1 O TRIBUNAL DE NUREMBERG: Da tipificação de crimes contra a humanidade a novos paradigmas no direito internacional Alessandra Maria Martins de Freitas* Sumário: 1. Introdução; 2. O Estatuto do Tribunal de Nuremberg e a previsão do tipo “crime contra a humanidade”; 3. Breve análise do conceito de “crime contra a humanidade”; 4. Hiatos enfrentados pelo Tribunal de Nuremberg no julgamento de crimes contra a humanidade; 5. Os Novos Paradigmas do direito internacional e o Tribunal de Nuremberg; 6. Considerações Finais, Referências *Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. 1 *Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. 2 1. INTRODUÇÃO A Segunda Guerra Mundial, conflito ocorrido entre 1939 e 1945, é considerada um dos episódios mais trágicos da história da civilização contemporânea. Milhões de mortos, dentre civis e militares, foram o resultado dos embates entre as potências do Eixo, constituído por Alemanha, Itália e Japão, e os países Aliados, que tiveram como principais atores a França, a Grã-Bretanha, os Estados Unidos e a União Soviética. É possível considerar, a partir de uma análise histórica, que esse conflito teve suas bases estabelecidas por ocasião da Primeira Guerra Mundial, a qual aconteceu entre 1914 e 1918. Esta teve como fatores desencadeadores disputas territoriais e econômicas, calcadas na corrida imperialista entre as potências europeias. A relativa permanência de tais elementos, aliada às sofríveis condições impostas à derrotada Alemanha pelo Tratado de Versalhes (1918), as quais ensejaram a ascensão do nacional-socialismo nesse país, foram as circunstâncias determinantes para a eclosão da Segunda Grande Guerra Mundial.¹ Dessa forma, há inúmeras contingências que conectam os dois conflitos, destacando-se, aqui, a violação de tratados e garantias internacionais e de costumes de guerra, o que acabou por deflagrar “guerras de agressão”. Esse conceito relacionar-se-ia à noção de conflito justo, a qual, segundo Ana Luiza Almeida Ferro (2002) em análise de Grotius, teria como fundamento o fato de que “[...] o Estado reuniria, em relação aos outros Estados, sujeitos passivos de uma possível repressão (quando necessária), as faculdades e atribuições próprias do indivíduo: poder de reagir contra as agressões injustas atingindo a sua pessoa (...). É nesse ponto que Grotius converte a guerra numa instituição jurídica, legítima, portanto, quando de caráter defensivo (...). É importante que se ressalte ainda que, para o autor, não só a causa da guerra devia ser justa, mas também a sua conduta.” (FERRO, 2002, p. 25) JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Direito Penal Internacional. 1. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 69 (Coleção Para Entender). 3 Portanto, pode-se considerar que tanto a Primeira quanto a Segunda Guerra Mundiais contaram com flagrantes descumprimentos de princípios basilares do direito internacional, como o pacta sunt servanda e a vedação a guerras de agressão, ou seja, àqueles conflitos que não foram motivados pela legítima defesa. No entanto, um elemento determinante diferenciou os dois episódios, colocando o segundo em um patamar singular de hediondez: o massacre, promovido pela Alemanha nacionalsocialista, de forma deliberada e embasada na legislação interna, de um inteiro segmento da população civil, os judeus. Tal massacre, que teve suas bases lançadas com a aprovação, pelo governo nazista, das Leis de Nuremberg (1935)¹, que determinavam a restrição dos direitos civis da população judia, culminou com o deslocamento dos judeus para campos de concentração, onde eram submetidos a trabalhos forçados, a serem cobaias em pesquisas científicas e, sob a alcunha “solução final”, à morte por meios atrozes, como através de câmaras de gás. Essas medidas, assim, levaram à completa perda da cidadania da população judia que vivia sob o domínio do nacional-socialismo, o que implicou, de acordo com Hannah Arendt (1989), um “grande perigo” “[...] que advém da existência de pessoas forçadas a viver fora do mundocomum. (...) Falta-lhes aquela tremenda equalização de diferenças que advém do fato de serem cidadãos de alguma comunidade, e no entanto, como já se não lhes permite participar do artifício humano, passam a pertencer à raça humana da mesma forma como animais pertencem a uma dada espécie de animais. O paradoxo da perda dos direitos humanos é que essa perda coincide com o instante em que a pessoa se torna um ser humano em geral – sem uma profissão, sem uma cidadania, sem uma opinião, sem uma ação pela qual se identifique e se especifique – e diferente em geral, representando nada além de sua individualidade absoluta e singular, que, privada da expressão e da ação sobre um mundo comum, perde todo o seu significado.” (ARENDT, 1989, p. 335-336) Assim, esse “perigo” consistiu a circunstância singular que permeou a Segunda Guerra Mundial: o cometimento, pelo Estado alemão, de uma série de ações que transcendiam o conceito de “crimes de guerra”, disciplinados pela Convenção de Haia¹. Tais ações, inéditas em sua clareza, organização e em seu amparo na legislação e na ideologia nacionais, determinaram o extermínio, motivado por questões raciais, de uma inteira parcela populacional. Esta, portanto, não fora uma mera ¹ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Pp. 278-279 4 vítima do conflito que se desenrolava, vez que, de forma odiosa, é comum que, a exemplo do ocorrido na Primeira Guerra Mundial, a população civil seja a principal atingida pelos ímpetos beligerantes de seu Estado. Na verdade, a violência cometida contra os judeus pelo Estado nazista foi além das contingências da guerra, atingindo-os em sua própria condição humana.