerado a
aliança entre Deus e os homens. Assim, por meio da voz de Merlin, o poeta
lembra-nos que tal aliança ainda se faz presente.
66
TENNYSON. 1954, Op. cit. pp. 293.
65
Além disso, Merlin também questionou: “and where is he who knows?”
Onde estaria aquele que sabe a “verdade”? Em relação à legitimidade do rei,
apenas respondeu: “From the great deep to the great deep he goes.” O que
significava que a origem e o fim de Arthur continuariam envoltos por dúvidas,
encantamentos e enigmas. Entretanto, dois versos nos chamam muito a
atenção na fala de Merlin: “And truth is this to me, and that to thee / And truth or
clothed or naked let it be”. Utilizando a fala do personagem, Tennyson
questionou o que seria a “verdade”. E a verdade, segundo o poeta, é relativa.
Não é a mesma para todos, ainda assim, verdade ela é. Qual seria então a
verdade para Tennyson?
Para o poeta, a “verdade” parecia se relacionar ao fato de que o mundo
não poderia ser redimido por um homem nem por um “deus”. Ao mesmo
tempo, existia um corpo social, que estava sujeito à mudanças biológicas e,
parte dessas mudanças, constituía o desenvolvimento moral. Não havia um
caminho para as almas, mas havia um caminho para os corpos em sociedade,
essa era a “lei da evolução” humana.
As ideias de evolução e progresso foram utilizadas pelo poeta para
defender mudanças graduais e seguras, um ideal burkeano. O poeta temia
violentas revoluções, mas não temia graduais “evoluções”. Para Tennyson, as
mudanças liberais não apenas minaram as velhas lealdades e fidelidades,
como também transformaram as relações humanas em relações meramente
econômicas, onde os elementos mais importantes passaram a ser dinheiro e
riquezas.
O poeta defendia as doutrinas de seu tempo sobre a história relacionada
aos processos orgânicos. Nessa maneira de olhar para a história, as
sociedades, como todos os outros organismos, estariam sujeitas à decadência.
Foi o que Tennyson, através da voz de Merlin, anunciou em The Coming of
Arthur. Camelot, enquanto alegoria do ideal de civilização em Tennyson estava
condenada ao fim.
O próprio Merlin também teve seu “fim”. No excerto a seguir, retirado do
poema Merlin and Vivien, o mago que era o mais famoso homem daqueles
tempos, justamente por sua sabedoria – conhecia as “artes” e era também
“Bardo” – foi aprisionado por Vivien, devido a um feitiço que ele mesmo
66
ensinou para ela. Como um homem tão sábio se deixou prender pelas
artimanhas da ardilosa Vivien?
“Him, the most famous man of all those times,
Merlin, who knew the range of all their arts ,
Had built the King his havens, ships, and halls,
Was also Bard, and knew the starry heavens;
The people called him Wizard (...);”67
O objetivo de Vivien era tornar-se mais poderosa do que Merlin, então ela
dissimulou sentir um grande amor por Merlin, seguindo-o pela floresta de
Broceliande quando lá, ele se refugia em um momento de melancolia.
“With such a fixt devotion, that the old man,
Though doubtful, felt the flattery, and at times
Would flatter his own wish in age for love,
And half believe her true: for thus at times
He wavered;”68
Merlin é, mais uma vez, representado pela imagem de um “velho”, que
remete a ideia de sábio. Na tradição medieval, o velho era aquele que deveria
ser escutado, a velhice remetia a experiência dos mais variados tipos de
vivência. Ainda assim, o “velho homem”, mesmo em dúvida, deixou-se levar
pela “bajulação” de Vivien e por seu próprio desejo.
Entendemos que as expressões flattery e own wish, relacionam-se a duas
ideias relevantes: a primeira trata-se da questão das aparências, Tennyson
aponta em seu poema, que alguns indivíduos carregam máscaras sociais,
fingindo posturas e comportamentos que não possuem realmente; a outra
vincula-se à escolha em agir de acordo com os próprios desejos. Ambas são
colocadas pelo poeta, como valores destrutivos. Até Merlin, em seu momento
67
68
TENNYSON. 1954, Op. cit. pp. 356.
TENNYSON. 1954, Op. cit. pp. 356.
67
de dúvida sobre o aparente amor de Vivien e sobre agir de acordo com sua
própria vontade “vacilou” (wavered).
O feiticeiro não seguiu o modelo ideal de civilidade, um modelo onde seu
corpo deveria estar submetido ao controle dos impulsos carregados de
emoção. Render o corpo às paixões significava, para o poeta, entregar-se para
a destruição e, pior ainda, significava atrapalhar o funcionamento social. A
conduta individualista de Merlin resultou em seu aprisionamento, servindo de
exemplo para comportamentos que deveriam ser afastados em nome do bem
do próprio individuo e em nome de um bem maior: a nação.
O poeta evidenciava, mais uma vez, que as atitudes que considerava
individualistas iam de encontro com a decadência, seja pessoal ou social.
Assim, no âmbito social, a democracia apresentava um perigo para Tennyson,
ela parecia favorecer a liberdade individual, parecia ir de encontro ao que disse
Tocqueville: “(...) Estai convencidos de que, quando cada homem crê poder
decidir sozinho da forma de uma vestimenta ou das conveniências de sua
linguagem, não hesitará tampouco em julgar tudo por si mesmo; e quando
pequenas e insignificantes convenções sociais são tão mal observadas, contai
que uma importante revolução se operou nas grandes (...); é bom, doravante,
pensar em soldar os elos sociais que de toda parte ameaçam romper-se; se
não se pode mais coagir todos os homens a fazerem as mesmas coisas, é
preciso encontrar um meio de fazê-los desejá-las por si mesmos”69.
Tennyson parecia tentar resgatar os costumes que se perdiam na
Inglaterra do século XIX. O poeta tentou, com sua poesia, restabelecer e
consolidar os “elos sociais” que, para ele, se rompidos ameaçariam a ordem e
o progresso da sociedade, esses “elos” supunham o controle do próprio corpo.
Era como se existisse uma necessidade de constituir uma cultura nacional com
base em modos de ser que provêm dos sentimentos, que são orgânicos, e que
se submetem a regras comportamentais como se fossem leis, essas regras
comportamentais estavam relacionadas com as “tradições inventadas”70.
69
TOCQUEVILLE, A. In: HAROCHE Claudine. Da palavra ao gesto. Campinas, SP: Papirus, 1998. pp.
20.
70
“O termo ‘tradição inventada’ é utilizado num sentido amplo, mas nunca indefinido. Inclui tanto as
‘tradições’ realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram
de maneira mais difícil de localizar num período limitado e determinado de tempo – às vezes coisa de
poucos anos apenas – e se estabeleceram com enorme rapidez”. In: HOBSBAWM. 1997. Op. cit. pp. 9.
68
Para Claudine Haroche, “A grande inquietação do século XIX reside (...),
no enigma que a identidade e os sentimentos alheios constituem. Impossível
não fazer referência aqui à narrativa nostálgica que faz Rousseau dessa
natureza original para sempre perdida, ‘antes que a arte tenha moldado nossas
maneiras’; nenhuma inquietação, então, nenhuma incerteza diante da
personalidade do outro: ‘A diferença dos procedimentos antecedia a dos
caracteres. A natureza humana, no fundo, não era melhor; mas os homens
encontravam
segurança
na
facilidade
com
que
se
penetravam
reciprocamente”71.
Entendemos que o “enigma” relacionado com a “identidade e os
sentimentos alheios” pode até não ser a “grande inquietação do século XIX”, já
que existiram inúmeras “grandes inquietações” nesse período histórico, como a
contraposição entre orgânico e mecânico, ricos e pobres, campo e cidade, belo
e sublime podem ser pensados como inquietações que estão presentes no
século XIX, mas é preciso destacar que tanto a ideia de identidade, quanto os
sentimentos, estavam vinculados ao corpo – se este for pensado como local de
sensações e de percepções –, fator que evidenciava o quanto, para cientistas e
escritores do período, era preciso conhecer, analisar e, se possível, adestrar os
comportamentos.
Não foi por acaso que o corpo tornou-se objeto de estudo das ciências. O
corpo foi associado com o poder-labor72, pois era entendido como lugar onde
energia poderia ser convertida em produção. A metáfora do corpo humano
como motor, ou máquina, contribuiu para a ciência pensar em uma sociedade
que pudesse conservar, desdobrar e expandir as energias do corpo do
trabalhador – harmonizar os movimentos do corpo com os da máquina
industrial.
Se o corpo foi entendido como motor, então, tornava-se necessário
diminuir, ou até mesmo, erradicar a diferença entre o corpo (orgânico) e o
mecânico: a máquina nunca para de produzir, já o orgânico está submetido à
fadiga. Colocar fim ao cansaço parecia ser o último obstáculo para o progresso.
71
ROUSSEAU, J.J. citado por: HAROCHE. 1998. Op. cit. pp. 25.
