DIPLOMACIA E
HUMANIDADES
Juca Diplomacia e Humanidades - Número 06 - 2012 IRBr
06
Ano 6 - 2012
juca.irbr.itamaraty.gov.br
A revista dos alunos do Instituto Rio Branco
NESTA EDIÇÃO:
DOSSIÊ
Política externa e
redemocratização:
com a palavra, os Presidentes
Patriota, um perfil pessoal
A pena e a renda:
literatura e diplomacia
Mulheres no Itamaraty
de antanho
Os rubicões da Rio+20
Memórias de além-túmulo:
o Barão, redivivo
Instituto Rio Branco
O que é Juca?
É a revista anual dos alunos do Curso de Formação em Diplomacia do Instituto Rio Branco. Compõem o universo temático deste
periódico a diplomacia, as relações internacionais, as demais ciências humanas, as artes
e a cultura - todas agrupadas sob o binômio
“Diplomacia e Humanidades”. Concebida
para refletir a produção acadêmica, artística e
intelectual dos alunos da academia diplomática brasileira, a Juca visa também recuperar
a memória da política externa do País e difundi-la nos meios diplomático e acadêmico.
Por que Juca?
REVISTA JUCA
José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Chanceler que ingressou no panteão dos heróis
nacionais na qualidade de patrono da diplomacia brasileira, era conhecido nos seus dias
de juventude e boemia como Juca Paranhos
- à época, ainda despido de honraria nobiliárquica que viria a batizar nossa academia
diplomática. Fosse o Itamaraty do século XIX
organizado como é hoje, o jovem diplomata que consolidara as fronteiras nacionais e
estabeleceria novo paradigma para a política
externa brasileira, seria tratado, em sua temporada na academia diplomática, por Terceiro Secretário Juca Paranhos. A revista elaborada pelos diplomatas recém-ingressados
no Instituto Rio Branco presta homenagem
à política exterior legada pelo Barão do Rio
Branco e ao próprio, que antes das glórias
nas questões arbitrais e políticas foi o... Juca.
juca.irbr.itamaraty.gov.br
editorial
A história da diplomacia brasileira está repleta de ideias absurdas. Ou, ao menos, de
ideias que, em sua origem, foram vistas como absurdas. A começar pelo insólito de um país com
mais de 15 mil quilômetros de fronteiras e dez vizinhos não ter desentendimentos fronteiriços
há mais de cem anos. A esse despropósito fundamental – resultado do trabalho sem precedentes do Chanceler que dá nome a esta revista e ao Instituto que a publica - seguiram-se muitos
outros, que o leitor da JUCA há de identificar sem grande esforço: a política externa independente, a barganha pendular do entreguerras, a integração sul-americana, a projeção do Brasil
como ator global na última década, etc, etc.
Não deve causar surpresa, portanto, que ideias e empreitadas invulgares transbordem das
páginas da JUCA 6. Trata-se de um projeto improvável, que dá continuidade, com a mão de obra
de 26 alunos-diplomatas, a uma iniciativa nascida junto com as “turmas de cem” do Instituto
Rio Branco. Igualmente pouco factível desenhava-se a pauta de nosso dossiê – a seção da JUCA
que, em cinco edições, consolidou-se como espaço privilegiado para a publicação de coleções
de fôlego sobre os mais variados temas: lançamo-nos à quixotesca tarefa de conversar sobre
política externa com todos os ex-Presidentes da República vivos – e, acreditem, conseguimos.
Como o leitor da JUCA 6 comprovará nas páginas que seguem, cada um dos mandatários
entrevistados contribuiu com seu quinhão de aparentes despautérios para a projeção internacional do Brasil: Sarney e a aproximação nuclear com a Argentina, Collor e a consolidação dos
temas ambientais em nossa agenda internacional, Fernando Henrique Cardoso e a integração
sul-americana, Lula e a expansão de nossas responsabilidades globais. O ímpeto inovador que
espelha nossa melhor tradição diplomática subjaz a todas as grandes iniciativas internacionais
desses governos – iniciativas que, no princípio, encontraram consideráveis doses de ceticismo.
