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IDENTIDADE QUILOMBOLA NA FRONTEIRA ENTRE O AMAPÁ E A
GUIANA FRANCESA
Manoel Azevedo de Souza1
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo discutir a construção da identidade quilombola na
fronteira entre o Amapá e a Guiana Francesa. Dentre os principais aspectos abordamos a
relação território e identidade, desse modo empreendemos análises relevantes ao
conceito de território para entender o processo de construção da identidade quilombola
na comunidade do Kulumbu do Patuazinho. Essa comunidade está localizada no
município de Oiapoque (672 km da capital, Macapá), região que divide a fronteira
brasileira com a Guiana Francesa. Essa comunidade quilombola mantém um constante
intercâmbio com negros da Guiana Francesa, especialmente com os que, como eles,
professam religiosidade de matriz africana (Umbanda e Candomblé); é o primeiro
quilombo amapaense que se iniciou como quilombo geograficamente urbano. Com a
expansão urbana e a especulação imobiliária no referido município, há constantemente
tentativas do poder público, principalmente municipal, em descaracterizar e não
reconhecer o espaço como área de quilombo. Busca-se, nesta pesquisa, identificar o
processo de ressignificação quilombola a partir da defesa pela terra e pelo sentimento de
pertença, demonstrando que o movimento de construção da identidade quilombola está
estreitamente relacionado ao território, e mais ainda, a terra assume uma representação
que ultrapassa a questão da sobrevivência, uma vez que se apresenta como elemento de
coesão social, de ligação com a ancestralidade.
PALAVRAS-CHAVE: Identidade; Quilombola; Território; Amapá.
1 Professor da Universidade Federal do Amapá/Unifap. Mestre em Desenvolvimento Regional;
Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará/UFC.
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1 PERCURSO HISTÓRICO DA COMUNIDADE E A LUTA PELO TERRIÓRIO
Temos o orgulho de ser a comunidade
quilombola de onde começa o Brasil.2
Localizada no município de Oiapoque, com acesso pela BR 156, km 672, a
comunidade do Kulumbu do Patuazinho, o nome deriva de um córrego que serve de
porta de entrada para a comunidade. Com aproximadamente vinte anos de existência é o
primeiro quilombo amapaense que se iniciou como quilombo urbano fato que segundo
Carril (2006, p. 11), se organiza em um meio que lhe é desfavorável: “No urbano, não
se planta, não se pesca e nem se coletam frutos da mata. Na cidade fragmentada, os
grupos se solidarizam para recuperar a autoestima em situações de marginalização
social”.
Mesmo com as dificuldades enfrentadas pela condição de quilombo urbano,
o cotidiano dessa comunidade é marcado por seu trabalho relacionado à terra, ou seja,
pelo tempo de roçar, tempo de plantar e colher, tempo de esperar pelo inverno e verão,
dos quais dependem para obter uma boa safra, dentro das limitações que lhes são
impostas.
Foto 1 - Acesso à comunidade – ponte sobre o córrego
Foto 2 - Casas da comunidade
Fonte: Pesquisa de Campo.
O processo de instalação começa com a chegada do fundador, Seu Benedito
que veio do Maranhão com o intuito de se estabelecer em uma área de convívio para sua
2 Fala do líder da comunidade Sr. Benedito fazendo referência à localização do quilombo no município
de Oiapoque, que, segundo dados históricos e geográficos é “onde começa o Brasil”.
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família. Depois de algumas tentativas de moradia em lugares diferentes no Estado do
Amapá, a comunidade se instalou em uma área de mata próxima a cidade de Oiapoque.
Nessas terras os moradores se estabeleceram devido ao “casamento” da relação natureza
com as práticas religiosas (Umbanda e Candomblé) da comunidade. Assim, outras
famílias foram chegando e agregando-se na comunidade, inclusive indígenas do
Oiapoque.
Foto 3 - Seu Benedito (Pai Benedito - líder da comunidade)
Fonte: Pesquisa de campo
A comunidade possui moradores dentro e fora do local da mata. Fora dela o
aumento da cidade já conferiu status de bairro e gera conflitos acerca do território. Mas,
é nesse local, que é delimitado por ruas, quarteirões e possui uma especulação
imobiliária crescente, que está a escola da comunidade, o campo de futebol e outras
áreas de uso comum.
