Psicossomática: algumas reflexões. Autora: Ana Luiza Wolf INTRODUÇÃO Hoje em dia existe uma tendência a ver uma unidade indissociável entre os estados mentais e corporais, e a constante interação entre ambos. Com o passar dos anos adotou-se uma visão mais complexa do funcionamento humano, e atualmente acredita-se que as doenças resultam da interação de fatores hereditários, genéticos, orgânicos, ambientais e psíquicos (Fadden,2000). A abordagem psicossomática psicanalítica passou a ver o paciente doente a partir do reconhecimento do seu funcionamento psíquico. Minha motivação para estudar o tema decorreu do fato de observar o surgimento ou a exacerbação de somatizações, mais ou menos graves, em alguns pacientes em tratamento psicoterápico, e pela necessidade, cada vez maior, de entender o funcionamento de casos-limites, como os somáticos, descritos como tendo dificuldades de associar livremente, exigindo o desenvolvimento de novas formas de acesso ao material inconsciente. Buscarei fazer uma revisão da evolução da psicossomática e de alguns de seus conceitos, estudando autores como Freud, Winnicott, os franceses da Escola de Psicossomática de Paris, entre outros. DESENVOLVIMENTO Vários autores sugerem que os fenômenos psicossomáticos surgem onde houver carência de elaboração psíquica, falhas na simbolização e a necessidade de descarga pulsional através do corpo. (Peres, 2006; Primo, 2011; McDougall, 1994). Se as excitações persistem excessivamente, há uma desorganização e o aparelho mental transborda, abrindo caminho para as somatizações (Zimerman, 2001; Quintella e Mattos, 2006). A Escola de Psicossomática de Paris chamou a atenção para as descontinuidades do funcionamento mental, como o fracasso da exigência de representação, e a desunião das pulsões de vida e de morte. Uma das funções do aparelho psíquico é proteger contra excessos de excitação, provenientes do exterior e do interior do organismo. As representações funcionam como elementos de ligação para as excitações, e é por meio delas que a pulsão se inscreve no aparelho psíquico. Quando há impossibilidade de ligação, quantidades elevadas de excitação circulam livremente no interior do organismo, desorganizando-o, e podendo constituir-se como um trauma. As pulsões, funcionam, desta forma, como uma exigência de trabalho imposto à 1 mente. As desorganizações somáticas poderiam ser entendidas como decorrentes de uma impossibilidade da mente em decodificar as exigências que chegam ao aparelho psíquico. Pierre Marty (1993) denominou de mentalização o processo de qualificação da força pulsional proveniente do somático, nas suas diferentes formas de representação. O trabalho de fusão das representações ocorre no pré-consciente. Este se organiza como sistema de ligação entre as representações mentais, entre as quais têm-se as representações de coisa e as representações de palavra. A superficialidade das representações, reduzidas às coisas, sem afeto nem simbolização constituem os sujeitos mal mentalizados, em que as representações mostram-se limitadas. Quanto menos o pré-consciente for rico em representações, e quanto menos intensas forem as ligações entre as representações, mais vulnerável será o indivíduo em apresentar uma patologia na linha da somatização. Para Savvas Savvopoulos (2010), no fundamento deste processo de mentalização, encontra-se a construção do masoquismo erógeno primário. A partir de 1920, em “Além do Princípio do Prazer”, Freud passa a reconhecer a dualidade peulsional. Em 1924, em “O Problema Econômico do Masoquismo”, Freud especifica que o aparelho psíquico busca a redução mais baixa possível das tensões. O princípio do prazer representa as exigências da libido, e o princípio de realidade representa o mundo externo. Neste contexto, a libido tem a função de inocular o instinto destruidor, desviando este instinto em grande parte para fora, para os objetos, ao que Freud denominou de sadismo. Entretanto, parte deste instinto permanece no indivíduo. O masoquismo erógeno seria um vestígio do momento em que se realiza essa ligação, essencial para a vida, entre Eros e Tanatos. Para Benno Rosemberg (2004) o masoquismo tem como função fundamental defender o psiquismo contra a pulsão de morte. Para ele, o enfraquecimento do masoquismo é que leva às doenças psicossomáticas. Para que a pulsão de morte seja projetada para o exterior, é necessário que seja levada pela libido, que deve intrincar a pulsão de morte. A projeção só ocorre se um masoquismo primário já existir, pois é o momento da intrincação pulsional primária. Como não há a intrincação pulsional direta entre as pulsões, se faz necessária a presença de um objeto mediador. Na intrincação primária, este objeto é o ego. (Wartel, 2003). Savvas (2010), citando B. Rosemberg, fala da mãe intrincadora como sendo aquela que consegue criar, graças ao trabalho de seu pré-consciente, um investimento 2 de expectativa do objeto, que visa adiar a descarga do desprazer e convoca a ação do masoquismo primário. A perda de interesse nos objetos inviabiliza a vida psíquica. A economia do indivíduo passa a funcionar em circuito fechado, ou seja, voltado para o acúmulo de excitações, em detrimento de um prazer de descarga enquanto satisfação objetal. Luciane Falcão (2011) diz: “Com relação à pulsão de morte- do ponto de vista teórico e clínico- poderíamos pensar que há uma convergência entre as noções de autodestruição em Freud, de desorganização de Marty e de desobjetalização de Green: a fragmentação do Eu na desorganização da via operatória, responde de maneira exemplar àquilo que Green considerou como a função desobjetalizante da pulsão de morte.” (Smadja, 2007). André Green (1994), concordando com Winnicott, sugere que se as primeiras experiências do bebê foram traumáticas, no sentido de terem colocado à prova a capacidade de espera da criança, que ao não receber uma resposta materna, seria levada a um estado em que somente o negativo seria real. Observa-se um período de latência entre um episódio depressivo e o surgimento da doença. O termo depressão essencial designa um tipo de depressão que acompanha os quadros somáticos. Diferentemente da depressão neurótica, do luto e da melancolia, este tipo de depressão não denota trabalho de elaboração, e não tem sintomatologia. Apresenta-se como uma depressão sem objeto (Volich, 2010). Diversos autores preconizam que os pacientes somatizadores, apresentam um funcionamento incompleto do aparelho psíquico, decorrente de distorções no processo de maturação. (McDougall, 1987) Para Winnicott (1945), a capacidade de holding materno possibilita que atividades sensoriais e motoras do bebê comecem a associar-se. Estas atividades possibilitam momentos de integração. Durante os períodos de integração do ego, a psique e o soma iniciam um gradual processo de inter-relação, e o bebê vai desenvolvendo um sentimento de que está dentro do próprio corpo. À medida que o lactente se relaciona com a realidade externa, renuncia gradualmente à sua onipotência, vai reconhecendo o elemento ilusório, e iniciando o processo de simbolização (Winnicott, 1958). Para Winnicott (1964), a cisão entre o soma e a psique é um fenômeno regressivo, que funciona como uma organização defensiva. Ele ressalta o valor positivo do transtorno psicossomático, à medida que a doença se apresenta como uma possibilidade de encontrar o núcleo do verdadeiro eu, impedido de se desenvolver. 3 Roussillon (2006) destaca que o psiquismo infantil organiza-se de modo pré-lingüístico. O corpo do bebê, em contato com o da mãe, recebe uma primeira escrita. Em algumas casos ocorre uma separação entre a linguagem e o corpo, e o ato, ou a somatização, ocupa a função de comunicação primitiva. P. Marty e M. de M´Uzan (1994) chamaram de pensamento operatório a um conjunto de manifestações observadas nestes pacientes, tais como o empobrecimento da capacidade de simbolização das demandas pulsionais e da elaboração destas pela fantasia, uma ausência de sonhos, de atividade criativa, um escasso contato com os desejos, o uso de uma linguagem empobrecida e uma forte aderência à realidade factual e material. M. Aisenstein (2010) salienta a importância deste tipo de pensamento à medida que visa defender o sujeito contra efeitos da falta da realização alucinatória do desejo e do desamparo traumático. Assim, esta forma de pensamento funciona como autocalmante e pode ser uma forma de sobrevivência. Entretanto, quando a vida operatória predomina, observa-se o avanço da desorganização em direção a níveis mais primitivos do desenvolvimento, que é acompanhado pela desestruturação da organização libidinal e pela redução da complexidade do funcionamento mental e do potencial organizador da psique. Ao invés da instância superegóica, de natureza edípica, tem-se o funcionamento do ego ideal, de natureza narcísica. A manutenção de ego ideal nos pacientes somatizadores manifesta-se como um estado de exigências do sujeito em relação a si sem nuances nem ambivalências, levando a um funcionamento operatório. O fracasso em responder a estas exigências culmina numa ferida narcísica que pode provocar desorganizações na esfera somática. CONSIDERAÇÕES FINAIS As manifestações psicossomáticas têm uma história. O corpo fala, e falam especificamente aqueles sentimentos que não conseguiram ser expressos pela simbolização das palavras. Quando a estrutura interna do paciente permite, a situação analítica apresenta-se como um lugar seguro, onde podem se manifestar os cenários arcaicos do teatro psíquico interno. Assim, a atuação do corpo na cena psicanalítica faz com que o analista, juntamente com seu paciente, vá traduzindo o que as manifestações somáticas estão “falando” e transformando esta forma de linguagem, corporal, em representações psíquicas verbalizadas. O corpo, anárquico, gradativamente vai transformando-se em um corpo simbólico. 4 O atendimento destes pacientes limites visa, entre outras coisas, auxiliar na passagem da somatização para a neurotização, ajudando-os a reconhecer a experiência afetiva sem atuá-la, nem descarregá-la no corpo. Na vigência do tratamento, as relações de objeto vão sendo restauradas, pois tanto a pulsão quanto as palavras se dirigem a um objeto, o psicanalista. A pulsão vem do corpo, enquanto que a representação vem da percepção. Torna-se necessário ligar os dois, através de processos de decodificação, que vão desde um nível mais orgânico, para um mais psíquico, sendo a representação de palavra o mais psíquico. O trabalho de análise destes pacientes buscará, em última instância, a expansão do pré-consciente, o acesso aos afetos e sua mentalização. RESUMO A escolha do tema foi motivada pela observação, cada vez mais freqüente, do surgimento e da exacerbação de somatizações em pacientes no decorrer de tratamento psicoterápico. Diante da necessidade de compreender o funcionamento de tais casos-limites, a autora buscou entender como se desenvolve a carência de elaboração psíquica, as falhas na simbolização e a necessidade de descarga pulsional no corpo observadas na maior parte destes pacientes. Para tanto, revisa autores como Freud, Winnicott, os franceses da Escola de Psicossomática de Paris, entre outros. REFEÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Aisenstein, M. (1994) Da medicina à psicossomática. 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