GOVERNANDO A ECONOMIA
GLOBAL: UM ESTILO ARQUITETÔNICO
ADEQUADO PARA TODOS?1
Dani Rodrik
Tradução do inglês: Alexandre Tinoco
RESUMO
O artigo examina a imposição aos países em desenvolvimento da política econômica
estabelecida pelo Consenso de Washington. Discute-se a interpretação dominante entre os
organismos multilaterais acerca da causa de crises financeiras recentes, em especial as do Leste
Asiático, a qual realça a importância das causas internas e subestima o impacto de alguns
fatores sistêmicos. Isto tem permitido ao FMI a adoção de um novo estilo de condicionalidade
no fornecimento de novos créditos cuja sustentação é questionada pelo autor.
Palavras-chave: economia global; países em desenvolvimento; FMI; crise financeira.
SUMMARY
This article examines how the economic policies established by the Washington Consensus
have been imposed upon developing countries. The author discusses the predominant
interpretation adopted by multilateral organizations in explaining the cause of recent financial
crises, especially in the Far East, where internal causes are emphasized and the impact of
systemic factors tends to be underestimated. This has allowed the IMF to adopt a new style
conditioning the extension of new credit, a procedure that the author calls into question.
Keywords: global economy; developing countries; IMF; financial crisis.
A desregulação do mercado financeiro dá origem a um boom de
crédito e a uma explosão nos preços das ações e do mercado imobiliário. Em
cinco anos a dívida do setor privado salta de 85% do PIB para 135%. A
economia passa por um superaquecimento, gerando notável déficit na conta
corrente. Impossibilitado de tomar empréstimos de longo prazo no exterior,
o setor privado acumula um grande estoque de dívida externa de curto prazo
em moeda estrangeira. Os estrangeiros ficam felizes em fornecer crédito,
com o intuito de obter vantagens das altas taxas de juros domésticas. Uma
valorização real da moeda nacional leva ao enfraquecimento da performance de exportação. Enquanto isso, o governo nega rumores de uma desvalorização iminente e insiste que irá manter o câmbio fixo.
Uma desvalorização em um país vizinho revela o quão vulnerável é
a economia em relação à perda de confiança internacional. Repentinamente, os credores internacionais cortam suas linhas de crédito de curto prazo.
De início o Banco Central tenta manter a taxa de câmbio, mas em seguida
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(1) Texto apresentado na conferência "Governing in a global economy", Brookings Institution Trade Policy Forum,
abril de 1999. Sou grato a Susan Collins, Bill Easterly, Anne
Krueger, Brian MacLean, Larry
Summers e aos participantes
da conferência pelos úteis comentários.
GOVERNANDO A ECONOMIA GLOBAL
tem de ceder e deixar a moeda flutuar. O corte no crédito e o colapso da
moeda desencadeiam uma forte onda de falências. Em um período de três
anos o setor privado é forçado a transformar seu déficit externo de 8% do
PIB em um superávit de 11% — uma virada de quase 20% do PIB. As perdas do sistema bancário, devidas aos empréstimos, somam 12% do PIB. A
economia experimenta a mais severa crise econômica que enfrentou por
longo tempo.
Tailândia ou Coréia do Sul em 1997-98? Poderia ser, mas não é. O país
em questão é a Suécia em 1992-932. As similaridades, gritantes, são um
lembrete de que as crises financeiras podem afundar mesmo aqueles países que não padecem dos defeitos estruturais que (com o benefício da
retrospectiva histórica), supõe-se, deixaram os países do Leste Asiático
vulneráveis a choques externos. "Capitalismo clientelista"3 e corrupção, um
débil Estado de direito, falta de transparência, inadequada regulação
financeira e fiscalização, controle deficiente da gerência empresarial, nãoobservância dos procedimentos falimentares, uma conta de capital não
suficientemente aberta, políticas industriais por demais ambiciosas —
dificilmente alguém associaria tais características com a Suécia, ou mesmo
com a Finlândia e a Noruega, dois outros países que experimentaram severas turbulências financeiras em 1992-93.
Apesar disso, a visão de que elementos estruturais como esses tiveram
papel-chave em precipitar a crise financeira asiática vem angariando grande
apoio, em especial nos círculos oficiais. O resultado é um processo notável:
a comunidade internacional assumiu com grande vigor a tarefa de redesenhar as economias em desenvolvimento tanto no Leste Asiático como em
outros lugares. Os atuais programas do FMI no Leste Asiático prescrevem
minuciosamente reformas estruturais nas áreas de relações entre o Estado
e as empresas, sistema bancário, controle da gerência empresarial, leis
falimentares, instituições do mercado de trabalho e política industrial. Um
componente fundamental da nova arquitetura financeira internacional é
um conjunto de códigos e padrões — sobre transparência fiscal, políticas
monetária e fiscal, fiscalização bancária, difusão de informação, controle da
gerência empresarial e sua estrutura, normas contábeis — desenhados para
aplicação em todos os países, mas direcionados principalmente para aqueles em desenvolvimento.
Uma ironia não apreciada neste caso é que a condicionalidade do
fornecimento de novos créditos aos países em desenvolvimento se acentua
no exato momento em que se revela dolorosamente deficiente nossa
compreensão de como a economia global funciona e do que os pequenos
países necessitam para nela prosperar. Não faz muito tempo que se
supunha que a orientação exportadora e as altas taxas de investimento do
Leste Asiático protegeriam esses países contra o tipo de crise externa que
periodicamente abala a América Latina. Após a "Crise da Tequila" em 1995,
um exercício comum era comparar as duas regiões em termos de seus
déficits em conta corrente, taxas de câmbio reais, relação exportação/PIB
e taxas de inversão para mostrar como o Leste Asiático, em sua maior parte,
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NOVOS ESTUDOS N.° 58
(2) Aqui me baseei na descrição de Urban Bäckström:
"What lessons can be learned
from recent financial crises?
The Swedish experience". In:
The Federal Reserve Bank of
Kansas City. Maintaining financial stability in a global
economy, 1997, pp. 129-140.
(3) "Crony capitalism" — termo derivado da hipótese que
explica a crise asiática com
base na proximidade dos grandes grupos industriais e financeiros com o Estado (N. do T.).
DANI RODRIK
parecia "melhor". O padrão do Leste Asiático teve seus críticos, obviamente,
mas o que estes tinham em mente era um gradual refluxo e não a dissolução
que logo se verificou. "Tenho aprendido mais sobre como funciona esse
novo sistema financeiro internacional nos últimos doze meses do que nos
vinte anos anteriores", reconheceu Alan Greenspan recentemente 4 .
A ignorância exige humildade. O argumento central deste artigo é que
há perigos em impor para a política econômica dos países em desenvolvimento o ponto de vista da política econômica do Consenso de Washington,
por mais que este se encontre hoje renovado com novos códigos e padrões
internacionais e "reformas de segunda geração". Os riscos afloram de
diversas fontes. Primeiro, o novo conjunto de normas externas de disciplinas anda junto com um modelo específico de desenvolvimento econômico
ainda não testado, ao passo que irá excluir algumas estratégias de desenvolvimento que funcionaram no passado assim como outras que poderiam
funcionar no futuro. A limitação da autonomia nacional na formulação de
sua estratégia de desenvolvimento é um custo para o qual os países em
desenvolvimento dificilmente receberão uma recompensa adequada. Segundo, é duvidoso que a nova agenda política venha a tornar mais seguro
o próprio sistema financeiro internacional. Caso os fluxos de capital permaneçam altos em relação aos ativos líquidos dos Estados nacionais, e ademais facilmente reversíveis, a economia internacional será refém de espetaculares ciclos de expansão e depressão. Além disso, focar a atenção nas
reformas estruturais internas do mundo em desenvolvimento pode levar a
uma atitude de complacência para com o fluxo de capitais de curto prazo,
aumentando os riscos sistêmicos ao invés de reduzi-los. Por fim, as
dificuldades práticas de implementação de várias das reformas institucionais sob discussão são seriamente subestimadas. Os países hoje desenvolvidos não construíram suas instituições legais e regulatórias da noite para
o dia. Seria ótimo se os países de Terceiro Mundo pudessem, de alguma
maneira, ter instituições de Primeiro Mundo, mas a aposta mais segura deve
ser a de que isso só irá acontecer quando eles não forem mais países de
Terceiro Mundo.