Foto 4 - Expansão urbana na área do quilombo
Fonte: Pesquisa de Campo.
Nos últimos anos, com essa especulação imobiliária, o espaço do quilombo
quase deixou de existir, pois, provavelmente, seria englobado por loteamentos
desenvolvidos pela prefeitura do Município de Oiapoque. Os filhos e netos das
primeiras famílias foram crescendo e muitos, sem condições de manter uma moradia no
centro da cidade de Oiapoque, tiveram, por necessidade, de residir nas terras da
comunidade; então, algumas novas casas estão sendo construídas dentro do quilombo,
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que, segundo alguns informantes, fortalece a permanência nas terras, ou seja, a terra
assume uma representação simbólica que ultrapassa a questão da sobrevivência, já que
se apresenta como um elemento de integração social, de uma relação com seus
ancestrais.
Foto 5 - Três gerações da comunidade
Fonte: Pesquisa de Campo.
Essa íntima relação da comunidade com a terra, aponta para uma ligação da
terra como território, pois conforme Borges (1997, p. 168), a identidade com a terra
apontaria para a identidade com a luta, visto que:
A identidade com a terra, identidade com a luta, iguais e diferentes,
caminhando para construir um sujeito coletivo. Avanços, recuos, discussões,
enfrentamento das próprias contradições em meio às contradições das
sociedades que os apoiam através de algum seguimento ou os condena
através de outros. Identidade e oposição na construção da sua identidade de
sujeito coletivo.
Para além do que aponta a citação anterior, o território deve ser entendido
também como “uma parcela de identidade, fonte de uma relação de essência afetiva e
até mesmo amorosa com o espaço. Pertencemos a um território, nós não o possuímos,
nós o guardamos, nós o habitamos, nos impregnamos dele”. (BONNEMAISON;
CAMBRÈZY, 1996, p. 14).
Ainda nessa direção Malcher (2009, p. 06, 13) afirma que a relação de uma
comunidade ao território se caracteriza como fator fundamental, afinal, “além de ser
condição de sobrevivência física para os grupos, se constitui a terra como instrumento
relevante à afirmação da identidade da comunidade, para a manutenção e continuidade
de suas tradições”. Desse modo vale ressaltar que a terra é pensada não como
propriedade individual, mas como apropriação comum ao grupo.
A identidade, assim, não é algo dado, mas sempre um processo permanente
de identificação, que se dá por meio da comunicação (diálogo e confronto) com outros
sujeitos históricos. A territorialidade passa a ser a expressão deste processo no cotidiano
destes sujeitos históricos. Acerca dessa particularidade, afirma Raffestin (1993, p. 147)
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que:
A formação de um território implica em comunicação, a partir da qual um
indivíduo informa ao outro suas intenções e o espaço que eles ocupam. Um
indivíduo, localizado em determinado ponto ou área do espaço, relaciona-se
com outros pontos e áreas de acordo com seus objetivos e estabelece, nessa
relação, uma representação do espaço. Essa representação é que se torna o fio
condutor, podendo ser considerada a dialética representação do espaçoespaço da representação, o movimento básico desse processo de construção,
por meio da intersubjetividade do espaço da ação.
O lugar pode ser considerado como suporte da identidade cultural. Isso
ocorre devido a sua participação ativa na vida dos indivíduos e dos grupos,
principalmente através de um enfoque humanista. Segundo Bossé (2004, apud Corrêa;
Rosendahl, p. 167), o enfoque humanista, ao descrever a ligação emocional aos espaços
demarcados e fechados, “é um objeto carregado de valor e de sentido e, nesse sentido,
um foco identitário em todas as escalas espaciais, desde o espaço cotidiano e familiar do
lar até o território da coletividade nacional”.
Bossé (2004, apud Corrêa; Rosendahl, p. 172) evidencia a identidade do
lugar e a identidade com o lugar. Quanto à identidade do lugar, afirma que é uma
realidade revelada pela territorialidade, pois a mesma é, ao mesmo tempo, o produto e a
expressão de um ponto de vista interno e inclusivo. Já no que se refere à identidade com
o lugar, a identificação com este ocorre porque “repousa sobre sua própria história e
constitui o foco único, emissor e receptor de sua singularidade em um espaço de
relações com outros lugares, próximos ou distantes, reais ou imaginários, assimilados
ou rejeitados”.
