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O TRIBUNAL DE NUREMBERG: Da tipificação de crimes contra a humanidade
a novos paradigmas no direito internacional
Alessandra Maria Martins de Freitas*
Sumário: 1. Introdução; 2. O Estatuto do Tribunal de Nuremberg e a previsão do tipo
“crime contra a humanidade”; 3. Breve análise do conceito de “crime contra a
humanidade”; 4. Hiatos enfrentados pelo Tribunal de Nuremberg no julgamento de
crimes contra a humanidade; 5. Os Novos Paradigmas do direito internacional e o
Tribunal de Nuremberg; 6. Considerações Finais, Referências
*Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
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*Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
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1. INTRODUÇÃO
A Segunda Guerra Mundial, conflito ocorrido entre 1939 e 1945, é considerada
um dos episódios mais trágicos da história da civilização contemporânea. Milhões de
mortos, dentre civis e militares, foram o resultado dos embates entre as potências do
Eixo, constituído por Alemanha, Itália e Japão, e os países Aliados, que tiveram como
principais atores a França, a Grã-Bretanha, os Estados Unidos e a União Soviética.
É possível considerar, a partir de uma análise histórica, que esse conflito teve
suas bases estabelecidas por ocasião da Primeira Guerra Mundial, a qual aconteceu
entre 1914 e 1918. Esta teve como fatores desencadeadores disputas territoriais e
econômicas, calcadas na corrida imperialista entre as potências europeias. A relativa
permanência de tais elementos, aliada às sofríveis condições impostas à derrotada
Alemanha pelo Tratado de Versalhes (1918), as quais ensejaram a ascensão do
nacional-socialismo nesse país, foram as circunstâncias determinantes para a eclosão da
Segunda Grande Guerra Mundial.¹
Dessa forma, há inúmeras contingências que conectam os dois conflitos,
destacando-se, aqui, a violação de tratados e garantias internacionais e de costumes de
guerra, o que acabou por deflagrar “guerras de agressão”. Esse conceito relacionar-se-ia
à noção de conflito justo, a qual, segundo Ana Luiza Almeida Ferro (2002) em análise
de Grotius, teria como fundamento o fato de que
“[...] o Estado reuniria, em relação aos outros Estados, sujeitos
passivos de uma possível repressão (quando necessária), as
faculdades e atribuições próprias do indivíduo: poder de reagir
contra as agressões injustas atingindo a sua pessoa (...). É nesse
ponto que Grotius converte a guerra numa instituição jurídica,
legítima, portanto, quando de caráter defensivo (...). É importante
que se ressalte ainda que, para o autor, não só a causa da guerra
devia ser justa, mas também a sua conduta.” (FERRO, 2002, p. 25)
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Direito Penal Internacional. 1. ed. Belo Horizonte: Del Rey,
2009. p. 69 (Coleção Para Entender).
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Portanto, pode-se considerar que tanto a Primeira quanto a Segunda Guerra
Mundiais contaram com flagrantes descumprimentos de princípios basilares do direito
internacional, como o pacta sunt servanda e a vedação a guerras de agressão, ou seja,
àqueles conflitos que não foram motivados pela legítima defesa. No entanto, um
elemento determinante diferenciou os dois episódios, colocando o segundo em um
patamar singular de hediondez: o massacre, promovido pela Alemanha nacionalsocialista, de forma deliberada e embasada na legislação interna, de um inteiro
segmento da população civil, os judeus.
Tal massacre, que teve suas bases lançadas com a aprovação, pelo governo
nazista, das Leis de Nuremberg (1935)¹, que determinavam a restrição dos direitos civis
da população judia, culminou com o deslocamento dos judeus para campos de
concentração, onde eram submetidos a trabalhos forçados, a serem cobaias em
pesquisas científicas e, sob a alcunha “solução final”, à morte por meios atrozes, como
através de câmaras de gás. Essas medidas, assim, levaram à completa perda da
cidadania da população judia que vivia sob o domínio do nacional-socialismo, o que
implicou, de acordo com Hannah Arendt (1989), um “grande perigo”
“[...] que advém da existência de pessoas forçadas a viver fora do mundocomum. (...) Falta-lhes aquela tremenda equalização de diferenças que advém
do fato de serem cidadãos de alguma comunidade, e no entanto, como já se
não lhes permite participar do artifício humano, passam a pertencer à raça
humana da mesma forma como animais pertencem a uma dada espécie de
animais. O paradoxo da perda dos direitos humanos é que essa perda coincide
com o instante em que a pessoa se torna um ser humano em geral – sem uma
profissão, sem uma cidadania, sem uma opinião, sem uma ação pela qual se
identifique e se especifique – e diferente em geral, representando nada além
de sua individualidade absoluta e singular, que, privada da expressão e da
ação sobre um mundo comum, perde todo o seu significado.” (ARENDT,
1989, p. 335-336)
Assim, esse “perigo” consistiu a circunstância singular que permeou a Segunda
Guerra Mundial: o cometimento, pelo Estado alemão, de uma série de ações que
transcendiam o conceito de “crimes de guerra”, disciplinados pela Convenção de Haia¹.
Tais ações, inéditas em sua clareza, organização e em seu amparo na legislação e na
ideologia nacionais, determinaram o extermínio, motivado por questões raciais, de uma
inteira
parcela
populacional.
