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A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NEGRO NAS REGIÕES DE COLONIZAÇÃO ALEMÃ:
ESPAÇOS DE NEGOCIAÇÃO CULTURAL1
Viviane Inês Weschenfelder2
Elí Terezinha Henn Fabris
Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS/RS
[email protected]
[email protected]
RESUMO:Este trabalho apresenta resultados de uma pesquisa realizada em um município da
região central do Rio Grande do Sul, sul do Brasil, sobre a constituição do sujeito negro nas regiões
de colonização alemã. O material de análise foi o jornal da cidade, compreendendo publicações
entre 1980 e 2010 e permitiu analisar como se engendram as relações entre brancos e negros nesta
região, especialmente levando em conta o discurso que super-valoriza o imigrante de origem alemã.
Além das teorizações de Michel Foucault, para este texto utilizamos os conceitos de zona de contato
e de transculturação, desenvolvidos por Mary Louise Pratt (1999) e de terceiro espaço e entre-lugar,
desenvolvidos por Homi Bhabha (2007). Constatamos que é predominantemente por meio da
tolerância e da assimilação da cultura do outro que as relações de poder são colocadas em
movimento neste espaço de contato, produzindo subjetividades tanto nos sujeitos brancos, quanto
nos sujeitos negros, recaindo sobre estes últimos o peso da exclusão.
PALAVRAS-CHAVE:sujeito negro, relações étnico-raciais, transculturação, subjetivação
RESUMEN:Este trabajo presenta resultados de una investigación realizada en un municipio de la
región central de Río Grande do Sul, sur de Brasil, sobre la construcción del sujeto negro en las
regiones de la colonización alemana. El material de análisis fue el diario de la ciudad,
comprendiendo publicaciones entre 1980 y 2010 que permitió analizar cómo se engendran las
relaciones entre blancos y negros en esta región, teniendo en cuenta especialmente el discurso que
súper-valoriza el inmigrante de origen alemán. Además de las teorizaciones de Michel Foucault,
para este texto utilizamos los conceptos de zona de contacto y de transculturación, desarrollados por
Mary Louise Pratt (1999) y de tercer espacio y entre-lugar, desarrollados por Homi Bhabha (2007).
Constatamos que es predominantemente por medio de la tolerancia y de la asimilación de la cultura
del otro que las relaciones de poder son colocadas en movimiento en este espacio de contacto,
1
2
Trabalho apresentado na mesa temática de número 11, intitulada ―Epistemologías disidentes, género y color‖.
Autorizamos a publicação deste trabalho em qualquer um dos formatos definidos pelo Comitê Acadêmico.
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produciendo subjetividades tanto en los sujetos blancos, como en los sujetos negros, recayendo
sobre estos últimos el peso de la exclusión.
PALABRAS CLAVE: sujeto negro, relaciones étnico-raciales, transculturación, subjetivación
1 PENSAR DE OUTROS MODOS: INTRODUÇÃO
Os negros já estavam ai.
(FOLHA DO MATE, 11 de maio de 2000)
Na História do Rio Grande do Sul, a presença dos afrodescendentes por muito tempo foi
considerada inexpressiva no conjunto das populações do Estado, herança remanescente de uma
historiografia tradicional que praticamente negou a existência dos escravos negros no território.
Além disso, aosupervalorizar determinados grupos étnicos na história regional, vinculando sua
presença ao êxito do desenvolvimento da região, a imigração e a colonização alemã passaram a ser
entendidas como um triunfo. O desenvolvimento e o progresso no Sul do país foram delegados ao
trabalhodestes grupos, o que contribuiu para uma história que desmereceu outras etnias, como é o
caso dos negros e dos indígenas.
O município de Venâncio Aires, localizado na região central do Estado, tem em sua
constituição histórica características muito semelhantes à conjuntura acima apresentada. Em um
espaço fortemente marcado pela cultura alemã, o que vemos é uma supervalorização deste grupo
étnico,potencializandoa desvalorização de outros grupos. Embora a presença negra seja mais
evidente em Venâncio Aires que em outros espaços, uma análise dos históricos do município,
publicado no jornal da cidade, mostrou que os sujeitos negros estiveram muitas vezes invisíveis na
história oficial. Por outro lado, quando constavam, era de forma quase naturalizada, relegado como
aqueles que ―já estavam aí‖, pois eram vinculados aos primeiros povoadores da região, portugueses
detentores de escravos. A mesma construção discursiva da história ocorreu com os indígenas,
valorizados apenas pela lenda da erva-mate e pelo chimarrão, produto cultural símbolo do
município. Foi somente a partir do final da década de 1980 que negros e indígenas passaram a ser
mencionadosno jornal, o que não significou o reconhecimento efetivo de sua participação para a
história da região.
Por estas e outras características, este município foi tomado comolócus da pesquisa3 que
aqui apresentamos4.O arranjo étnicorracial5 a partir do qual é entendida a formação populacional
3
Pesquisa financiada pela CAPES.