O conceito de poder-labor enfatiza a amplitude e o desenvolvimento de energia como sendo oposta à
vontade humana, ao propósito moral e até mesmo à vontade técnica. Por isso, coube ao corpo como
metáfora da máquina. Sobre o tema ver: RABINBACH. 1992. Op. cit.
72
69
Dessa maneira, o corpo conservaria e converteria energia em trabalho, seria o
motor humano, contribuindo com o desenvolvimento do industrialismo liberal.
Dessa forma, o corpo era visto como força produtiva e instrumento
político. O ócio passou a ser entendido como se fosse um “pecado”, foi
relacionado aos pobres e à degradação. O trabalho ganhou um valor moral. E o
Estado tornou-se a expressão visível do “elo” que agrupava a sociedade em
geral. Tennyson se opunha ao modelo de Estado liberal-democrático. Nesse
modelo de Estado o corpo apareceu como metáfora da máquina. O corpo era o
lugar do poder-labor, já para o poeta o corpo era orgânico, continha um
turbilhão de emoções, que se não fossem controladas, poderiam levar a
sociedade à decadência.
O escritor não valorizava o Estado liberal como melhor “elo” entre os
homens em sociedade, pois na Inglaterra, o conceito de nação associou-se ao
de contrato social. Se na formação do Estado moderno, a soberania se
concentrava nas mãos do “príncipe”, aos poucos, com a ascensão política da
burguesia, consolidou-se uma ideia de nação, que desvinculou o conceito de
nação da figura do rei para os vários corpos dos indivíduos. Estes passaram a
ser vistos também como corpos políticos, que passariam a atuar em decisões
sobre o futuro da Inglaterra.
Para melhor compreendermos essa subjetividade relacionada à nação
liberal, lembremos de Locke quando diz que “embora os homens quando
entram em sociedade abandonem a igualdade, a liberdade e o poder executivo
que tinham no estado de natureza, nas mãos da sociedade, para que disponha
deles por meio do poder legislativo conforme o exigir o bem dela mesma,
entretanto, fazendo-o cada um apenas com a intenção de melhor se preservar
a si próprio, à sua liberdade e propriedade..., o poder da sociedade ou o
legislativo por ela constituído não se pode nunca supor se estenda mais além
do que o bem comum, mas fica na obrigação de assegurar a propriedade de
cada um, provendo contra os três inconvenientes acima assinalados, que
tornam o estado de natureza tão inseguro e arriscado. E assim sendo, quem
tiver o poder legislativo ou o poder supremo de qualquer comunidade obriga-se
à governá-la mediante leis estabelecidas, promulgadas e conhecidas do povo,
e não por meio de decretos extemporâneos; por juízes indiferentes e corretos,
70
que terão de resolver as controvérsias conforme essas leis; e a empregar a
força da comunidade no seu território somente na execução de tais leis, e fora
dele para prevenir ou remediar malefícios estrangeiros e garantir a sociedade
contra incursões ou invasões. E tudo isso tendo em vista nenhum outro objetivo
senão a paz, a segurança e o bem público para o povo”.
Assim, o Estado liberal (em teoria) estava relacionado com dois
importantes elementos: um, assegurar a paz e o bem público para a população,
outro, garantir, prevenir e remediar a sociedade de malefícios estrangeiros.
Nesse sentido, uma comunidade com cultura e histórias próprias não constituía
de imediato uma nação, pois, para tanto, era essencial uma “vontade coletiva”,
uma nacionalidade que estivesse relacionada com decisões de caráter político
e, justamente por isso, a ideia liberal de nação deriva do conceito de cidadania.
Quando
os
Estados
Modernos
se
formaram
a
nação
estava
intrinsecamente vinculada com as monarquias, a burguesia ainda precisava do
apoio e da proteção dos reis absolutistas e do Estado (vinculados totalmente a
esses reis). Contudo, quando o Estado nacional tornou-se necessidade política
e econômica para o desenvolvimento do liberalismo, o corpo do rei deixou de
ser essencial na relação com a nação. Agora, era necessário investir no
controle e na mecanização do corpo social, pois o aumento gradual da
participação dos indivíduos na vida política inglesa deveria, para os liberais,
evitar revoluções.
A ampliação da participação política representava para Tennyson um
perigo para a civilização, pois para o autor, o corpo era orgânico, estando
assim, suscetível às paixões e às emoções que escapam ao estado racional.
Assim, o poeta relacionava à nação a ideia de uma cultura ligada a uma
“comunidade” que se apoiava num passado comum – no caso de Tennyson, a
Idade Média. Diante disso, entendemos que, para Tennyson, a formação de
uma cultura nacional relacionava-se com a invenção de tradições, que se
contrapunham ao Estado liberal burguês, pois sob essa forma de Estado
predominam as relações econômicas e há uma contradição entre individual e o
coletivo73.
73
A contradição do Estado liberal burguês é a ideia de que, ao mesmo tempo que existe uma
supervalorização do individualismo, existe a formação de uma cultura de massa que homogeneíza todas
71
Essa contradição entre o individual e o coletivo reside no fato de que “(...)
o entendimento burguês de nação em sua própria essência é ambíguo, possui
em potencial as características universalista e particularista, e esta última
acaba prevalecendo sempre que o Estado atua como comitê dos negócios
comuns da burguesia; a capacidade de agregação das energias populares não
deixa de se dar quando estes negócios parecem representar a única solução
possível e ganham a adesão da vontade política ou emocional das massas”74.
Nesse
contexto,
parecia
que
Tennyson
via
na
educação
dos
comportamentos e dos sentidos a possibilidade de constituir ou de se
aproximar da sociedade ideal. Com seus poemas, tentou contribuir para a
formação de uma civilização que tivesse ideais permeados por uma moral
cavaleiresca. A moral, mantenedora dos costumes, ensinaria a maneira de
governar a si mesmo, utilizando a razão e a submissão à nação, lembrando
que essa nação estava vinculada com a valorização da monarquia.
Assim, a fragilidade de Merlin foi evidenciada no momento em que o poeta
narrou a saída do mago da corte de Arthur, devido a uma grande melancolia
que abateu o feiticeiro.
“Then fell on Merlin a great melancholy ;
He walked with dreams and darkness, and he found
A doom that ever poised itself to fall,
An ever-moaning battle in the mist,
World-war of dying flesh against the life,
Death in all life and lying in all Love (...)75.
Segundo o poeta, foi o próprio Merlin que buscou sua condenação. Ao
acreditar que Vivien o seguia por amor, caiu nas ardilosas tramas de Vivien,
que pedia ao mago – como prova de confiança: “As proof of trust. O Merlin,
teach it me.The charm so taught will charm us both to rest”76. – que ensinasse a
as particularidades dos indivíduos. Parece difícil compreender o limite entre liberdade individual e
coletividade no Estado liberal.
74
VIGEVANI. 1992. Op. cit. pp. 109.
75
TENNYSON. 1954, Op. cit. pp. 356.
76
TENNYSON. 1954, Op. cit. pp. 358.
72
ela um encantamento que deixaria quem recebesse o encanto aprisionado,
mas que aos olhos dos homens e das mulheres na sociedade aquele que fosse
encantado pareceria morto. O principal objetivo de Vivien era aprisionar Merlin,
pois acreditava que desse modo se tornaria gloriosa, devido à grandeza
daquele que ela extinguiria.
“And Vivien ever sought to work the charm
Upon the great Enchanter of the Time,
As fancying that her glory would be great
According to his greatness whom she quenched”77.
No decorrer do poema Merlin viveu o dilema entre ensinar à Vivien ou não
o encantamento, justamente porque, segundo o mago, ele deveria ser grato,
pois foi Vivien que o tirou do estado de melancolia que se encontrava. Merlin
travou, portanto, uma batalha com seu corpo, num sentido orgânico, é uma
batalha entre seus desejos, cegos pela emoção e envoltos pelo aparente
cuidado que Vivien nutria por ele, e a vida, ameaçada pela possibilidade de
acreditar nas aparências e em confiar nas emoções – “...World-war of dying
flesh against the life”.
Tennyson entendia que o autocontrole era garantia de benefícios não
apenas para si, mas também para a sociedade. Controlar o corpo, a carne,
lugar de desejos e de paixões, era um componente essencial para alcançar o
poder sobre a própria vida e era a melhor maneira de evitar a desordem
generalizada na vida nacional, era, para o poeta, uma possibilidade de atingir o
progresso.
A era da mecanização mudou a visão sobre o corpo, tornando-o não
apenas lugar do mecânico, lugar que transforma energia em trabalho, mas
também o tornou lugar do profano, no sentido que as ciências contribuíram
com a degradação da ideia que unia corpo e alma. O corpo deixou de ser
entendido como receptáculo da alma, o corpo foi profanado.
Se por um lado, essa dessacralização do corpo abriu caminho para o
estudo sobre os “mecanismos” de seu funcionamento e sobre como ampliar o
77
TENNYSON. 1954, Op. cit. pp. 356.
73
ganho de energia para o trabalho, por outro lado, abriu a possibilidade de agir
de acordo com as vontades individuais, o que para autores como Tennyson,
poderia levar à degradação individual e moral. Exemplo dado pelo próprio
Merlin quando se deixou induzir por seus próprios desejos.