Esta,
portanto,
não
fora
uma
mera
¹ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. 1. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999. Pp. 278-279
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vítima do conflito que se desenrolava, vez que, de forma odiosa, é comum que, a
exemplo do ocorrido na Primeira Guerra Mundial, a população civil seja a principal
atingida pelos ímpetos beligerantes de seu Estado. Na verdade, a violência cometida
contra os judeus pelo Estado nazista foi além das contingências da guerra, atingindo-os
em sua própria condição humana.¹
Com a capitulação das potências do Eixo e o fim do conflito, em 1945, as nações
Aliadas empreenderam esforços para que os atos de barbaridade cometidos fossem
devidamente julgados e punidos. Houve, porém, a especial preocupação, ainda que
questionável, de que os julgamentos contassem, efetivamente, com motivações
jurídicas, e não políticas, não constituindo uma “justiça de vencedores”.²
Assim, em 08 de agosto de 1945, as quatro potências aliadas – Grã-Bretanha,
Estados Unidos, França e URSS – firmaram o Acordo de Londres, pelo qual fora
estatuído o Tribunal Militar Internacional, a ser sediado na cidade alemã de Nuremberg,
cujo escopo seria o julgamento dos principais responsáveis pelos crimes cometidos no
curso Segunda Guerra Mundial. Estavam, dentre os 22 réus, os principais
orquestradores do regime nacional-socialista, ligados à burocracia estatal, às políticas de
guerra e às políticas raciais.
O caminho trilhado por juízes, promotores e advogados que atuaram nos
julgamentos de Nuremberg foi árduo: além de, diante da massiva condenação prévia da
opinião pública mundial frente às brutais ações levadas a cabo durante a guerra,
buscarem se coadunar aos princípios jurídicos mais fundamentais - como a reserva legal
e o direito à defesa - os juristas depararam-se com um tipo até então não previsto, de
forma ostensiva, na legislação internacional: o crime contra a humanidade. Este, cuja
noção chegou a ser citada em declaração feita pelo primeiro-ministro britânico Winston
Churchill, em 1941, “We are in the presence of a crime without a name”, representou
um especial desafio para a Corte.
Como julgar, tipificar e dosar a pena de um crime que não estava previsto pela
legislação internacional até outrora? Como harmonizar a percepção de que as ações
¹ HUHLE, Rainer. Hacia una comprensión de los “crímenes contra la humanidad” a partir de
Nuremberg, Revista Estudios Socio-Juridicos, 13, (2), pp. 43-76. 2011.
² FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg: dos precedentes à confirmação de seus
princípios. 1. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 69 (Coleção Mandamentos Ciências
Criminais).
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cometidas contra a população judia foram claras violações à noção de humanidade e de
civilização, com as garantias jurídicas fundamentais dadas aos acusados, às quais o
Tribunal havia se filiado? E como os princípios advindos de tais considerações
influenciaram o direito internacional? São essas sensíveis questões, as quais afloram do
caráter inovador do Tribunal de Nuremberg no tocante aos crimes lesa-humanidade, que
serão analisadas neste artigo.
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2. O ESTATUTO DO TRIBUNAL DE NUREMBERG E A PREVISÃO DO
TIPO “CRIME CONTRA A HUMANIDADE”
O Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg previa a realização
de um julgamento que “[...] garantisse a determinação do direito internacional que
requer que qualquer Estado ou grupo de Estados, ao exercerem jurisdição criminal sobre
estrangeiros, não neguem justiça”. (FERRO, 2002, p. 73). Para tanto, aos acusados
foram indicados juristas que elaborassem sua defesa, os quais poderiam ser substituídos,
caso fosse sua vontade, por outros de sua preferência.
Nos termos do Estatuto, ainda, tinha-se que os juízos de culpabilidade que
seriam realizados pela Corte orientar-se-iam pelo princípio da responsabilidade
individual. Nesse ínterim, restou marcante para o próprio entendimento jurídico
internacional a noção de que os entes estatais não eram os únicos sujeitos sobre os quais
as normas internacionais recaíam; e, os indivíduos, outrossim, deveriam responder pelos
crimes previstos por tais normas, vez que possuíam, tal qual os Estados,
responsabilidade frente à ordem jurídica internacional. De acordo com o Estatuto do
Tribunal Militar Internacional de Nuremberg,
“[...] Art. 7º: A situação oficial dos acusados, seja como Chefes de
Estado, seja como altos funcionários, não será considerada, nem
como escusa absolutória, nem como motivo para diminuição da
pena.
Art. 8º: O fato de que o acusado agiu de acordo com as instruções de
seu Governo ou de um superior hierárquico não o eximirá de sua
responsabilidade, mas poderá ser considerado como motivo para
diminuição da pena, se o Tribunal decidir que a justiça o exige.”
(ESTATUTO, In: FERRO, 2002, p. 129)
Assim, a vedação à consideração da obediência hierárquica como excludente da
responsabilidade encerra o pressuposto, estatuído pela Corte, de que o indivíduo, assim
como os Estados, deveria responder por sua conduta delituosa na esfera internacional.
Tal responsabilidade embasou, no âmbito da lide, a consideração de que, tomando-se
em conta o calibre dos crimes cometidos, havia uma possibilidade moral de escolha¹,
sendo esta juridicamente determinante para a cominação dos delitos.
Essa responsabilidade individual foi submetida a juízo no tocante a três crimes,
estabelecidos pelo próprio Estatuto: crimes contra a paz, que se traduzem na noção de
¹ FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg: dos precedentes à confirmação de seus
princípios. 1. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 92.