3
torna-se um espaço produtivo para a realização de estudos que abordam os processos de
in/exclusão, a constituição e as formas de subjetivação dos sujeitos neste processo. Neste caso, o
que problematizamos é como se produzem os sujeitos negros que sempre viram/ouviram/sentiram a
valorização de apenas um determinado grupo étnico, e ao mesmo tempo,que estratégias criaram
para construírem suas trajetórias pessoais e coletivas diante dos discursos que se produziram neste
espaço. Consideramos relevante olhar para estas questões que emergem na Contemporaneidade e
analisá-las sobre um ângulo que dê visibilidade não apenas aos grupos considerados minoritáriosou
majoritários, mas às relações de poder e dominação que a convivência cultural produzentreos
indivíduos, pois é neste tensionamento que se produzem outras subjetividades.
Na primeira seção deste texto, apresentamosas bases que fundamentam o modo de olhar
para os sujeitos negros e as tramas que envolvem a constituição destes e do espaço que ocupam.
Para essa análise utilizamos oconceito de governamento6, ferramenta teórica produzida e utilizada
por Michel Foucault e o conceito degovernamentalidade, entendida como uma grade de
inteligibilidade que permite visualizar as relações de poder e os discursos que se tramam
produzindo os sujeitos e suas subjetividades. Além disso, mostramos que os conceitos ―zona de
contato‖ e ― transculturação‖(PRATT, 1999), bem como de ―entre-lugar‖ (BHABHA, 2007) são
produtivos para entender como se estruturam estes espaços de convivência entre brancos e negros, e
também para desnaturalizar algumas práticas culturais presentes nas regiões do interiordo estado do
Rio Grande do Sul. Para este exercício de desnaturalização, faremos uso do conceito de crítica
proposta por Michel Foucault. De acordo com o filósofo, (FOUCAULT, 2006, p. 180), ―a crítica
consiste em desentocar o pensamento e em ensaiar a mudança; mostrar que as coisas não são tão
evidentes quanto se crê, fazer de forma que isso que se aceita como vigente em si não o seja mais
em si. Fazer a crítica é tornar difíceis os gestos fáceis demais‖.
Na segunda seção, intitulada ―Zona de contato entre brancos e negros: a transculturação
como espaço de negociação cultural‖ mostramos como se estruturam os espaços que Pratt (1999)
chama de zona de contato e de que maneira os sujeitos negros que residem neste espaço se
constituem e se posicionam diante das formas de govenamento construídas pela cultura hegemônica
4
Este texto apresenta alguns resultados da pesquisa realizada por uma das autoras, durante o curso do mestrado em
Educação, desenvolvido na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, resultando na dissertação intitulada
―A produção do sujeito negro: verdades que circulam no município de Venâncio Aires – RS, defendida em fevereiro de
2012. No entanto, alguns dados desta pesquisa são tomados para análise neste texto, procurando fazer relação com a
ferramenta analítica da governamentalidade e dos modos de subjetivação, com o objetivo de fazer emergir outras
questões sobre a temática.
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Entendemos como arranjo étnico-racial a constituição histórica da região, que embora composta por diferentes povos
(indígenas, negros, portugueses e alemães) , acabam tendo as diferenças subsumidas em função de determinados
discursos qua valorizam alguns sujeitos em detrimento de outros, produzindo uma complexa organização e articulação
das relações poder que objetivam e subjetivam os sujeitos deste município.
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Alfredo Veiga-Neto (2002, p. 16) sugere o ―que o vocábulo governo —praticamente o único usado em textos
foucaultianos, seja nas traduções para a língua portuguesa, seja nos textos escritos por autores de língua portuguesa—
passe a ser substituído por governamento nos casos em que estiver sendo tratada a questão da ação ou ato de governar‖.
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do local. Os excertos do jornal Folha do Mate que apresentamos para esta análise nos permitem
constatar que algumas práticas conhecidas como sendo tipicamente alemãs são também praticadas
pelas famílias negras que aí residem, traduzindo-se em um movimento de transculturação (PRATT,
1999). Ao mesmo tempo em que denunciam a dominação de uns sobre os outros, a transculturação
possibilita uma estratégia de (re)invenção das práticas dominantes, o que produz diferentes
subjetividades nos sujeitos brancos e negros.
Nas considerações finais, apresentamos algumas problematizações possíveis de serem
elaboradas após a realização deste estudo. O que precisamos consideraré em que medida a
emergência de discursos contemporâneos possibilita o movimento das redes de poder na zona de
contato, e com isso, nos perguntarmos se podem ou não produzirem outras formas de subjetivação.
A transculturação, ao mesmo tempo em que acaba produzindo subjetividades, coloca em
tensionamento algo que no Brasil vem sendo defendido a qualquer custo, que é o fortalecimento de
uma identidade negra. Neste ponto cabe perguntar qual identidade negra é produzida nestes locais
em que há um discurso hegemônico que permite poucas possibilidades de articulação de outras
práticas culturais. Cabe perguntar, ainda, se não seria mais produtivo mostrar como ocorrem os
processos de negociação cultural entre sujeitos diferentes, sem que antes haja uma necessidade de
uma vinculação identitária que busque novamente essencializar a cultura, mantendo os mesmos
moldes que a história tradicional construiu.
