1 IDENTIDADE QUILOMBOLA NA FRONTEIRA ENTRE O AMAPÁ E A GUIANA FRANCESA Manoel Azevedo de Souza1 RESUMO O presente trabalho tem por objetivo discutir a construção da identidade quilombola na fronteira entre o Amapá e a Guiana Francesa. Dentre os principais aspectos abordamos a relação território e identidade, desse modo empreendemos análises relevantes ao conceito de território para entender o processo de construção da identidade quilombola na comunidade do Kulumbu do Patuazinho. Essa comunidade está localizada no município de Oiapoque (672 km da capital, Macapá), região que divide a fronteira brasileira com a Guiana Francesa. Essa comunidade quilombola mantém um constante intercâmbio com negros da Guiana Francesa, especialmente com os que, como eles, professam religiosidade de matriz africana (Umbanda e Candomblé); é o primeiro quilombo amapaense que se iniciou como quilombo geograficamente urbano. Com a expansão urbana e a especulação imobiliária no referido município, há constantemente tentativas do poder público, principalmente municipal, em descaracterizar e não reconhecer o espaço como área de quilombo. Busca-se, nesta pesquisa, identificar o processo de ressignificação quilombola a partir da defesa pela terra e pelo sentimento de pertença, demonstrando que o movimento de construção da identidade quilombola está estreitamente relacionado ao território, e mais ainda, a terra assume uma representação que ultrapassa a questão da sobrevivência, uma vez que se apresenta como elemento de coesão social, de ligação com a ancestralidade. PALAVRAS-CHAVE: Identidade; Quilombola; Território; Amapá. 1 Professor da Universidade Federal do Amapá/Unifap. Mestre em Desenvolvimento Regional; Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará/UFC. 2 1 PERCURSO HISTÓRICO DA COMUNIDADE E A LUTA PELO TERRIÓRIO Temos o orgulho de ser a comunidade quilombola de onde começa o Brasil.2 Localizada no município de Oiapoque, com acesso pela BR 156, km 672, a comunidade do Kulumbu do Patuazinho, o nome deriva de um córrego que serve de porta de entrada para a comunidade. Com aproximadamente vinte anos de existência é o primeiro quilombo amapaense que se iniciou como quilombo urbano fato que segundo Carril (2006, p. 11), se organiza em um meio que lhe é desfavorável: “No urbano, não se planta, não se pesca e nem se coletam frutos da mata. Na cidade fragmentada, os grupos se solidarizam para recuperar a autoestima em situações de marginalização social”. Mesmo com as dificuldades enfrentadas pela condição de quilombo urbano, o cotidiano dessa comunidade é marcado por seu trabalho relacionado à terra, ou seja, pelo tempo de roçar, tempo de plantar e colher, tempo de esperar pelo inverno e verão, dos quais dependem para obter uma boa safra, dentro das limitações que lhes são impostas. Foto 1 - Acesso à comunidade – ponte sobre o córrego Foto 2 - Casas da comunidade Fonte: Pesquisa de Campo. O processo de instalação começa com a chegada do fundador, Seu Benedito que veio do Maranhão com o intuito de se estabelecer em uma área de convívio para sua 2 Fala do líder da comunidade Sr. Benedito fazendo referência à localização do quilombo no município de Oiapoque, que, segundo dados históricos e geográficos é “onde começa o Brasil”. 3 família. Depois de algumas tentativas de moradia em lugares diferentes no Estado do Amapá, a comunidade se instalou em uma área de mata próxima a cidade de Oiapoque. Nessas terras os moradores se estabeleceram devido ao “casamento” da relação natureza com as práticas religiosas (Umbanda e Candomblé) da comunidade. Assim, outras famílias foram chegando e agregando-se na comunidade, inclusive indígenas do Oiapoque. Foto 3 - Seu Benedito (Pai Benedito - líder da comunidade) Fonte: Pesquisa de campo A comunidade possui moradores dentro e fora do local da mata. Fora dela o aumento da cidade já conferiu status de bairro e gera conflitos acerca do território. Mas, é nesse local, que é delimitado