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“guerras de agressão”, ou seja, na deflagração de conflitos que não tenham como
motivação a legítima defesa; crimes de guerra, que se relacionam à violação de
costumes de guerra, já positivados à época; e crimes contra a humanidade, que
representam, sucintamente, uma classe de atos que atentam contra a dignidade humana e
os direitos humanos mais essenciais.¹
No tocante aos últimos, cabe trazer à baila sua definição, nos termos do Estatuto
do Tribunal Militar Internacional:
“[...] Art. 6º: O Tribunal instaurado pelo Acordo mencionado no
artigo primeiro acima, para julgamento e punição dos grandes
criminosos de guerra dos países europeus do Eixo, terá competência
para julgar e punir todas as pessoas que, agindo por conta dos países
europeus do Eixo, cometeram, individualmente ou como membros
de organizações, qualquer um dos seguintes crimes: (...)
c) crimes contra a humanidade: isto é, o assassinato, exterminação,
redução à escravidão, deportação e qualquer outro ato desumano
cometido contra populações civis, antes e durante a guerra; ou então,
perseguições por motivos políticos, raciais ou religiosos, quando
esses atos ou perseguições, quer tenham ou não constituído uma
violação do direito interno dos países onde foram perpetrados,
tenham sido cometidos em consequência de qualquer crime que
entre na competência do Tribunal ou em ligação com esse crime.”
(ESTATUTO, In: FERRO, 2002, pp. 127-128)
Diante do exposto no texto do Estatuto, é possível depreender que o rol de
condutas taxadas como crimes contra a humanidade seria julgado pela Corte,
restritivamente, na medida em que se conectassem aos demais crimes de sua
competência, a saber, os crimes contra a paz e os crimes de guerra empreendidos pelas
nações do Eixo. Tal tipificação, embora conte com certas limitações, consistiu na
primeira formulação conceitual sólida para os chamados “crimes contra a humanidade”,
os “crimes sem nome” levados a cabo pelo regime nacional-socialista.
¹ HUHLE, Rainer. Hacia una comprensión de los “crímenes contra la humanidad” a partir de
Nuremberg, Revista Estudios Socio-Juridicos, 13, (2), pp. 43-76. 2011.
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3. BREVE
ANÁLISE
DO
CONCEITO
DE
“CRIME
CONTRA
A
HUMANIDADE”
O Estatuto do Tribunal Militar Internacional enumerou, de forma taxativa, as
condutas que seriam consideradas “crimes contra a humanidade”: assassinato,
exterminação, redução à escravidão, deportação e outros atos desumanos cometidos
contra populações civis, perseguições por motivos políticos, raciais ou religiosos.
Independentemente da vinculação à guerra - a qual era, conforme o entendimento do
Tribunal de Nuremberg, um pressuposto de tipicidade - qual seria o liame que conecta
todas essas ações?
Primeiramente, deve-se considerar que o elemento quantitativo, nesse ínterim,
não é determinante: um crime, como o assassinato, se perpetrado contra uma quantidade
significativa de indivíduos não constitui, unicamente em função deste último elemento,
um crime contra a humanidade. De maneira semelhante, o fato de o sujeito ativo das
condutas elencadas supra ser o Estado, ou indivíduos sob ordens advindas da burocracia
estatal, não o tipifica automaticamente como crime lesa-humanidade, embora seja
possível admitir que o aparato estatal possua um poder inquestionável de mobilizar os
recursos materiais e humanos comumente utilizados para o cometimento de delitos
dessa magnitude.¹
Dessa forma, tanto a quantidade de sujeitos passivos, quanto a qualidade estatal
dos sujeitos ativos não determinam se uma conduta enquadra-se na tipificação de crime
lesa-humanidade. Na verdade, para que se atinja um elemento comum que abarque tais
delitos, deve-se questionar sobre o bem jurídico atingido por essas condutas, o que
implica, necessariamente, a definição de um núcleo valorativo que fundamente o juízo
de injusto² atribuído aos crimes contra a humanidade.
Tal núcleo parece, segundo François de Menthon, procurador-chefe da França
nos julgamentos de Nuremberg, relacionar-se à noção de condição humana. Esta, sob a
ótica jurídica, encerraria um conjunto de prerrogativas arrogadas a todos os indivíduos,
e que constituiria o verdadeiro sentido de suas vidas – o direito à cidadania, à vida
¹HUHLE, Rainer. Hacia una comprensión de los “crímenes contra la humanidad” a partir de
Nuremberg, Revista Estudios Socio-Juridicos, 13, (2), 2011. pp. 52-54
²MACLEOD, Christopher. Towards a Philosophical Account of Crimes Against Humanity, European
Journal of International Law, Vol. 21 No. 2, pp. 281-302. 2010. p. 293
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familiar, ao trabalho, à prática religiosa, à manifestação política. Para Menthon, assim,
os crimes contra a humanidade teriam natureza pública e privada¹, que lesariam a
pessoa humana em sua condição de sujeito de certos direitos inalienáveis.
De acordo com Macleod (2010) é possível considerar, ainda, que os crimes
contra a humanidade são aqueles que violam a noção de grand-être, ou seja, de um
espírito coletivo. Tal conceito, cuja formulação primordial é atribuída a Auguste Comte,
é calcado no entendimento de que todo grupo social possui um conjunto de valores que,
embora não sejam, necessariamente, partilhados pela unanimidade de seus membros,
são consensualmente aceitos como identificadores desse grupo². Nesse âmbito, aquelas
condutas que violassem o grand-être, ou seja, os valores inerentes à consciência
coletiva, romperiam o próprio elo que as liga à identidade de humanidade – daí seu
caráter “desumano”. Tais violações consistiriam, assim, crimes lesa-humanidade.
À luz de tais considerações, pode-se depreender que o denominador comum às
condutas tipificadas como crimes dessa natureza é seu flagrante atentado à noção de
humanidade, aqui considerada como espaço de convívio histórico entre os múltiplos
sujeitos, o qual determina a aglutinação de um gama de faculdades e prerrogativas que,
por identificar este espaço, é considerado inafastável. Dessa forma, os crimes lesahumanidade, cuja análise aqui se dá sob o enfoque dos atos cometidos contra a
população judia pelo governo nacional-socialista, agrediriam, assim, um “status
humano”.