¹ Com a capitulação das potências do Eixo e o fim do conflito, em 1945, as nações Aliadas empreenderam esforços para que os atos de barbaridade cometidos fossem devidamente julgados e punidos. Houve, porém, a especial preocupação, ainda que questionável, de que os julgamentos contassem, efetivamente, com motivações jurídicas, e não políticas, não constituindo uma “justiça de vencedores”.² Assim, em 08 de agosto de 1945, as quatro potências aliadas – Grã-Bretanha, Estados Unidos, França e URSS – firmaram o Acordo de Londres, pelo qual fora estatuído o Tribunal Militar Internacional, a ser sediado na cidade alemã de Nuremberg, cujo escopo seria o julgamento dos principais responsáveis pelos crimes cometidos no curso Segunda Guerra Mundial. Estavam, dentre os 22 réus, os principais orquestradores do regime nacional-socialista, ligados à burocracia estatal, às políticas de guerra e às políticas raciais. O caminho trilhado por juízes, promotores e advogados que atuaram nos julgamentos de Nuremberg foi árduo: além de, diante da massiva condenação prévia da opinião pública mundial frente às brutais ações levadas a cabo durante a guerra, buscarem se coadunar aos princípios jurídicos mais fundamentais - como a reserva legal e o direito à defesa - os juristas depararam-se com um tipo até então não previsto, de forma ostensiva, na legislação internacional: o crime contra a humanidade. Este, cuja noção chegou a ser citada em declaração feita pelo primeiro-ministro britânico Winston Churchill, em 1941, “We are in the presence of a crime without a name”, representou um especial desafio para a Corte. Como julgar, tipificar e dosar a pena de um crime que não estava previsto pela legislação internacional até outrora? Como harmonizar a percepção de que as ações ¹ HUHLE, Rainer. Hacia una comprensión de los “crímenes contra la humanidad” a partir de Nuremberg, Revista Estudios Socio-Juridicos, 13, (2), pp. 43-76. 2011. ² FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg: dos precedentes à confirmação de seus princípios. 1. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 69 (Coleção Mandamentos Ciências Criminais). 5 cometidas contra a população judia foram claras violações à noção de humanidade e de civilização, com as garantias jurídicas fundamentais dadas aos acusados, às quais o Tribunal havia se filiado? E como os princípios advindos de tais considerações influenciaram o direito internacional? São essas sensíveis questões, as quais afloram do caráter inovador do Tribunal de Nuremberg no tocante aos crimes lesa-humanidade, que serão analisadas neste artigo. 5 6 2. O ESTATUTO DO TRIBUNAL DE NUREMBERG E A PREVISÃO DO TIPO “CRIME CONTRA A HUMANIDADE” O Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg previa a realização de um julgamento que “[...] garantisse a determinação do direito internacional que requer que qualquer Estado ou grupo de Estados, ao exercerem jurisdição criminal sobre estrangeiros, não neguem justiça”. (FERRO, 2002, p. 73). Para tanto, aos acusados foram indicados juristas que elaborassem sua defesa, os quais poderiam ser substituídos, caso fosse sua vontade, por outros de sua preferência. Nos termos do Estatuto, ainda, tinha-se que os juízos de culpabilidade que seriam realizados pela Corte orientar-se-iam pelo princípio da responsabilidade individual. Nesse ínterim, restou marcante para o próprio entendimento jurídico internacional a noção de que os entes estatais não eram os únicos sujeitos sobre os quais as normas internacionais recaíam; e, os indivíduos, outrossim, deveriam responder pelos crimes previstos por tais normas, vez que possuíam, tal qual os Estados, responsabilidade frente à ordem jurídica internacional. De acordo com o Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, “[...] Art. 7º: A situação oficial dos acusados, seja como Chefes de Estado, seja como altos funcionários, não será considerada, nem como escusa absolutória, nem como motivo para diminuição da pena. Art. 8º: O fato de que o acusado agiu de acordo com as instruções de seu Governo ou de um superior hierárquico não o eximirá de sua responsabilidade, mas poderá ser considerado como motivo para diminuição da pena, se o Tribunal decidir que a justiça o exige.” (ESTATUTO, In: FERRO, 2002, p. 129) Assim, a vedação à consideração da obediência hierárquica como excludente da responsabilidade encerra o pressuposto, estatuído pela Corte, de que o indivíduo, assim como os Estados, deveria responder por sua conduta delituosa na esfera internacional. Tal responsabilidade embasou, no âmbito da lide, a consideração de que, tomando-se em conta o calibre dos crimes cometidos, havia uma possibilidade moral de escolha¹, sendo esta juridicamente determinante para a cominação dos delitos. Essa responsabilidade individual foi submetida a juízo no tocante a três crimes, estabelecidos pelo próprio Estatuto: crimes contra a paz, que se traduzem na noção de ¹ FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg: dos precedentes à confirmação de seus princípios. 1. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 92. 7 “guerras de agressão”, ou seja, na deflagração de conflitos que não tenham como motivação a legítima defesa; crimes de guerra, que se relacionam à violação de costumes de guerra, já positivados à época; e crimes contra a humanidade, que representam, sucintamente, uma classe de atos que atentam contra a dignidade humana e os direitos humanos mais essenciais.