Meu argumento não é contrário à substância de determinados padrões e códigos. Ninguém pode ser seriamente contrário à introdução de
padrões contábeis apropriados ou à melhora da fiscalização dos intermediários financeiros. Como irei argumentar em seguida, enquanto alguns dos
padrões se apresentam contraproducentes na prática, a preocupação mais
séria é que esses padrões são a cunha com a qual é introduzido nos países
receptores um amplo conjunto de preferências políticas e institucionais: em
favor de uma conta de capital aberta, da desregulação do mercado de
trabalho, do financiamento em condições transparentes de mercado, do
controle do gerenciamento empresarial ao estilo norte-americano e da
hostilidade a políticas industriais. O perigo é que esse tipo de enfoque
venha a privilegiar a liberdade da mobilidade de capital em nome de uma
"sólida" política econômica, ao custo de se negligenciarem outros objetivos
de política de desenvolvimento que possam colidir com ela5.
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(4) Apud Friedman, Thomas L.
"A manifesto for the Fast
World". New York Times Magazine, 28/03/1999, p. 71.
(5) Sobre a necessidade de
que os países em desenvolvimento preservem sua autonomia no gerenciamento de sua
conta de capital, ver Ocampo,
José Antonio. Reforming the
international
financial
architecture: consensus and divergence. Santiago do Chile:
Cepal, 1999 (mimeo).
GOVERNANDO A ECONOMIA GLOBAL
O artigo começa com a discussão da propriedade do novo estilo de
condicionalidade do FMI, para então analisar o problema da confiança de
mercado, em especial no que se refere às questões das reformas estruturais
e da condicionalidade. Em seguida são examinadas algumas das dificuldades práticas da implementação do enfoque do G-7 para a arquitetura
financeira internacional, enfatizando-se a diversidade das necessidades e
circunstâncias próprias aos países em desenvolvimento. Discute-se ainda se
a mobilidade internacional de capital é um objetivo apropriado para a
comunidade internacional no esboço dessa nova arquitetura. Apresentamse por fim algumas idéias em forma de conclusão.
A nova condicionalidade
A arquitetura financeira internacional visada pelo G-7 irá impor um
agravamento da condicionalidade aos países em desenvolvimento por,
pelo menos, três motivos. Primeiro, como já mencionado, uma das lições
oficiais extraídas da crise asiática é que as características estruturais daquelas economias tiveram papel importante na precipitação da crise, e se se
pretende prevenir futuras crises serão necessárias reformas que eliminem
tais características. Segundo, os novos padrões e códigos que estão sendo
promulgados terão de ser adotados em cada país, e uma agência internacional terá a tarefa de certificar se os países estão ou não de acordo com
eles. Terceiro, só terão acesso ao novo mecanismo de auxílio financeiro
contingente de curto prazo do FMI os países que se submeterem a uma condicionalidade de ordem superior. Na falta de melhor opção, será o próprio
FMI que a irá impor.
O programa do FMI utilizado na Coréia do Sul fornece uma janela para
o mundo da condicionalidade do futuro. Ao final de 1997 o FMI organizou
para a Coréia um pacote de resgate de US$ 57 bilhões, dos quais US$ 21 bilhões provinham de seus próprios recursos. Em troca, o governo coreano
aceitou um extensivo programa de reformas que, uma vez realizado, implicaria uma completa revisão da estrutura e administração da sua economia. O
programa incluía: políticas monetárias restritivas, aumento das taxas de juros
e uma redução dos gastos públicos, inicialmente, da ordem de 2% do PIB
(este último requisito foi significativamente relaxado nos programas subseqüentes, uma vez que a economia coreana se deteriorou mais do que se
previra); uma ampla reestruturação do setor financeiro, incluindo a independência do Banco Central e a suspensão das operações de nove bancos
comerciais; desmantelamento dos "vínculos ineficientes e pouco transparentes entre o governo, os bancos e as empresas", incluindo a eliminação
gradual do sistema de garantias cruzadas entre os conglomerados; um
programa de liberalização do comércio internacional, incluindo a eliminação
gradual dos subsídios a ele relacionados, dos licenciamentos restritivos de
importação e do programa de diferenciação das importações; liberalização
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NOVOS ESTUDOS N.° 58
DANI RODRIK
da conta de capital, incluindo o abandono de todas as restrições, vinculadas
a ela, quanto ao acesso dos investidores estrangeiros ao mercado coreano de
valores; e reformas do mercado de trabalho, direcionadas particularmente a
facilitar as demissões e a fortalecer as redes de seguridade social6.
O governo coreano assinou um total de sete cartas de intenção com
o FMI entre 24 de dezembro de 1997 e 10 de março de 1999 (o último
acordo até o momento em que concluímos este texto). O conteúdo geral
desses acordos tem sido o relaxamento gradual da postura fiscal (com o
intuito de contrabalançar a queda da demanda interna) e uma crescente
gama de responsabilidades nas áreas de reforma financeira, reestruturação
e controle da gerência empresarial e liberalização da conta de capital. O
último memorando sobre as políticas econômicas submetido ao Fundo (em
10 de março de 1999) contém uma página e meia de políticas macroeconômicas e doze densas páginas sobre privatização; reestruturação, supervisão
e regulamentação do setor financeiro; reestruturação empresarial; liberalização do comércio e da conta de capital; transparência, monitoramento e
difusão de informações.
É assombrosa a extensão do afastamento da condicionalidade imposta à Coréia do enfoque tradicional do FMI — centrado em indicadores
quantitativos de políticas macroeconômicas e financeiras. Além disso, essa
condicionalidade vai além do objetivo (difícil, mas sem dúvida desejável)
de melhorar as normas de comportamento do capital, a supervisão
preventiva e a difusão de informações. Com efeito, as reformas nas instituições do mercado de trabalho, na balança comercial e na conta de
capital e nas relações entre empresas e Estado forjam uma remodelação da
economia coreana nos moldes da economia de livre mercado imaginada
pelos economistas de Washington. Se a Coréia, um país de tamanho médio
e com um histórico de desenvolvimento exemplar, está sujeita a uma
condicionalidade tão invasiva, podemos imaginar o que devem esperar os
pequenos países com históricos econômicos cheios de altos e baixos.
Martin Feldstein tem criticado de forma vigorosa este afastamento. Ele
sustenta que o objetivo primordial do FMI deveria ter sido ajudar a Coréia a
renovar seu acesso ao mercado de capitais, e que muitas das transformações
estruturais impostas pelo FMI não eram requisitos para atingir esse objetivo:
Embora muitas das reformas estruturais incluídas pelo FMI em seu
programa de início de dezembro possam melhorar a performance de
longo prazo da economia coreana, não lhe são necessárias para que
tenha acesso aos mercados de capitais. Além disso, todas elas tocam
em questões de extrema sensibilidade política: regras do mercado de
trabalho, regulação da estrutura de gerência e controle das empresas,
relações entre Estado e empresas e comércio internacional. As políticas
específicas que o FMI insiste que devem ser mudadas não são diferentes daquelas vigentes nos maiores países da Europa: regras do mercado de trabalho que causam um nível de desemprego de 12%; estrutura
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(6) Ver http://www.imf.org/
External/np/exr/facts/asia.htm
(box 4) e http://vww.imf.org/
external/np/oth/korea.htm.
O
texto da última carta de intenção está em http://www.
imf.org/external/np/loi/1999/
031099.htm.
GOVERNANDO A ECONOMIA GLOBAL
de propriedade empresarial que dá aos bancos e governos o controle
das companhias industriais; subsídios estatais para indústrias ineficientes e não lucrativas; barreiras comerciais que restringem a importação de automóveis japoneses ao mínimo e bloqueiam as compras
externas das empresas industriais7.
(7) Feldstein, Martin. "Refocusing the IMF". Foreign Affairs,
mar.-abr./1998.