Dessa forma, o ataque a esse “status” encerraria, segundo Hannah Arendt
(1999), o juízo de lesividade e de atrocidade imediatamente suscitado por tais condutas.
Segundo a autora,
“[...] Nem o crime nacional de discriminação legalizada, que
resultava em perseguição pela lei, nem o crime internacional de
expulsão eram sem precedentes, até mesmo na Idade Moderna. (...)
Foi quando o regime nazista declarou que o povo alemão não só não
estava disposto a ter judeus na Alemanha, mas desejava fazer todo o
povo judeu desaparecer da face da Terra, que passou a existir o novo
crime, o crime contra a humanidade – no sentido de crime contra o
“status humano”, ou contra a própria natureza da humanidade. A
expulsão e o genocídio, embora sejam ambos crimes internacionais,
devem ser distinguidos; o primeiro é crime contra as nações irmãs,
enquanto o último é um ataque à diversidade humana enquanto tal,
¹HUHLE, Rainer. Hacia una comprensión de los “crímenes contra la humanidad” a partir de
Nuremberg, Revista Estudios Socio-Juridicos, 13, (2), 2011. pp. 52-54
²MACLEOD, Christopher. Towards a Philosophical Account of Crimes Against Humanity, European
Journal of International Law, Vol. 21 No. 2, pp. 281-302. 2010. p. 293
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isto é, a uma característica do “status humano” sem a qual a simples
palavra “humanidade” perde o sentido”. (ARENDT, 1999, p. 291)
¹HUHLE, Rainer. Hacia una comprensión de los “crímenes contra la humanidad” a partir de
Nuremberg, Revista Estudios Socio-Juridicos, 13, (2), 2011. pp. 52-54
²MACLEOD, Christopher. Towards a Philosophical Account of Crimes Against Humanity, European
Journal of International Law, Vol. 21 No. 2, pp. 281-302. 2010. p. 293
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4. HIATOS ENFRENTADOS PELO TRIBUNAL DE NUREMBERG NO
JULGAMENTO DE CRIMES CONTRA A HUMANIDADE
Inúmeras dificuldades resvalaram o Tribunal de Nuremberg no tocante ao
julgamento dos crimes contra a humanidade. Dentre estas, talvez a mais contundente
resida no próprio ineditismo da tipificação desses delitos: resta claro, em uma primeira
análise, que os réus foram condenados por condutas que não eram previstas como
típicas quando praticadas, o que atentaria, por óbvio, contra um dos princípios mais
radicais do direito ocidental, o da reserva legal.
Este, encerrado no epíteto nullum crimen nulla poena sine lege, veda a
condenação por atos que não eram considerados criminosos, por força de lei, à época
em que foram cometidos. O princípio da reserva legal possui, assim, contornos mais
claramente definidos nos sistemas jurídicos romano-germânicos, em que há
preponderância da legislação escrita¹, servindo, nesse ínterim, à exclusão de “toda
arbitrariedade e excesso do poder punitivo²”.
Em relação a tal princípio, no âmbito dos crimes julgados pela Corte de
Nuremberg, afirma Yrigoyen (1955) que
“[...] Los Aliados, al enjuiciar a los grandes criminales de guerra,
declararon que lo hacían en virtud del “derecho internacional en
vigor” y que el Estatuto del Tribunal – que fué la ley del processo –
“expresaba” ese derecho. Esta aseveración implica el hecho de que
buscaron la imposición de la Justicia a través del derecho. (...) El
Estatuto aplicado por el Tribunal de Nuremberg fué una ley ex post
facto, y la imposición de las sanciones penales vulneraba los
principios básicos del derecho que son la irretroatividad de las leyes
y aquel que deriva de la máxima nullum crimen, nulla poena sine
lege.” (YRIGOYEN: 1955, p. 289)
Sob perspectiva diversa, afirma Ferro (2002) que o princípio da reserva legal
possui uma raiz profundamente política, consistindo no mecanismo de coibição do
arbítrio no ínterim da atividade jurisdicional, tendo surgido e se desenvolvido,
sobretudo, naquelas sociedades em que a desigualdade material imperava. Assim, esse
princípio emanaria, tipicamente, de sistemas jurídicos mais desenvolvidos e complexos,
em
que
prevalece
¹ FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg: dos precedentes à confirmação de seus
princípios. 1. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. pp. 103-105.
² BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, Parte Geral, 1. 16 ed. São Paulo: Saraiva,
2011. p. 40.
a
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legislação escrita: seria desta que, naturalmente, adviria a noção de segurança jurídica
dada pela anterioridade da lei.