¹ No tocante aos últimos, cabe trazer à baila sua definição, nos termos do Estatuto do Tribunal Militar Internacional: “[...] Art. 6º: O Tribunal instaurado pelo Acordo mencionado no artigo primeiro acima, para julgamento e punição dos grandes criminosos de guerra dos países europeus do Eixo, terá competência para julgar e punir todas as pessoas que, agindo por conta dos países europeus do Eixo, cometeram, individualmente ou como membros de organizações, qualquer um dos seguintes crimes: (...) c) crimes contra a humanidade: isto é, o assassinato, exterminação, redução à escravidão, deportação e qualquer outro ato desumano cometido contra populações civis, antes e durante a guerra; ou então, perseguições por motivos políticos, raciais ou religiosos, quando esses atos ou perseguições, quer tenham ou não constituído uma violação do direito interno dos países onde foram perpetrados, tenham sido cometidos em consequência de qualquer crime que entre na competência do Tribunal ou em ligação com esse crime.” (ESTATUTO, In: FERRO, 2002, pp. 127-128) Diante do exposto no texto do Estatuto, é possível depreender que o rol de condutas taxadas como crimes contra a humanidade seria julgado pela Corte, restritivamente, na medida em que se conectassem aos demais crimes de sua competência, a saber, os crimes contra a paz e os crimes de guerra empreendidos pelas nações do Eixo. Tal tipificação, embora conte com certas limitações, consistiu na primeira formulação conceitual sólida para os chamados “crimes contra a humanidade”, os “crimes sem nome” levados a cabo pelo regime nacional-socialista. ¹ HUHLE, Rainer. Hacia una comprensión de los “crímenes contra la humanidad” a partir de Nuremberg, Revista Estudios Socio-Juridicos, 13, (2), pp. 43-76. 2011. 8 3. BREVE ANÁLISE DO CONCEITO DE “CRIME CONTRA A HUMANIDADE” O Estatuto do Tribunal Militar Internacional enumerou, de forma taxativa, as condutas que seriam consideradas “crimes contra a humanidade”: assassinato, exterminação, redução à escravidão, deportação e outros atos desumanos cometidos contra populações civis, perseguições por motivos políticos, raciais ou religiosos. Independentemente da vinculação à guerra - a qual era, conforme o entendimento do Tribunal de Nuremberg, um pressuposto de tipicidade - qual seria o liame que conecta todas essas ações? Primeiramente, deve-se considerar que o elemento quantitativo, nesse ínterim, não é determinante: um crime, como o assassinato, se perpetrado contra uma quantidade significativa de indivíduos não constitui, unicamente em função deste último elemento, um crime contra a humanidade. De maneira semelhante, o fato de o sujeito ativo das condutas elencadas supra ser o Estado, ou indivíduos sob ordens advindas da burocracia estatal, não o tipifica automaticamente como crime lesa-humanidade, embora seja possível admitir que o aparato estatal possua um poder inquestionável de mobilizar os recursos materiais e humanos comumente utilizados para o cometimento de delitos dessa magnitude.¹ Dessa forma, tanto a quantidade de sujeitos passivos, quanto a qualidade estatal dos sujeitos ativos não determinam se uma conduta enquadra-se na tipificação de crime lesa-humanidade. Na verdade, para que se atinja um elemento comum que abarque tais delitos, deve-se questionar sobre o bem jurídico atingido por essas condutas, o que implica, necessariamente, a definição de um núcleo valorativo que fundamente o juízo de injusto² atribuído aos crimes contra a humanidade. Tal núcleo parece, segundo François de Menthon, procurador-chefe da França nos julgamentos de Nuremberg, relacionar-se à noção de condição humana. Esta, sob a ótica jurídica, encerraria um conjunto de prerrogativas arrogadas a todos os indivíduos, e que constituiria o verdadeiro sentido de suas vidas – o direito à cidadania, à vida ¹HUHLE, Rainer. Hacia una comprensión de los “crímenes contra la humanidad” a partir de Nuremberg, Revista Estudios Socio-Juridicos, 13, (2), 2011. pp. 52-54 ²MACLEOD, Christopher. Towards a Philosophical Account of Crimes Against Humanity, European Journal of International Law, Vol. 21 No. 2, pp. 281-302. 2010. p. 293 8 familiar, ao trabalho, à prática religiosa, à manifestação política. Para Menthon, assim, os crimes contra a humanidade teriam natureza pública e privada¹, que lesariam a pessoa humana em sua condição de sujeito de certos direitos inalienáveis. De acordo com Macleod (2010) é possível considerar, ainda, que os crimes contra a humanidade são aqueles que violam a noção de grand-être, ou seja, de um espírito coletivo. Tal conceito, cuja formulação primordial é atribuída a Auguste Comte, é calcado no entendimento de que todo grupo social possui um conjunto de valores que, embora não sejam, necessariamente, partilhados pela unanimidade de seus membros, são consensualmente aceitos como identificadores desse grupo². Nesse âmbito, aquelas condutas que violassem o grand-être, ou seja, os valores inerentes à consciência coletiva, romperiam o próprio elo que as liga à identidade de humanidade – daí seu caráter “desumano”. Tais violações consistiriam, assim, crimes lesa-humanidade. À luz de tais considerações, pode-se depreender que o denominador comum às condutas tipificadas como crimes dessa natureza é seu flagrante atentado à noção de humanidade, aqui considerada como espaço de convívio histórico entre os múltiplos sujeitos, o qual determina a aglutinação de um gama de faculdades e prerrogativas que, por identificar este espaço, é considerado inafastável. Dessa forma, os crimes lesahumanidade, cuja análise aqui se dá sob o enfoque dos atos cometidos contra a população judia pelo governo