Era preciso aperfeiçoar o corpo. Se antes, era necessário aperfeiçoar o
corpo para atingir a salvação da alma. Entendemos que, para Tennyson, era
preciso aperfeiçoar o corpo para o bem da civilização. Se em sociedades,
como a europeia do ocidente medieval, a alma ultrapassava o espaço do corpo
no sentido que ultrapassaria o tempo vivido pelo corpo, podemos dizer que
para o poeta, na sociedade inglesa do século XIX, o que ultrapassaria os
limites espaciais e temporais do corpo era a nação, por esse motivo, a conduta
e as maneiras de agir deveriam visar o progresso social. Tennyson defendia as
atitudes coletivas pensando principalmente em como garantir o progresso da
civilização inglesa.
A atitude de Merlin serviu de exemplo, pois até os mais sábios, quando se
deixavam guiar por suas emoções, contribuíam para a decadência de si
mesmo e da sociedade em que viviam. A ação de Merlin, ao contar para Vivien
os segredos do encantamento, representou o desencanto por Camelot que já
estava em processo de decadência, mas, ao mesmo tempo, contribuiu para
essa degradação, e a vitória de Vivien sobre o mago é a prova disso.
“Then, in one moment, she put forth the charm
Of woven paces and of waving hands,
And in the hollow oak he lay as dead,
And lost to life and use and name and fame”78.
Na guerra entre carne e vida, a última foi derrotada, havia morte em toda
vida e mentira em todo amor – “...Death in all life and lying in all Love...”. A
sociedade estava corrompida pelas aparências e pela degradação humana, era
preciso educar os indivíduos para tentar formar uma civilização que alcançasse
o progresso. Nessa educação, o poeta enxergava a necessidade do controle
78
TENNYSON. 1954, Op. cit. pp. 368.
74
sobre o próprio corpo e sobre os sentimentos. “O governo de si, quer se trate
do corpo quer dos sentimentos, exige contenção: o bem-estar do próximo, o
respeito por ele exigem o exercício constante de um controle vigilante de si
mesmo. Deixar falar o corpo e exprimir muito abertamente os sentimentos em
sociedade são, portanto, atitudes a proscrever. É preciso lutar contra o excesso
de interesse por si mesmo e manifestar pelo outro atenção, deferência,
respeito, consideração”79.
Dessa forma, Tennyson criticava a mecanização, pois esse corpo
mecanizado, também portava o individualismo, o que para o poeta ameaçava o
maior bem a ser atingido, o progresso da civilização inglesa. Entretanto, o
corpo defendido por Tennyson, justamente porque era visto como orgânico,
precisava de disciplina, de ser guiado por modelos ideais de conduta, por uma
moral conservadora, que buscava suas origens nas tradições medievais.
Se, como escreveu Tullo Vigevani, “A elaboração dos sentimentos
populares é o que permite a recuperação de uma mesma concepção de mundo
com características, justamente, ao mesmo tempo nacionais e populares”,
então, podemos dizer que Tennyson fez parte de um movimento que buscou a
formação de uma cultura nacional, com base na educação dos corpos, onde as
maneiras de agir estavam, ou deveriam estar, permeadas por valores
aristocráticos e vinculadas à ideia de realeza. As ações não poderiam estar
vinculadas às aparências, que levariam à destruição.
Dessa maneira, quando Merlin acreditou em Vivien foi aprisionado e
denominado como “tolo” pelo poeta. O feiticeiro foi tolo porque acreditou em um
amor que não passava de aparência, porque se deixou levar por seu próprio
ego ao acreditar que era amado por Vivien, enfim, foi tolo por não usar sua
sabedoria para sair das artimanhas de seus próprios desejos e sentimentos.
Assim conclui a voz narrativa do poeta:
“Then crying "I [Vivien] have made his glory mine,"
And shrieking out "O fool!" the harlot leapt
Adown the forest, and the thicket closed
79
HAROCHE. 1998. Op. cit. pp. 38.
75
Behind her, and the forest echoed "fool"80.
80
TENNYSON. 1954, Op. cit. pp. 368.
76
Capítulo 3 – Percepções sobre Tennyson
“Os poetas são os legisladores não-reconhecidos deste mundo”.
(Percy Bysshe Shelley)
Na Inglaterra vitoriana, em meio ao medieval revival, a narrativa dos
poetas se fundia a voz profética exaltando as possibilidades de implantar ideais
civilizadores entre as diferentes camadas sociais. A crença de que o poeta era
um artista diferenciado dos demais, vinha sendo construída entre os ingleses,
desde fins do século XVIII. Edmund Burke dizia que “...a poesia, com toda sua
obscuridade, exerce um domínio tanto mais geral quanto mais intenso sobre as
paixões do que a outra arte [pintura]”81.
A ideia de que a poesia poderia exercer um “domínio sobre as paixões”,
começou a ser difundida no século XVIII, mas ganhou força no XIX, quando foi
– muitas vezes – associada ao caráter educador e civilizatório. Na sociedade
inglesa do século XIX, o poeta era visto, muitas vezes, como artista
diferenciado, que poderia educar por meio de seus poemas e de sua visão de
futuro. Na primeira metade do XIX, Percy Bysshe Shelley escreveu que os
poetas eram chamados de legisladores e de profetas, pois neles se resumiam
esses poderes. Para Shelley, o poeta é capaz de não apenas ver “...com
intensidade o presente como é, descobrindo as leis através das quais as coisas
presentes devem ser ordenadas, mas também vê o futuro no presente, e seus
pensamentos são as sementes da flor e do fruto do tempo futuro”82.
Shelley não dizia que os poetas eram profetas no sentido daquele que
“prevê” o futuro, mas sim, que os poetas poderiam prenunciar acontecimentos
com a segurança de quem conhece muito bem o presente em que vive. Nesse
sentido, a profecia aparece como atributo da poesia, “...a poesia vence a
maldição que nos obriga a ser escravos do acaso das impressões
circundantes.”83.
81
BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo.
Campinas, SP: Papirus; Editora da Universidade de Camplinas, 1993. pp. 69.
82
SHELLEY, P. B. In: CHIAMPI, Irlemar. Fundadores da modernidade. São Paulo: Editora Ática, 1991.
pp. 66.
83
SHELLEY, P. B. In: CHIAMPI, I. 1991. Op. cit. pp. 68.
77
Na segunda metade do XIX, Matthew Arnold escreveu ensaios sobre a
natureza da poesia e da crítica literária. Para o autor a poesia revelava a
interpretação mais “perfeita” da sociedade na qual foi produzida. Escreveu
Arnold: “Espero que não seja considerado exagero de minha parte, se eu
acrescentar que, em geral, é na poesia de uma época que devemos procurar
interpretação mais perfeita e mais conveniente desta, para a realização de um
trabalho que requer de todas as forças do espírito uma atividade muito intensa
e harmoniosa”84.
Tennyson atribuía à função de poeta um caráter civilizador e, portanto,
político. Como esses autores, Tennyson acreditava que o poeta tinha uma
missão dentro da sociedade inglesa, ser poeta era enxergar mais sobre sua
própria sociedade do que o restante da população. Por isso, os poetas
deveriam utilizar suas sabedorias para educar a “multidão”.
Dessa maneira, os exemplos a serem seguidos, ou repudiados, estavam
constantemente presentes em suas obras através das ações de suas
personagens. O corpo, como vimos, deveria ser educado, civilizado, em nome
do progresso e da nação. Como poeta oficial da corte, entendia exercer uma
função social de relevância, tinha consciência dos problemas e das
transformações pelas quais o país passava em sua contemporaneidade. Como
“assalariado da cultura”, colocava-se na posição dignificante daquele que
ensina. Como Coleridge, Southey e Wordsworth “exaltava o papel social da
‘intelligentsia”85.
O corpo era entendido, pelo poeta, como orgânico – era passível de ser
educado e, ao mesmo tempo, precisava controlar suas paixões e seus
impulsos. A cultura nacional foi evidenciada nas maneiras, nas atitudes, nos
costumes e nas palavras dos personagens presentes nos seus poemas. Com
base nessa ideia, Tennyson utilizou a personagem Merlin para expressar a voz
profética do poeta, voz de quem se preocupa com a formação de uma cultura
nacional.
As percepções do poeta são expressas pelas marcas dos corpos do mago
representados em seus poemas. Entendemos, também, que a presença do
84
85
ARNOLD, M. In: CHIAMPI, I. 1991. Op. cit. pp. 86.
DIAS, Maria Odila da Silva. 1974. Op. cit. pp. 33.
78
corpo nos poemas de Tennyson são menos evidenciadas do que a ideia do
orgânico. Ao pensar o corpo, Tennyson, preocupou-se, muito mais com o corpo
social e político do que com os corpos de cada indivíduo.