Em virtude disso, aduz a autora que o Direito Penal Internacional –
especialmente aquele vigente à época dos julgamentos de Nuremberg – seria
predominantemente consuetudinário, ou seja, orientado por normas originadas do
costume internacional. Isso impediria, portanto, a aplicação do princípio da reserva
legal, tal qual é concebido nos sistemas jurídicos romano-germânicos, no contexto do
julgamento de crimes internacionais.¹
No mesmo sentido, Hannah Arendt (1999) chega a estabelecer que os
julgamentos de Nuremberg violaram o princípio da reserva legal de maneira formal, e
não material. Isso se fundamentaria na consideração de que a legislação utilizada no
âmbito da lide possuía caráter distinto daquela presente em códigos criminais comuns,
sendo que
“[...] a razão dessa diferença está na natureza dos crimes com que
lida. Sua retroatividade, pode-se acrescentar, viola apenas
formalmente, não substancialmente, o princípio de nullum crimen,
nulla poena sine lege, uma vez que este se aplica significativamente
apenas a atos conhecidos pelo legislador; se um crime antes
desconhecido, como o genocídio, repentinamente aparece, a própria
justiça exige julgamento segundo uma nova lei; no caso de
Nuremberg, essa nova lei foi a Carta (o Acordo de Londres de
1945)”. (ARENDT, 2002, pp. 276-277)
Não obstante, cumpre ressaltar que, independentemente de tais considerações, é
facilmente deduzível a natureza ex post facto do Estatuto do qual se valeu o Tribunal de
Nuremberg para o julgamento dos crimes contra a humanidade. Atentos a tal fato, os
juristas ligados ao litígio buscaram desenvolver sua argumentação de forma a evitar que
se recaísse, imediatamente, no juízo de que houvera violação do princípio da reserva
legal.²
Para tanto, os promotores e juízes da Corte de Nuremberg embasaram-se em
uma interpretação restritiva do artigo 6º, alínea c, do Estatuto do Tribunal, que previa o
tipo “crime contra a humanidade”. Dessa forma, foi considerado que todas as condutas
previstas no referido dispositivo deveriam, ainda que não adviessem diretamente do
conflito,
estar
em
conexão
com
os
atos
preparatórios
da
guerra.³
¹ FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg: dos precedentes à confirmação de seus
princípios. 1. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. pp. 103-105.
²HUHLE, Rainer. De Nuremberg a la Haya: Los crímenes de derechos humanos ante la justicia.
Problemas, avances y perspectivas a los 60 años del Tribunal Militar Internacional de Nuremberg,
Análisis Político nº 55, Bogotá, septiembre-diciembre, 2005. p. 23.
³ HUHLE, Rainer. Hacia una comprensión de los “crímenes contra la humanidad” a partir de
Nuremberg, Revista Estudios Socio-Juridicos, 13, (2), 2011. pp. 50-51
12
É possível afirmar, portanto, que o caráter inovador do Estatuto do Tribunal
Militar Internacional foi, em parte, esvanecido pela tipificação dos crimes contra a
humanidade apenas na medida em que estes guardassem alguma relação com os crimes
contra a paz e os crimes de guerra, ou seja, com os demais delitos de competência
jurisdicional do tribunal.¹ Tal posicionamento foi, em parte, influenciado pelas “[...]
diferentes interpretações de tratados e princípios internacionais vigentes” (HUHLE,
2011, p. 57), o que criaria entraves para o julgamento dos réus.
Isso se evidencia pela grande diferença contida na tônica de dois dos elementos
observados no Tribunal. O primeiro é o discurso de abertura do julgamento, feito pelo
promotor-chefe dos Estados Unidos, Robert Jackson, em que o mesmo destaca que o
ajuizamento de crimes contra os partidários do nacional-socialismo teria como
fundamento jurídico princípios básicos de direito penal das nações civilizadas,
inserindo-se os crimes contra a humanidade, aqui, como delitos que feririam o limite do
tolerável pela civilização, sendo independentes das circunstâncias de guerra¹. Já o
segundo é a interpretação que a Corte, efetivamente, deu ao Estatuto, ao considerar a
conexão à guerra o pressuposto de tipicidade dos atos elencados como crimes contra a
humanidade.
Tal posição da Corte, que pode ser considerada, até certo ponto, paradoxal, é
evidenciada por Arendt (1999), que considera que os crimes contra a humanidade foram
os responsáveis por levarem os juízes de Nuremberg a assumirem uma postura
ambígua: apesar de se silenciarem sobre tais crimes, tomados de forma autônoma, nas
sentenças, restou claro que eles tiveram grande peso sobre a dosimetria das penas
aplicadas. Isso se evidenciou pelo fato de que, dos dezesseis réus condenados por
crimes contra a humanidade, a doze fora cominada a pena capital.² Dentre estes, incluiuse Julius Streicher, que, apesar de ter sido um dos maiores responsáveis pela
propaganda da ideologia anti-semita na Alemanha, não teve participação alguma no
conflito armado. Não obstante, ele foi condenado à pena de morte sob a acusação de
crime contra a humanidade – ainda que, na última frase de sua sentença, fosse feita a
ressalva de que a propaganda anti-semita por ele empreendida tenha sido considerada,
ali, uma “preparação para a guerra”, sendo assim, a esta relacionada.³ Infere-se, daí, um
¹ HUHLE, Rainer. Hacia una comprensión de los “crímenes contra la humanidad” a partir de
Nuremberg, Revista Estudios Socio-Juridicos, 13, (2), 2011. pp. 58-59
²Listagem dos réus In: FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg: dos precedentes à
confirmação de seus princípios. 1. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. pp. 53-54
³ HUHLE, Rainer. De Nuremberg a la Haya: Los crímenes de derechos humanos ante la justicia.
Problemas, avances y perspectivas a los 60 años del Tribunal Militar Internacional de Nuremberg,
Análisis Político nº 55, Bogotá, septiembre-diciembre, 2005. pp.24
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já significativo juízo valorativo da lesividade do crime contra a humanidade como
conduta típica autônoma.
Tal juízo de lesividade estaria implicado, assim, na própria observância do
princípio da justiça. A consideração deste no âmbito do julgamento, segundo Yrigoyen
(1955) estaria substanciado no fato de que
“[...] Hubiera sido paradójico, declararon muchos autores, que los
vacíos del derecho hubiesen impedido el ejercicio de una Justicia
imperiosamente reclamada por todo el mundo. (...) Pero, si [los
delitos] constituían crímenes desde el punto de vista de la moral,
tampoco podían quedar sin sanción por el solo hecho de que la
legislación internacional careciera de medidas repressivas
previamente establecidas. No había motivo para renunciar a una
acusación criminal contra las personas moralmente responsables de
provocar la segunda conflagración mundial, afirmaba Hans Kelsen.