Assim, a identidade assume uma mediação espacial, onde o conceito de
lugar torna-se peça chave para o seu entendimento. Isto ocorre em função de que o lugar
participa inteiramente da vida dos indivíduos e dos grupos, pois mantém forte influência
sobre estes e, até mesmo constrói, tanto subjetivamente como objetivamente,
identidades culturais e sociais.
Ainda no que diz respeito à construção da identidade territorial, Haesbaert
(1999, p. 72) ressalta que existem duas dimensões: uma relacionada na memória
coletiva, construída em torno do passado para confirmar uma diferenciação e construir,
com maior sucesso, uma identidade, e outra ligada aos referenciais espaciais, tanto do
passado como do presente, que podem ter várias origens. Em outro momento, o mesmo
autor afirma que a identidade territorial “é uma identidade social definida
fundamentalmente através do território, ou seja, dentro de uma relação de apropriação
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que se dá tanto no campo das ideias quanto no da realidade concreta”. Entre diversos
autores, existe um consenso de que toda identidade é uma construção social. Assim, os
diferentes grupos sociais, ao longo do tempo, criaram significados, construindo
identidades, sejam elas vinculadas a uma determinada cultura, ideologia, religião, etnia
ou território, dentre outros.
Di Méo (1998, p. 62) ressalta que os atores sociais, nessa construção
identitária, retêm as sequências da história, as mais aptas, a fim de consolidar a
identidade sócio-espacial, contudo a escolha dessas sequências na construção da
memória coletiva não é aleatória. Elas servem para consolidar uma identidade
territorial. E essa seleção mostra a ancestralidade da identidade, uma vez que “não
apenas as experiências comuns vividas em um passado fundam a coletividade como
entidade [social e territorial], mas também, o fato da coletividade se esforçando em
produzir um passado comum e, frequentemente, um território”.
Assim sendo, é na trama de todos os dias, como enfatiza Di Méo (1998, p.
48), que, “aquém e além do político e do econômico, [...] se manifestam, realizam-se e
concretizam-se os mecanismos de identificação coletiva”. Esses mecanismos
contribuem para a manifestação identitária em termos de pertencimento a um território.
A construção de uma identidade étnica acontece justamente por meio desse
sentimento de pertencimento a um determinado grupo e nesse caso, dos quilombos, esse
sentimento está vinculado ao território de vivência. Dessa maneira, conforme Santos
(2004, p. 26), o território em que vivemos “é mais que um simples conjunto de objetos,
mediante os quais trabalhamos, circulamos, moramos, é também um dado simbólico. A
territorialidade não provém do simples fato de viver num lugar, mas da comunhão que
com ele mantemos”.
Nesse sentido, a identidade territorial visa destacar o caráter único de um
grupo, de um lugar e, longe de mergulhar unicamente suas raízes no passado, emerge
antes de tudo nos desafios da atualidade e das lógicas sociais do cotidiano. Como
lembram Gupta e Ferguson (2000, p. 34): “a identidade de um lugar surge da interseção
entre seu envolvimento específico em um sistema de espaços hierarquicamente
organizados e a sua construção cultural como comunidade ou localidade”. Assim, a
relação da comunidade com o território representa o poder e liberdade para estabelecer
um determinado modo de vida - uma identidade -, em um espaço, dando seguimento à
reprodução material e simbólica desse modo de vida.
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Por conseguinte, estabelecer relações entre identidade e território implica na
apropriação simbólico-expressiva do espaço portador de significações e relações
simbólicas. E a sua construção e/ou invenção perpassa principalmente pela dimensão
histórica e pela construção do imaginário. Tal construção envolve relações de poder,
como decisão de definir, de acordo Silva (2009, p. 82) “sobre quem está incluído e
quem está excluído”, ou a escolha entre eventos e lugares do passado capazes de fazer
sentido na atualidade.
Portanto, ao buscar compreender o movimento que faz com que o território
constitua o lugar da vivência, da experiência do indivíduo na sua relação com os outros,
concebe-se a identidade como fator de aglutinação/separação e de mobilização para a
ação coletiva. Em outras palavras, o território passa a ser o elemento de identidade onde
se firma as particularidades de um grupo ou indivíduo com seu espaço de vivência, e da
ação política.