A resposta do FMI é que novas crises requerem novos enfoques. De
acordo com Stanley Fischer, as críticas de Feldstein não levam em conta as
raízes da crise. Em suas palavras:
Reformas estruturais, incluindo as do setor financeiro, são vitais para
os programas de reforma da Tailândia, Indonésia e Coréia do Sul
porque os problemas de instituições financeiras frágeis, inadequada
regulação e fiscalização bancária e as complicadas e intransparentes
relações entre governos, bancos e empresas são centrais para as crises
econômicas. Os empréstimos concedidos pelo FMI a esses países não
serviriam a nenhum propósito se esses problemas não fossem abordados. Nem seria de interesse dos países deixar de lado as questões
estruturais e administrativas: os mercados são céticos quanto a esforços reformistas com pouco entusiasmo8.
Repare-se na ambigüidade da resposta. Primeiro, as reformas estruturais eram necessárias porque a crise foi instigada por problemas estruturais;
mas, segundo, são necessárias para sinalizar aos mercados que os governos
estão fazendo as coisas certas e, portanto, merecem sua confiança. O segundo argumento é o que acredito ter mais peso, e será examinado a seguir.
Aqui, trato da relação entre estrutura econômica e crise financeira.
A afirmação de que o estilo das instituições do Leste Asiático9 tornou os
países da região particularmente propensos a crises financeiras não tem
sustentação em evidências10. O propósito do exemplo sueco que abre este
artigo é justamente indicar que mercados financeiros podem ter um mau
comportamento mesmo em situações que não propiciam a difusão do clientelismo. Todas as crises financeiras trazem consigo a tomada e a concessão
de empréstimos de forma imprudente, e nesse sentido os tomadores de
empréstimos da Coréia, Tailândia, Indonésia e outros países asiáticos que
incrementaram suas posições de curto prazo certamente estão incorrendo
em erro. Esses países apresentam uma série de fraquezas estruturais nas
áreas de regulação financeira e de administração como um todo, mas como
enfatizou Paul Volcker,
o momento, a natureza e a força da crise financeira asiática [...] não
podem ser explicados por esses fatores estruturais, por mais importan98
NOVOS ESTUDOS N.° 58
(8) Fischer, Stanley. "In defense of the IMF: specialized tools
for a specialized task". Foreign
Affairs, jul.-ago./1998. Ver
http://www.imf.org/external/
np/vc/1998/073098.htm.
(9) Isto é uma categorização
equivocada, claro. Há uma
grande variedade de esquemas
institucionais no Leste Asiático.
(10) Para um balanço da ascensão e queda da hipótese
do capitalismo clientelista em
explicar a crise do Leste Asiático, ver MacLean, Brian K. The
rise and fall of the 'crony capitalism' hypothesis: causes and
consequences. Ontário: Laurentian University, Department
of Economics, março de 1999.
DANI RODRIK
tes que sejam no correr do tempo. Nenhum deles é novo. Nenhum deles
era desconhecido nem, até onde meu conhecimento alcança, registrou piora repentina11.
Simplesmente não há evidências para sugerir que países com um modelo
de desenvolvimento em particular sejam mais propensos a crises financeiras do que outros 12 .
A causa imediata da crise asiática foi a excessiva acumulação de dívidas
de curto prazo em relação ao valor dos ativos reais, que deixou esses países
vulneráveis a crises auto-realizáveis13. As razões por detrás da rápida acumulação de débitos de curto prazo não parecem estar meramente relacionadas a
simples generalizações sobre as estratégias de desenvolvimento. Mas se há
um elemento comum, é este: países que realizam uma liberalização financeira são mais propensos a terminar em grandes obrigações externas de curto
prazo e em crises financeiras e/ou bancárias14. As evidências sugerem que
com uma alta participação de M2 em relação ao PIB a composição dos
vencimentos dos débitos externos tende ao curto prazo e que a proporção
elevada de dívidas de curto prazo em relação às reservas aumenta a probabilidade de crises financeiras15. Portanto, é plausível sustentar que as prematuras desregulações financeiras durante a década de 1990 no mínimo contribuíram para a crise do Leste Asiático16. O interessante é que em um país
como a Coréia a liberalização financeira se constituiu, não em pequena medida, em uma resposta à pressão norte-americana e procurou satisfazer as
exigências de admissão à OCDE. Eis um exemplo pungente de como
desavisadas pressões externas — baseadas em uma teoria econômica parcial
e em evidências insuficientes (mas com sólidas razões mercantilistas) —
podem se revelar danosas ao país que as recebe.
O mais irônico de tudo é que este tenha sido o destino de um país
como a Coréia do Sul, que enriqueceu adotando uma série de medidas que,
pelas receitas de hoje, não deveriam ter adotado. Laços estreitos entre o
governo e os chaebol, créditos subsidiados, garantias de investimento, proteções ao mercado interno, limitações ao investimento direto estrangeiro,
obrigatoriedade de conteúdo nacional dos produtos, empresas estatais e
moderada repressão financeira são as características do modelo coreano,
além de sua orientação externa, políticas fiscais conservadoras e ênfase em
educação. É legítimo o debate acerca do alcance dessas políticas em contribuir com o crescimento (ou prejudicá-lo). O que é importante é que existe
um debate — e isso nos lembra que nosso entendimento acerca do que leva
uma estratégia econômica ao sucesso permanece limitado.
Enfim, creio que Feldstein tem razão quando escreve:
Impor minuciosas prescrições econômicas a governos legítimos seria
questionável mesmo se os economistas fossem unânimes sobre qual a
melhor maneira de reformar a política econômica desses países. Na
NOVEMBRO DE 2000
99
(11) Volcker, Paul. Emerging
economies in a sea of global
finance. Charles Rostov Lecture, Johns Hopkins University,
Washington DC, abril de 1998,
p. 4.
(12) Uma das lições (agora
desacreditada) da crise da dívida da década de 1980 era
que uma estratégia comercial
orientada para o exterior protege o país contra crises externas. É difícil imaginar um conjunto de países mais orientados para fora — no sentido
implícito na discussão anterior
— do que os do Leste Asiático.
(13) Cf. Radelet, Steven e
Sachs, Jeffrey. The East Asian
financial crisis: diagnosis, remedies, prospects. Brookings
Panel, Washington D.C., março de 1998; Furman, Jason e
Stiglitz, Joseph E. "Economic
crises: evidence and insights
from East Asia". Brookings Papers on Economic Activity,
1998, pp. 1-135; Unctad. Trade
and
Development
Report,
1998. Nova York, 1998; Chang,
Roberto e Velasco, Andrés. The
Asian liquidity crisis in perspective. Nova York: New York
University, 1999.
(14) Cf. Kaminsky, Graciela e
Reinhart, Carmen. The twin
crises: the causes of banking
and balance-of-payments problems. Board of Governors of
the Federal Reserve System,
1998 (International Finance
Discussion Paper nº 544).
(15) Rodrik, Dani e Velasco,
Andres. Short-term capital
flows. ABCDE, World Bank,
Washington DC, abril de 1999.
(16) Para uma primeira análise
da desregulamentação financeira no Leste Asiático e sobre
os riscos envolvidos, ver Ito,
Takatoshi e Krueger, Anne
(eds.). Financial deregulation
and integration in East Asia.
Chicago/Londres: The University of Chicago Press for the
NBER, 1996 — especialmente
o capítulo de Ronald McKinnon e Huw Pill: "Credible liberalizations and international
capital flows: the 'Overborrowing Syndrome'".
GOVERNANDO A ECONOMIA GLOBAL
prática, porém, há entre eles desacordos substanciais sobre o que
poderia ser feito. E ainda que tenha se formado uma quase unanimidade em torno das políticas econômicas, o consenso mudou radicalmente. Afinal de contas, o FMI foi criado para defender e gerenciar
um sistema de taxa de câmbio fixa que hoje é visto como economicamente inviável e praticamente inexeqüível. Da mesma forma, o
conselho que há muito tempo o Banco Mundial, instituição irmã do
FMI, e especialistas acadêmicos de primeira linha vinham dando aos
países em desenvolvimento enfatizava planos nacionais para o desenvolvimento industrial orientado pelo Estado. A oficial e muito influente Comissão Econômica para a América Latina da ONU pregava as
virtudes das políticas protecionistas de bloqueio às importações de
manufaturados, a fim de encorajar os países a desenvolver sua
própria indústria. Agora o consenso dos economistas profissionais e
das agências internacionais postula políticas opostas: taxas de câmbio flexíveis, desenvolvimento econômico orientado pelo mercado,
liberdade de comércio... Ainda que fosse desejável para a Coréia
instaurar mercados de trabalho, de bens e de capital ao estilo norteamericano, seria melhor que isso se desse de forma mais gradual e
com menos choques para as empresas existentes17.