O corpo representado nos poemas de Tennyson é menos o corpo como
gestos e posturas, do que o lugar onde as várias percepções sobre o mundo
foram apreendidas, justamente porque o corpo é o mediador da relação
homem-mundo. É por meio dele que estamos em permanente contato com o
que é externo, é através do corpo que percebemos e nos relacionamos com os
outros, que marcamos nossa existência, e que o mundo marca sua presença
em cada um de nós. Nesse sentido, o corpo também é cultura, pois constitui e
é constituído pela sociedade à qual pertence.
Assim, o ato de escrever também passa pelas sensações dos indivíduos
que o exercem, remete às percepções que um escritor teve de sua própria vida
e do mundo em que viveu. É parte do ato de exprimir, e “Exprimir não é então
nada mais do que substituir uma percepção ou uma ideia por um sinal
convencionado que a anuncia, evoca ou abrevia”86. O conceito de orgânico em
Tennyson pode ser rastreado por meio das escolhas de palavras que o poeta
utilizou em seus poemas, pois essas palavras passaram por suas sensações
mais exaltadas que estavam relacionadas a seus ideais e posicionamentos
políticos.
Dessa maneira, por meio do que exprimem e de como exprimem, artistas
e escritores evidenciam em suas obras parte das percepções, das visões de
mundo que cada um deles possui, ou possuíram, no período em que vivem, ou
viveram. Segundo Merleau-Ponty, pintura e escrita são manifestações da
percepção que os artistas têm de sua contemporaneidade. No caso de
Tennyson, seu filho Arthur Hallam escreveu: “...I see him [Tennyson] in every
Word which He has written”87.
Para nos aproximarmos de algumas percepções que Tennyson teve de
sua contemporaneidade, analisaremos Merlin and The Gleam. O poema é uma
autobiografia literária em que o poeta se denomina Merlin. Logo de início, o
poeta dialoga com um “Young Mariner”, a expressão pode remeter ao “diálogo”
86
87
MERLEAU-PONTY, Maurice. A prosa do mundo. 2ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. pp. 23.
TENNYSON, Hallam. 1889. Op. cit. pp. XI.
79
com os jovens da sociedade em que viveu – aqueles que, aos olhos de
Tennyson, precisavam de um ideal de civilização e para quem ele apresentou
um pouco de sua própria história por meio desse poema.
“O young Mariner,
You from the haven
Under the sea-cliff,
You that are watching
The gray Magician
With eyes of Wonder,
I am Merlin
(...) Who follow The Gleam”88.
Merlin é descrito como “The gray Magician”, a marca do corpo remete aqui
ao envelhecimento, “gray”, pode remeter a cor dos cabelos tingidos pelo tempo.
Merlin não é um menino, mas alguém que já viveu o suficiente para ter seus
cabelos e, quiçá sua barba, embranquecida. Mas, a grande novidade, não está
no fato da relação entre Merlin e a velhice (sabedoria), mas sim, na última linha
do excerto: “I am Merlin”. Lembrando que o poema é uma autobiografia
literária, Tennyson se apresentou como o próprio Merlin. Estava estabelecido o
vínculo entre o poeta e o “bardo”, “profeta”. A voz narrativa do poeta na
sociedade inglesa do século XIX, em especial, do poeta laureado, relacionavase, mais uma vez, com a do profeta.
Se pensarmos que esse status vinculava-se não a Tennyson como
indivíduo, mas à sua função de poeta, o autor se via como um corpo separado
do corpo social, no sentido que se pensava através de um ideal de cultura, por
acreditar que enxergava uma realidade moral e espiritual, também se achava
na posição daquele que pode resgatar ou construir (se preciso fosse) valores
sociais. “This sense of a public, prophet’s duty, became, for good or ill, a major
88
TENNYSON. Merlin and The Gleam. Disponível em:
http://www.lib.rochester.edu/camelot/merl&glm.htm Acesso em: 23 de Julho de 2008.
80
element in Tennyson’s poetic life. After He became Laureate He rarely wrote
private poetry”89.
Além de se denominar Merlin, o poeta era aquele capaz de perceber
vislumbres de criatividade. A expressão “The Gleam” parece carregar múltiplos
sentidos, pode referir-se à ideia da sabedoria, do conhecimento. Como Merlin,
Tennyson seguira o “brilho”, o “vislumbre” da sabedoria e do conhecimento.
Nesse contexto, Tennyson parecia seguir uma tradição dos poetas que
trabalharam oficialmente para a realeza inglesa. “Para Wordsworth ‘apesar de
coisas silenciosamente apagadas do pensamento dos homens, e de outras
violentamente destruídas, cabia ao poeta manter unido e coeso, através da
paixão e do conhecimento, o vasto império da sociedade, tal como se espraia
por toda a terra e através dos tempos”90.
Segundo Maria Odila L. Silva Dias, autores como Wordsworth e Coleridge
pretendiam “regenerar as almas, os sentimentos, e redimir valores morais, sem
os quais toda revolução política estaria fadada ao malogro,”91. Entretanto,
embora Tennyson também se preocupasse com a educação do corpo e com a
transmissão de valores morais, diferentemente dos românticos que valorizavam
a experiência interior – o chamado “self” / “eu” romântico – Alfred Tennyson
situava homens e mulheres, primeiramente, como seres políticos, colocando-os
todo tempo como responsáveis pelo bom funcionamento do Estado,
valorizando atitudes tomadas para o bem da coletividade.
Embora o poeta tenha sido influenciado pelos românticos no início de sua
vida como escritor, não foi por acaso, que após receber o título de laureado,
Tennyson raramente tenha publicado poemas relacionados à sua vida
enquanto indivíduo, ao contrário, quase todos os poemas publicados voltavamse para a preocupação com os rumos da Inglaterra vitoriana. O poeta parecia
não ter espaço, ou ter um espaço bastante reduzido, para o “self”, a
subjetividade de Tennyson não se voltava para seus sentimentos em relação
ao eu, mas sim, às preocupações em relação ao corpo nacional.
Entendemos que Merlin and The Gleam, que situamos como a
autobiografia literária do poeta, possui uma trajetória de identificação entre, a
89
PITT, Valerie. Tennyson Laureate. London: Barrie and Rockliff, 1962. pp. 149.
DIAS, Maria Odila da Silva. 1974. Op. cit. pp. 33-34.
91
DIAS, Maria Odila da Silva. 1974. Op. cit. pp. 40.
90
81
função do poeta na sociedade inglesa do século XIX e a preocupação com os
rumos da Inglaterra. Na primeira estrofe do poema Tennyson retratou seu
estado melancólico, estado daquele que agoniza: “I am Merlin, And I am dying”.
Lembrando que o poeta publicou o poema em 1889, o corpo do poeta já era
mesmo o da velhice. Tennyson morreu em 1892, aos 83 anos de idade,
portanto, o Merlin, de Merlin and The Gleam, evidencia traços do poeta, que
era, fisicamente, o “Mágico cinza”.
Mais uma vez Tennyson utilizou metáforas, alegorias e ambiguidades em
sua poesia. Se pensarmos que o corpo da personagem Merlin, foi o que em
Idylls of The King transitou temporalmente por duas sociedades diferentes (o
reino de Uther e o de Arthur), o corpo do poeta, depois de tantas vivências,
pareceu aos olhos de Tennyson, semelhante ao do mago.
Alfred Tennyson viveu as transformações da Inglaterra vitoriana. Como
vimos, período em que a vida e a cultura inglesa modificaram-se amplamente e
que autores, filósofos, poetas etc. não apenas vivenciaram a rapidez das
transformações, como também, colocaram essas transformações como um dos
principais temas de seus escritos. A nova legislação ampliou a participação
política da maioria da população, a Inglaterra consolidou-se como império
industrial e liberal, foram realizadas reformas no exército e nas universidades,
assim como foi implementada de uma reforma do sistema nacional de
educação que atendesse à nova “consciência política” por meio da
alfabetização dos recém-eleitores.
Tennyson vivenciou essas transformações como indivíduo, mas também,
como poeta. Segundo Valerie Pitt, o que fez de Tennyson um dos maiores
representantes do vitorianismo, foi a tentativa de resposta ao período em sua
totalidade. “...his temperament and genius were near to the quick of the era
with all its aspirations and its absurdities. For in all the Victorian variety one
thing was Constant – change”92.
Assim, Merlin and The Gleam pode ser considerado, juntamente com
outros poemas de Tennyson, uma resposta a instabilidade do mundo ao seu
redor. Se pensarmos que a sua poesia foi fruto das às mudanças da era
92
PITT, V. 1962. Op. cit. pp. 152.
82
vitoriana então, Merlin and The Gleam pode ser entendido, também, como uma
maneira de retratar a virtude de seu temperamento político enquanto poeta.
Voltemos ao fato de que Tennyson abre o poema utilizando uma ideia
melancólica de morte: “I am dying”. Já vimos que o corpo físico do autor pode
ser considerado “próximo da morte” por sua idade avançada, mas se a voz
narrativa do poeta foi entendida como principal elemento do corpo do poeta,
então, essa voz, no caso de Tennyson, tem uma característica bastante
importante: a ambiguidade. Sendo assim, a morte não pode ser apenas física.