Na busca constante para manter esse lugar de vivência, esse território, a
comunidade do Kulumbu do Patuazinho empreendeu diversas ações, algumas com
fortes tensões, em função da especulação imobiliária - para que junto a Fundação
Palmares adquirisse a certificação de “remanescente de quilombo”; tal pleito vai se
concretizar em 2010. Segundo os moradores essa certificação foi extremamente positiva
para que não perdessem definitivamente suas terras à especulação imobiliária. Por outro
lado, os moradores entendem também que essa ação aumentou o poder de articulação
para pleitear, junto aos órgãos públicos, melhorias para a comunidade.
Foto 6 - Dona Maria Assunção, moradora mais antiga da comunidade, recebendo em 2010 a
Certificação de Comunidade Remanescente de Quilombo emitido pela Fundação Palmares.
Fonte: Pesquisa de campo.
A certificação de Comunidade Remanescente de Quilombo pela Fundação
Palmares representou também um ato simbólico de resistência, que ecoou para além das
fronteiras do quilombo, transformando-se num ato político, tanto que durante a
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solenidade de entrega da documentação, inúmeros políticos se fizeram presentes nas
dependências do quilombo. Vale ressaltar que, segundo os moradores, essas presenças
“ilustres”, pouco representou para a realização de ações afirmativas na comunidade.
A situação da comunidade do Kulumbu do Patuazinho , assim como de
todas as comunidades quilombolas do Amapá, como já mencionamos anteriormente,
gira em torno da necessidade de permanência na terra, com direito a titulação, bem
como a todas as políticas públicas destinadas ao povo brasileiro, com destaque para
saúde, educação e renda.
Nesse contexto, a principal atividade econômica da comunidade ainda está
no cultivo da terra e de outras formas de produção como avicultura, todas com o foco
principal na subsistência. Nas roças, o produto mais cultivado é a mandioca, para a
produção da farinha e a produção de hortaliças.
Fotos 7 / 8 - Produção agrícola da comunidade
Fonte: Pesquisa de Campo.
Além das atividades produtivas anteriormente citadas, a comunidade
também produz óleos extraídos de buriti e da andiroba dentre outros. Outro aspecto é a
confecção de artesanato com materiais da natureza, como sementes, penas de aves,
cipós, dentre outros, realizado principalmente por alguns indígenas que moram na
comunidade.
Assim, há necessidade de uma proteção especial para a propriedade do
quilombo, tendo em vista que todas as atividades relacionadas à utilização da terra são
feitas em regime de uso comum, o que de certa forma permite a consolidação do
território étnico e representa um fator relevante de identidade cultural e
coesão/mobilização social.
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2 AS TRADIÇÕES CULTURAIS: MARCAS
COMUNIDADE DO KULUMBU DO PATUAZINHO
IDENTITÁRIAS
DA
A comunidade do Kulumbu do Patuazinho apresenta um rico patrimônio
cultural que ainda é pouco conhecido fora da comunidade. Um dos pontos que mais
chama a atenção nos relatos apresentados pela comunidade é a relação que eles mantêm
com a natureza, seja nos relatos situados num passado distante ou mesmo no presente,
uma demonstração de que a natureza é um dos elementos identitários fundamentais a
nortear a trajetória da comunidade.
Foto 9 - A Samaumeira3 de dentro do quilombo
Fonte: Pesquisa de Campo.
A construção das casas foi primeiramente em outro local na mata, assim
como a igreja e o templo religioso onde são guardadas as imagens dos orixás, mas
somente em volta dessa sumaúma é que a comunidade se solidificou.
Em volta da samaumeira estão construídas com diferentes tipos de materiais
a igreja, o templo religioso, as moradias e no centro um espaço com bancos para a
recepção de pessoas e de lazer dos moradores. A árvore contém nomes de pessoas que
voltam na comunidade quando tem seu pedido, feito ao Pai Mariano e aos orixás,
atendido.
3 Árvore frondosa, considerada sagrada para os que habitam às florestas. É muito admirada por sua
beleza natural, pelos mistérios que a cercam e pelas propriedades medicinais inexploradas.
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Foto 10 - Casas construídas na floresta do quilombo, em torno da samaumeira.
Fonte: Pesquisa de Campo.
Existe um misto da cultura indígena amazônica com a cultura afro-brasileira
que se consolidou com o casamento de Seu Benedito com uma indígena. Dessa relação
foram agregados outros patrimônios materiais como a confecção de artesanato com
materiais da natureza, como sementes, penas de aves e dentes de animais, realizado por
indígenas que moram na comunidade.
