Título original: Queimada (Itália, 1968)
Diretor: Gillo Pontecorvo
Elenco: Marlon Brando, Renato
Salvatori, Norman Hill, Evaristo
Marquez, Tom Lyons
Idioma: Inglês e espanhol
Legendas: Português, Espanhol e
Inglês
Gênero: Drama
Duração: 132 min. Cor
Distribuidora: Fox
QUEIMADA
Guerra fria no auge, Estados Unidos atolados no Vietnã,
rebeldia generalizada no meio universitário, ainda como
ressaca do maio de 68 francês – tudo isso tornava vital o
tipo de discussão sobre o colonialismo trazido pelo filme.
Queimada foi proibido pela censura
brasileira, só sendo liberado anos depois, em 1980,
quando o regime militar obrigou-se a adotar fachada
mais civilizada.
O filme procura no passado fatos que possam, não
digo explicar, mas pelo menos esclarecer o presente.
No caso, ele toma uma ilha fictícia, nas Antilhas,
como modelo de aplicação do processo colonial.
SINOPSE
Em meados do Século XIX (ano de 1845), numa ilha do Caribe
que tem o sugestivo nome de Queimada (aludindo a um
sangrento episódio de seu passado), que se encontra sob o
dominio português, desembarca um agente britânico, Sir
William Walker (personagem de Marlon Brando). Encontra até a
figura ideal de um
Intelectualizado e eloqüente, ele fomenta na população de
escravos a idéia de uma revolução contra os colonizadores
portugueses.
Encontra até a figura ideal de um líder para construir e
moldar, o então estivador José Dolores (Evaristo Marquez),
a quem incita inclusive a roubar um banco para, segundo o
mesmo agente, financiar a rebelião, o que, contudo, não era
verdade, pois se tratava de mera armação encenada (miseen-scene
Encontra até a figura ideal de um
líder para construir e moldar, o
então estivador José Dolores
(Evaristo Marquez), a quem incita
inclusive a roubar um banco para,
segundo o mesmo agente, financiar
a rebelião, o que, contudo, não era
verdade, pois se tratava de mera
armação encenada (mise-en-scene
Um outro rebelde, o funcionário de hotel Teddy Sanchez
(Renato Salvatori), será levado a assassinar o governador
local, facilitando a tomada do poder pelos revolucionários.
Dez anos depois, Walker é novamente chamado, desta vez
pelos donos da companhia inglesa de exploração da canade-açúcar, para neutralizar Dolores que agora lidera a
guerrilha nas montanhas e ameaça a supremacia britânica
na ilha. A escravidão fora trocada pelo livre mercado, mas
a população continuava na miséria.
CENAS E DIÁLOGOS MARCANTES -
ANÁLISE SOCIOLÓGICA
I – OS INTERESSES CAPITALISTAS
“Na verdade, a Inglaterra quer o mesmo que vocês: liberdade de
comércio, dos homens e da dominação estrangeira. O que a
Inglaterra não quer é que estas revoluções sejam levadas às últimas
conseqüências. Homens como José Dolores podem agravar a
situação, como aconteceu no Haiti, por exemplo. Como vêem, no
momento, nossos interesses coincidem. E coincidem também com
progresso e civilização. Para os que acreditam nela, ela é
importante” (Sir William Walker, o inglês, em jantar com líderes que
tramam a independência da ilha).
Analise - a ideologia econômica de viés capitalista preconiza a liberdade de
comércio, a livre iniciativa e concorrência, o princípio de que todos são
iguais perante a lei e, logo, também para competir, bem como apregoa uma
falsa doutrina de defesa da liberdade incondicional das nações soberanas.
II- O TRABALHO NO CAPITALISMO
Em uma outra cena, faz-se uma comparação bastante curiosa para tecer as
diferenças entre o trabalho escravo e o trabalho remunerado: o primeiro se
assemelha à esposa, em relação à qual o marido, na constância do
casamento, tem o dever permanente de cuidado intenso a ponto de se
tornar algo enfadonho e até mesmo repulsivo pelo desgaste natural da
relação entre os cônjuges; já a segunda hipótese se equipara às relações
extramatrimoniais, nas quais o homem não raro busca outras amantes,
como prostitutas, pagando-lhes , sem qualquer outra preocupação ou
compromisso.