por ruas, quarteirões e possui uma especulação imobiliária crescente, que está a escola da comunidade, o campo de futebol e outras áreas de uso comum. Foto 4 - Expansão urbana na área do quilombo Fonte: Pesquisa de Campo. Nos últimos anos, com essa especulação imobiliária, o espaço do quilombo quase deixou de existir, pois, provavelmente, seria englobado por loteamentos desenvolvidos pela prefeitura do Município de Oiapoque. Os filhos e netos das primeiras famílias foram crescendo e muitos, sem condições de manter uma moradia no centro da cidade de Oiapoque, tiveram, por necessidade, de residir nas terras da comunidade; então, algumas novas casas estão sendo construídas dentro do quilombo, 4 que, segundo alguns informantes, fortalece a permanência nas terras, ou seja, a terra assume uma representação simbólica que ultrapassa a questão da sobrevivência, já que se apresenta como um elemento de integração social, de uma relação com seus ancestrais. Foto 5 - Três gerações da comunidade Fonte: Pesquisa de Campo. Essa íntima relação da comunidade com a terra, aponta para uma ligação da terra como território, pois conforme Borges (1997, p. 168), a identidade com a terra apontaria para a identidade com a luta, visto que: A identidade com a terra, identidade com a luta, iguais e diferentes, caminhando para construir um sujeito coletivo. Avanços, recuos, discussões, enfrentamento das próprias contradições em meio às contradições das sociedades que os apoiam através de algum seguimento ou os condena através de outros. Identidade e oposição na construção da sua identidade de sujeito coletivo. Para além do que aponta a citação anterior, o território deve ser entendido também como “uma parcela de identidade, fonte de uma relação de essência afetiva e até mesmo amorosa com o espaço. Pertencemos a um território, nós não o possuímos, nós o guardamos, nós o habitamos, nos impregnamos dele”. (BONNEMAISON; CAMBRÈZY, 1996, p. 14). Ainda nessa direção Malcher (2009, p. 06, 13) afirma que a relação de uma comunidade ao território se caracteriza como fator fundamental, afinal, “além de ser condição de sobrevivência física para os grupos, se constitui a terra como instrumento relevante à afirmação da identidade da comunidade, para a manutenção e continuidade de suas tradições”. Desse modo vale ressaltar que a terra é pensada não como propriedade individual, mas como apropriação comum ao grupo. A identidade, assim, não é algo dado, mas sempre um processo permanente de identificação, que se dá por meio da comunicação (diálogo e confronto) com outros sujeitos históricos. A territorialidade passa a ser a expressão deste processo no cotidiano destes sujeitos históricos. Acerca dessa particularidade, afirma Raffestin (1993, p. 147) 5 que: A formação de um território implica em comunicação, a partir da qual um indivíduo informa ao outro suas intenções e o espaço que eles ocupam. Um indivíduo, localizado em determinado ponto ou área do espaço, relaciona-se com outros pontos e áreas de acordo com seus objetivos e estabelece, nessa relação, uma representação do espaço. Essa representação é que se torna o fio condutor, podendo ser considerada a dialética representação do espaçoespaço da representação, o movimento básico desse processo de construção, por meio da intersubjetividade do espaço da ação. O lugar pode ser considerado como suporte da identidade cultural. Isso ocorre devido a sua participação ativa na vida dos indivíduos e dos grupos, principalmente através de um enfoque humanista. Segundo Bossé (2004, apud Corrêa; Rosendahl, p. 167), o enfoque humanista, ao descrever a ligação emocional aos espaços demarcados e fechados, “é um objeto carregado de valor e de sentido e, nesse sentido, um foco identitário em todas as escalas espaciais, desde o espaço cotidiano e familiar do lar até o território da coletividade nacional”. Bossé (2004, apud Corrêa; Rosendahl, p. 172) evidencia a identidade do lugar e a identidade com