Foto 11 - Mulher indígena do quilombo produzindo artesanato
Fonte: Pesquisa de Campo.
Em torno da liderança religiosa os moradores se organizam e se interligam
através dos rituais e das festas. A religião candomblé e o batuque são os patrimônios da
comunidade, já trazidos pelos moradores do Maranhão e aperfeiçoados em Kulumbu do
Patuazinho, adquirindo novos contornos com o intercâmbio com a cultura indígena,
com a cultura guianense (especialmente a cultura dos negros guianenses, que
frequentemente estão no quilombo) e com outros fatores que se associam no cotidiano
da comunidade. É no “terreiro” que realizam as comemorações referentes aos dias
consagrados às entidades.
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Fotos 12 /13 - Momentos do Candomblé na comunidade
Fonte: Pesquisa de Campo.
A religiosidade, considerada um dos bens imateriais mais importantes da
comunidade, tem como referência a Umbanda e o Candomblé, com destaque maior para
a segunda, esse aspecto religioso se destaca e ganha uma característica específica, que
não aparece nas demais comunidades amapaenses que se autoidentificam como
remanescente de quilombo. Portanto torna, por um lado, a única comunidade
quilombola amapaense que tem a religião de matriz africana com maior relevância na
sua construção identitária, e por outro lado, a única que apresenta uma interação entre
identidade quilombola e indígena convivendo no mesmo espaço/território, o quilombo.
Sobre questões do hibridismo Canclini (1997) ressalta como um elemento positivo para
o multiculturalismo, ou seja, como um espaço que proporciona o diálogo entre culturas
diferentes.
Foto 14 – Negros e índios na comunidade
Fonte: Pesquisa de campo
Ainda em relação aos bens simbólicos da comunidade destaca-se a
confecção dos instrumentos do batuque, feitos na própria comunidade seguindo um
ritual. Adentram a mata e selecionam um “o toco”, tronco de árvore já danificado, para
ser esculpido e transformado em tambor. Perto da sumaúma, no centro da comunidade,
existem os apetrechos utilizados para esticar o couro de gado utilizado para cobrir o
tambor, em seguida levam ao calor do fogo e fazem a afinação do instrumento que será
utilização nos rituais tradicionais da comunidade.
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Foto 15 - Construção artesanal do tambor
Foto 16 - Tambor sendo aquecido ao fogo
Fonte: Pesquisa de Campo.
No entorno da sumaúma se encontram vários símbolos que representam
códigos religiosos, o que há também dentro da igreja de São Jorge. A igreja se torna,
quando preciso, um espaço para dançar o batuque, principalmente quando há
convidados. Nos relatos da comunidade, quando só há os moradores o batuque é feito a
céu aberto com os pés descalços perto da sumaúma.
A comunidade festeja São Jorge, sendo que é em agosto e reúne os aspectos
da religião católica com os da umbanda, assim como em outras regiões do país. Muitos
convidados de fora da comunidade trazem bebidas como presente, sendo em maior parte
pessoas que foram agraciadas com os pedidos ao “Pai Mariano”.
Foto 17 – Celebração afro-religiosa na Igreja/Terreiro de São Jorge dentro da comunidade
Fonte: Pesquisa de Campo.
Outro patrimônio cultural a mencionar, são algumas casas de taipa (barro),
localizadas na área de floresta do quilombo, utilizando apenas produtos naturais. O que
representa uma marca identitária, pois segundo Melquíades Júnior (2010, p. 01), a casa
feita de taipa, também conhecida como de pau-a-pique, feita de barro e madeira,
“atravessa milênios, permeia culturas, e mais do que uma imposição social nos dias
atuais, é sinal de liberdade criadora do lar próprio, numa intensa relação entre o ser
humano e a natureza que o cerca”.
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Fotos 18 /19 - Casas de taipa (barro) construída na comunidade
Fonte: Pesquisa de campo
Outro saber muito importante preservado pela comunidade, que garante o
alimento de algumas famílias é a extração dos frutos do açaí nas palmeiras e seu
manuseio para transformá-lo em um líquido espesso para beber, geralmente em uma
tigela.
A extração é realizada em pés de açaí que estão dentro da área do quilombo.