Analise - Com efeito, no regime de escravidão, o trabalhador-escravo é
propriedade do senhor, é mera coisa, não tem qualquer personalidade
jurídica, enfim, não é sujeito de direitos, mas tão-só de obrigações
estabelecidas ao arbítrio de seu dono. Já a relação entre empregado e
patrão, ou entre vendedor e comprador, é meramente obrigacional:
cumprido o dever jurídico de prestar o trabalho , a qual ostenta, por isso,
um caráter transitório, efêmero, fugaz.
Tal é a lógica do sistema capitalista: paga-se pelo trabalho humano (contrato
de obrigação de fazer), ou pelo produto do trabalho humano (contrato de
obrigação de fazer e de dar), mas sempre em valores desproporcionais aos
efetivamente produzidos e merecidos (teoria da mais valia de Karl Marx).
III- REVOLUÇÃO
Willian: “Se pedisse a você para começar uma revolução, você não iria
entender. Roubar um banco, sim, era possível que entendesse. Primeiro
teve que aprender a matar para se defender. Depois, teve que matar
para defender os outros. O resto foi conseqüência.” Dolores: “E a
Inglaterra? Qual a participação dela nisso?” William: “Portugal é
inimigo da Inglaterra. Se os navios ingleses não estivessem aqui, os
portugueses já teriam voltado” (Diálogo entre Sir William e José
Dolores após a proclamação da independência da ilha).
Analise - Dolores foi o grande instrumento moldado pelos britânicos para a
retirada dos portugueses da ilha Queimada. O Sr. Walker tenta justificar ao líder
José Dolores o injustificável, ou seja, é melhor sejam os habitantes locais
dominados pelas regras da ditadura do livre mercado do que novamente
subjugados a Portugal e reduzidos à condição de escravos, meros bens ou
coisas semoventes não sujeitos de direitos, mas tão-só de obrigações.
IV- CONFLITOS DE INTERESSES
4. William: “Quem vai governar sua ilha, José? Tocar a indústria?
Cuidar do comércio? Quem vai curar os doentes? Ensinar nas suas
escolas? (...) A civilização não é uma questão simples. Não se
aprendem os segredos da noite para o dia. Hoje a civilização
pertence aos brancos. E você tem de aprender a usá-la. Sem isso,
não poderá ir adiante”. Dolores: “Mas ir para onde, inglês? (...) Pode
dizer aos brancos que meus homens vão depor as armas e voltar
para as plantações. Mas pode dizer-lhes para ter cuidado, muito
cuidado. Eles podem saber como vender o açúcar, mas somos nós
que cortamos a cana” (Diálogo entre Sir William e José Dolores logo
ao fim dos primeiros conflitos).
Análise : fora do capitalismo europeu, do liberalismo econômico em curso no
mundo do homem branco desenvolvido, não há salvação. Os países pobres
têm de se contentar com as migalhas oferecidas pelos ricos e seus líderes
devem ceder à corrupção passiva, obtendo vantagens pessoais sempre que
atenderem aos interesses dos poderosos. Dolores ainda representa uma
tábua de resistência, não aceita benefícios estritamente pessoais e tem
consciência da importância do trabalho de seu povo para o objetivo
mercantil inglês. É, pois, o início da luta entre os interesses do capital
corporativo e do trabalho remunerado.
V- CONTRADIÇÕES DO CAPITALISMO
“Eu vou explicar, cavalheiros. É muito comum, entre um período
histórico e outro, que dez anos mostrem ser tempo bastante para
revelar contradições de um país inteiro. Em geral, temos que entender
que nosso julgamento, nossas interpretações e até mesmo nossas
esperanças podem estar erradas” (Sir William Walker em reunião do
governo da república de Queimada).
Analise - os líderes e a população de Queimada esperavam, com a
revolução, uma substancial melhoria de sua qualidade de vida; não foi,
todavia, o que aconteceu, estando os súditos da república a amargar um tipo
de escravidão em que se deixa de ser escravo sem, paradoxalmente, deixar
de sê-lo. Com efeito, no regime colonial de escravatura, os trabalhadores são
propriedades de seus senhores e a estes devem compulsoriamente servir; no
regime liberal de livre mercado, de outro flanco, os desvalidos se tornam
escravos das regras do capital, sempre a eles desfavoráveis, sendo, na
prática, mais sujeitos de obrigações perante os capitalistas do que titulares
de direitos subjetivos e humanos, como habitação, saúde, educação, lazer,
cultura, trabalho e assistência social, dentre outros.