nacional-socialista, agrediriam, assim, um “status humano”. Dessa forma, o ataque a esse “status” encerraria, segundo Hannah Arendt (1999), o juízo de lesividade e de atrocidade imediatamente suscitado por tais condutas. Segundo a autora, “[...] Nem o crime nacional de discriminação legalizada, que resultava em perseguição pela lei, nem o crime internacional de expulsão eram sem precedentes, até mesmo na Idade Moderna. (...) Foi quando o regime nazista declarou que o povo alemão não só não estava disposto a ter judeus na Alemanha, mas desejava fazer todo o povo judeu desaparecer da face da Terra, que passou a existir o novo crime, o crime contra a humanidade – no sentido de crime contra o “status humano”, ou contra a própria natureza da humanidade. A expulsão e o genocídio, embora sejam ambos crimes internacionais, devem ser distinguidos; o primeiro é crime contra as nações irmãs, enquanto o último é um ataque à diversidade humana enquanto tal, ¹HUHLE, Rainer. Hacia una comprensión de los “crímenes contra la humanidad” a partir de Nuremberg, Revista Estudios Socio-Juridicos, 13, (2), 2011. pp. 52-54 ²MACLEOD, Christopher. Towards a Philosophical Account of Crimes Against Humanity, European Journal of International Law, Vol. 21 No. 2, pp. 281-302. 2010. p. 293 8 isto é, a uma característica do “status humano” sem a qual a simples palavra “humanidade” perde o sentido”. (ARENDT, 1999, p. 291) ¹HUHLE, Rainer. Hacia una comprensión de los “crímenes contra la humanidad” a partir de Nuremberg, Revista Estudios Socio-Juridicos, 13, (2), 2011. pp. 52-54 ²MACLEOD, Christopher. Towards a Philosophical Account of Crimes Against Humanity, European Journal of International Law, Vol. 21 No. 2, pp. 281-302. 2010. p. 293 10 4. HIATOS ENFRENTADOS PELO TRIBUNAL DE NUREMBERG NO JULGAMENTO DE CRIMES CONTRA A HUMANIDADE Inúmeras dificuldades resvalaram o Tribunal de Nuremberg no tocante ao julgamento dos crimes contra a humanidade. Dentre estas, talvez a mais contundente resida no próprio ineditismo da tipificação desses delitos: resta claro, em uma primeira análise, que os réus foram condenados por condutas que não eram previstas como típicas quando praticadas, o que atentaria, por óbvio, contra um dos princípios mais radicais do direito ocidental, o da reserva legal. Este, encerrado no epíteto nullum crimen nulla poena sine lege, veda a condenação por atos que não eram considerados criminosos, por força de lei, à época em que foram cometidos. O princípio da reserva legal possui, assim, contornos mais claramente definidos nos sistemas jurídicos romano-germânicos, em que há preponderância da legislação escrita¹, servindo, nesse ínterim, à exclusão de “toda arbitrariedade e excesso do poder punitivo²”. Em relação a tal princípio, no âmbito dos crimes julgados pela Corte de Nuremberg, afirma Yrigoyen (1955) que “[...] Los Aliados, al enjuiciar a los grandes criminales de guerra, declararon que lo hacían en virtud del “derecho internacional en vigor” y que el Estatuto del Tribunal – que fué la ley del processo – “expresaba” ese derecho. Esta aseveración implica el hecho de que buscaron la imposición de la Justicia a través del derecho. (...) El Estatuto aplicado por el Tribunal de Nuremberg fué una ley ex post facto, y la imposición de las sanciones penales vulneraba los principios básicos del derecho que son la irretroatividad de las leyes y aquel que deriva de la máxima nullum crimen, nulla poena sine lege.” (YRIGOYEN: 1955, p. 289) Sob perspectiva diversa, afirma Ferro (2002) que o princípio da reserva legal possui uma raiz profundamente política, consistindo no mecanismo de coibição do arbítrio no ínterim da atividade jurisdicional, tendo surgido e se desenvolvido, sobretudo, naquelas sociedades em que a desigualdade material imperava. Assim, esse princípio emanaria, tipicamente, de sistemas jurídicos mais desenvolvidos e complexos, em que prevalece ¹ FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg: dos precedentes à confirmação de seus princípios. 1. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. pp. 103-105. ² BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, Parte Geral, 1. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 40. a 11 legislação escrita: seria desta que, naturalmente, adviria a noção de segurança jurídica dada pela anterioridade da lei. Em virtude disso, aduz a autora que o Direito Penal Internacional – especialmente aquele vigente à época dos julgamentos de Nuremberg – seria predominantemente consuetudinário, ou seja, orientado por normas originadas do costume internacional. Isso impediria, portanto, a aplicação do princípio da reserva legal, tal qual é concebido nos sistemas jurídicos romano-germânicos, no contexto do julgamento de crimes internacionais.¹ No mesmo sentido, Hannah Arendt (1999) chega a estabelecer que os julgamentos de Nuremberg violaram o princípio da reserva legal de maneira formal, e não material. Isso se fundamentaria na consideração de que a legislação utilizada no âmbito da lide possuía caráter distinto daquela presente em códigos criminais comuns, sendo que “[...] a razão dessa diferença está na natureza dos crimes com que lida. Sua retroatividade, pode-se acrescentar, viola apenas formalmente, não substancialmente, o princípio de nullum crimen, nulla poena sine lege, uma vez que este se aplica significativamente apenas a atos conhecidos pelo legislador; se um crime antes desconhecido, como o genocídio, repentinamente aparece, a própria justiça exige julgamento segundo uma nova lei; no caso de Nuremberg, essa nova lei foi a Carta (o Acordo de Londres de 1945)”. (ARENDT, 2002, pp. 276-277) Não obstante, cumpre ressaltar que, independentemente de tais considerações, é facilmente deduzível a natureza ex post facto do Estatuto do qual se valeu o Tribunal de Nuremberg para o julgamento dos crimes contra a humanidade. Atentos a tal fato, os juristas ligados ao litígio buscaram desenvolver sua argumentação de forma a evitar que se recaísse, imediatamente, no juízo de que houvera violação do princípio da reserva legal.