o lugar. Quanto à identidade do lugar, afirma que é uma realidade revelada pela territorialidade, pois a mesma é, ao mesmo tempo, o produto e a expressão de um ponto de vista interno e inclusivo. Já no que se refere à identidade com o lugar, a identificação com este ocorre porque “repousa sobre sua própria história e constitui o foco único, emissor e receptor de sua singularidade em um espaço de relações com outros lugares, próximos ou distantes, reais ou imaginários, assimilados ou rejeitados”. Assim, a identidade assume uma mediação espacial, onde o conceito de lugar torna-se peça chave para o seu entendimento. Isto ocorre em função de que o lugar participa inteiramente da vida dos indivíduos e dos grupos, pois mantém forte influência sobre estes e, até mesmo constrói, tanto subjetivamente como objetivamente, identidades culturais e sociais. Ainda no que diz respeito à construção da identidade territorial, Haesbaert (1999, p. 72) ressalta que existem duas dimensões: uma relacionada na memória coletiva, construída em torno do passado para confirmar uma diferenciação e construir, com maior sucesso, uma identidade, e outra ligada aos referenciais espaciais, tanto do passado como do presente, que podem ter várias origens. Em outro momento, o mesmo autor afirma que a identidade territorial “é uma identidade social definida fundamentalmente através do território, ou seja, dentro de uma relação de apropriação 6 que se dá tanto no campo das ideias quanto no da realidade concreta”. Entre diversos autores, existe um consenso de que toda identidade é uma construção social. Assim, os diferentes grupos sociais, ao longo do tempo, criaram significados, construindo identidades, sejam elas vinculadas a uma determinada cultura, ideologia, religião, etnia ou território, dentre outros. Di Méo (1998, p. 62) ressalta que os atores sociais, nessa construção identitária, retêm as sequências da história, as mais aptas, a fim de consolidar a identidade sócio-espacial, contudo a escolha dessas sequências na construção da memória coletiva não é aleatória. Elas servem para consolidar uma identidade territorial. E essa seleção mostra a ancestralidade da identidade, uma vez que “não apenas as experiências comuns vividas em um passado fundam a coletividade como entidade [social e territorial], mas também, o fato da coletividade se esforçando em produzir um passado comum e, frequentemente, um território”. Assim sendo, é na trama de todos os dias, como enfatiza Di Méo (1998, p. 48), que, “aquém e além do político e do econômico, [...] se manifestam, realizam-se e concretizam-se os mecanismos de identificação coletiva”. Esses mecanismos contribuem para a manifestação identitária em termos de pertencimento a um território. A construção de uma identidade étnica acontece justamente por meio desse sentimento de pertencimento a um determinado grupo e nesse caso, dos quilombos, esse sentimento está vinculado ao território de vivência. Dessa maneira, conforme Santos (2004, p. 26), o território em que vivemos “é mais que um simples conjunto de objetos, mediante os quais trabalhamos, circulamos, moramos, é também um dado simbólico. A territorialidade não provém do simples fato de viver num lugar, mas da comunhão que com ele mantemos”. Nesse sentido, a identidade territorial visa destacar o caráter único de um grupo, de um lugar e, longe de mergulhar unicamente suas raízes no passado, emerge antes de tudo nos desafios da atualidade e das lógicas sociais do cotidiano. Como lembram Gupta e Ferguson (2000, p. 34): “a identidade de um lugar surge da interseção entre seu envolvimento específico em um sistema de espaços hierarquicamente organizados e a sua construção cultural como comunidade ou localidade”. Assim, a relação da comunidade com o território representa o poder e liberdade para estabelecer um determinado modo de vida - uma identidade -, em um espaço, dando seguimento à reprodução material e simbólica desse modo de vida. 