2 FERRAMENTAS TEÓRICAS PARA A ANÁLISE DOS ESPAÇOS DE NEGOCIAÇÃO
CULTURAL
Histórias de violência e de exclusão constituem as subjetividades dos indivíduos que vivem
o presente e cresceram ouvindo, lendo e vivendo, às vezes de formas sutis, e, por isso, perversas,
práticas de discriminação negativa. É a partir destas narrativas, práticas, discursos, que o indivíduo
vai tornando-se sujeito, sendo tomado como objeto de conhecimento (objetivado) e relacionando-se
com o outro e consigo mesmo (subjetivado). Segundo Foucault (1995, p. 235), ―há dois significados
para a palavra sujeito: sujeito a alguém pelo controle e dependência, e preso à sua própria
identidade por uma consciência ou autoconhecimento. Ambos sugerem uma forma de poder que
subjuga e torna sujeito a‖. Dizer isso é afirmar que os processos de subjetivação são intensos e
atravessados por relações de poder, em que circulam relações de dominação, mas também espaços
de negociação e de luta por novas significações. Assim, para entender como se produzem as
subjetividades, é necessário olhar atentamente não apenas para o terreno onde ocorrem as práticas,
mas para as tramas que vão se tecendo a partir delas, tanto no contato com o outro, quanto consigo
mesmo.
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Antes de falar de si, portanto, é preciso tratar da relação consigo, ―o que significa dizer que a
―subjetividade‖ remete [...] a uma reflexividade que se poderia chamar de prática, uma maneira de
se relacionar consigo mesmo para se construir, para se elaborar‖ (GROS, 2006, p. 128).É nesta
relação consigo que se constitui o eu ético, tema com o qual Foucault dedica-se emseus escritos nos
últimos anos de sua vida. Os processos de subjetivação podem ser diversos, pois dependem dos
jogos de verdade que são colocados em circulação em determinado espaço. Entender como eles se
produzem implica ver como os sujeitos se posicionam diante do jogo de verdades que
cotidianamente se colocam à sua frente e, especialmente, entender como estes se relacionam
consigo mesmos e de que modo se estabelecem estas relações, seja deixando-seconduzir pela
norma, seja produzindo outras formas de condução.
Na medida em que as subjetividades são produzidas na relação do sujeito com os regimes de
verdade que constituem o espaço que ele ocupa e na relação consigo mesmo a partir destas
verdades, precisamos, antes, enxergar que tecnologias de poder operam sobre os indivíduos,
fazendo com que eles atuem, ao mesmo tempo, a favor do estado e governem a si mesmos (VEIGANETO e LOPES, 2011). Para esta análise Foucault nos oferece o conceito degovernamentalidade,
assim definido no curso ―Segurança, Território e População‖, ministrado nos anos 1977 e 1978:
Por essa palavra, ―governamentalidade‖, entendo o conjunto constituído pelas instituições,
os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercem essa
forma bem específica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a
população, por principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico
essencial os dispositivos de segurança (FOUCAULT, 2008, p. 143).
Entendendo a conduta como ―a maneira como uma pessoa se conduz, a maneira como se
deixa conduzir, a maneira como é conduzida e, como, afinal de contas, ela se comporta sob o efeito
de uma conduta que seria ato de conduta ou condução‖ (FOUCAULT, 2008, p. 255), importa
pensar, neste caso, em que medida a condução das condutas dos sujeitos negros em relação às
verdades que circulam nos espaços de negociação cultural produz subjetividades. Em seguida,
apresentamos alguns conceitos que podem caracterizar estes espaços de negociação cultural.
A obra escrita por Pratt, intitulada ―Os olhos do império: relatos de viagem e
transculturação‖ e publicada no Brasil em 1999, examina os relatos de viajantes europeus que
transitaram pela América Latina e pela África, especialmente durante os séculos XVIII e XIX. Ao
analisar as regiões colonizadas por meio dos textos produzidos pelo olhar do colonizador, Pratt
desenvolve um estudo relevante sobre as relações de poder e os movimentos culturais presentes nos
locais que a autora chamou de ―zonas de contato‖. Segundo Pratt (1999, p. 27),
―zonas de contacto", [são] espaços sociais onde culturas díspares se encontram, se chocam,
se entrelaçam uma com a outra, freqüentemente em relações extremamente assimétricas de
dominação e subordinação - como o colonialismo, o escravagismo, ou seus sucedâneos ora
praticados em todo o mundo.