Para chegar aos pés de açaí e saber onde existem estes, os moradores saem em busca de
reconhecimento prévio do território ou ainda, buscam conhecimento com os mais
antigos. Da mesma forma é realizada a passagem de conhecimento das mudas que
produzem mais frutos e das que produzem os melhores grãos. Tais ações despertam nos
moradores a necessidade de preservação da natureza para manter sustentável, suas
atividades econômicas.
Desse modo, entende-se que os membros da comunidade do Kulumbu do
Patuazinho possuem a necessidade de valorizar a própria cultura, como forma de
resistência a essa massa cultural que são submetidos por necessidade de se
estabelecerem em uma sociedade de consumo, e que trabalham um movimento inverso
de uma cultura popular que sai de dentro da comunidade de uma forma forte e resistente
e que permeia a sociedade ao seu redor. Um movimento que auxilie a comunidade na
preservação da própria cultura pode servir para que suas tradições não se percam.
O Kulumbu do Patuazinho já nasceu como uma comunidade quilombola e
possui essa identidade autodeclarada. Diferencia-se do cenário das demais comunidades
quilombolas do Amapá e por isso merece destaque, é afrodescendente e que mesmo não
possuindo a idade cronológica das demais comunidades, mantém suas tradições e luta
para conservá-las.
Apesar dos precursores da comunidade terem vindo de outro estado,
Maranhão, o quilombo adquiriu e tem em sua cultura um amplo conhecimento da
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história amapaense advindo principalmente da relação com os indígenas. Já na terceira
geração, a comunidade quilombola do Kulumbu do Patuazinho cresce e se fortalece
através de seus laços de parentesco e organização de cunho religioso, bem como na
ligação com a terra (território).
Assim sendo, a terra (território) para essa comunidade, representa um valor
vital, um espaço de integração, das histórias vividas, fruto da memória e da experiência
pessoal e compartilhada, é a marca mais significativa de sua identidade. De acordo com
Gusmão (1999, p. 147), a terra (território) quilombola constitui-se também um
patrimônio cultural comum e, desse modo, é diferente de outras terras e de outros
grupos, visto que:
O negro faz parte de uma terra singular, uma terra que possui e da qual é
possuído. Sua história nela se inscreve e ele próprio, enquanto negro, nela - a
terra – encontra-se inscrito [...] sua relação com ela (terra) é centrada em
ritos, mitos, lendas e fatos. Memórias que contam a sua saga, revelam a sua
origem e desvendam, além da própria trajetória, a vida em seu movimento.
Dessa maneira, a comunidade do Kulumbu do Patuazinho tem nos últimos
anos ampliado a luta pela manutenção da terra e pelo reconhecimento por parte do poder
público, da propriedade garantida pela Constituição Federal.
Portanto, para eles, conforme Pedroso (1999, p. 33) “quem não vive as
próprias raízes não tem sentido de vida. O futuro nasce do passado, que não deve ser
cultuado como mera recordação e sim ser usado para o crescimento no presente, em
direção ao futuro”, desse modo, continua o autor, “nós não precisamos ser
conservadores, nem devemos estar presos ao passado, mas precisamos ser legítimos e só
as raízes nos dão legitimidade”. E essas raízes estão “fincadas” na terra, aqui entendida
num sentido amplo, envolvendo a terra como elemento fundamental para a reprodução
material da vida, mas também “a terra na qual o simbólico paira, na qual a memória
encontra lugar privilegiado, morada de mitos e lendas, fonte de beleza, inspiração e do
sentido sagrado da coletividade, tão essencial à vida quanto a terra de trabalho”
(SILVA, 2012, p. 7).
Por fim, com a criação da associação comunitária do Kulumbu do
Patuazinho e do reconhecimento como Comunidade Remanescente de Quilombo,
diversos projetos e objetivos voltados para a questão da preservação/manutenção do
território e divulgação da identidade cultural da comunidade foram traçados pelos
moradores e por outras entidades voltadas para as questões quilombolas do Amapá.
Dentre esses projetos: tornar o local um ponto turístico e poder receber a visitação de
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grupos de excursão principalmente de amapaenses e guianenses; ter um espaço que
possa abrigar o patrimônio material e que conserve a história das primeiras famílias, a
produção de artesanato, além de outros projetos, são as expectativas da comunidade.
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