Como o autor reconhece, o fato de que há freqüentes mudanças nas
modas das políticas econômicas deveria nos tornar mais modestos na
prescrição de detalhados programas estruturais aos países em desenvolvimento — sobretudo àqueles que cresceram deixando de lado o conhecimento convencional e adotando políticas heterodoxas. A realidade é que
em geral nossas prescrições extrapolam consideravelmente o que poderia
ser sustentado a partir de um cuidadoso raciocínio teórico ou de uma demonstração empírica. Sabemos muito menos acerca do que fazer para termos uma boa política econômica do que reconhecemos saber18. Todas as
economias que tiveram um bom desempenho no pós-guerra o lograram
mediante políticas heterodoxas de sua própria lavra. Estabilidade macroeconômica e altas taxas de investimento foram comuns, mas vários outros
detalhes diferiram19. Não convém vestir todas as nações em desenvolvimento numa camisa-de-força de políticas econômicas que só recentemente
passaram a fazer parte do conhecimento convencional.
Em busca da confiança do mercado
O segundo argumento a favor de reformas estruturais é que elas são
imprescindíveis para a retomada (ou manutenção, conforme o caso) da
"confiança do mercado". Este ponto foi vigorosamente expresso por Camdessus, que pergunta:
100
NOVOS ESTUDOS N.° 58
(17) Feldstein, op. cit.
(18) A necessidade de humildade na prescrição de políticas
é destacada também por Joseph Stiglitz (More instruments
and broader goals: moving toward
the post-Washington
Consensus. The 1998 Wider
Annual Lecture, Helsinque, janeiro de 1998). Graham Bird
enfatiza a ausência de um consenso profissional mesmo sobre alguns aspectos das políticas macroeconômicas de estabilização ("How important is
sound domestic macroeconomics in attracting capital inflows to developing countries?". Journal of International
Development, nº 11, 1999, pp.
1-26).
(19) Cf. Rodrik, Dani. The new
global economy and developing countries: making openness work. Washington, DC:
Overseas Development Council, 1999.
DANI RODRIK
Em que consistem, então, esses programas da Tailândia, Indonésia e
Coréia? Muitos assumem que se trata do mesmo tipo de programas de
aperto-de-cinto que o público há muito tempo associa ao Fundo.
Muito pelo contrário. Esses programas representam um distanciamento notável do tipo de programa que tradicionalmente apoiamos no
passado. Digo isso porque a peça central de cada programa não é um
conjunto de medidas de austeridade com o objetivo de restaurar o
equilíbrio macroeconômico, mas uma série de vigorosas reformas de
longo alcance destinadas a fortalecer o sistema financeiro, aumentar
a transparência, abrir mercados e, ao fazer isso, restaurar a confiança
do mercado 20 .
Em um mundo onde o capital é internacionalmente móvel e as
obrigações de curto prazo explodiram graças à liberalização financeira, a
confiança se torna condição sine qua non da estabilidade macroeconômica
e, conseqüentemente, pré-requisito para o desenvolvimento econômico.
Sem confiança o dinheiro foge, as taxas de juros disparam e a moeda
despenca. E os culpados não são apenas os malévolos especuladores
estrangeiros. Os investidores domésticos podem quebrar a economia tanto
quanto eles, ao converter seus ativos de curto prazo (depósitos bancários,
títulos públicos) em moeda estrangeira e remetê-la para o exterior. Portanto, é pouco questionável que os governos e o FMI devam direcionar suas
políticas à confiança do mercado.
Mas de onde vem essa confiança? No melhor dos mundos possíveis,
todo mundo saberia quais políticas funcionam e quais não, de forma que tudo o que os governos deveriam fazer seria adotar as primeiras e abandonar
as últimas. A confiança seria restaurada, o capital refluiria e todos viveriam felizes para sempre. É sobre esse modelo que a condicionalidade do FMI — e
todos os conselhos provenientes de Washington — atuam? Sim e não. Há,
como mencionei, um Consenso de Washington ampliado: "todo mundo"
sabe que política industrial é algo terrível, que mercados de trabalho desregulados são bons, que contas de capital e de comércio abertas são ainda
melhores, que a melhora da fiscalização e do controle sobre a gerência
empresarial pode prevenir crises financeiras e assim por diante.
Repare-se, contudo, que sob uma tal visão de mundo o objetivo de
recuperar a confiança é totalmente supérfluo, já que assim a confiança
acompanha automaticamente aqueles que seguem o caminho correto. Não
faz sentido justificar reformas baseando-se em seus esperados efeitos sobre
a confiança do mercado. A réplica apropriada às críticas de Feldstein é
simplesmente esta: "Nós (e o resto do mundo) sabemos o que funciona, e
você, não" 21 .
Presumivelmente, é difícil que alguém em Washington pense dessa
maneira. Assim, temos de considerar a idéia de que uma sólida política
econômica não faz parte do conhecimento comum, ou que os conjuntos de
informações acerca do que constitui uma política sólida diferem entre si22.
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101
(20) Camdessus, Michel. The
IMF and its programs in Asia.
Council on Foreign Relations,
Nova York, fevereiro de 1998
(grifo meu). Após uma longa
lista de reformas, Camdessus
conclui: "Vistas em conjunto,
estas reformas demandarão
uma vasta mudança nas práticas empresariais domésticas,
na cultura empresarial e no
comportamento do governo,
que levarão tempo. Mas o processo já está em andamento e
alguns passos dramáticos já
foram dados".
(21) Há um argumento de sinalização mais sutil que afirma
que os governos devem acelerar suas reformas — ou até
mesmo radicalizá-las — para
demonstrar sua determinação
aos mercados financeiros (para
uma discussão teórica, ver Rodrik, Dani. "Promises, promises: credible policy reform via
signaling". Economic Journal,
1989). No entanto, esse argumento só funciona se essa aceleração implicar algum custo
para o governo em questão.
Um sinal sem custo é um sinal
sem efeito. Se este é o argumento real para reformas estruturais profundas, o FMI deveria assumir que os governos
estão sendo forçados a fazer
coisas danosas para a sua economia com o interesse de enviar um sinal positivo para os
mercados financeiros.
(22) Sobre como ataques cambiais auto-realizáveis podem
aparecer como o único equilíbrio de um modelo em que os
fundamentos não são de conhecimento comum, ver Morris, Stephen e Shin, Hyun S.
"Unique equilibrium in a model of self-fulfilling currency
attacks". American Economic
Review, junho de 1998, pp.
587-597.
GOVERNANDO A ECONOMIA GLOBAL
Alternativamente, ainda que os fundamentos dessa política façam parte do
conhecimento comum, poderia haver equilíbrios múltiplos em virtude da
interdependência entre as ações dos investidores. Nessas circunstâncias,
incertezas quanto às crenças e ações dos outros agentes ou quanto à real
situação do mundo têm grande importância. Podemos terminar em um perverso equilíbrio caracterizado pelo divórcio entre o comportamento dos
investidores e tais elementos fundamentais.
Mukand desenvolveu muito bem a análise desse tipo de situação23.
Considere-se o seguinte esquema estilizado sugerido pela sua modelagem.
Dois atores, um governo (G) e um investidor estrangeiro (1E), devem
decidir qual ação tomar quando a conjuntura subjacente não é observável.
Essa conjuntura pode ser "tranqüila" ou "confusa". G recebe com exclusividade um sinal sobre a conjuntura e então resolve escolher determinada
política (a qual, então, é observada por IE). Essa política pode ser "ortodoxa" ou "heterodoxa". Assumir a política ortodoxa produz um acréscimo
maior no agregado quando a conjuntura é tranqüila, enquanto a heterodoxa o faz em conjuntura confusa. IE deseja investir apenas quando há
uma correspondência entre a política e a conjuntura esperada (ortodoxa/
tranqüila ou heterodoxa/confusa). Além disso, acredita (talvez erroneamente) que a rentabilidade de seu investimento será maior sob a combinação ortodoxa/tranqüila do que sob heterodoxa/confusa, e irá investir mais
sob a expectativa do primeiro cenário.