Então, a qual tipo de morte o poeta se referiu? A resposta para a questão está
relacionada à trajetória de Merlin no poema.
Tennyson remeteu não apenas à sua infância, mas também às fases de
sua poesia: o ato de iniciar o poema com um profundo estado de melancolia
pode associar-se ao sentimento nostálgico de rememorar o passado. Esse
estado melancólico, que tornou presente a ideia de morte, foi uma maneira de
exprimir a verdadeira natureza da poesia. A “melancolia” enquanto percepção
de um estado de espírito foi importante na formação de Tennyson enquanto
poeta. Segundo Valerie Pitt, provocou, na poesia madura de Tennyson, a
percepção de que a mente humana possuía lugares obscuros, fator que
contribuiu para torná-lo sensível às realidades sociais, impulsionando o poeta a
preocupar-se com a instabilidade cultural e social da Inglaterra.
“When I see society vicious and the poor starving in
great cities,’ he Said, ‘I feel that it is a mighty wave of evil
passing over the world, but that there. Will be yet some
new and strange development which I shall not live to
see... You must not be surprised at anything that comes to
pass in the next fifty years. All ages are ages of transition,
but this is an awful moment of transition... The truth is that
the wave advances and recedes. ...I feel sometimes as if
my life had been a very useless life”93.
93
TENNYSON, A. In: TENNYSON, Charles. Alfred Tennyson. London: Macmilllan & Co. Ltd., 1950.
pp. 491.
83
Essa preocupação em relação a utilidade de sua vida se fez presente em
seus poemas. Daí a caracterização dos personagens como exemplo de boas
ou más condutas, e a tentativa de formação de uma cultura nacional que
valorizasse a moral. Em Merlin and The Gleam o poeta apegou-se à
construção da crença em um vislumbre de luz que pudesse ser seguido, por
ele e pelos jovens.
Sua autobiografia literária evidencia as percepções de Tennyson sobre a
sociedade em que viveu, a estrutura do poema, que tem início com um estado
melancólico para abordar a infância do poeta, pode remeter ao ideal burkeano
de beleza. Para Burke, o belo está relacionado a “uma qualidade social, porque
toda vez que a contemplação das mulheres e dos homens, e não somente
deles, quando a visão de outros animais nos proporcionam uma sensação de
alegria e de prazer (e há muitos que causam esse efeito), somos tomados de
sentimentos de ternura e de afeição por suas pessoas, gostamos de tê-las ao
nosso lado e iniciamos de bom grado uma espécie de intimidade com elas
(...)”94.
De “bom grado” Tennyson nos apresentou o momento de sua infância,
quando se voltou para a percepção do belo. Narrou o poeta:
“Mighty the Wizard
Who found me at sunrise
Sleeping, and woke me
And learn'd me Magic!
Great the Master ,
And sweet the Magic,
When over the valley,
In early summers,
Over the mountain,
On human faces,
And all around me,
Moving to melody,
94
BURKE, E. 1993. Op. cit. pp. 51.
84
Floated The Gleam”95.
Em harmonia com a natureza, Tennyson vislumbrou o poder mágico da
poesia, aprendeu a ser Merlin, ganhou a voz profética e iniciou algo que o
acompanharia para toda vida: ser poeta e traduzir a voz de sua nação. No
excerto do poema, Tennyson cantou o vale, a montanha, a natureza que via
todos os dias em Lincolnshire. O poeta não parece querer resgatar seu
passado no sentido de fazê-lo renascer, ele apenas apontou a importância de
sua experiência: o contato com a beleza foi importante para se tornar um
poeta, cujo principal objetivo relacionava-se à construção de um ideal nacional.
Assim, Tennyson evidenciou, que, por um lado, foram suas experiências
enquanto menino, experiências ligadas à natureza e, portanto, ao belo, que o
tornaram um poeta; por outro, que suas primeiras poesias, sua meninice
enquanto poeta, que carregava forte influência do romantismo de Byron, foram
essenciais para a maturidade de sua poesia. O poeta não negou suas
“infâncias”, colocou cada uma delas, como parte de um processo de
amadurecimento e de conscientização de que o lugar do poeta, mais do que
um lugar de individualidade, apontava para uma missão social e civilizadora:
“Floated The Gleam”.
Vislumbrava em meio às mudanças da sociedade vitoriana a constante
ameaça de perda da civilização inglesa. Juntamente com o desenvolvimento de
Tennyson como poeta, ocorreram as percepções de que o mundo não se
resumia ao belo. As transições eram sentidas como “terríveis” (“...this is an
awful moment of transition...”), Tennyson se deparou com o que Burke chamou
de sublime.
“Once at the croak of a Raven who crost it,
A barbarous people,
Blind to the magic,
And deaf to the melody,
Snarl'd at and cursed me.
95
TENNYSON. Merlin and The Gleam. Disponível
em:http://www.lib.rochester.edu/camelot/merl&glm.htm Acesso em: 23 de Julho de 2008.
85
A demon vext me,
The light retreated,
The landskip darken'd,
The melody deaden'd,
The Master whisper'd
"Follow The Gleam"96.
Na estrofe acima, percebemos que acontecimentos ruins, como o
“ensurdecer da melodia”, “a escuridão”, a “terra adormecida” estão vinculados
com o aparecimento de “pessoas bárbaras”. Podemos relacionar esse fator ao
contexto vivido pelo poeta, lembremos que muitas vezes a “multidão” das
cidades eram retratadas nos poemas por meio de metáforas. Uma das mais
utilizadas pelos poetas do período era a expressão “bárbaros”, vinculando essa
representação ao que não era civilizado. Assim, a população, considerada,
“massa”, “multidão” acabava ligada a um sentimento de temor e desconforto.
Ao mesmo tempo, Tennyson utilizou a expressão “terra adormecida”, uma
terra que não possui a melodia do bucólico, do belo, mas que está adormecida
na escuridão, referindo-se às imagens das cidades, locais da multidão e do
sublime por excelência. Para Burke, “Tudo que seja de algum modo capaz de
incitar as ideias de dor e de perigo, isto é, tudo que seja de alguma maneira
terrível ou relacionado a objetos terríveis ou que atua de um modo análogo ao
terror constitui uma fonte do sublime, isto é, produz a mais forte emoção de que
o espírito é capaz”97.
As percepções de Tennyson sobre a multidão – “não civilizada” –
traduziam
a
iminência
de
um
processo
de
destruição. As
cidades
industrializadas portavam, nessa visão, a possibilidade do progresso e do
poder imperial inglês e, concomitantemente, uma viva ameaça de destruição da
Inglaterra, pela constante incivilidade. Por esse motivo, o poeta entendia como
relevante a educação dos corpos na sociedade.
Destaquemos, ainda, que as sensações de prazer e de dor, que Burke
relacionou com os ideais de belo e de sublime (respectivamente), se
96
TENNYSON. Merlin and The Gleam. Disponível em:
http://www.lib.rochester.edu/camelot/merl&glm.htm Acesso em: 23 de Julho de 2008.
97
BURKE, E. 1993. Op. cit. pp. 48.
86
manifestavam primeiramente no corpo. Segundo o próprio Burke, prazeres e
tormentos se manifestam no corpo, as dores acabam sendo muito mais
marcantes. Se a dor for relacionada com a morte, ela é infinitamente terrível,
mas se ela puder ser atenuada, pode tornar-se “deliciosa”, como é o caso das
paixões.
Para Burke, um amante que sofre de paixão, pode viver das lembranças.
Mesmo a beira da loucura, o homem apaixonado raramente renuncia a esse
sentimento. “Quando se permite que a imaginação se fixe em alguma ideia,
durante muito tempo, esta monopoliza tão completamente aquela, que exclui
sucessivamente qualquer outra e derruba qualquer obstáculo do espírito que a
limitaria”98.
Esse impulso da paixão foi evidenciado por Tennyson no poema Merlin
and Vivian, onde o mago foi aprisionado por acreditar na paixão. Lembremos
que foi a crença no aparente amor de Vivien que levou Merlin ao cárcere. Se
essa possibilidade ocorria com um único indivíduo, na visão do poeta, poderia
causar ainda maior estrago tratando-se de uma multidão.
Nesse caso, o “Brilho” que Merlin seguiu, o “Brilho” que estava
relacionado à saída de um estado de melancolia profundo pode ser ligado à
maldade da personagem Vivien, era o exemplo de que as aparências poderiam
enganar até mesmo Merlin. Assim, o poema representou a destruição causada
pela crença nas aparências e evidenciou que as paixões são destrutivas
quando não são controladas e civilizadas.
As paixões, segundo o pensamento conservador do século XIX, por não
estarem vinculadas do racional colocavam homens e mulheres no espaço da
impulsividade e, pois, em perigo. Por esse motivo, Tennyson defendeu a ideia
de que o corpo social deveria ser controlado em suas maneiras e incentivado a
agir em nome da nação, para tanto, bastava o controle e a educação das
paixões. Na visão de Tennyson, o corpo social enquanto sociedade civil
deveria ser submetido ao corpo político representado pelo Estado.