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Optamos por utilizar o conceito elaborado por Pratt (1999) porque entendemos que a ―zona
de contato‖ permite tomar estes locais de convivência entre os negros e brancos como um espaço de
negociação que é complexo e instável, pois implica pensar nos modos como os sujeitos conduzem
suas condutas e de que maneira estas práticas culturais produzem subjetividades. O material do
jornal Folha do Mate mostrou que há localidades do interior de Venâncio Aires onde há
convivência entre brancos, geralmente de descendência alemã, e famílias negras. O que se observa
nas práticas culturais destes espaços é a busca por uma essencialização da cultura germânica, o que
faz com que os sujeitos negros residentes neste local criem estratégias de participação, para que de
algum modo possam fazem parte da comunidade. Pratt (1999) nos mostra que a dinâmica das
relações sociais e culturais estabelecidas no âmbito das zonas de contato não se restringe à posse e à
inocência do dominado. É justamente pela existência destas estratégias e pelas potencialidade destes
espaços que a autoracontribui para pensar as relações étnico-raciais, e por isso fazemos uso também
do seu conceito de transculturação. Pratt (1999, p. 30-31) utiliza este conceito
para descrever como grupos subordinados ou marginais selecionam e inventam a partir de
materiais a eles transmitidos por uma cultura dominante ou metropolitana. Se os povos
subjugados não podem controlar facilmente aquilo que emana da cultura dominante, eles
efetivamente determinam, em graus variáveis, o que absorvem em sua própria cultura e no
que o utilizar. Transculturação é um fenômeno da zona de contato.
Tomar determinados espaços como uma zona de contato cultural implica em pensar não em
uma tradução daquele contato entre diferentes culturas, nem mesmo em uma miscigenação.
Significa colocar em tensionamento as relações entre os indivíduos e acreditar na produtividade
destas relações, sejam elas marcadas pela convivência pacífica ou conflituosa. Os escritos de Homi
Bhabha vão ao encontro desta perspectiva de análise e trazem valiosas contribuições para
pensarmos este espaço de fronteira cultural. Segundo o autor, ―o que é teoricamente inovador e
politicamente crucial é a necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originárias e
iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de
diferenças culturais‖ (BHABHA, 2007, p. 20). Na esteira deste posicionamento, Bhabha apresenta o
conceito de entre-lugar, defendendo a capacidade produtiva deste que seria um terceiro espaço, que
deve ser explorado como forma de se deslocar das polaridades negro/branco, nós/eles,
conquistador/conquistado. Nas suas palavras, ―esses ―entre-lugares‖ fornecem o terreno para a
elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de
identidades e postos inovadores de colaboração e contestação‖ (BHABHA, 2007, p. 20). Há ainda
dois questionamentos levantados pelo autor que valem a pena trazerem para este texto antes de
iniciar a próxima seção, pois corroboram para os questionamentos desta pesquisa, assim como dão
significado ao que vem se chamando de crítica pós-colonial:
De que modo se formam sujeitos nos ―entre-lugares‖, nos excedentes da soma das ―partes‖
da diferença (geralmente expressas como raça, classe, gênero, etc)? De que modo chegam a
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ser formuladas estratégias de representação ou aquisição de poder [empowerment] no
interior das pretenções concorrentes de comunidades em que, apesar de histórias comuns de
provação e discriminação, o intercâmbio de valores, significativos e prioridades podem nem
sempre ser colaborativo e dialógico, podendo ser profundamente antagônico, conflituoso e
até incomensurável? (BHABHA, 2007, p. 20)
3 ZONA DE CONTATO ENTRE BRANCOS E NEGROS: A TRANSCULTURAÇÃO
COMO ESPAÇO DE NEGOCIAÇÃO CULTURAL
Esta
seção
pretende
colocar
em
tensionamento
algumas
relações
de
poder/saber/governo/ética que podem ser visualizadas na ―zona de contato‖. Segundo Pratt (1999,
p. 32),
uma ―perspectiva de contato‖ põe em relevo a questão de como os sujeitos são constituídos
nas e pelas suas relações uns com os outros. Trata as relações [...] não em termos da
separação ou segregação, mas em termos da presença comum, interação, entendimentos e
práticas interligadas, frequentemente dentro de relações assimétricas de poder.