² Para tanto, os promotores e juízes da Corte de Nuremberg embasaram-se em uma interpretação restritiva do artigo 6º, alínea c, do Estatuto do Tribunal, que previa o tipo “crime contra a humanidade”. Dessa forma, foi considerado que todas as condutas previstas no referido dispositivo deveriam, ainda que não adviessem diretamente do conflito, estar em conexão com os atos preparatórios da guerra.³ ¹ FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg: dos precedentes à confirmação de seus princípios. 1. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. pp. 103-105. ²HUHLE, Rainer. De Nuremberg a la Haya: Los crímenes de derechos humanos ante la justicia. Problemas, avances y perspectivas a los 60 años del Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, Análisis Político nº 55, Bogotá, septiembre-diciembre, 2005. p. 23. ³ HUHLE, Rainer. Hacia una comprensión de los “crímenes contra la humanidad” a partir de Nuremberg, Revista Estudios Socio-Juridicos, 13, (2), 2011. pp. 50-51 12 É possível afirmar, portanto, que o caráter inovador do Estatuto do Tribunal Militar Internacional foi, em parte, esvanecido pela tipificação dos crimes contra a humanidade apenas na medida em que estes guardassem alguma relação com os crimes contra a paz e os crimes de guerra, ou seja, com os demais delitos de competência jurisdicional do tribunal.¹ Tal posicionamento foi, em parte, influenciado pelas “[...] diferentes interpretações de tratados e princípios internacionais vigentes” (HUHLE, 2011, p. 57), o que criaria entraves para o julgamento dos réus. Isso se evidencia pela grande diferença contida na tônica de dois dos elementos observados no Tribunal. O primeiro é o discurso de abertura do julgamento, feito pelo promotor-chefe dos Estados Unidos, Robert Jackson, em que o mesmo destaca que o ajuizamento de crimes contra os partidários do nacional-socialismo teria como fundamento jurídico princípios básicos de direito penal das nações civilizadas, inserindo-se os crimes contra a humanidade, aqui, como delitos que feririam o limite do tolerável pela civilização, sendo independentes das circunstâncias de guerra¹. Já o segundo é a interpretação que a Corte, efetivamente, deu ao Estatuto, ao considerar a conexão à guerra o pressuposto de tipicidade dos atos elencados como crimes contra a humanidade. Tal posição da Corte, que pode ser considerada, até certo ponto, paradoxal, é evidenciada por Arendt (1999), que considera que os crimes contra a humanidade foram os responsáveis por levarem os juízes de Nuremberg a assumirem uma postura ambígua: apesar de se silenciarem sobre tais crimes, tomados de forma autônoma, nas sentenças, restou claro que eles tiveram grande peso sobre a dosimetria das penas aplicadas. Isso se evidenciou pelo fato de que, dos dezesseis réus condenados por crimes contra a humanidade, a doze fora cominada a pena capital.² Dentre estes, incluiuse Julius Streicher, que, apesar de ter sido um dos maiores responsáveis pela propaganda da ideologia anti-semita na Alemanha, não teve participação alguma no conflito armado. Não obstante, ele foi condenado à pena de morte sob a acusação de crime contra a humanidade – ainda que, na última frase de sua sentença, fosse feita a ressalva de que a propaganda anti-semita por ele empreendida tenha sido considerada, ali, uma “preparação para a guerra”, sendo assim, a esta relacionada.³ Infere-se, daí, um ¹ HUHLE, Rainer. Hacia una comprensión de los “crímenes contra la humanidad” a partir de Nuremberg, Revista Estudios Socio-Juridicos, 13, (2), 2011. pp. 58-59 ²Listagem dos réus In: FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg: dos precedentes à confirmação de seus princípios. 1. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. pp. 53-54 ³ HUHLE, Rainer. De Nuremberg a la Haya: Los crímenes de derechos humanos ante la justicia. Problemas, avances y perspectivas a los 60 años del Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, Análisis Político nº 55, Bogotá, septiembre-diciembre, 2005. pp.24 13 já significativo juízo valorativo da lesividade do crime contra a humanidade como conduta típica autônoma. Tal juízo de lesividade estaria implicado, assim, na própria observância do princípio da justiça. A consideração deste no âmbito do julgamento, segundo Yrigoyen (1955) estaria substanciado no fato de que “[...] Hubiera sido paradójico, declararon muchos autores, que los vacíos del derecho hubiesen impedido el ejercicio de una Justicia imperiosamente reclamada por todo el mundo. (...) Pero, si [los delitos] constituían crímenes desde el punto de vista de la moral, tampoco podían quedar sin sanción por el solo hecho de que la legislación internacional careciera de medidas repressivas previamente establecidas. No había motivo para renunciar a una acusación criminal contra las personas moralmente responsables de provocar la segunda conflagración mundial, afirmaba Hans Kelsen. Em efecto, hubiera constituído uma verdadera aberración moral y una omisión desprovista del más elemental sentido de Justicia. Los culpables de haber cometido (...) atropelos y vejámenes sin paralelo en la Historia contra la dignidade y la integridad física y moral del ser humano, no podían quedar impunes. He aquí el verdadero drama de Nuremberg.” (YRIGOYEN, 1955, pp. 290-291) Diante do exposto, é possível considerar que os hiatos enfrentados pelo Tribunal Militar de Nuremberg tiveram seu cerne, justamente, em seu caráter vanguardista: ali emergiram novas noções jurídicas no âmbito internacional, as quais, por ainda serem, à época, incipientes, tiveram sua aplicação relativamente limitada. Tais noções, porém, foram determinantes não apenas no ínterim do julgamento, como também para o estabelecimento de novos paradigmas na ordem jurídica internacional. 