VI- CONFLITO CAPITAL E TRABALHO
“José Dolores disse que o que temos em nosso país é uma civilização
dos brancos e que é melhor sermos não-civilizados, pois é melhor
sabermos aonde ir e não sabermos como do que sabermos como e
não termos para onde ir. Depois, ele disse que se um homem trabalha
para alguém, ele se chama trabalhador mas continua sendo escravo.
Isso nunca vai mudar pois existem os donos da terra e os donos do
facão que corta a cana. Depois disse que devemos cortar cabeças ao
invés de cana” (Martino, aliado de José Dolores).
Analise -O trabalhador, na ordem capitalista, deixa de ser escravo de um
senhor individual para se converter em escravo de um sistema avalizado pela
classe dominante, que busca, por meio do Estado de Direito, manter a todo
custo seu status quo, como se justo fosse. Em outras palavras, no regime de
escravidão, os homens são meios de produção; já no sistema de livre
mercado, eles passam a ser uma mercadoria: sua força de trabalho, que se
confunde a todo o momento com o seu ser, é vendida ao patrão como um
mero objeto ou uma coisa qualquer.
VII- RESISTÊNCIA
7. “Você sabe por que a ilha se chama ‘Queimada’? Porque já foi
queimada uma vez, para vencer a resistência do povo. Depois, os
portugueses exploraram pacificamente a ilha por quase trezentos
anos. Sabe que o fogo não atravessa o mar, senão apaga. Mas certas
idéias viajam com a tripulação. Deveria saber quantas ilhas a
companhia explora e o que aconteceria se o exemplo de Dolores
chegasse a essas ilhas. Shelton, eu não sei ao certo o que estou
fazendo aqui. Dinheiro é importante mas não sei por que aceitei.
Talvez seja pelo prazer pessoal ou talvez porque não saiba fazer
outra coisa. Mas quando tenho que fazer algo, tento fazer bem feito”
(Fala de Sir William a Sir Shelton, representante da Companhia
Açucareira das Antilhas).
Analise: a economia capitalista é pura ideologia imposta pelas elites
dominantes fortemente reacionárias a qualquer tentativa de mudança de seu
status quo. As idéias revolucionárias, isto é, de mudança da ordem das coisas
(por isso, em linguagem pró-capitalismo, ideário subversivo), têm de ser
necessariamente varridas e rechaçadas do vigente sistema e do seio das
sociedades humanas. Portugueses e ingleses agiram exatamente do mesmo
modo na defesa de seus regimes sócio-econômicos e interesses comerciais
imediatos.
VIII- LIDER REVOLUCIONARIO
“José Dolores teve uma história exemplar. No começo, ele não era nada,
apenas um carregador. E a Inglaterra fez dele um líder revolucionário.
Quando não servia mais, foi colocado de lado. Depois, o ressuscitaram mais
ou menos em nome dos mesmos ideais que a Inglaterra lhe ensinou. Depois,
a Inglaterra decide eliminá-lo. Não acha que é uma pequena obra de arte?
(...) Eu não sou o artista, sou apenas o instrumento” (Fala de Sir William a
um comandante inglês).
Analise: parafraseando Nicolau Maquiavel, “os fins justificam os meios”. José
Dolores fora feito um instrumento importante para atender aos interesses da
coroa inglesa; agora, entretanto, já não mais o é, por ter entrado, na defesa de
sua gente, em rota frontal de colisão com os objetivos mercantilistas dos
industriais britânicos.
PROCESSO HISTÓRICO
9. “Não, não é verdade que o fogo destrói tudo. Sempre restará vida se
restar um pouco de grama. Como os brancos me pegaram? Como podem
ganhar no final? Os brancos sempre existirão. Depois nascerão outros.
Depois outros que vão começar a entender. E, no final, até vocês vão
entender. E, no final, os brancos vão ficar enfurecidos com vocês. Podem
esperar. Quando os amigos deles acabarem, a besta enfurecida vai correr
pela última vez, perseguida e caçada por toda a ilha. Haverá um grande
incêndio. E os grunhidos dessa besta se transformarão em um grito de
liberdade. Um grito que será ouvido longe, muito além desta ilha” (José
Dolores fala aos soldados que o aprisionaram).