Algumas reportagens do jornal Folha do Mate mostram que há localidades em Venâncio
Aires onde é marcante a presença de famílias negras, que por gerações vivem muito próximas, e
mesmo assim em certos aspectos à margem do centro da comunidade, especialmente
aquelasconhecidas pela sua descendência alemã. Embora estes sujeitos tenham uma história coletiva
própria e diferentes das família que não são negras, sua identidade aparece estreitamente vinculada
à cultura germânica. O excerto de uma reportagem publicada sobre o Distrito de Vila Arlindo
merece ser lido com atenção7:
LATIFÚNDIO DE JOÃO CARLOS LEITÃO DA ROCHA. Há na localidade [Vila Arlindo] uma
concentração de descendentes de africanos, que formaram uma comunidade negra. Os primeiros
moradores negros [...] vieram com Luis Metztorf, numa carroça, de Vera Cruz. [...] O núcleo negro de
Vila Arlindo [...] 68 moradores [...] 19 famílias, que em sua maioria tem a renda familiar pelo trabalho
como diarista (peão) no cultivo do fumo e trabalhando como safrista, em fumageiras de Venâncio
Aires. A maioria dos moradores dessa comunidade tem somente o ensino fundamental, muitas
vezes incompleto. Não chega a 10 o número de pessoas negras que já completaram o ensino médio. A
cultura negra é pouco desenvolvida e raramente posta em prática. O núcleo negro é dividido em
duas religiões: evangélicos (crentes) e católicos. Não há nenhum negro de uma religião de matriz
africana. Apreciam a música de bandinha alemã. [...] Em Vila Arlindo os moradores negros
moram todos na mesma rua e no mesmo lado.São 19 casas, todas simples, quem vê de longe,
parece um grande quilombo. Os negros quando morrem não são enterrados no cemitério local,
mas no cemitério de Linha Tangerinas. [grifos das autoras].
Fonte: Folha do Mate, 24 de abril de 2008
7
Optamos por organizar os materiais da pesquisa em quadros para melhor organização e visualização do texto.
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Estetexto traz algumas informações que fornecem subsídiospara pensar os espaços de
contato culturais. Embora os primeiros moradores negros tenham vindo com um proprietário de
descendência alemã, atualmente residem todos na mesma rua, o que mostra uma divisão espacial
que não ocorre apenas pela condição social, mas também pela cor da pele dos pertencentes a essa
localidade. Mesmo assim, estes sujeitos servem como mão-de-obra para as famílias mais abastadas,
trabalhando junto às propriedades especialmente no cultivo do fumo. As famílias negras são
necessárias tanto para a manutenção da economia, quanto para a afirmação da identidade cultural
dos descendentes alemães. Segundo Norbert Elias (2000, p. 23), ―um grupo só pode estigmatizar o
outro com eficácia quando está bem instalado em posições de poder das quais o grupo
estigmatizado é excluído. Enquanto isso acontece, o estigma de desonra coletiva imputado aos
outsiders pode fazer-se prevalecer‖
No entanto, apontar que nessa localidade existe apenas uma relação de dominação por parte
dos alemães para com os negros não é suficiente neste exercício analítico. Alfredo Veiga-Neto
(2008) explicita o que Foucault entende por relação de dominação, quando mostra que esta relação
é ambígua, pois nem toda relação de poder é uma relação de dominação, mas para que haja
dominação, é necessário o poder, mas um poder que é cristalizado, ―de modo que são muito
reduzidas a mobilidade e a chance de escape das partes dominada(s) (FOUCAULT, apud VEIGANETO, 2008, p. 20). A partir das teorizações propostas pelo filósofo, Veiga-Neto vai além, e
propõe ―chamar de dominação toda e qualquer técnica de dominação de um/uns sobre o(s) outro(s).
Conforme aconteça essa dominação é que podemos qualificá-la de violenta ou poderosa” (2008, p.
23).
Quando ocorre por meio da violência, a dominação se exerce sobre o outro sem que ele
tenha condições de resistir, pois ―procura anular as forças de um dos pólos de uma relação‖ (2008,
p. 27). Um exemplo desta dominação violenta é a proibição dos negros de serem enterrados no
cemitério da localidade. Como esta prática já se tornou norma, os familiares procuram outro
cemitério, sem questionar o fato.A construção de uma normativa reduz ao máximo as possibilidades
de manifestação, pois torna-se algo inquestionável ou que não vale a pena questionar, pois geraria
conflitos, que passam a ser evitados. Parece-nos que as novas gerações, que não viveram tais fatos
de exclusão diretamente, vivem das narrativas que se atualizam nas práticas de exclusão, que
passam a funcionar como dominação violenta.
Já a dominação poderosa é aquela que ocorre no exercício das relações de poder. Por mais
que haja relações assimétricas, sempre há possibilidades de resistência, pois a dominação poderosa,
neste caso, ―se dá com algum consentimento ou até mesmo com sentimento das partes envolvidas‖
(2008, p. 27). Além disso, nas relações de poder estão sempre presentes o saber, que operam por
meio de uma racionalidade que circula através das práticas discursivas e não discursivas. De que
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modo o sujeito negro residente em um local, como Vila Arlindo, ―reage‖ a este exercício de poder
que procura dominá-lo? Não podemos esquecer que ―as culturas não são essências, identidades
fechadas que permanecem através do tempo, mas são lugares de sentido e de controle, que podem
alterar-se e ampliar-se em sua interação‖, conforme nos mostrou Skliar (2001, p. 135). Interessa
saber neste caso, como os sujeitos negros percebem a abertura destas frestas e o que fazem com ela,
ou seja, que relações esses indivíduos estabelecem consigo mesmo, para que sejam capazes de se
posicionarem ativamente frente ao jogo de verdades que, ao se renovarem, exigem novas formas de
condução.