14 5. OS NOVOS PARADIGMAS DO DIREITO INTERNACIONAL E O TRIBUNAL DE NUREMBERG A ordem jurídica internacional sofreu profundas transformações ao longo do século XX. A noção clássica de direito internacional tomava como atores desse ordenamento apenas os Estados, organizados em uma “sociedade internacional”. Tal sociedade seria marcada pela ausência de hierarquia entre os entes, de forma que as regras jurídicas fossem concertadas, tipicamente, apenas sob a forma de acordos bilaterais, sendo o reflexo da consideração do princípio da soberania estatal e de seu consentimento como absolutos. Mostrava-se evidente, assim, a supremacia da natureza política, e a diminuta relevância da natureza jurídica, no contexto das relações internacionais. No entanto, uma série de alterações permeou o modelo típico de sociedade internacional. A conflagração de duas guerras mundiais demonstrou a falência do modelo do equilíbrio¹ entre soberanias, característico da configuração clássica do direito internacional, para a manutenção da paz e da civilidade. Isso propiciou o paulatino desenvolvimento da noção de que haveria, relativamente a diversos Estados, um conjunto de interesses comuns, os quais passaram a serem objetos de tratados multilaterais. Estes, devido à relevância de certos interesses tutelados, desenvolveram-se no sentido de originarem a constituição de organizações internacionais, instituições capazes de proteger esses objetivos de forma direta e específica. Dessa forma, as organizações internacionais passaram a contar com um poder legislador delegado - em relação ao interesse por elas protegido e nos termos de seus tratados constitutivos - sobre os Estados que lhes aderiram. Assim, as normas de direito internacional oriundas das organizações internacionais contariam com o consentimento indireto dos entes estatais.² Tal alteração do papel do consentimento implicou um redimensionamento da própria noção absoluta de soberania, de forma que houvesse uma nova formulação da estrutura das relações jurídicas internacionais. A estas foram incorporados novos atores³, as organizações internacionais e os indivíduos, além de se ¹ DINH, Nguyen Q.; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain. Direito Internacional Público. 2 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2003. p. 71-72 ² BRANT, Leonardo Nemer Caldeira; ELÓI, Pilar de Souza de Paula Coutinho. A natureza normativa da ordem jurídica internacional. Revista da Faculdade Mineira de Direito, v.12, n. 24, jul./dez. 2009. Pp. 3-5 ³ DINH, Nguyen Q.; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain. Direito Internacional Público. 2 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2003. p. 411-413 15 constituir, gradualmente, a consideração de que haveria uma hierarquia no âmbito internacional. Tal hierarquia seria determinada, assim, pelo próprio consentimento indireto, vez que os Estados estariam juridicamente obrigados às normas produzidas, de forma delegada, pelas organizações internacionais às quais se filiaram. Esse novo cenário, que implica relações jurídicas entre Estados, organizações internacionais e, em certa medida, indivíduos, originaria uma nova estrutura, a “comunidade internacional”. Nesse ínterim, seria “[...] da tensão entre estas aspirações confusas à comunidade internacional e a tendência dos Estados para afirmarem a sua soberania, que nasce o direito internacional cujo objeto é, precisamente, o de organizar a necessária interdependência, embora preservando a sua independência”. (DINH; DAILLIER; PELLET, 2003, p. 41) Dessa maneira, é possível afirmar que o processo que engendrou a noção de “comunidade internacional” – do concerto de acordos multilaterais ao estabelecimento de organizações internacionais – teve como cerne a identificação de interesses comuns entre os diversos Estados. Alguns desses interesses tomaram uma dimensão extremamente relevante, sendo partilhados por um número muito grande de Estados. Eles representavam, assim, um conjunto de valores normativos de tal preponderância, que seriam inderrogáveis. Tais valores seriam as normas jus cogens. Segundo Shaw (2008), as normas de jus cogens não seriam normas em si, mas princípios superiores depreendidos de normas jurídicas internacionais existentes.¹ Tais princípios, oriundos do costume ou de tratados, seriam paulatinamente aceitos pela comunidade internacional como essenciais à ordem jurídica, fato do qual emanariam seu caráter inderrogável e sua hierarquia mais elevada, do ponto de vista material.² Shaw afirma, ainda, que claras manifestações de tais normas cogentes seriam a ilicitude do uso da força, do genocídio, do tráfico de escravos, da pirataria, dentre outros. É possível afirmar, assim, que tais normas dizem respeito, em grande medida, à manutenção da paz e, sobretudo, à proteção da dignidade da pessoa humana. No tocante a esta última, tem-se que normas que possuem, como escopo, a proteção à dignidade da pessoa humana, concernem ao núcleo mais fundamental de ¹ SHAW, Malcolm N. International Law.. 6 ed. New York: Cambridge University, 2008. p. 126 ² BIANCHI, Andrea. Human Rights and the magic of Jus Cogens. The European Journal of International Law, Vol. 19, No. 3, 2008. 