Em efecto, hubiera constituído uma verdadera aberración moral y
una omisión desprovista del más elemental sentido de Justicia. Los
culpables de haber cometido (...) atropelos y vejámenes sin paralelo
en la Historia contra la dignidade y la integridad física y moral del
ser humano, no podían quedar impunes. He aquí el verdadero drama
de Nuremberg.” (YRIGOYEN, 1955, pp. 290-291)
Diante do exposto, é possível considerar que os hiatos enfrentados pelo Tribunal
Militar de Nuremberg tiveram seu cerne, justamente, em seu caráter vanguardista: ali
emergiram novas noções jurídicas no âmbito internacional, as quais, por ainda serem, à
época, incipientes, tiveram sua aplicação relativamente limitada. Tais noções, porém,
foram determinantes não apenas no ínterim do julgamento, como também para o
estabelecimento de novos paradigmas na ordem jurídica internacional.
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5. OS NOVOS PARADIGMAS DO DIREITO INTERNACIONAL E O
TRIBUNAL DE NUREMBERG
A ordem jurídica internacional sofreu profundas transformações ao longo do
século XX. A noção clássica de direito internacional tomava como atores desse
ordenamento apenas os Estados, organizados em uma “sociedade internacional”. Tal
sociedade seria marcada pela ausência de hierarquia entre os entes, de forma que as
regras jurídicas fossem concertadas, tipicamente, apenas sob a forma de acordos
bilaterais, sendo o reflexo da consideração do princípio da soberania estatal e de seu
consentimento como absolutos. Mostrava-se evidente, assim, a supremacia da natureza
política, e a diminuta relevância da natureza jurídica, no contexto das relações
internacionais.
No entanto, uma série de alterações permeou o modelo típico de sociedade
internacional. A conflagração de duas guerras mundiais demonstrou a falência do
modelo do equilíbrio¹ entre soberanias, característico da configuração clássica do direito
internacional, para a manutenção da paz e da civilidade. Isso propiciou o paulatino
desenvolvimento da noção de que haveria, relativamente a diversos Estados, um
conjunto de interesses comuns, os quais passaram a serem objetos de tratados
multilaterais. Estes, devido à relevância de certos interesses tutelados, desenvolveram-se
no sentido de originarem a constituição de organizações internacionais, instituições
capazes de proteger esses objetivos de forma direta e específica.
Dessa forma, as organizações internacionais passaram a contar com um poder
legislador delegado - em relação ao interesse por elas protegido e nos termos de seus
tratados constitutivos - sobre os Estados que lhes aderiram. Assim, as normas de direito
internacional oriundas das organizações internacionais contariam com o consentimento
indireto dos entes estatais.² Tal alteração do papel do consentimento implicou um
redimensionamento da própria noção absoluta de soberania, de forma que houvesse uma
nova formulação da estrutura das relações jurídicas internacionais. A estas foram
incorporados novos atores³, as organizações internacionais e os indivíduos, além de se
¹ DINH, Nguyen Q.; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain. Direito Internacional Público. 2 ed. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 2003. p. 71-72
² BRANT, Leonardo Nemer Caldeira; ELÓI, Pilar de Souza de Paula Coutinho. A natureza normativa
da ordem jurídica internacional. Revista da Faculdade Mineira de Direito, v.12, n. 24, jul./dez. 2009.
Pp. 3-5
³ DINH, Nguyen Q.; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain. Direito Internacional Público. 2 ed. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 2003. p. 411-413
15
constituir, gradualmente, a consideração de que haveria uma hierarquia no âmbito
internacional. Tal hierarquia seria determinada, assim, pelo próprio consentimento
indireto, vez que os Estados estariam juridicamente obrigados às normas produzidas, de
forma delegada, pelas organizações internacionais às quais se filiaram.
Esse novo cenário, que implica relações jurídicas entre Estados, organizações
internacionais e, em certa medida, indivíduos, originaria uma nova estrutura, a
“comunidade internacional”. Nesse ínterim, seria “[...] da tensão entre estas aspirações
confusas à comunidade internacional e a tendência dos Estados para afirmarem a sua
soberania, que nasce o direito internacional cujo objeto é, precisamente, o de organizar a
necessária interdependência, embora preservando a sua independência”. (DINH;
DAILLIER; PELLET, 2003, p. 41)
Dessa maneira, é possível afirmar que o processo que engendrou a noção de
“comunidade internacional” – do concerto de acordos multilaterais ao estabelecimento
de organizações internacionais – teve como cerne a identificação de interesses comuns
entre os diversos Estados. Alguns desses interesses tomaram uma dimensão
extremamente relevante, sendo partilhados por um número muito grande de Estados.
Eles representavam, assim, um conjunto de valores normativos de tal preponderância,
que seriam inderrogáveis. Tais valores seriam as normas jus cogens.
Segundo Shaw (2008), as normas de jus cogens não seriam normas em si, mas
princípios superiores depreendidos de normas jurídicas internacionais existentes.¹ Tais
princípios, oriundos do costume ou de tratados, seriam paulatinamente aceitos pela
comunidade internacional como essenciais à ordem jurídica, fato do qual emanariam
seu caráter inderrogável e sua hierarquia mais elevada, do ponto de vista material.²
Shaw afirma, ainda, que claras manifestações de tais normas cogentes seriam a ilicitude
do uso da força, do genocídio, do tráfico de escravos, da pirataria, dentre outros. É
possível afirmar, assim, que tais normas dizem respeito, em grande medida, à
manutenção da paz e, sobretudo, à proteção da dignidade da pessoa humana.