Quando o jornal afirma que ―a cultura negra é pouco desenvolvida e raramente posta em
prática‖ percebemos o quanto uma cultura hegemônica é capaz de educar e governar os indivíduos.
Os afrodescendentes deste local não aprenderam a conhecer outras manifestações culturais, mas
somente aquela de aceitação local, tipicamente alemã. Além disso, abandonavam o estudo muito
cedo para trabalhar de empregados na propriedade das famílias brancas, o que mostra o quanto a
relação entre brancos e negros é constante, embora geralmente estas relações sejam assiméticas.
Percebemos também, por parte do jornal uma preocupação em identificar determinadas práticas
tipicamente negras, o que também vale a pena ser problematizado. Que entendimento se tem
daquilo que seria uma cultura negra? Nestes aspectos vale registrar a importância dos espaços
educativos, tanto a escola, que pouco oferece condições para que o indivíduo possa ter liberdade de
escolha sobre suas práticas culturais, bem como espaço de recriá-las, quanto os meios de
comunicação, que acabam reforçando a existência de uma cultura específica para cada grupo étnico,
com características pré-definidas e essencializadas.
Ao relatar que os negros ―apreciam a música de bandinha alemã‖, temos um elemento
muito interessante de análise, a ponto de acharmos apropriada a utilização do conceito de
transculturação para este espaço. Embora o grupo étnico dominante estabeleça as normas que
devem ser vividas nesta comunidade e de certo modo estigmatize as famílias negras, segregando-as
de alguns espaços comunitários, aqueles considerados―os outros‖ são capazes de adotar
determinadas estratégias, mesmo que seja assimilar a cultura do outro, como é o exemplo da
música. Segundo Foucault (2010, p. 29), o poder não pode ser ―concebido como uma propriedade,
mas como uma estratégia, que seus efeitos de dominação não sejam atribuídos a uma ―apropriação‖,
mas a disposições, manobras, táticas, a técnicas, funcionamentos; que se desvende nele antes uma
rede de relações sempre tensas‖.
Assim, não existe neste espaço uma relação de poder apenas vertical, ela é múltipla na
medida em que se estabelece um contato cultural por parte do grupo menos favorecido, que reflete
uma ação, mesmo que sutil. A seguir, apresentamosoutro exemplo de famílias negras que residem
em localidades marcadas culturalmente pela colonização alemã:
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DISTRITO DE SANTA EMÍLIA – Atualmente, a composição étnica da população é
predominantemente de descendentes de imigrantes alemães. A miscigenação com os lusos
começou a ganhar espaço somente a partir da década de 1970 e a miscigenação com os negros
sofre resistência até os dias atuais. [...] A necessidade de união [dos alemães] também contribuiu
para a construção das primeiras escolas, capelas, salões de baile, campos de futebol e ginásios de
esportes, onde atualmente os descendentes de imigrantes germânicos, lusos, negros e índios
convivem de maneira integrada, embora os referenciais destes dois últimos grupos étnicos
careçam de pesquisa mais aprofundada. Sabe-se apenas que nas proximidades do Cemitério
dos Machado havia um local chamado Quilombo.
Fonte: Folha do Mate, 29 de maio de 2008.
Faltam ainda pesquisas para comprovar se na localidade de Santa Emilia havia mesmo um
quilombo. Provavelmente o que ocorre neste espaço é uma aglomeração de famílias negras,
semelhante à Vila Arlindo. Olhando o excerto com atenção, épossível perceber que há um cuidado
por parte de quem escreve sobre a temática no jornal. Um exemplo deste ―cuidado‖ é a contradição
presente no texto acima apresentado. O texto publicado no jornal afirma, em um primeiro momento,
que a miscigenação entre brancos e negros sofre resistência e, num segundo momento, destaca que
os moradores de diferentes pertencimentos étnico-raciais ―convivem de forma integrada”,
especialmente nas associações esportivas e de lazer.
Os tensionamentos são visíveis. Na busca de uma escrita politicamente correta, que se
caracteriza por um esforço linguístico, que contorna a diferença e pretende evitar que a
sensibilidade ou a autoestima dos afrodescendentes ―possam ser ofendidas ou humilhadas por
conversas, atitudes ou comportamentos inconvenientes, de modo a induzir ou reforçar na pessoa em
questão uma visão desvalorizada ou culpabilizante dela mesma‖ (SEMPRINI, 1999, p. 62). Estas
estratégias linguísticas podem ser entendidas como tecnologias de poder, potentes forças que
produzem significados importantes para a vida de brancos e negros, mas de forma a marcar
asdesigualdades e produzir, nesse caso analisado, a tolerância.