Essa educação é evidenciada pelo próprio poeta em sua autobiografia
literária, apesar da ação dos “bárbaros”, o poeta, foi aquele que escutou o
“sussurro do mestre” e “seguiu o brilho”. O exemplo estava dado. O poeta era
98
BURKE, E. 1993. Op. cit. pp 49.
87
por si só, exemplo a ser seguido – Merlin seguiu o brilho, o sussurro do
“mestre”. Apenas ele percebia o que parecia imperceptível.
Tennyson era exemplo a ser seguido, pois também entendia o poeta como
herói. O autor concordava com Carlyle quando este dizia que o poeta tinha um
caráter que não morria, que o poeta era uma figura que pertencia “...a todas as
idades; que todas as idades possuem; que uma vez produzido, (pois tanto a
idade mais nova como a mais velha os podem produzir) continuará a ser
produzido, sempre que a Natureza o queira. (...) Creio que há nele [poeta] o
político, o pensador, o legislador, o filósofo”99.
Em Merlin and The Gleam Tennyson relacionou sua poesia à natureza, de
lá partiu o brilho que o poeta seguiu, brilho que estava vinculado com a
produção poética do autor.
“ Then to the melody,
Over a wilderness
Gliding, and glancing at
Elf of the woodland,
Gnome of the cavern,
Griffin and Giant,
And dancing of Fairies
In desolate hollows,
And wraiths of the mountain,
And rolling of dragons
By warble of water,
Or cataract music
Of falling torrents,
Flitted The Gleam”100.
O “Brilho”, o “Vislumbre”, planou sobre um “lugar selvagem”, uma floresta,
local onde era possível ouvir sua “melodia”. O brilho de um vislumbre poético
está relacionado aos sentidos do corpo do próprio poeta – Escutar a melodia e
99
CARLYLE, T. 1963. Op. cit. pp. 79.
TENNYSON. Merlin and The Gleam. Disponível em:
http://www.lib.rochester.edu/camelot/merl&glm.htm Acesso em: 23 de Julho de 2008.
100
88
perceber de onde partiu o brilho parece ser um privilégio de Tennyson, foi ele
que teve contato com o belo, com a melodia.
Para Burke, as melodias possuem uma analogia com a beleza. Por meio
dos sons suaves, uniformes e baixos o corpo é tocado, atingindo a percepção
do belo. “...uma grande variedade e transições bruscas de um ritmo ou de um
tom para outro se opõem à essência do belo musical. Tais transições muitas
vezes incitam o júbilo ou quaisquer outras paixões súbitas e tumultuosas, mas
não aquele abandono, aquele enternecimento, aquele langor que constitui o
efeito característico do belo com relação a todos os sentidos. A paixão gerada
pela beleza está, na verdade, mais próxima de uma espécie de melancolia do
que da jovialidade e da alegria”101.
Tennyson, para o qual as poesias são compostas de sonoridades buscou
nesse estado de melancolia a voz narrativa do poeta, a voz melodiosa. Por
meio de suas sensações iniciais, de seu contato com o bucólico, com o belo, o
poeta foi tocado pelo mestre que o ensinou toda sorte de magia, a magia das
palavras, das metáforas, das alegorias, dos ritmos da poesia. Através dessa
magia, Tennyson tentou atingir as sensações e as percepções dos indivíduos,
para que estes trabalhassem para harmonizar o corpo da nação.
Na estrofe seguinte, o poeta continua narrando o percurso bucólico
realizado pelo “Brilho” o qual ele seguia:
“Down from the mountain
And over the level,
And streaming and shining on
Silent river,
Silvery willow,
Pasture and plowland,
Horses and oxen,
Innocent maidens,
Garrulous children,
Homestead and harvest,
Reaper and gleaner,
101
BURKE, E. 1993. Op. cit. pp 129.
89
And rough-ruddy faces
Of lowly labour,
Slided The Gleam”102.
Esse “Brilho”, apesar de ameaçado por hordas de bárbaros, pode ser
entendido como o ideal de Tennyson enquanto poeta. A inspiração do poeta
renovou-se através da harmonia com a natureza. Ao olhar novamente para o
campo, escreveu éclogas, idílios, cantou a melodia da vida no campo, com
suas alegrias e tristezas (“...Innocent maidens, Garrulous children...”).
Depois desse momento de renovação poética, em que observou um
pouco das experiências cotidianas, Tennyson partiu para seu mais alto
propósito literário, onde celebrou a glória do amor humano, em detrimento das
paixões, e onde evidenciou a possibilidade do heroísmo: o planejado épico do
rei Arthur e de seus cavaleiros deveria ser plenamente desenvolvido. “He had
purposed that this was to be the chief work of his manhood”103.
Aqui percebemos que “Brilho”, “Vislumbre”, ganhou novos atributos, não
sendo apenas o “Mestre” que fez de Tennyson um poeta, mas também – o
ideal seguido pelo poeta e, para além disso, o próprio Arthur, seu exemplo
máximo de conduta.
O poeta, que havia se sensibilizado com influências do romantismo em
seus primeiros poemas, se voltou para os dias gloriosos do rei Arthur e de seus
cavaleiros, momento em que Tennyson cantou a beleza de Camelot, a força e
a grandiosidade da realeza. Arthur foi aquele que obteve “tranqüilidade”, após
provar suas forças em muitas batalhas:
“Then, with a melody
Stronger and statelier,
Led me at length
To the city and palace
Of Arthur the king;
Touch'd at the golden
102
TENNYSON. Merlin and The Gleam. Disponível em:
http://www.lib.rochester.edu/camelot/merl&glm.htm Acesso em: 23 de Julho de 2008.
103
TENNYSON, Hallam. 1889. Op. cit. pp. XIV.
90
Cross of the churches,
Flash'd on the Tournament,
Flicker'd and bicker'd
From helmet to helmet,
And last on the forehead
Of Arthur the blameless
Rested The Gleam”104.
O poder do rei associado à sua força de guerreiro indicava a presença do
sublime em Camelot. Segundo Burke, sob qualquer ângulo que pensemos o
poder e a força, eles aparecem sempre vinculados com o sublime, pois
suscitavam terror. A presença do amor evidenciada pelo poeta no reinado de
Arthur, não elimina o terror exercido pelo rei – lembremos que Arthur se apossa
de sua espada assim que é aclamado rei.
O corpo do rei estava relacionado com o belo e com o sublime. Gerava
uma sensação suave e delicada (belo) e, ao mesmo tempo, representava a
força, utilizando armas e ameaçando todos os que impedissem a realização de
seu ideal maior (sublime). Essa multiplicidade de sentidos que abordam
diferentes sensações não produzem uma ideia harmônica e homogênea. Mais
uma vez, Tennyson parece concordar com a filosofia de Burke, para quem o
suave e pequeno, não impressionava homens e mulheres.
Camelot e Arthur impressionam por sua grandiosidade, despertam as
paixões, para tanto, estão relacionados com a grandeza e com o terror
provocado pelo sublime e pela a presença do belo. “Se as qualidades do
sublime e do belo por vezes se encontraram unidas, será isso prova de que
são a mesma coisa, de que estão sempre ligadas, até mesmo de que não são
opostas e contrárias? O preto e o branco podem suavizar-se, podem fundir-se,
mas não são, contudo, a mesma coisa. Nem quando são assim suavizados e
fundidos um com o outro, ou com cores diferentes, o poder do preto como
104
TENNYSON. Merlin and The Gleam. Disponível em:
http://www.lib.rochester.edu/camelot/merl&glm.htm Acesso em: 23 de Julho de 2008.
91
preto, ou do branco como branco é tão grande como quando cada um
permanece uniforme e distinto”105.
A Inglaterra de Tennyson possuía a mescla do que era considerado belo e
sublime. Se o bucólico pertencia ao belo, as grandes cidades inglesas, como
Londres, traziam a predominância do sublime, ainda que a industrialização
também fosse relacionada ao progresso, as cidades com suas indústrias
assustavam por sua grandiosidade, por sua força, pela grandeza arquitetônica
e por ser o lugar da multidão.
Disraeli afirmou que “(...) o regime industrial, que se torna o de todos os
(...) Estados civilizados, deixa ver todos os seus defeitos... A confusão de
formas e cores não é menos perturbadora, e o efeito se assemelha ao das
quatro imensas páginas onde se apertam os anúncios do Times. Lá, como
aqui, reina a concorrência. Cada um anuncia seu produto ou sua droga... O
gosto se degrada e perde a finura. Tudo torna-se povo, povo operário,
comerciante ávido e duro, inquieto e triste...”106
Somado a esse retrato da Inglaterra industrializada, a morte do amigo
Arthur Hallam, quase fez Tennyson renunciar ao seu principal propósito
literário. Por um tempo, pouco se alegrou com o esplendor da visão do poeta,
nesse momento, o “Vislumbre” diminuiu devido ao lampejo do inverno.