No tocante a esta última, tem-se que normas que possuem, como escopo, a
proteção à dignidade da pessoa humana, concernem ao núcleo mais fundamental de
¹ SHAW, Malcolm N. International Law.. 6 ed. New York: Cambridge University, 2008. p. 126
² BIANCHI, Andrea. Human Rights and the magic of Jus Cogens. The European Journal of
International Law, Vol. 19, No. 3, 2008.
16
direitos humanos. Estes teriam, dessa forma, uma identificação quase direta com as
normas de jus cogens:
“[...] Certainly, the identification of the content of the normative
category of jus cogens has never been an easy process. However,
human rights rules have been almost invariably designated as part of
it. This has occurred either by way of a general reference to the
‘bulk of contemporary human rights prescriptions’ without any
further qualification (…). In fact, to think of both human rights and
jus cogens at the same time is an almost natural intellectual reflex. It
is as if human rights were a quintessential part of jus cogens. The
introduction of ethical and moral concerns into the international
legal system takes place for the first time in an overt manner. (…)
The inner moral aspiration of the law thus materialized in
international law with the advent of jus cogens”. (BIANCHI, 2008,
p. 495)
Nesse ínterim, é possível estabelecer como a matriz contemporânea do núcleo
mais essencial de direitos humanos a Declaração Universal dos Direitos do Homem
(1948), a qual consiste, assim, no cerne da atividade normativa da Organização das
Nações Unidas. Tal Organização, erigida sobre as alterações paradigmáticas que
resvalaram sobre o direito internacional após a Segunda Guerra Mundial, teve como
foco, em sua origem, “o respeito universal e efetivo dos direitos do homem e das
liberdades fundamentais para todos, sem distinção de sua raça, sexo, língua ou
religião”.¹
Assim, a Declaração Universal dos Direitos do Homem serve a tal objetivo, no
sentido de que
“[...] consagra os direitos civis e políticos tradicionais e os direitos
econômicos e sociais, e constitui uma síntese entre a concepção
liberal ocidental e a concepção socialista (...). No que diz respeito ao
seu valor jurídico, a Declaração Universal não é, apesar da sua
importância histórica e política excepcional, diferente das outras
resoluções declarativas de princípios adotados pela Assembleia
Geral. (...) Por outro lado, os princípios que proclamam podem ter e
têm, em sua maior parte, valor de direito costumeiro, mesmo de
normas imperativas”. (DINH; DAILLIER; PELLET, 2003, p. 674676)
A Declaração Universal, portanto, não era, primariamente, um instrumento
normativo vinculante, vez que se tratava de uma recomendação da ONU aos seus
Estados signatários. No entanto, as normas nela contidas foram recepcionadas pela
¹ DINH, Nguyen Q.; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain. Direito Internacional Público. 2 ed. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 2003. pp. 674-676.
17
comunidade internacional como tão salutares – não apenas à manutenção da paz, mas à
própria proteção dos direitos fundamentais individuais – que se estruturou um opinio
iuris, ou seja, uma convicção de que sua prática geral e efetiva seria obrigatória,
vinculante, porque o direito o exige. Fez-se necessário, de outro lado, estabelecer o
caráter obrigatório da Declaração através de outros textos normativos.¹
Tal processo implicou que as normas contidas na Declaração Universal dos
Direitos Humanos fossem tomadas pela comunidade internacional, não obstante seu
caráter primário não-vinculante, como normas jus cogens, sendo, portanto, não apenas
obrigatórias, como gozando, também, de um status hierárquico superior, sob a ótica
material, em relação a outras normas. Esse caráter jus cogens demandou, por parte da
comunidade internacional, esforços no sentido de garantir e institucionalizar os
interesses protegidos pela Declaração.
Tais interesses, como explicitado supra, possuem íntima relação com a proteção
dos direitos da pessoa humana. Esses direitos denotam, dessa forma, que o indivíduo
tome parte de relações jurídicas no âmbito internacional, o que se dá sob duas
perspectivas. A primeira diz respeito ao indivíduo como detentor de certos direitos –
aqui, aqueles concernentes à própria noção de dignidade humana – que, se violados,
constituem ilícitos internacionais, o que pode ensejar a provocação das instâncias
jurisdicionais internacionais competentes. A segunda relaciona-se à consideração de que
o indivíduo possui deveres, ou seja, responsabilidade internacional, sobretudo no âmbito
penal, e que certas condutas delituosas, em especial aquelas ligadas aos crimes contra a
humanidade, engendram seu julgamento e penalização tendo como base o direito
internacional.²
Essa nova consideração do indivíduo na esfera internacional influenciou, em
função do caráter jus cogens da Declaração Universal dos Direitos Humanos, todo o
desenvolvimento posterior do direito internacional, estruturado, a partir de então, sobre
bases distintas daquelas típicas do modelo clássico de “sociedade internacional”. A
consideração do indivíduo como sujeito do direito internacional, assim, guarda relação
com a própria configuração de “comunidade internacional”.
¹ DINH, Nguyen Q.; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain. Direito Internacional Público. 2 ed. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 2003. p. 328-330 e p. 676.
² SHAW, Malcolm N. International Law.. 6 ed. New York: Cambridge University, 2008. pp. 257-259.