Ao tratar dos elementos conceituais da tolerância, Marcos Nobre (2006, p. 40) caracteriza
este termo como tridimensional, pois tem a peculiaridade ―de designar, simultaneamente, uma
prática política, um comando jurídico e uma atitude cotidiana‖. Nesse caso, o exercício da
tolerância constitui-se de práticas de poder e por atitudes marcadas pela não neutralidade de quem a
pratica. Tolerar, no ponto de vista cultural, representa manter as diferentes culturas cristalizadas na
sua essência, sem mexer na estrutura multicultural da sociedade nem na sua matriz, mantendo os
conhecimentos de algumas culturas subalternos a outros, tidos como hegemônicos. Considerando
que o jornal é um forte instrumento educativo, percebemos a importância da linguagem para o
exercício da tolerância e, consequentemente, para a manutenção da lógica dominante. Conviver de
11
modo integrado, portanto, são práticas de fato existentes em Venâncio Aires, mas há condições para
isso: cada um deve saber o seu lugar.
Em Santa Emília, os negros também servem como mão-de-obra para as famílias do ―centro‖
da localidade. O trabalho, desta forma, se configura como um momento importante da dinâmica da
zona de contato, embora ocorra em situações sociais desiguais. Segundo Pratt (1999, p. 31), estas
zonas podem ser entendidas como ―espaço de encontros coloniais, no qual as pessoas geográfica e
historicamente separadas entram em contacto umas com as outras e estabelecem relações contínuas,
geralmente associadas a circunstâncias de coerção, desigualdade radical e obstinada‖.Assim, é na
tentativa de contornar/invisibilizar estas desigualdades queo jornal acaba se contradizendo e caindo
na contramão do próprio discurso que pretende defender.
Livio Sansone apontou em seus estudos a presença de áreas leves e pesadas no que diz
respeito à convivência entre brancos, negros e mestiços. ―Quanto ―mais branca‖ era considerada
uma área, mais difícil podia ser para os negros‖ (SANSONE, 2004, p. 79). Nestes locais, alguns
momentos de interação das relações entre os ―diferentes de cor‖ são mais difíceis, identificadas pelo
autor como ―áreas pesadas‖, como o trabalho, especialmente a procura por emprego, o casamento e
as relações com a polícia (2004, p. 80). Já as ―áreas ―leves‖ das relações sociais são todos os
espaços em que ser negro não constitui empecilho e, em certas ocasiões, pode até trazer prestígio‖
(SANSONE, 2004, p. 80). Nestas áreas, como o carnaval, o esporte e os centros religiosos, a cultura
negra é ressaltada de forma positiva, ―nas quais os negros sempre se destacaram e foram instigados
a sobressair‖ (2004, p. 81).
Em Venâncio Aires, como em tantos outros locais, podemos perceber a existência das ―áreas
leves‖, ocasiões onde os conflitos são deixados de lado. Mas nestas localidades do interior do
município, a situação parece se inverter: as relações entre negros e brancos são mais intensas
justamente nos espaços de trabalho, já que os negros servem de mão de obra para os brancos;
enquanto que os espaços de confraternização, especialmente de expressão religiosa, mostram-se
mais resistentes. Esta é mais uma característica da ―zona de contato‖, em que as relações de
dominação se potencializam e estabelecem normas que funcionam como condições de inserção,
como é o caso do idioma alemão. Um depoimento de uma representante do Movimento Negro,
articulado em Venâncio Aires no início da década de 90, mostra o quanto o idioma alemão, ao
mesmo tempo visto como forma de inserção do negro na comunidade era também considerado um
fardo para a população afrodescendente do município:
Ainda hoje existe racismo, inclusive em VA. Aqui, o racismo se manifesta, por exemplo, na
exigência de falar o alemão quando o comércio quer um balconista.
Fonte: Folha do Mate, s/d 1990, suplemento.
12
A valorização dos indivíduos que conhecem e fazem uso do dialeto de origem alemã no
município pode ser considerada uma marca identitária que produz tanto a exclusão, como a
inclusão. A história de João Generoso dos Santos, fundador da Sociedade Négo F. C. São Sebastião
e conhecido como o ―pai dos negros‖, é semelhante a outras em que negros foram incluídos nas
comunidades de colonização alemã, especialmente por conhecer o idioma. João Generoso fundou o
clube dos negros em 1933, e transitar por diferentes espaços, sendo conhecido pela sua música e por
falar alemão, além dos olhos azuis, foram as condições para esta ―aceitação‖ para o pertencimento a
esta comunidade. O excerto a seguir confirma esta valorização:
LÍDER COMUNITÁRIO – Um dos grandes líderes comunitários do município de VA foi um
negro. João do Cerso, João da Prefeitura ou Schwatz João eram os apelidos de João Generoso dos
Santos. Natural do interior do Rio Pardo, era filho de escravos.
Fonte: Folha do Mate, 11 de maio de 2000.