Analise: trata-se de um discurso profético de José Dolores acerca da futura autoimplosão do sistema capitalista de origem branca e européia. Com efeito, à medida
que a população planetária cresce, aumenta a demanda por serviços e
necessidades humanas, como emprego, alimentos, etc. Será que, com o andar da
carruagem, haverá espaço para todos? O fosso que separa a minoria rica da
maioria pobre cresce dia a dia, ano a ano, vertiginosamente, de sorte que a
oligarquia econômica dominante já não se sente segura ao caminhar livremente
pelas ruas, encastelando-se em condomínios de luxo, fechados, de início verticais
(até o final dos anos 80), e agora também horizontais.
A LIBERDADE É UMA CONQUISTA
Dolores: “De qualquer forma, mais cedo ou mais tarde, me matarão”.
Soldado: “Talvez não, general. Talvez o deixem viver”. Dolores: “Vão me
deixar viver se for conveniente para eles. Se for conveniente para eles,
para mim é conveniente morrer”. Soldado: “Por quê?” Dolores: “Porque
nunca deixam viver. Só quando querem uma isca ou uma caça viva
numa gaiola”. Soldado: “Mas, depois de algum tempo, podem libertálo”. Dolores: “Não, meu soldado. Não é assim que funciona, meu amigo.
Se alguém lhe dá liberdade, não é liberdade. Liberdade é algo que você
conquista sozinho” (Diálogo entre José Dolores e soldado que o
conduz à prisão).
análise sociológica: José Dolores, bastante decepcionado com o homem
branco capitalista, constata que, na verdade, houvera trocado seis por
meia dúzia: a liberdade que seu povo desfrutava não passava de
pseudoliberdade. O discurso oficial do capitalismo é o da liberdade plena
dos indivíduos de produzir e concorrer lealmente uns com os outros,
mas o corolário dessa lógica perversa, a médio e longo prazo, é funesta,
catastrófica, dando margem à apreensão e ao acúmulo de riquezas por
uma minoria em detrimento da maioria, a ponto de faltar a esta última até
mesmo as condições básicas e dignas de subsistência e sobrevivência.
ATÉ QUANDO ?
William: “Está livre, fuja! Você não perde nada, não renuncia a nada. Seu
tempo está acabando. Por quê? Que bem isso faz? O que isso significa?
É algum tipo de vingança? Mas que tipo de vingança é esta se você
estiver morto? Eu não sei, José. Isso parece loucura. Por quê?” (...)
Dolores: “Inglês! Lembra do que você me disse? A civilização pertence
aos brancos. Mas que civilização? Até quando?” (Diálogo final entre Sir
William e José Dolores antes do enforcamento deste).
Análise : “até quando?”, eis a questão que não quer calar e que mais e mais se
impõe ao capitalismo hodierno, contemporâneo. Algo tem de mudar. Que modelo
selvagem de civilização é este que condena à miséria absoluta e à pobreza
extrema quase dois terços da humanidade? Os países pobres da América Latina,
da Ásia e da África, outrora pelo sistema cognominados subdesenvolvidos, mais
recentemente ganharam o epíteto de nações em processo de desenvolvimento.
Outra grande falácia, fruto da ideologia do capital, já que a dominação e a
submissão econômica persistem, ditando políticas internas às “soberanias” do
Terceiro Mundo, como a adoção de medidas neoliberais, entre elas o Estado
mínimo e o corte de despesas mesmo em áreas essenciais como educação,
saúde, moradia e promoção social.
CONCLUSÃO
E esse recado, hoje em dia, vale sobretudo para os Estados
Unidos da América, atual império econômico do planeta,
representado, no filme, pela Inglaterra. A personagem é outra,
mas a história segue a mesma.
A relação de dominação econômica é a mesma e ainda persiste
nos dias atuais. “Até quando?”, perguntaria José Dolores. Não é à
toa que os Estados Unidos da América têm interferido na política
interna de alguns países do Oriente Médio, promovendo invasões
militares com o nítido intuito de preservar seus interesses na
indústria do petróleo mesmo à custa do sofrimento de milhões de
civis.
O capitalismo produz, assim, desigualdades crescentes, abissais,
escandalosas, além de muito ódio entre as classes sociais e entre
os diversos povos, ferindo o equilíbrio que deve pairar nas
relações humanas, pois segue a conduzir em enorme quantidade
legiões e legiões de velhos e novos seres humanos para a miséria.
Há, de um lado, os expulsos do sistema e, de outro, os que dele
sequer fizeram parte, os excluídos permanentes.