7 Por conseguinte, estabelecer relações entre identidade e território implica na apropriação simbólico-expressiva do espaço portador de significações e relações simbólicas. E a sua construção e/ou invenção perpassa principalmente pela dimensão histórica e pela construção do imaginário. Tal construção envolve relações de poder, como decisão de definir, de acordo Silva (2009, p. 82) “sobre quem está incluído e quem está excluído”, ou a escolha entre eventos e lugares do passado capazes de fazer sentido na atualidade. Portanto, ao buscar compreender o movimento que faz com que o território constitua o lugar da vivência, da experiência do indivíduo na sua relação com os outros, concebe-se a identidade como fator de aglutinação/separação e de mobilização para a ação coletiva. Em outras palavras, o território passa a ser o elemento de identidade onde se firma as particularidades de um grupo ou indivíduo com seu espaço de vivência, e da ação política. Na busca constante para manter esse lugar de vivência, esse território, a comunidade do Kulumbu do Patuazinho empreendeu diversas ações, algumas com fortes tensões, em função da especulação imobiliária - para que junto a Fundação Palmares adquirisse a certificação de “remanescente de quilombo”; tal pleito vai se concretizar em 2010. Segundo os moradores essa certificação foi extremamente positiva para que não perdessem definitivamente suas terras à especulação imobiliária. Por outro lado, os moradores entendem também que essa ação aumentou o poder de articulação para pleitear, junto aos órgãos públicos, melhorias para a comunidade. Foto 6 - Dona Maria Assunção, moradora mais antiga da comunidade, recebendo em 2010 a Certificação de Comunidade Remanescente de Quilombo emitido pela Fundação Palmares. Fonte: Pesquisa de campo. A certificação de Comunidade Remanescente de Quilombo pela Fundação Palmares representou também um ato simbólico de resistência, que ecoou para além das fronteiras do quilombo, transformando-se num ato político, tanto que durante a 8 solenidade de entrega da documentação, inúmeros políticos se fizeram presentes nas dependências do quilombo. Vale ressaltar que, segundo os moradores, essas presenças “ilustres”, pouco representou para a realização de ações afirmativas na comunidade. A situação da comunidade do Kulumbu do Patuazinho , assim como de todas as comunidades quilombolas do Amapá, como já mencionamos anteriormente, gira em torno da necessidade de permanência na terra, com direito a titulação, bem como a todas as políticas públicas destinadas ao povo brasileiro, com destaque para saúde, educação e renda. Nesse contexto, a principal atividade econômica da comunidade ainda está no cultivo da terra e de outras formas de produção como avicultura, todas com o foco principal na subsistência. Nas roças, o produto mais cultivado é a mandioca, para a produção da farinha e a produção de hortaliças. Fotos 7 / 8 - Produção agrícola da comunidade Fonte: Pesquisa de Campo. Além das atividades produtivas anteriormente citadas, a comunidade também produz óleos extraídos de buriti e da andiroba dentre outros. Outro aspecto é a confecção de artesanato com materiais da natureza, como sementes, penas de aves, cipós, dentre outros, realizado principalmente por alguns indígenas que moram na comunidade. Assim, há necessidade de uma proteção especial para a propriedade do quilombo, tendo em vista que todas as atividades relacionadas à utilização da terra são feitas em regime de uso comum, o que de certa forma permite a consolidação do território étnico e representa um fator relevante de identidade cultural e coesão/mobilização social. 