16 direitos humanos. Estes teriam, dessa forma, uma identificação quase direta com as normas de jus cogens: “[...] Certainly, the identification of the content of the normative category of jus cogens has never been an easy process. However, human rights rules have been almost invariably designated as part of it. This has occurred either by way of a general reference to the ‘bulk of contemporary human rights prescriptions’ without any further qualification (…). In fact, to think of both human rights and jus cogens at the same time is an almost natural intellectual reflex. It is as if human rights were a quintessential part of jus cogens. The introduction of ethical and moral concerns into the international legal system takes place for the first time in an overt manner. (…) The inner moral aspiration of the law thus materialized in international law with the advent of jus cogens”. (BIANCHI, 2008, p. 495) Nesse ínterim, é possível estabelecer como a matriz contemporânea do núcleo mais essencial de direitos humanos a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), a qual consiste, assim, no cerne da atividade normativa da Organização das Nações Unidas. Tal Organização, erigida sobre as alterações paradigmáticas que resvalaram sobre o direito internacional após a Segunda Guerra Mundial, teve como foco, em sua origem, “o respeito universal e efetivo dos direitos do homem e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de sua raça, sexo, língua ou religião”.¹ Assim, a Declaração Universal dos Direitos do Homem serve a tal objetivo, no sentido de que “[...] consagra os direitos civis e políticos tradicionais e os direitos econômicos e sociais, e constitui uma síntese entre a concepção liberal ocidental e a concepção socialista (...). No que diz respeito ao seu valor jurídico, a Declaração Universal não é, apesar da sua importância histórica e política excepcional, diferente das outras resoluções declarativas de princípios adotados pela Assembleia Geral. (...) Por outro lado, os princípios que proclamam podem ter e têm, em sua maior parte, valor de direito costumeiro, mesmo de normas imperativas”. (DINH; DAILLIER; PELLET, 2003, p. 674676) A Declaração Universal, portanto, não era, primariamente, um instrumento normativo vinculante, vez que se tratava de uma recomendação da ONU aos seus Estados signatários. No entanto, as normas nela contidas foram recepcionadas pela ¹ DINH, Nguyen Q.; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain. Direito Internacional Público. 2 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2003. pp. 674-676. 17 comunidade internacional como tão salutares – não apenas à manutenção da paz, mas à própria proteção dos direitos fundamentais individuais – que se estruturou um opinio iuris, ou seja, uma convicção de que sua prática geral e efetiva seria obrigatória, vinculante, porque o direito o exige. Fez-se necessário, de outro lado, estabelecer o caráter obrigatório da Declaração através de outros textos normativos.¹ Tal processo implicou que as normas contidas na Declaração Universal dos Direitos Humanos fossem tomadas pela comunidade internacional, não obstante seu caráter primário não-vinculante, como normas jus cogens, sendo, portanto, não apenas obrigatórias, como gozando, também, de um status hierárquico superior, sob a ótica material, em relação a outras normas. Esse caráter jus cogens demandou, por parte da comunidade internacional, esforços no sentido de garantir e institucionalizar os interesses protegidos pela Declaração. Tais interesses, como explicitado supra, possuem íntima relação com a proteção dos direitos da pessoa humana. Esses direitos denotam, dessa forma, que o indivíduo tome parte de relações jurídicas no âmbito internacional, o que se dá sob duas perspectivas. A primeira diz respeito ao indivíduo como detentor de certos direitos – aqui, aqueles concernentes à própria noção de dignidade humana – que, se violados, constituem ilícitos internacionais, o que pode ensejar a provocação das instâncias jurisdicionais internacionais competentes. A segunda relaciona-se à consideração de que o indivíduo possui deveres, ou seja, responsabilidade internacional, sobretudo no âmbito penal, e que certas condutas delituosas, em especial aquelas ligadas aos crimes contra a humanidade, engendram seu julgamento e penalização tendo como base o direito internacional.² Essa nova consideração do indivíduo na esfera internacional influenciou, em função do caráter jus cogens da Declaração Universal dos Direitos Humanos, todo o desenvolvimento posterior do direito internacional, estruturado, a partir de então, sobre bases distintas daquelas típicas do modelo clássico de “sociedade internacional”. A consideração do indivíduo como sujeito do direito internacional, assim, guarda relação com a própria configuração de “comunidade internacional”. ¹ DINH, Nguyen Q.; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain. Direito Internacional Público. 2 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2003. p. 328-330 e p. 676. ² SHAW, Malcolm N. International Law.. 6 ed. New York: Cambridge University, 2008. pp. 257-259. 