O autor demonstra que sob essas condições o governo pode ter duas
razões para seguir a política ortodoxa, mesmo quando recebe uma sinalização de que a conjuntura é confusa (o que tornaria a política heterodoxa
mais apropriada). Ele chama esses desvios de resultado de "viés de conformidade" e de "viés da boa notícia", os quais podem ser explicados como se
segue.
Viés de conformidade. Suponha que IE tenha uma inabalável suposição prévia de que a conjuntura seja tranqüila. Mesmo se em seguida G tiver
uma noção suficientemente forte de que a conjuntura é confusa, G poderá
querer seguir uma política ortodoxa de qualquer maneira, uma vez que não
será capaz de anular a expectativa (subseqüente) de IE e a posição de G
poderá ser melhor tendo o investimento de IE e seguindo a política errada
do que não tendo o investimento e seguindo a política correta (isto é,
aquela que maximiza o excedente agregado).
Viés da boa noticia. Se a expectativa subseqüente de IE pode ser
afetada pela escolha de política de G, é possível que este queira seguir uma
política ortodoxa para sinalizar uma conjuntura tranqüila e alterar a expectativa de IE para "tranqüila". Isso porque mais investimento está por vir
quando IE tem a expectativa de uma conjuntura tranqüila em vez de
confusa (assumindo-se que em ambos os casos haja correspondência entre
a conjuntura esperada e a política adotada).
Note-se que para o segundo cenário se materializar não é necessário
que a rentabilidade dos investimentos seja efetivamente maior sob uma
combinação "conjuntura tranqüila/política ortodoxa" do que sob "confusa/
102
NOVOS ESTUDOS N.° 58
(23) Mukand, Sharun W. Globalization and the confidence game': policy making in the
open economy. Tufts University, Department of Economics,
dezembro de 1998 (mimeo).
DANI RODRIK
heterodoxa": basta que o investidor externo assim o creia. Nos dois casos
o governo acaba por seguir políticas que não são apropriadas e não atingem
um ponto ótimo.
Krugman também esclareceu algumas das possibilidades, embora de
maneira mais informal. O FMI, argumenta, geralmente é forçado a jogar o
que ele chama de "jogo da confiança":
Considere-se a situação do ponto de vista daqueles engenhosos economistas que estão fazendo política em Washington. Tratam com economias que gozam de pouca confiança dos investidores; quase por
definição, um país que busca ajuda nos Estados Unidos e/ou no FMI
já sofreu uma devastadora corrida contra sua moeda e está sob o risco
de sofrer outra. O objetivo supremo das políticas deve ser, então, acalmar o sentimento do mercado. Mas como crises podem ser auto-realizáveis, políticas econômicas sólidas não são suficientes para ganhar
a confiança do mercado: é preciso também satisfazer as percepções,
preconceitos e caprichos do mercado. Ou melhor: há que satisfazer o
que se pode esperar que sejam as percepções desse mercado.
Em suma, a política econômica internacional acaba por ter muito
pouco a ver com a ciência econômica. Torna-se um exercício de psicologia amadora, no qual o FMI [...] e o Departamento do Tesouro tentam convencer países a fazer coisas que eles esperam que sejam percebidas pelo mercado como favoráveis. Não admira que os manuais de
economia sejam jogados pela janela assim que a crise começa24.
Em outras palavras, os governos deveriam ser avisados de que precisam de
políticas fiscais e monetárias restritivas, privatizações, reformas do mercado
de trabalho, liberalização da conta de capital etc. não porque o FMI pensa
que estas são as coisas que eles deveriam estar fazendo (não naquele
momento, pelo menos), mas sim porque o FMI pensa que são estas coisas
que o mercado deseja ver25.
Devemos então perguntar: de onde os mercados retiram suas idéias
acerca das políticas econômicas? Uma possibilidade é que os investidores, em seu conjunto, têm uma melhor noção do que faz as economias
funcionarem que o FMI, o Banco Mundial e os economistas acadêmicos.
Neste caso, seguir o comando do mercado poderia ser, é claro, uma
estratégia desejável e perfeitamente aceitável. Por outro lado, não temos
nenhuma razão para acreditar que comprar e vender a moeda de uma
economia habilite um financista a ter qualquer compreensão especial em
questões do tipo: devem as transações da conta de capital ser taxadas? Caso
afirmativo, como? Se o governo reduzisse subsídios aos alimentos para
financiar isenções fiscais aos investidores externos o bem-estar geral aumentaria? Custos de demissão aumentam o desemprego? Não é aplicável
aqui nenhum teorema do tipo "mão invisível": conhecimentos específicos
NOVEMBRO DE 2000
103
(24) Krugman, Paul. "The confidence game". The New Republic, 05/10/1998.
(25) Krugman argumenta isso
em relação especificamente a
políticas fiscais e monetárias
restritivas. Mas seu ponto é
igualmente válido em relação
às reformas estruturais que
venho discutindo. Sobre as distorções introduzidas pela busca dos governos por "credibilidade", da forma como definida pelos mercados, ver também Eatwell, John. "International capital liberalization: the
impact on world development". Estudios de Economia,
24(2), dezembro de 1997, pp.
219-261.
GOVERNANDO A ECONOMIA GLOBAL
acerca do funcionamento de um mercado em particular não podem ser
agregados para produzir uma bem-fundamentada avaliação do mercado
acerca de como as economias nacionais funcionam ou do que pode ser
feito para que funcionem melhor.
Isso não significa que as idéias do mercado sobre o que venham a ser
políticas econômicas sólidas sejam inteiramente arbitrárias. Como qualquer
outro agente, os investidores têm a tendência de associar o interesse público aos seus interesses privados. Portanto, altas taxas de juros (até o ponto
em que não levem o tomador à falência), contas de capital abertas e entrada
livre para as empresas estrangeiras de serviços financeiros são para eles
desejáveis porque, digamos, beneficiam credores e investidores externos.
Além disso, banqueiros e operadores de câmbio geralmente estudam
economia em universidades norte-americanas ou britânicas, lêem The
Economist e Financial Times, acompanham os relatórios do FMI e do Banco Mundial, ouvem economistas acadêmicos contratados como consultores, comunicam-se com amigos que ocupam cargos em organizações
internacionais e, em geral, estão imbuídos do Zeitgeist econômico do
momento. Em tudo isso têm um importante papel de suporte os pronunciamentos da comunidade oficial de Washington (em especial o FMI e o
Tesouro norte-americano). Uma vez que os participantes do mercado não
têm capacidade para formar juízos próprios acerca dos efeitos da evolução
de longo prazo das políticas dos governos, têm de acreditar naquilo que
lhes é dito.
Assuma-se por um momento que meu argumento seja válido, e que
o FMI (assim como outras instituições de Washington) balize o conhecimento convencional acerca do que constitua uma política econômica
sólida; e suponha-se ainda que esse conhecimento convencional, por sua
vez, determine se os mercados outorgarão ou não sua confiança a certas
economias. Então, quando o FMI age como se o juízo do mercado acerca
das políticas econômicas fosse independente do juízo que ele faz, acaba
por fortificar sua própria visão em nome do restabelecimento da confiança
do mercado. Da mesma maneira que os governos se escondem atrás do
FMI, explicando que não tinham outra opção a não ser o corte das despesas
fiscais e o aumento das taxas de juros (e uma miríade de outras coisas mais),
o FMI pode se esconder atrás dos mercados e argumentar que a "confiança
do mercado" requer isso tudo.
Contudo, trata-se evidentemente de um círculo vicioso. Na realidade,
a interdependência entre a confiança do mercado e as preferências do FMI
em matéria de políticas econômicas pode levar, no limite, a equilíbrios
auto-realizáveis de um tipo bastante indesejável. Se a confiança do mercado
só aparece quando são seguidas políticas sólidas e se estas são definidas
como políticas que incitam confiança, o mercado financeiro e o FMI podem, em princípio, convergir para qualquer conjunto arbitrário de políticas.