18
No âmbito das normas oriundas da Declaração Universal, assim, a paradigmática
consideração do indivíduo como sujeito de direitos e deveres na esfera internacional
encontrou sua mais ampla aplicação em relação aos crimes contra a humanidade – são
estes que, de forma mais clara, implicam tanto a responsabilidade individual, quanto a
possibilidade de provocação de instâncias jurisdicionais internacionais. A primeira
formulação normativa sólida em relação a esses crimes, porém, já estava presente em
um texto normativo anterior: o Estatuto do Tribunal Militar Internacional de
Nuremberg, de 1945.
Em relação a este último, cabe ressaltar que os chamados “Princípios de
Nuremberg”, compilação de princípios de Direito Internacional elaborado pela
Comissão de Direito Internacional da Assembleia Geral das Nações Unidas tendo como
fundamento o Estatuto do Tribunal, bem como suas decisões, foram ratificados por essa
Assembleia em 1946. Nessa elaboração, porém, “[...] foi eliminado o liame, até aí
exigido, entre esta categoria de delitos e estar em período de guerra, pois havia
referência que tivessem sido praticados antes ou durante o conflito armado”.
(JAPIASSÚ, 2009, p. 37).
Tal interpretação dos crimes contra a humanidade foi acolhida pela Declaração
Universal dos Direitos Humanos, que deu a esse crime o “elemento normativo que lhe
faltava” ao delimitar, precisamente, as faculdades e prerrogativas individuais frente aos
Estados. ¹ É possível estabelecer, assim, que as bases da tipificação dos crimes contra a
humanidade, bem como sua relação com a consideração do indivíduo como sujeito do
direito internacional, foram lançadas por ocasião dos julgamentos de Nuremberg.
Dessa forma, a Corte estabeleceu, de forma inédita, uma série de princípios que
seriam acolhidos e desenvolvidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Esse ineditismo foi, na verdade, o que engendrou as muitas críticas atribuídas ao
Tribunal, principalmente em relação à vinculação do crime contra a humanidade às
circunstâncias de guerra. Tal limitação, no entanto, pode ser justificada pelo próprio
caráter da Corte, que constituía, afinal, um tribunal de guerra.² Essas críticas não devem,
ainda,
serem
tomada
em
absoluto,
visto
que
o
juízo
¹ FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg: dos precedentes à confirmação de seus
princípios. 1. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 111.
²HUHLE, Rainer. Hacia una comprensión de los “crímenes contra la humanidad” a partir de
Nuremberg, Revista Estudios Socio-Juridicos, 13, (2), p. 49.
19
de lesividade do crime contra a humanidade como conduta delituosa autônoma foi, de
certo modo, levada em consideração pelo Tribunal, especialmente no tocante à
dosimetria das penas aplicadas.
Em vista do exposto, é possível afirmar que, embora tenham provocado, no
âmbito da lide, certas ambiguidades, os princípios oriundos do Tribunal de Nuremberg
tiveram influência salutar no posterior desenvolvimento do direito internacional. Assim,
através da consideração da responsabilidade individual frente a crimes internacionais –
feita, in casu, pela vedação de sua anulação pela justificativa de ordem hierárquica – e
da tipificação de crimes contra a humanidade, os quais constituem uma primeira
categoria de crimes cujo bem jurídico tutelado consiste no “status humano”, a Corte
delineou os primeiros contornos de novos paradigmas.
Esses paradigmas dizem respeito à consideração, sob a perspectiva dos direitos
humanos, de que o indivíduo é o núcleo teleológico do direito internacional, noção
normatizada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e que, posteriormente,
entranharia o núcleo das normas de jus cogens oriundas desse último texto normativo. O
Tribunal de Nuremberg, portanto, teve influência grandiosa para as primeiras bases das
normas jus cogens relativas à pessoa humana e seus direitos na esfera internacional,
normas estas que viriam a estruturar um novo direito internacional, fundado no
paradigma
de
comunidade
internacional.
20
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Tribunal Militar Internacional inseriu-se em um momento histórico de
profundas mudanças políticas e jurídicas. A estupefação da opinião pública frente às
atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial foi apenas um dos indicativos
de que a estrutura das relações jurídicas internacionais, à época, não era capaz de
harmonizar os princípios da soberania estatal, da autodeterminação dos povos, da
convivência pacífica e do respeito à dignidade da pessoa humana.
Dessa forma, uma das grandes dificuldades da Corte de Nuremberg foi,
justamente, situar-se no limiar da transição e da tensão entre os paradigmas da
sociedade internacional e da comunidade internacional. A inédita tipificação dos crimes
contra humanidade, nesse ínterim, representou o epítome de uma série de princípios que
vieram a embasar a legislação internacional subsequente, como o caráter primordial da
proteção aos direitos humanos.
Tal caráter teve uma de suas maiores concretizações com a criação do Tribunal
Penal Internacional, de caráter permanente e universal, através da aprovação do Estatuto
de Roma, em 1998. Não obstante tal avanço, restam, ainda, inúmeros desafios para a
devida observância dos princípios lançados pelos julgamentos de Nuremberg, como a
codificação de uma parte geral de normas penais aplicáveis aos crimes internacionais.
Esses avanços são, porém, cada vez mais vislumbrados, na medida em que Estados,
organizações internacionais e indivíduos confluam, cada vez mais, para o sentido de
harmonização e institucionalização de princípios comuns observados na configuração
de uma comunidade internacional.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 336 p.
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HUHLE, Rainer. De Nuremberg a la Haya: Los crímenes de derechos humanos
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Militar Internacional de Nuremberg, Análisis Político nº 55, Bogotá, septiembrediciembre, pp. 20-38. 2005. Disponível em:<
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HUHLE, Rainer. Hacia una comprensión de los “crímenes contra la humanidad” a
partir de Nuremberg, Revista Estudios Socio-Juridicos, 13, (2), pp. 43-76. 2011.
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