9 2 AS TRADIÇÕES CULTURAIS: MARCAS COMUNIDADE DO KULUMBU DO PATUAZINHO IDENTITÁRIAS DA A comunidade do Kulumbu do Patuazinho apresenta um rico patrimônio cultural que ainda é pouco conhecido fora da comunidade. Um dos pontos que mais chama a atenção nos relatos apresentados pela comunidade é a relação que eles mantêm com a natureza, seja nos relatos situados num passado distante ou mesmo no presente, uma demonstração de que a natureza é um dos elementos identitários fundamentais a nortear a trajetória da comunidade. Foto 9 - A Samaumeira3 de dentro do quilombo Fonte: Pesquisa de Campo. A construção das casas foi primeiramente em outro local na mata, assim como a igreja e o templo religioso onde são guardadas as imagens dos orixás, mas somente em volta dessa sumaúma é que a comunidade se solidificou. Em volta da samaumeira estão construídas com diferentes tipos de materiais a igreja, o templo religioso, as moradias e no centro um espaço com bancos para a recepção de pessoas e de lazer dos moradores. A árvore contém nomes de pessoas que voltam na comunidade quando tem seu pedido, feito ao Pai Mariano e aos orixás, atendido. 3 Árvore frondosa, considerada sagrada para os que habitam às florestas. É muito admirada por sua beleza natural, pelos mistérios que a cercam e pelas propriedades medicinais inexploradas. 10 Foto 10 - Casas construídas na floresta do quilombo, em torno da samaumeira. Fonte: Pesquisa de Campo. Existe um misto da cultura indígena amazônica com a cultura afro-brasileira que se consolidou com o casamento de Seu Benedito com uma indígena. Dessa relação foram agregados outros patrimônios materiais como a confecção de artesanato com materiais da natureza, como sementes, penas de aves e dentes de animais, realizado por indígenas que moram na comunidade. Foto 11 - Mulher indígena do quilombo produzindo artesanato Fonte: Pesquisa de Campo. Em torno da liderança religiosa os moradores se organizam e se interligam através dos rituais e das festas. A religião candomblé e o batuque são os patrimônios da comunidade, já trazidos pelos moradores do Maranhão e aperfeiçoados em Kulumbu do Patuazinho, adquirindo novos contornos com o intercâmbio com a cultura indígena, com a cultura guianense (especialmente a cultura dos negros guianenses, que frequentemente estão no quilombo) e com outros fatores que se associam no cotidiano da comunidade. É no “terreiro” que realizam as comemorações referentes aos dias consagrados às entidades. 11 Fotos 12 /13 - Momentos do Candomblé na comunidade Fonte: Pesquisa de Campo. A religiosidade, considerada um dos bens imateriais mais importantes da comunidade, tem como referência a Umbanda e o Candomblé, com destaque maior para a segunda, esse aspecto religioso se destaca e ganha uma característica específica, que não aparece nas demais comunidades amapaenses que se autoidentificam como remanescente de quilombo. Portanto torna, por um lado, a única comunidade quilombola amapaense que tem a religião de matriz africana com maior relevância na sua construção identitária, e por outro lado, a única que apresenta uma interação entre identidade quilombola e indígena convivendo no mesmo espaço/território, o quilombo. Sobre questões do hibridismo Canclini (1997) ressalta como um elemento positivo para o multiculturalismo, ou seja, como um espaço que proporciona o diálogo entre culturas diferentes. Foto 14 – Negros e índios na comunidade Fonte: Pesquisa de campo Ainda em relação aos bens simbólicos da comunidade destaca-se a confecção dos instrumentos do batuque, feitos na própria comunidade seguindo um ritual. Adentram a mata e selecionam um “o toco”, tronco de árvore já danificado, para ser esculpido e transformado em tambor. Perto da sumaúma, no centro da comunidade, existem os apetrechos utilizados para esticar o couro de gado utilizado para cobrir o tambor, em seguida levam ao calor do fogo e fazem a afinação do instrumento que será utilização nos rituais tradicionais da comunidade. 