Nenhum país em desenvolvimento poderia então embarcar em políticas
alternativas, mesmo quando a base empírica para as políticas recomendadas fosse fraca ou inexistente. Qualquer país que tentasse fazer isso seria
104
NOVOS ESTUDOS N.° 58
DANI RODRIK
tachado de "renegado" e enfrentaria o risco de um retraimento dos investimentos estrangeiros e nacionais.
A questão é que as visões oficiais provenientes de Washington têm
peso considerável na moldagem das avaliações do mercado sobre o que
constitui uma sólida política econômica, e portanto podem aquecer ou
arrefecer a confiança do mercado. Sem dúvida, há limites nisso. No curto
prazo o FMI pode fazer muito pouco para frear a debandada de um
mercado emergente que esteja sofrendo de uma crise de confiança. Mas
pode não ser apropriado que o FMI use o fator confiança como desculpa
para uma cirurgia experimental em economias nacionais. Articulando uma
clara visão sobre as imediatas necessidades macroeconômicas e financeiras
de economias como a Coréia do Sul ou o Brasil, e traçando uma clara distinção entre essas necessidades imediatas e as reformas estruturais secundárias, que podem ser desejáveis ou não no médio e longo prazos, o FMI
pode orientar as avaliações de mercado acerca de esses países estarem ou
não "fazendo a coisa certa". O fato de que os governos tendem a "dançar
conforme a música" não é garantia — como indica a análise de Mukand 26
— de que agiriam da mesma forma caso a necessidade de "confiança" não
fosse o objetivo supremo. E reconhecendo mais abertamente os limites de
nosso conhecimento sobre as políticas de desenvolvimento econômico,
assim como sobre a possibilidade de as estratégias econômicas nacionais
poderem legitimamente diferir, o FMI poderia talvez acautelar os mercados
financeiros de pôr demasiada fé em modas passageiras.
Que espécie de arquitetura internacional?
A crise financeira asiática demonstrou que o funcionamento da
economia mundial necessita de uma infra-estrutura institucional. Os mercados em geral funcionam sem tropeços quando calçados por instituições que
apresentam três tipos de funções: regulação do comportamento dos
mercados; estabilização da demanda agregada e redistribuição dos riscos
e recompensas provenientes do mercado. Mercados mundiais não são
diferentes. Em particular, um verdadeiro mercado financeiro global requer
um conjunto igualmente global de instituições que garantam as funções de
regulação, de emprestador de última instância e de rede de segurança.
O enfoque do G-7 para a arquitetura financeira internacional é inspirado por um pensamento muito similar. O objetivo da nova arquitetura é
o de encurtar a distância entre o alcance das instituições — até aqui em sua
maior parte nacionais — e o alcance dos mercados — cada vez mais
internacional. Até aí, tudo bem. Mas a maneira com que o G-7 propõe
alcançar esse objetivo é intrigante em um aspecto significativo. Pela lógica,
a forma mais imediata de encurtar a distância entre o alcance das instituições e o dos mercados é aumentar o aparato regulatório internacional
ao mesmo tempo que se diminui o ritmo da integração internacional dos
NOVEMBRO DE 2000
105
(26) Mukand, op. cit.
GOVERNANDO A ECONOMIA GLOBAL
mercados financeiros. Em vez disso, o programa do G-7 promove o
estabelecimento de um conjunto de padrões e códigos internacionais enquanto fomenta a mobilidade internacional de capital. A liberalização da
conta de capital, mesmo que de modo "ordenado e progressivo", ainda é
um elemento-chave dessa arquitetura. Em outras palavras, ao invés de
trazer o objetivo para mais perto, o G-7 o empurra para mais longe.
A agenda do G-7 almeja construir um conjunto de instituições que
eliminem os ciclos de expansão e retração dos fluxos de capital e minimizem os seus efeitos adversos sobre os pobres, maximizando contudo a
mobilidade do capital. Entre todos os códigos e padrões propostos e as enumerações das práticas mais recomendáveis não se encontra qualquer esforço para ajudar a regulação dos fluxos de capital dos países em desenvolvimento, restringindo-os se necessário. Uma asserção rude mas não de todo
indevida acerca dos objetivos propostos é que consistem em fazer do
mundo um lugar seguro para o livre fluxo de capital.
Assuma-se por um momento que a maximização da liberdade de
mobilidade do capital seja um objetivo conveniente. Pode ser alcançado de
maneira segura a partir do remendo institucional apresentado pela agenda
do G-7? Talvez, mas é importante saber que há graves riscos. Em primeiro
lugar, nossa capacidade de antecipar os códigos regulatórios e padrões
necessários para evitar a próxima crise (em face da anterior) é forçosamente
limitada. Uma indicação disso é que cada crise produz uma nova geração de
modelos econômicos que pretendem explicá-la. Parece que os reguladores
também continuam atrás da curva. Por exemplo, a Norma de Difusão de
Dados Especiais do FMI (Special Data Dissemination Standard - SDDS) foi
uma resposta a uma das lições retiradas da crise do peso mexicano: a rápida
disponibilidade dos dados referentes às reservas dos bancos centrais pode
estabilizar os mercados com um aumento de transparência. Mas o SDDS
mostrou-se ineficiente à época da crise asiática. Estas normas não anteciparam adequadamente a necessidade de acompanhamento dos passivos
extracontábeis dos bancos centrais (como os contratos futuros) e do estoque
da dívida privada de curto prazo. Esses defeitos agora estão sendo corrigidos, mas não é fácil prognosticar quais serão as lições da próxima crise.
Outro exemplo vem das normas de Basiléia sobre a adequação do
capital, as quais determinam um coeficiente de risco maior para os empréstimos de longo prazo, quando se destinarem a um país não pertencente à
OCDE, do que para os de curto prazo (da ordem de 100% para 20%). O efeito
disso é que os empréstimos de longo prazo se tornam significativamente
mais custosos para os bancos, requerendo-lhes uma maior provisão de
capital quando efetuam empréstimos de longa maturação. A lógica inicial era
a de que empréstimos de curto prazo são um método aceitável de gerenciamento da liquidez (quando tomados com outros bancos) e carregam menores riscos de transferência e/ou de crédito. Como conseqüência da crise
asiática, hoje sabemos que o que é seguro para um banco pode não ser para
o conjunto do sistema. Altos níveis de dívidas de curto prazo aumentam
a chance de debandadas e crises financeiras auto-realizáveis27. Assim, é
106
NOVOS ESTUDOS N.° 58
(27) Para a evidência de que a
relação entre dívidas de curto
prazo e reservas é um indicador robusto de crises financeiras, ver Rodrik e Velasco,
op. cit.
DANI RODRIK
possível que esta característica em especial das normas de adequação do
capital tenha piorado as coisas durante a década de 1990, ao estimular os
empréstimos de curto prazo às economias emergentes.
Em segundo lugar, diferenças nas circunstâncias econômicas e institucionais implicam que os regimes regulatórios que funcionam em uma
situação podem não funcionar em outras. As dificuldades de implementação em países com fracos sistemas burocrático e judicial e baixos níveis de
capital humano são tão óbvias que nos dispensam de comentá-las. Igualmente sérias são as diferenças estruturais que podem impedir a operação
efetiva de sistemas regulatórios importados a granel do exterior. RojasSuárez e Weisbrod nos fornecem uma ilustração proveniente da América
Latina28. Eles examinaram as normas do capital bancário e concluíram que
os altos níveis de concentração da renda e a debilidade do mercado de
capitais da região tornam muito improvável que aquelas normas sejam
devidamente aplicadas. A principal dificuldade é que essas condições
permitem aos bancos diluir seu capital de risco ao outorgar empréstimos a
si próprios, de maneira direta ou mediante créditos recíprocos. Infere-se
disso que na América Latina as normas sobre o capital não funcionam tão
bem quanto, por exemplo, os requisitos de liquidez em termos de ativos em
moeda estrangeira. Mas, é claro, o que é válido para a Argentina pode não
ser para a Índia.