“Clouds and darkness
Closed upon Camelot;
Arthur had vanish'd
I knew not whither,
The king who loved me,
And cannot die;
For out of the darkness
Silent and slowly
The Gleam, that had waned to a wintry glimmer
On icy fallow
And faded forest,
105
BURKE, E. 1993. Op. cit. pp 131.
DISRAELI, Benjamin. In: CHARLOT, Monica; MARX, Roland. (orgs). Londres, 1851-1901: a era
vitoriana ou o triunfo das desigualdades. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993. pp. 28.
106
92
Drew to the valley
Named of the shadow,
And slowly brightening
Out of the glimmer,
And slowly moving again to a melody
Yearningly tender,
Fell on the shadow,
No longer a shadow,
But clothed with The Gleam”107.
Tennyson abordava, ao mesmo tempo, a morte de Arthur Hallam e a do
Arthur rei. A morte de Hallam “cobre de escuridão” o mundo do poeta, a morte
do rei faz o mesmo com Camelot. E, se Arthur rei, continuava vivo para a
sociedade, existia a possibilidade do retorno do rei, que foi exemplo de boa
conduta na obra de Tennyson; o Arthur amigo continuaria vivo para o poeta. A
ligação de amizade, o exemplo de conduta que o poeta relacionava às ações
do amigo, a produção do In Memorian, poema de destaque na carreira de
Tennyson, tudo estava ligado a Hallam. Os vínculos de amizade fizeram com
que algo de Arthur Hallam permanecesse junto ao poeta, e dessa maneira,
estaria sempre vivo.
A estrofe evidenciou que até mesmo o que deveria ser belo, como o
espaço da floresta, acabou “murchando” com a ausência de Arthur. Tudo se
tornou sombrio, as sombras que dominavam a sociedade e tentavam dominar o
próprio Alfred, não apenas enquanto indivíduo, mas principalmente como
poeta, quase esquecido de sua missão relevante perante a sociedade.
Segundo o filho de Tennyson, também chamado Arthur Hallam, quando o
poeta uniu os dois “Arthurs”, o dos Idílios e o amigo que Tennyson transformou
quase em uma divindade, conseguiu sair vitorioso de seu estado de luto, se
fortalecendo com uma fé em si mesmo e uma esperança firme que não mais o
abandonou nos anos seguintes, no correr dos quais Tennyson cumpriria a
função de poeta Laureado (“...No longer a shadow, But clothed with The
107
TENNYSON. Merlin and The Gleam. Disponível em:
http://www.lib.rochester.edu/camelot/merl&glm.htm Acesso em: 23 de Julho de 2008.
93
Gleam”), amadurecendo seu estilo cheio de retórica, de poeta enfático,
veemente que quer influir sobre as emoções e as mentes dos homens.
O poeta continuaria a desempenhar sua função social, de maneira que
seu comportamento, suas atitudes, seus posicionamentos, a educação de seus
sentidos ganhou maior força:
“And broader and brighter
The Gleam flying onward,
Wed to the melody,
Sang thro' the world;
And slower and fainter,
Old and weary,
But eager to follow,
I saw, whenever
In passing it glanced upon
Hamlet or city,
That under the Crosses
The dead man's garden,
The mortal hillock,
Would break into blossom;
And so to the land's
Last limit I came-And can no longer,
But die rejoicing,
For thro' the Magic
Of Him the Mighty,
Who taught me in childhood,
There on the border
Of boundless Ocean,
And all but in Heaven
Hovers The Gleam”108.
108
TENNYSON. Merlin and The Gleam. Disponível em:
http://www.lib.rochester.edu/camelot/merl&glm.htm Acesso em: 23 de Julho de 2008.
94
Observamos nos quatro primeiros versos dessa estrofe que o brilho segue
cada vez mais intenso, ligando-se novamente à melodia e cantando através do
mundo. A voz do poeta não foi interrompida, ela continuou sua jornada,
seguindo o vislumbre poético. Mas, o cansaço e a fraqueza às vezes
ameaçavam a voz profética do poeta.
Tennyson se mostrava cansado com a sociedade em que viveu. A
preocupação e o cansaço do poeta foram demonstrados no Memoir ao dizer
que apesar de perceber naquela sociedade um sentimento de unidade mais
forte do que entrevia em sua juventude, esse sentimento de força cada vez
mais cedia ao de fraqueza. A sociedade em que vivia se parecia com uma
“geléia”, quando tocada tremia da base ao cume. Nas palavras do próprio
poeta: “The whole of society at present is too like a jelly; when it is touched, it
shakes from base to summit. As yet the Unity is of weakness rather than of
strength”109.
Para o poeta, a paixão por mudanças de um grupo de ultra-radicais
parecia a Tennyson mais instável e perigosa do que uma promessa de
progresso material. O escritor relacionou as mudanças repentinas de seu
tempo com uma casa construída sobre a areia e disse que se os radicais
tivessem trilhado seus caminhos o fim do século (XIX) estaria mergulhado em
sangue, portanto, eram os homens civilizados, sábios que deveriam, segundo
Tennyson, continuar traçando os caminhos da Inglaterra – “Men of education,
experience, weight, and wisdom, must continue to come forward. They who will
not be ruled by the rudder will in the end be ruled by the rock”110.
No olhar do poeta, era preciso formar um único corpo político para que a
Nação pudesse se desenvolver plenamente. Para tanto, não seria preciso
apagar as individualidades, pois num organismo equilibrado existe a
necessidade dos diferentes funcionamentos de cada parte do corpo. Tennyson
entendia, portanto, que essas individualidades deveriam servir como funções
do corpo da nação. As individualidades poderiam fortalecer a vida social
inglesa.
109
110
TENNYSON, Hallam. 1889. Op. cit. pp. 339. Vol II.
TENNYSON, Hallam. 1889. Op. cit. pp 339. Vol. II.
95
“The diference of individualities must always exist, and since we are
members of one body, different gifts are needed to supply the wants of that
body. Our aim therefore ought to be not to merge the individual in the
community, but to strengthen the social life of the community, and foster the
individuality”111. A voz narrativa do poeta, ainda clamava pela unidade nacional
e, embora cansada, seguia o brilho que pairava no céu.
“Not of the sunlight,
Not of the moonlight,
Not of the starlight!
O young Mariner,
Down to the haven,
Call your companions,
Launch your vessel,
And crowd your canvas,
And, ere it vanishes
Over the margin,
After it, follow it,
Follow The Gleam”112.
Alfred Tennyson encerrou o poema esclarecendo que o “Brilho” não era a
luz do sol, nem o luar, nem a luz das estrelas. E sugeriu ao Jovem Marinheiro
que seguisse o brilho com sua embarcação. Quando assim narrou, deixou claro
que nem o cansaço, nem a fraqueza o impediram de continuar seguindo, assim
também deveriam fazê-lo os jovens de sua sociedade, seguir o brilho do ideal
nacional. O brilho que o poeta enxergou sempre presente na a Inglaterra
vitoriana. O brilho do ideal que o poeta considerou relevante para a
continuidade e para a fortificação da civilização nacional.
O poema Merlin and The Gleam ressaltou a forte ligação que Tennyson
tinha com a personagem Merlin, mas também com a Inglaterra vitoriana,
enquanto nação. Em 1852, Alfred Tennyson publicou dois poemas no periódico
111
TENNYSON, Hallam. 1889. Op. cit. pp 339. Vol II.
TENNYSON. Merlin and The Gleam. Disponível em:
http://www.lib.rochester.edu/camelot/merl&glm.htm Acesso em: 23 de Julho de 2008.
112
96
The Examiner onde assinou Merlin. Nesses poemas, intitulados The Third Of
February e Hands All Round, a voz do poeta exaltou a nação inglesa e a rainha
Vitória. A bravura do povo inglês foi celebrada com o objetivo de marcar a
oposição ao governo imperial de Napoleão III113. Para tanto, Tennyson colocou
a Inglaterra na condição de “voz da Europa”, atribuindo à sua nação a força da
palavra de ordem.
“No little German state are we,
But the one voice in Europe; we must speak”114.
Nesses poemas, ao assinar o nome do mago, o poeta atribuiu a si mesmo
a autoridade e a sabedoria do profeta. Era como se Merlin – e não Tennyson –
chamasse os bretões à luta em nome do corpo nacional. Além disso, a imagem
do Merlin lembrava que os ingleses estavam ligados a uma tradição que
constituiu a nação: uma comunidade política, que precisava da lealdade e do
serviço de cada indivíduo. O poeta chamava a população como se estivesse
lutando apenas contra a tirania do governante francês, para defender uma
suposta liberdade.
“We love not this French God, the child of hell,
Wild War, who breaks the converse of the wise.
(...)
Shall we fear him? our own we never fear'd115”.
Nesses versos, Tennyson declarou que os ingleses “não amavam o Deus
francês”, referindo-se a Napoleão III também como “filho do inferno”. Além
disso, narrou que a guerra que o governante francês fazia era uma guerra
“selvagem”, motivo pelo qual questionou os ingleses se eles deveriam temer a
Napoleão III e, o próprio poeta respondia que os ingleses nunca tiveram medo.