12 Foto 15 - Construção artesanal do tambor Foto 16 - Tambor sendo aquecido ao fogo Fonte: Pesquisa de Campo. No entorno da sumaúma se encontram vários símbolos que representam códigos religiosos, o que há também dentro da igreja de São Jorge. A igreja se torna, quando preciso, um espaço para dançar o batuque, principalmente quando há convidados. Nos relatos da comunidade, quando só há os moradores o batuque é feito a céu aberto com os pés descalços perto da sumaúma. A comunidade festeja São Jorge, sendo que é em agosto e reúne os aspectos da religião católica com os da umbanda, assim como em outras regiões do país. Muitos convidados de fora da comunidade trazem bebidas como presente, sendo em maior parte pessoas que foram agraciadas com os pedidos ao “Pai Mariano”. Foto 17 – Celebração afro-religiosa na Igreja/Terreiro de São Jorge dentro da comunidade Fonte: Pesquisa de Campo. Outro patrimônio cultural a mencionar, são algumas casas de taipa (barro), localizadas na área de floresta do quilombo, utilizando apenas produtos naturais. O que representa uma marca identitária, pois segundo Melquíades Júnior (2010, p. 01), a casa feita de taipa, também conhecida como de pau-a-pique, feita de barro e madeira, “atravessa milênios, permeia culturas, e mais do que uma imposição social nos dias atuais, é sinal de liberdade criadora do lar próprio, numa intensa relação entre o ser humano e a natureza que o cerca”. 13 Fotos 18 /19 - Casas de taipa (barro) construída na comunidade Fonte: Pesquisa de campo Outro saber muito importante preservado pela comunidade, que garante o alimento de algumas famílias é a extração dos frutos do açaí nas palmeiras e seu manuseio para transformá-lo em um líquido espesso para beber, geralmente em uma tigela. A extração é realizada em pés de açaí que estão dentro da área do quilombo. Para chegar aos pés de açaí e saber onde existem estes, os moradores saem em busca de reconhecimento prévio do território ou ainda, buscam conhecimento com os mais antigos. Da mesma forma é realizada a passagem de conhecimento das mudas que produzem mais frutos e das que produzem os melhores grãos. Tais ações despertam nos moradores a necessidade de preservação da natureza para manter sustentável, suas atividades econômicas. Desse modo, entende-se que os membros da comunidade do Kulumbu do Patuazinho possuem a necessidade de valorizar a própria cultura, como forma de resistência a essa massa cultural que são submetidos por necessidade de se estabelecerem em uma sociedade de consumo, e que trabalham um movimento inverso de uma cultura popular que sai de dentro da comunidade de uma forma forte e resistente e que permeia a sociedade ao seu redor. Um movimento que auxilie a comunidade na preservação da própria cultura pode servir para que suas tradições não se percam. O Kulumbu do Patuazinho já nasceu como uma comunidade quilombola e possui essa identidade autodeclarada. Diferencia-se do cenário das demais comunidades quilombolas do Amapá e por isso merece destaque, é afrodescendente e que mesmo não possuindo a idade cronológica das demais comunidades, mantém suas tradições e luta para conservá-las. Apesar dos precursores da comunidade terem vindo de outro estado, Maranhão, o quilombo adquiriu e tem em sua cultura um amplo conhecimento da 14 história amapaense advindo principalmente da relação com os indígenas. Já na terceira geração, a comunidade quilombola do Kulumbu do Patuazinho cresce e se fortalece através de seus laços de parentesco e organização de cunho religioso, bem como na ligação com a terra (território). Assim sendo, a terra (território) para essa comunidade, representa um valor vital, um espaço de integração, das histórias vividas, fruto da memória e da experiência pessoal e compartilhada, é a marca mais significativa de sua identidade. De acordo com Gusmão (1999, p. 147), a terra (território) quilombola constitui-se também um patrimônio cultural comum e, desse modo, é diferente de outras terras e de outros grupos, visto que: O negro faz parte de uma terra singular, uma terra que possui e da qual é possuído. Sua história nela se inscreve e ele próprio, enquanto negro, nela - a terra – encontra-se inscrito [...] sua relação com ela (terra) é centrada em ritos, mitos, lendas