A afirmação de que os reguladores estão sempre um passo atrás dos
mercados financeiros parece indiscutível. Nos Estados Unidos os reguladores freqüentemente se queixam de que as normas sobre créditos são muito
indulgentes29, embora esse país tenha talvez o regime regulatório mais
sofisticado do mundo. Curiosamente, são os oponentes dos controles do
capital que apontam a questão da inadequação regulatória ao argumentarem que tais controles nunca poderiam funcionar, uma vez que os
investidores acabariam por encontrar formas de eludi-los. Se isso fosse
verdade, ficaríamos sem esperanças de estender uma adequada supervisão
preventiva aos mercados financeiros internacionais. Se os intermediários
financeiros podem facilmente escapar de taxas de transações, dos requisitos de encaixe e dos limites máximos dos passivos externos, certamente
podem fazer o mesmo com as normas de adequação do capital e com os
requisitos de divulgação de informações. A verdade provavelmente se
encontra em algum ponto intermediário: regulação financeira, fiscalização
e controles da conta de capital podem vir a funcionar, mas apenas de forma
imperfeita.
Há dois motivos para que as falhas de regulação sejam um problema
maior no arranjo internacional do que no âmbito doméstico. Primeiro, nos
países industriais avançados os sistemas regulatórios domésticos resultam de
uma evolução natural e gradual no curso do tempo. Presume-se daí que sejam funcionais num sentido adptativo. Mais importante ainda, os custos das
folhas domésticas de regulação são muito menores, uma vez que essa regulação é garantida por um banco central que atua como emprestador de última
instância. Quando um banco de médio porte abre falência, digamos, no
NOVEMBRO DE 2000
107
(28) Rojas-Suárez, Liliana e
Weisbrod, Steven R. Towards
an effective regulatory and supervisory framework for Latin
America. Washington, DC: Inter-American
Development
Bank, setembro de 1996.
(29) Ver, por exemplo, "Banks
warned on letting loan standards slide". Financial Times,
19/02/1998, p. 5.
GOVERNANDO A ECONOMIA GLOBAL
Texas, o que impede que isso se torne uma crise para a economia norte-americana não é a regulação bancária, nem o controle da gerência empresarial,
nem os procedimentos falimentares, e sim o fato de que o Federal Reserve
rapidamente põe-se em condições de prover a liquidez necessária para
frustrar corridas aos bancos na Califórnia, Nova Inglaterra e outros lugares.
As possibilidades de que se estabeleça em âmbito internacional um
emprestador de última instância similar a este são virtualmente nulas no
curto prazo. O G-7 considera um aumento dos recursos do FMI para
fornecer créditos de curto prazo aos países em dificuldade, mas a única
conexão com um padrão de emprestador de última instância é que esses
novos recursos serão emprestados a taxas punitivas. Nenhum dos outros
dois pré-requisitos — concessão de empréstimos sem restrições e mediante
uma boa garantia de contrapartida — é uma possibilidade realista. Em
particular, o FMI irá exigir que os países receptores desses novos recursos
obedeçam ao que o G-7 chama de "políticas fortes aprovadas pelo FMI"30,
isto é, o tipo de condicionalidade de alto nível que discuti anteriormente.
O que impede que se constitua um autêntico emprestador de última
instância é, simplesmente, a soberania nacional. Por motivos muito bem
explicados por Eichengreen, nenhum país, muito menos os Estados
Unidos, está disposto a dotar uma agência internacional da capacidade de
emitir crédito ilimitado31. E num mundo onde o volume diário de transações cambiais é de US$ 1,5 trilhão, recursos internacionais com fundos
limitados são um alvo fácil para George Soros e outros fundos hedge.
A liberalização da conta de capital deveria ser um objetivo?
Um dos problemas de tratar os fluxos de capital como o bem supremo
ao mesmo tempo que se usam as "reformas institucionais" como instrumento de política é que, como acabei de discutir, esse instrumento não parece
ser muito efetivo por si só. Outro problema é que não está claro o motivo
por que a mobilidade do capital tem de ser um objetivo. Muito freqüentemente as discussões de políticas públicas envolvem afirmações do tipo "a
globalização requer x, y e z", demonstrando confusão entre meios e fins32.
Fluxos de capital, assim como fluxos de comércio, são um veículo para a
prosperidade, não um objetivo de política em si mesmo. A relação entre
fluxos de capital e o esforço de desenvolvimento nacional precisa ser
atentamente examinada, e não presumida.
O apelo da mobilidade do capital é óbvio. Se não há imperfeições de
mercado, a liberdade de comércio aumenta a eficiência, e isso é verdadeiro
no mercado de ações como nos de quaisquer bens. Mas a maioria dos
interessados na questão, incluindo Alan Greenspan, Michel Camdessus e
George Soros, iria concordar que o "se" que qualifica a sentença anterior
tem enorme validade no caso dos mercados financeiros internacionais.
Mercados financeiros sofrem de várias síndromes — assimetrias de infor-
108
NOVOS ESTUDOS N.° 58
(30) Declaração dos ministros
de Finanças e dos dirigentes
dos bancos centrais do G-7,
30/10/1998.
(31) Eichengreen, Barry. Toward a new international financial architecture: a practical post-Asia agenda. Washington, DC: Institute for International Economics, 1999,
pp. 93-102. Para uma discussão muito útil acerca de até
onde o conceito de emprestador de última instância pode
ser estendido internacionalmente, ver Fischer, Stanley. On
the need for an international
lender of last resort. American
Economic Association, Nova
York, janeiro de 1999. Ver também, para um avaliação realista, Ahluwalia, Montek S. The
IMF and the World Bank are
overlapping roles a problem?
Studies on International Monetary and Financial Issues,
Group of 24, Sri Lanka, março
de 1999.
(32) Aqui temos um exemplo
extraído de Camdessus: "A globalização torna essencial que
todos os países garantam que
suas políticas econômicas sejam sólidas e força cada país a
se resguardar contra as mudanças, às vezes abruptas, em
seu ambiente externo" (Camdessus, Michel. Latin America
in a globalized economy the
Chilean response. Mesa-redonda organizada pelo governo do Chile, Paris, março de
1999).
DANI RODRIK
mação, problemas de intermediação, expectativas auto-realizáveis, bolhas
(racionais ou não) e miopia — em uma tal extensão que suas análises
econômicas são intrinsecamente second best. E nenhum acúmulo de
remendos institucionais parece ser capaz de mudar significativamente este
feto básico da vida.
A questão de se as nações em desenvolvimento devem ou não ser
induzidas a abrir suas contas de capital (de modo "ordenado e progressivo",
como recomenda o G-7 com suma vagueza) só pode ser resolvida, em última
instância, com base em evidências empíricas. Enquanto sobram evidências
de que uma liberalização financeira é freqüentemente seguida por quebras
financeiras33, temos muito pouca evidência de que maiores taxas de
crescimento econômico se sigam à liberalização da conta de capital. Quinn
indica uma associação positiva entre liberalização da conta de capital e
crescimento de longo prazo, enquanto Grilli e Milesi-Ferretti, Rodrik e Kraay
— o último usando os próprios indicadores de restrições da conta de capital
elaborados por Quinn — não encontraram qualquer relação34. Este é um
campo de pesquisa ainda incipiente, e por certo há muito mais para ser
aprendido. O mínimo que pode ser dito no momento é que ainda estão por
ser produzidas evidências convincentes sobre os benefícios da liberalização
de capital. Na ausência de tais evidências, a canonização da mobilidade do
capital corre o risco de ser percebida como um esforço mercantilista de
fomentar negócios para a elite financeira dos Estados Unidos e da Europa35.
Entre todos os argumentos a favor da mobilidade internacional do
capital, talvez o de maior apelo seja o que diz que esse tipo de mobilidade
cumpre uma função disciplinatória muito útil em relação às políticas
públicas. Sob a condição de atender aos investidores, os governos não
podem dilapidar tão facilmente os recursos de sua sociedade. Como diz
Larry Summers, "a disciplina de mercado é a melhor maneira que o mundo
encontrou para garantir que o capital seja bem usado" 36 . A idéia é atraente
mas, uma vez mais, deve-se questionar sua relevância empírica. Se os
credores estrangeiros sofrem das síndromes mencionadas acima, um
governo decidido a realizar gastos irresponsavelmente encontra maior
facilidade em financiá-los quando pode endividar-se externamente. Mais
ainda, para esse tipo de governo mesmo os empréstimos domésticos
tornam-se politicamente menos custosos, porque em um mundo de livre
mobilidade de capital não se vêem excluídos os investidores privados (uma
vez que podem emprestar do exterior). Em ambas as situações os mercados
financeiros internacionais permitem gastos imprudentes que talvez não
ocorressem em sua ausência. Ao contrário, como já vimos, a disciplina que
os mercados exercem após uma crise pode ser excessiva e arbitrária. Como
aponta Willett, uma caracterização apropriada da disciplina de mercado é
que ela vem muito tarde, e quando vem é sempre demasiada 37 .