Como procuramos mostrar no decorrer deste texto, o contato cultural entre brancos e negros
possibilita enxergar quais as estratégias criadas pelos afrodescendentes para lidar com a exaltação
da cultura do outro, onde a convivência resulta em práticas de tolerância para com aqueles que são
considerados minoria. De acordo com Pratt (1999, p. 30), ―se os povos subjugados não podem
controlar facilmente aquilo que emana da cultura dominante, eles efetivamente determinam, em
graus variáveis, o que absorvem em sua própria cultura e no que o utilizam‖. Deste modo, ao
considerar o interior do município de Venâncio Aires como uma zona de contato (PRATT, 1999),
procuramos mostrar que mesmo onde aparentemente é possível enxergar somente a exclusão, há
também possibilidades de negociação cultural e produção de subjetividades dos sujeitos que sempre
(re)criam e (re)articulam estratégias de participação, de inclusão e meios de construir suas próprias
narrativas. Assim, acreditamos que o estudo da zona de contato é produtivo para a compreensão das
múltiplas relações, entre elas as de transculturação, isolamento, integração, tolerância e tantas outras
que possam ser produzidas pelos processos sociais vividos nestes espaços.
4
PARA
CONTINUAR
PENSANDO:
TRANSCULTURAÇÃO,
NEGOCIAÇÃO
E
COOPERAÇÃO
Este texto teve o objetivo de pensar a constituição do sujeito negro nas regiões de
colonização alemã do interior do Rio Grande do Sul. As narrativas identitárias presentes em
determinados espaços acabamse sobrepondo a um discurso hegemônico que, ou invisibiliza aqueles
que são diferentes, ou exige destes sujeitos estratégias para que em alguns momentos possam se
13
sentirem pertencentes àquele espaço. Este último movimento é o que pretendemos apresentar com
os excertos do jornal Folha do Mate. Seja por meio da manutenção das relações de trabalho, seja
por meio da aceitação das normas estabelecidas quanto ao enterro dos negros em outro cemitério,
ou ainda pelo gosto da mesma música, o sujeito negro acaba assimilando alguns elementos da
cultura hegemônica para sentir-se pertencente à comunidade. Este pertencimento, no entanto, é
regulado, pois existem processos de in/exclusão que são permanentemente colocados nos jogos de
poder e que se refletem nas relações sociais.
O que gostaríamos de reforçar é que esta assimilação é também uma característica da zona
de contato, pois trata-se de uma negociação cultural, ainda que marcada por uma relação de poder
assimétrica. O branco exerce sobre o negro um tipo de poder, que poderíamos chamar de
dominação poderosa (VEIGA-NETO, 2008), pois faz com que ele se curve à alguns tipos de
práticas locais, conduzindo sua conduta de modo a assimilar a cultura do outro. Ao fazer isso, o
negro venancioairense vai constituindo sua subjetividade como um sujeito que é posicionado de
determinadas formas, em um constante movimento que é contingente e variável. A tolerância, por
sua vez, ocorre na medida em que alguns, geralmente brancos, concedem determinados espaços
para a participação do negro na comunidade, ainda que dentro de um limite permitido.
O município de Venâncio Aires nos comprova o quanto a constituição do sujeito negro é
temática complexa e contingente, pois depende da história de cada indivíduo e sua articulação com
o espaço/tempoque ocupa. Entendemos que a compreensão desta complexidade é necessária para o
avanço dos estudos que envolvem as relações étnico-raciais e a subjetivação, pois a produção de
novas verdades em prol de uma consciência e uma identidade negra, enquanto categorias fixas e
essencializadas, correm o risco de repetirem a ordem dos binarismos a qual condenamos por tanto
tempo. Assim, ao considerarmos que a transculturação pode funcionar como um espaço de
negociação cultural, isso não quer dizer que seja permanente ou que venha a funcionar da mesma
forma para as novas gerações. Este espaço de negociação pode servir aos sujeitos negros e brancos
por um período, mas as transformações sociais podem alterar os interesses dos grupos e produzir
novas relações entre brancos e negros.
A constante investigação das relações de poder é condição necessária para que todos possam
viver processos mais equânimes nas sociedades. Parece-nos que outros pesquisadores como o
sociólogo Richard Sennett (2013), pode nos ajudar a pensar em outras formas de viver, de trabalhar
e organizar a sociedade contemporânea. O conceito de cooperação desenvolvido por ele no livro
―Juntos: os rituais, os prazeres e a política de cooperação‖, nos parece uma provocação para
continuarmos pensando as relações que nestas zonas de contato são produzidas; entre elas a
transculturação. Se a cooperação pode reinventar as formas de vivermos juntos, ela pode produzir
nos processos de transculturação outras relações além da tolerância ou simples assimilação da
14
cultura do outro. A educação, nesse sentido, teria um amplo campo de trabalho com este sentido de
desenvolver a habilidade da cooperação nestas zonas de contato entre negros e brancos. Assim,
atrelarmos o conceito de transculturação (PRATT, 1999) ao de cooperação (SENNET, 2013), pode
ser produtivo para pensarmos em outras relações e outras produções de subjetividades quando as
relações se dão entre negros e brancos, e, também, entre outros sujeitos que virem a integrar tais
espaços.
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15
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A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NEGRO NAS REGIÕES DE