e fatos. Memórias que contam a sua saga, revelam a sua origem e desvendam, além da própria trajetória, a vida em seu movimento. Dessa maneira, a comunidade do Kulumbu do Patuazinho tem nos últimos anos ampliado a luta pela manutenção da terra e pelo reconhecimento por parte do poder público, da propriedade garantida pela Constituição Federal. Portanto, para eles, conforme Pedroso (1999, p. 33) “quem não vive as próprias raízes não tem sentido de vida. O futuro nasce do passado, que não deve ser cultuado como mera recordação e sim ser usado para o crescimento no presente, em direção ao futuro”, desse modo, continua o autor, “nós não precisamos ser conservadores, nem devemos estar presos ao passado, mas precisamos ser legítimos e só as raízes nos dão legitimidade”. E essas raízes estão “fincadas” na terra, aqui entendida num sentido amplo, envolvendo a terra como elemento fundamental para a reprodução material da vida, mas também “a terra na qual o simbólico paira, na qual a memória encontra lugar privilegiado, morada de mitos e lendas, fonte de beleza, inspiração e do sentido sagrado da coletividade, tão essencial à vida quanto a terra de trabalho” (SILVA, 2012, p. 7). Por fim, com a criação da associação comunitária do Kulumbu do Patuazinho e do reconhecimento como Comunidade Remanescente de Quilombo, diversos projetos e objetivos voltados para a questão da preservação/manutenção do território e divulgação da identidade cultural da comunidade foram traçados pelos moradores e por outras entidades voltadas para as questões quilombolas do Amapá. Dentre esses projetos: tornar o local um ponto turístico e poder receber a visitação de 15 grupos de excursão principalmente de amapaenses e guianenses; ter um espaço que possa abrigar o patrimônio material e que conserve a história das primeiras famílias, a produção de artesanato, além de outros projetos, são as expectativas da comunidade. REFERÊNCIAS BONNEMAISON, J. e CAMBREZY, L. Le lien territorial : entre frontières et identités. Géographies et Cultures (Le Territoire) n. 20 (inverno). Paris, L’ HarmattanCNRS, 1996. BORGES, Maria Stela L. Terra, ponto de partida, ponto de chegada: identidade e luta pela terra. São Paulo: Anita Garibaldi, 1997. BOSSÉ, Mathias Le. As questões de identidade em Geografia cultural: algumas concepções contemporâneas. In: CORRÊA, Roberto L. ; ROSENDAHL, Zeny (Org.). Paisagens, textos e identidades. Rio de Janeiro: UERJ, 2004. CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Trad. Heloiza Pezzoo Cintrão, Ana Regina Lessa. São Paulo: EDUSP, 1997. CARRIL, Lourdes de F. Quilombola, território e geografia. In: Revista Agrária, n° 3. São Paulo, 2006. Versão eletrônica: http://www.geografia. DI MÉO, Guy. Géographie Sociale et Territoires. Paris: Nathan, 1998. GUPTA, Akhil; FERGUSON, J. Mais além da “cultura”: espaço, identidade e política da diferença. In: ARANTES, Antônio (Org.). O espaço da diferença. Campinas: Papirus, 2000. HAESBAERT, Rogério. Identidades territoriais. In: CORRÊA, Roberto L.; ROSENDAHL, Zeny (Org.). Manifestações da cultura no espaço. Rio de Janeiro: UERJ, 1999. MALCHER, Maria A. Identidade Quilombola e Território. Comunicação do III Fórum Mundial de Teologia e Libertação. Belém, 2010. Melquíades J. Casa de taipa expressa cultura – artigo publicado em 05/04/2010. Disponível em: <http://[email protected]>. 1° acesso em 2013. PEDROSO, Regina Célia. Violência e Cidadania no Brasil: 500 anos de exclusão. São Paulo: Ática, 1999. RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia do Poder. In: Território e poder. Trad. Maria Cecília França. São Paulo: Ática, 1993. SANTOS, Milton. Território e Sociedade. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abrano, 2004. 16 SILVA, Simone Rezende da. Quilombos no Brasil: a memória como forma de reinvenção da identidade e territorialidade negra. In: XII Colóquio de Geocrítica. Disponível em <http://www.ub.edu/geocrit/coloquio2012>. Acesso em 2014.