18 No âmbito das normas oriundas da Declaração Universal, assim, a paradigmática consideração do indivíduo como sujeito de direitos e deveres na esfera internacional encontrou sua mais ampla aplicação em relação aos crimes contra a humanidade – são estes que, de forma mais clara, implicam tanto a responsabilidade individual, quanto a possibilidade de provocação de instâncias jurisdicionais internacionais. A primeira formulação normativa sólida em relação a esses crimes, porém, já estava presente em um texto normativo anterior: o Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, de 1945. Em relação a este último, cabe ressaltar que os chamados “Princípios de Nuremberg”, compilação de princípios de Direito Internacional elaborado pela Comissão de Direito Internacional da Assembleia Geral das Nações Unidas tendo como fundamento o Estatuto do Tribunal, bem como suas decisões, foram ratificados por essa Assembleia em 1946. Nessa elaboração, porém, “[...] foi eliminado o liame, até aí exigido, entre esta categoria de delitos e estar em período de guerra, pois havia referência que tivessem sido praticados antes ou durante o conflito armado”. (JAPIASSÚ, 2009, p. 37). Tal interpretação dos crimes contra a humanidade foi acolhida pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, que deu a esse crime o “elemento normativo que lhe faltava” ao delimitar, precisamente, as faculdades e prerrogativas individuais frente aos Estados. ¹ É possível estabelecer, assim, que as bases da tipificação dos crimes contra a humanidade, bem como sua relação com a consideração do indivíduo como sujeito do direito internacional, foram lançadas por ocasião dos julgamentos de Nuremberg. Dessa forma, a Corte estabeleceu, de forma inédita, uma série de princípios que seriam acolhidos e desenvolvidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Esse ineditismo foi, na verdade, o que engendrou as muitas críticas atribuídas ao Tribunal, principalmente em relação à vinculação do crime contra a humanidade às circunstâncias de guerra. Tal limitação, no entanto, pode ser justificada pelo próprio caráter da Corte, que constituía, afinal, um tribunal de guerra.² Essas críticas não devem, ainda, serem tomada em absoluto, visto que o juízo ¹ FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg: dos precedentes à confirmação de seus princípios. 1. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 111. ²HUHLE, Rainer. Hacia una comprensión de los “crímenes contra la humanidad” a partir de Nuremberg, Revista Estudios Socio-Juridicos, 13, (2), p. 49. 19 de lesividade do crime contra a humanidade como conduta delituosa autônoma foi, de certo modo, levada em consideração pelo Tribunal, especialmente no tocante à dosimetria das penas aplicadas. Em vista do exposto, é possível afirmar que, embora tenham provocado, no âmbito da lide, certas ambiguidades, os princípios oriundos do Tribunal de Nuremberg tiveram influência salutar no posterior desenvolvimento do direito internacional. Assim, através da consideração da responsabilidade individual frente a crimes internacionais – feita, in casu, pela vedação de sua anulação pela justificativa de ordem hierárquica – e da tipificação de crimes contra a humanidade, os quais constituem uma primeira categoria de crimes cujo bem jurídico tutelado consiste no “status humano”, a Corte delineou os primeiros contornos de novos paradigmas. Esses paradigmas dizem respeito à consideração, sob a perspectiva dos direitos humanos, de que o indivíduo é o núcleo teleológico do direito internacional, noção normatizada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e que, posteriormente, entranharia o núcleo das normas de jus cogens oriundas desse último texto normativo. O Tribunal de Nuremberg, portanto, teve influência grandiosa para as primeiras bases das normas jus cogens relativas à pessoa humana e seus direitos na esfera internacional, normas estas que viriam a estruturar um novo direito internacional, fundado no paradigma de comunidade internacional. 20 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS O Tribunal Militar Internacional inseriu-se em um momento histórico de profundas mudanças políticas e jurídicas. A estupefação da opinião pública frente às atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial foi apenas um dos indicativos de que a estrutura das relações jurídicas internacionais, à época, não era capaz de harmonizar os princípios da soberania estatal, da autodeterminação dos povos, da convivência pacífica e do respeito à dignidade da pessoa humana. Dessa forma, uma das grandes dificuldades da Corte de Nuremberg foi, justamente, situar-se no limiar da transição e da tensão entre os paradigmas da sociedade internacional e da comunidade internacional. A inédita tipificação dos crimes contra humanidade, nesse ínterim, representou o epítome de uma série de princípios que vieram a embasar a legislação internacional subsequente, como o caráter primordial da proteção aos direitos humanos. Tal caráter teve uma de suas maiores concretizações com a criação do Tribunal Penal Internacional, de caráter permanente e universal, através da aprovação do Estatuto de Roma, em 1998. Não obstante tal avanço, restam, ainda, inúmeros desafios para a devida observância dos princípios lançados pelos julgamentos de Nuremberg, como a codificação de uma parte geral de normas penais aplicáveis aos crimes internacionais. Esses avanços são, porém, cada vez mais vislumbrados, na medida em que Estados, organizações internacionais e indivíduos confluam, cada vez mais, para o sentido de harmonização e institucionalização de princípios comuns observados na configuração de uma comunidade internacional. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARENDT, Hannah. 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