Os governos por certo precisam de disciplina. Mas nas sociedades
modernas essa disciplina é fornecida pelas instituições democráticas —
eleições, partidos de oposição, tribunais independentes, debate parlamentar, imprensa livre e outras liberdades civis. Governos que transtornam suas
NOVEMBRO DE 2000
109
(33) Para uma resenha, ver Williamson, John e Mahar, Molly.
A survey of financial liberalization. Princeton University,
Department of Economics, novembro de 1998 (Essays in International Finance nº 211).
(34) Quinn, Dennis. "The correlates of change in international financial regulation". American Political Science Review,
91(3), setembro de 1997, pp.
531-551; Grilli, Vittorio e Milesi-Ferretti, Gian Maria. "Economic effects and structural determinants of capital controls".
IMF Staff Papers, 42(3), setembro de 1995, pp. 517-551; Rodrik, Dani. "Who needs capital-account convertibility?". In:
Fischer, Stanley e outros.
Should the IMF pursue capitalaccount convertibility? Princeton University, Department of
Economics, maio de 1998 (Essays in International Finance
nº 207); Kraay, Aart. In search
of the macroeconomic effects of
capital account liberalization.
The World Bank, outubro de
1998 (mimeo).
(35)Cf. Bhagwati, Jagdish. "The
capital myth". Foreign Affairs,
maio-jun./1998; Wade, Robert.
The U.S. role in the Asian crisis.
Brown University, abril de 1999
(mimeo).
(36) Summers, Lawrence H.
Building an international financial architecture for the
21st century. Remarks to the
Cato Institute, Washington DC,
1998.
(37) Willett, Thomas D. International financial markets as
sources of crises or discipline:
the too much, too late hypothesis. Claremont McKenna College, 1998.
GOVERNANDO A ECONOMIA GLOBAL
economias são punidos pelas urnas. Amplas evidências acerca de vários
países sugerem que nações democráticas têm bom desempenho na
manutenção de políticas fiscais e monetárias responsáveis. Os casos mais
significativos de extravagância fiscal ocorreram sob regimes autoritários e
não sob regimes democráticos. Foram as ditaduras militares que lançaram
a América Latina na sua crise da dívida, e as democracias é que tiveram de
fazer os reparos. Na Ásia, países democráticos como a Índia e o Sri Lanka
têm desempenhos macroeconômicos exemplares para os padrões latinoamericanos e africanos. As duas únicas democracias de longa data na África
(Ilhas Maurício e Botsuana) têm feito um excelente gerenciamento das altas
e baixas nos preços de seus principais produtos de exportação (açúcar e
diamantes). Entre as economias em transição, as estabilizações de maior
sucesso ocorreram nos países mais democráticos. Em uma amostra de mais
de cem países encontrou-se uma forte associação negativa entre o índice
Freedom House de democracia e a taxa média de inflação, controlando-se
pela renda per capita38.
No entanto, não há clarividência sobre quais defeitos das formas de
decisão democrática podem ser resolvidos pela disciplina de mercado ou
sobre por que esta disciplina deve ser vista como superior aos controles e
equilíbrios internos. De fato, não é difícil perceber a disciplina externa de
mercado como uma subversão da democracia e, assim, como uma complicação para a administração da economia nacional. O que fica implícito sob
a designação "disciplina de mercado" não é uma força política neutra: ela
fortalece os mercados financeiros — tanto domésticos como internacionais
— mais do que outros segmentos da sociedade, e portanto pode estar a
serviço das necessidades de certos grupos sociais à custa de outros. A noção
de que a mobilidade internacional do capital pode cumprir um papel
disciplinar incorpora uma visão da política que é, na melhor das hipóteses,
parcial, e na pior, prejudicial para a democracia.
Por fim, a busca da agenda de liberalização da conta de capital tem o
efeito de expulsar a agenda dos governantes do debate e desviar suas
energias dos esforços de desenvolvimento nacional. Um ministro das
Finanças que esteja o tempo todo às voltas com a preocupação de acalmar
os investidores e fazer marketing da economia para banqueiros estrangeiros não estará se dedicando às questões tradicionais do desenvolvimento:
redução da pobreza, mobilização de recursos e determinação das prioridades de investimento. Ao fim e ao cabo, são os mercados globais que ditam
as políticas públicas, não as prioridades nacionais.
Considerações finais
Uma agenda mais apropriada para a construção de uma arquitetura
financeira internacional mais de acordo com os interesses dos países em
desenvolvimento deveria ter as seguintes características. Em primeiro lugar,
110
NOVOS ESTUDOS N.° 58
(38) O período coberto é de
1975 a 1990 e o índice de
democracia utilizado é uma
média para a década de 1970
(para minimizar a causação
reversa). A estatística t (com
heterocedasticidade corrigida)
para o coeficiente da democracia é -2,40.
DANI RODRIK
empenhar-se por um equilíbrio mais prudente entre, de um lado, o
fortalecimento da infra-estrutura institucional por meio de códigos e
normas e, de outro, o desestímulo ao fluxo de capitais de curto prazo. Até
o presente, muito esforço e reflexão se dedicou ao primeiro ponto e muito
pouco ao último. Em segundo lugar, deveríamos reconhecer os limites de
nosso conhecimento acerca do que constitui uma sólida política econômica, assim como a necessidade de se permitir certa diversidade nos esforços
nacionais de desenvolvimento. Não se deve ir longe demais na tentativa de
reestruturar as economias dos mercados emergentes com o fim de tornar o
mundo seguro para os fluxos de capital. Por último, mas não menos
importante, o G-7 deveria fazer um genuíno esforço de discutir questões de
administração econômica internacional com os países em desenvolvimento. No modelo atual o G-7 elabora todos os detalhes e depois procura
instruí-los aos países em desenvolvimento. Um processo como este não
apenas carece de ampla legitimidade, como padece de equívocos e
omissões provenientes de entendimentos inadequados sobre as particularidades dos países em desenvolvimento 39 .
Voltemos à Suécia de 1992. Como os suecos lidaram com sua crise
financeira? Para começar, sancionou-se uma garantia geral a todo o sistema
financeiro para deter o pânico (fornecendo cobertura a todos, exceto os
acionistas). Isto foi seguido por uma recapitalização do setor bancário.
Adotou-se uma política monetária expansionista e permitiu-se que as taxas
de juros deslizassem e o déficit orçamentário aumentasse. O PIB real começou a se recuperar em 1994, depois de três anos em queda.
Agora, imagine-se que a Suécia fosse um país em desenvolvimento
como outro qualquer e tivesse buscado a intervenção do FMI. O que o
Fundo teria recomendado? Provavelmente, fechamento de bancos, taxas de
juros mais altas e ajuste fiscal para restaurar a confiança do mercado — e,
sem dúvida, muitas reformas estruturais também. Não teria escapado ao
escrutínio do FMI que o setor público sueco desempenha papel significativo na vida econômica do país: os impostos são altos, é vasto o emprego
público e os gastos do governo somam quase metade do PIB. Que melhor
candidato para uma reforma estrutural do que o desmanche do Estado de
bem-estar sueco? O FMI teria condicionado sua assistência a reformas
significativas no mercado de trabalho e no sistema de seguridade social?
Provavelmente, sim. A Suécia estaria hoje em melhor situação como resultado disso? Não sabemos. Acaso teria sido uma boa idéia que o FMI
ampliasse sua condicionalidade de tal maneira? Quase com certeza, não.
NOVEMBRO DE 2000
111
(39) O campo (op. cit.) proporciona uma útil análise dos interesses dos países em desenvolvimento nesta área.
Recebido para publicação em
17 de outubro de 2000.
Dani Rodrik é professor da
John F. Kennedy School of
Government, Harvard University.
Novos Estudos
CEBRAP
N.° 58, novembro 2000
pp. 93-111
revista de cultura e política
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