Ao escrever tais palavras celebrava a força e a bravura inglesa.
113
Carlos Luis Napoleão Bonaparte governou a França como imperador de 1852 até 1870.
TENNYSON. 1954, Op. cit. pp. 672.
115
TENNYSON. 1954, Op. cit. pp. 672.
114
97
Aos olhos do poeta, os “filhos da Inglaterra” não deixariam predominar a
força das armas do tirano francês, os ingleses foram apresentados no poema
como população que luta em nome da liberdade e, nesse momento, o poeta,
que se posicionou contra a ampliação da participação política da população
mais pobre, parecia defender a “liberdade” de todos e, para tanto, chamou mais
uma vez a multidão para lutar em nome da Inglaterra.
“What England was, shall her true sons forget?
We are not cotton-spinners all,
But some love England and her honor yet”116.
Tennyson fazia um apelo emocional “O que foi a Inglaterra? Devem seus
verdadeiros filhos esquecê-la?”. Para o poeta todos deveriam se portar como
filhos da nação inglesa, pois não os considerava apenas “fiadores de algodão”,
ele parecia enxergar ainda amor e honra. A voz narrativa do poeta, que se
autodenominava profética, assinando o nome Merlin, trabalhava para a nação
inglesa, ao exaltar a liberdade, não se referia à liberdade individual, mas à
liberdade da nação.
Ao convocar a participação de todos, Tennyson concebia a nação como
um organismo. Esse “corpo” social e político que parece ter vida separada dos
indivíduos que o compõe, depende da ação de cada um desses indivíduos. Por
isso, a cultura nacional que o poeta buscava constituir era, em primeiro lugar, o
cultivo de um comportamento de fidelidade e de uma devoção religiosa em
relação à Inglaterra. Essa “fidelidade” não se aplicava somente ao âmbito
político, ao Estado, mas implicava a presença de outros valores que de alguma
maneira estivessem vinculados a um sentimento de pertencimento.
Esses “valores” estavam relacionados à construção de uma visão
orgânica da nação, pois cada um deveria olhar para si mesmo como parte de
um corpo maior, o que significava que as diferenças individuais deveriam
trabalhar cada uma à sua maneira, para o bem do organismo maior, do qual
faziam parte: a nação. Cada indivíduo era percebido pelo poeta como se fosse
um órgão de um corpo que deveria desempenhar sua função para colaborar
116
TENNYSON. 1954, Op. cit. pp. 673.
98
com o funcionamento do “todo”. Assim, Tennyson celebrava a Inglaterra e a
liberdade da nação:
“To this great cause of Freedom drink, my friends,
And the great name of England, round and round”117.
Tennyson se mostrava um autor conservador em muitos aspectos. Vimos
que se opôs veementemente à ampliação da participação política para os
operários ingleses. Outro aspecto do seu conservadorismo remetia à defesa e
à exaltação da realeza inglesa. Em muitos momentos, o autor vinculou a
Inglaterra à figura da rainha Vitória, celebrando-as como se fossem a
representação da própria civilização.
“O rise, our strong Atlantic sons,
When war against our freedom springs!
O speak to Europe through yours guns!
They can be understood by Kings.
You must not mix our Queen with those
That wish to Keep their people fools;
Our freedom’s foemen are her foes,
She comprehends the race she rules”118.
No excerto, o poeta chamou para a guerra os “filhos do Atlântico”,
convocando os estadunidenses para lutar a favor da “liberdade”, evidenciando
que a “fala das armas” pode ser entendida pelos reis. Ao dizer isso, Tennyson
fez a seguinte ressalva: “Não misturem nossa Rainha, àquelas que desejam
manter seu povo tolo”, e completa ao dizer que os inimigos da “liberdade” eram
também inimigos da “rainha inglesa”.
A imagem da rainha foi exaltada em muitos poemas do poeta laureado,
que assim vivia convictamente sua missão de fidelidade à Coroa. Era como se
para a realeza convergissem os laços de fidelidade entre a população e o
117
118
TENNYSON. 1954, Op. cit. pp. 675.
TENNYSON. 1954, Op. cit. pp. 676.
99
Estado. Exaltava os laços profundos com toda a força das tradições inglesas.
Nesse sentido, Tennyson utilizou a voz profética de um importante personagem
da literatura, para tentar consolidar uma ideologia nacional. Exaltou como poeta
a força de costumes e a invenção de tradições e de sentimentos de fidelidade à
nação, que pretendia incutir no íntimo dos indivíduos através de seus poemas.
100
Considerações finais
No século XIX ocorreu a consolidação do Estado fundamentado na esfera
da legalidade. Se antes, o Estado pautava-se na legitimidade, relacionada ao
rei, agora estava posta a ideia de liberdade e participação política dos cidadãos
– e não mais dos súditos. A Inglaterra vitoriana vivenciou a ampliação da
participação popular por meio dos votos. Os traços do Estado Moderno foram
aperfeiçoados e consolidados, a imagem do monarca - como figura que
centralizava o poder - foi substituída pela legislação.
Concomitantemente, ocorreu um processo de integração entre Estado e
sociedade civil, onde as ações dos indivíduos foram diretamente relacionadas
com o progresso ou com a decadência da sociedade. Nesse sentido,
posicionamentos considerados rebeldes, eram entendidos como ameaça
social. Assim, na tentativa de ampliar o controle social, os vínculos entre
indivíduo e Estado passaram a ser forjados numa tradição, que poderia ou não
ser inventada. Naquele momento, parecia existir uma necessidade de criar um
sentimento de pertencimento e identidade nacional. Para tanto, o Estado, foi
associado à nação, entendida de maneira subjetiva e “sentimental”.
As ações dos indivíduos passaram a ser vistas como atitudes que
complementariam a consolidariam a ordem estatal.
Por esse motivo, era
necessário desenvolver um profundo enraizamento entre indivíduos e nação. A
invenção de tradições e a retomada de valores considerados parte da tradição
medieval inglesa contribuíram para esse possível “enraizamento social”. Nesse
processo, o corpo tornou-se lugar de disciplina e, ao mesmo tempo,
instrumento de trabalho, era necessário educá-lo e torná-lo o mais produtivo
possível.
Assim, alguns cientistas e pensadores relacionavam o funcionamento do
corpo humano com o funcionamento das máquinas, pois acreditavam que a
sociedade inglesa dependia da disciplina e do aumento da produção para
alcançar o progresso, então, estudaram o corpo como um mecanismo. Os
principais objetivos desses estudos relacionavam-se ao controle social e às
formas de evitar a fadiga, para, ao mesmo tempo, manter a “massa
populacional” sob controle e aumentar a produtividade.
101
Por outro lado, havia um grupo que se opunha a ideia de sociedade
mecanizada, que se opunha a formação de um individualismo desenfreado
trazido pelo industrialismo e pelo liberalismo – Tennyson fazia parte desse
grupo. O autor tentou resgatar alguns valores medievais e depositou nas
figuras da rainha Vitória e do príncipe Albert as representações da uma
Inglaterra organizada e civilizada. O poeta acreditava que o Estado deveria
garantir o bem estar social, mas não deveria dar o poder de escolha para a
maioria da população.
Entretanto, como viveu num período de ampliação da participação política
da população, preocupou-se em educar essa “multidão” através de seus
poemas. Tennyson, assim como outros escritores, evidenciava certo medo do
potencial revolucionário da população, também por esse motivo, entendia que
era necessário controlar os impulsos e os desejos individuais em nome do bem
social e em nome da nação.
Para Tennyson, era necessário se precaver contra as possíveis e
incontroláveis “paixões” da população. Havia um “medo” da cultura popular e,
justamente por isso, cultura e educação foram relacionadas com a erudição em
detrimento de uma cultura (popular) baseada nas experiências e nas vivências
das classes economicamente mais baixas.
Quando
Tennyson
tentou
aproximar
poesia
e
vida,
a
principal
preocupação não era abordar experiências cotidianas da maior parte da
população, mas sim vincular as atitudes individuais aos padrões de civilização
considerados relevantes pelo poeta, ainda que para isso, pudesse utilizar
exemplos da vida cotidiana. Nesse sentido, o ato de educar, para Tennyson,
tinha um interesse específico: o progresso da Inglaterra enquanto nação. A
grande relevância estava depositada nos rumos que a Inglaterra tomava e nos
interesses representados pela realeza inglesa.
Contudo, não é possível realizarmos uma conclusão sobre os estudos da
Inglaterra vitoriana. Este trabalho apresenta apenas algumas considerações
sobre um amplo período que contribuiu para a formação da sociedade
contemporânea que hoje vivenciamos. Sociedade de liberais industrialistas, de
conservadores, mas também de autores que evidenciavam a importância de
um tipo de arte que estivesse relacionada com uma ideia de “liberdade”, como
102
é o caso de William Morris, que dizia que a arte deveria possibilitar a percepção
dos próprios desejos e dos desejos dos outros, tornando evidente que o
trabalho “escravo” era completamente indesejável...
103
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