Há muitas outras ideias disparatadas nessa JUCA 6. Thereza Quintella e Maria Rosita de
Aguiar Pedroso, por exemplo, ousaram perturbar a sagrada masculinidade do Itamaraty dos
anos 1950 e tornaram-se objeto de uma matéria paternalista e condescendente de uma revista
feminina, como relata Natália Shimada em “Intrusas no lago dos cisnes”; no mundo das letras,
toda uma geração de diplomatas escritores propõe-se ao sobre-humano ofício de produzir literatura de altíssima qualidade em meio à frenética rotina diplomática dos dias atuais, como
revelam João Bayão, João Maranhão e Pedro Gomides em “O nomadismo da letra”; de volta ao
campo diplomático, o Embaixador Luiz Alberto Figueiredo e o Ministro Laudemar Aguiar encontraram obstáculos titânicos para negociar e organizar a colossal conferência Rio+20, como
demonstram Gustavo Machala e Jaçanã Ribeiro em “Os legados da Rio+20”.
Em seu derradeiro desatino, a JUCA desfrutou do privilégio de conversar por cerca de uma
hora com o Ministro de Estado Antonio de Aguiar Patriota e não abordou temas de política externa. Foi uma escolha consciente, com o objetivo de desvelar uma faceta pouco conhecida de um
diplomata cujas ideias e credenciais no âmbito profissional não carecem de complementação.
Eis, portanto, a JUCA 6. Nosso desejo sincero é que o leitor desfrute desse apanhado de textos plurais e inquietos com o mesmo espírito que animou sua confecção: desarrazoadamente.
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expediente
Agradecimentos
Embaixador Antonio de Aguiar Patriota
Embaixador Luiz Villarinho Pedroso
Embaixadora Thereza Maria Machado Quintella
Embaixador Gelson Fonseca Junior
Embaixador Georges Lamazière
Embaixador Luiz Alberto Figueiredo
Ministro Laudemar Gonçalves de Aguiar Neto
Diretor Honorário
Embaixador Georges Lamazière
Ministro Eduardo Carvalho
Ministro Alexandre Guido Lopes Parola
Ministro Ary Norton de Murat Quintella
Editor-Chefe
Danilo Vilela Bandeira
Diretor Executivo
Gustavo Cunha Machala
Ministro Alexandre Vidal Porto
Ministro Sérgio Barreiros de Santana Azevedo
Ministro Luis Felipe Silverio Fortuna
Ministro Roberto Avellar
Ministro Michel Arslanian Neto
Editor Assistente
Artur Andrade da Silva Machado
Diretor Jurídico
Pedro Mendonça Cavalcante
Revisão
Gustavo Guelfi de Freitas
Artur Andrade da Silva Machado
Capa
Bruno Pereira Rezende
Direção de Arte e Diagramação
Ct. Comunicação
www.ctcomunicacao.com.br
Conselheiro Adriano Silva Pucci
Conselheiro Bernard Jorg Leopold de García Klingl
Conselheiro Mário Antonio de Araújo
Secretário Márcio Oliveira Dornelles
Secretário Rodrigo de Oliveira Godinho
Secretário Rodrigo de Oliveira Castro
Secretário Filipe Correa Nasser Silva
Secretária Maria Rosita de Aguiar Pedroso
Secretária Gabriela Guimarães Gazzinelli
Secretária Amena Martins Yassine
Secretário Diogo Ramos Coelho
Professor Doutor Marcio Garcia
Instituto Fernando Henrique Cardoso
[email protected]
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Sr. Luiz Dulci e Instituto Lula
sumário
PERFIL
09 Antonio de Aguiar Patriota
08
Alexandre Souto, Danilo Vilela Bandeira,
Gustavo Machala e Pedro Mendonça Cavalcante
20
RESENHA
21 O Mundo em Desajuste, de Amin
Maalouf
Jaçanã Ribeiro
24
DOSSIÊ
25 A política externa da
redemocratização - contada por
aqueles que a conceberam
Barbara Boechat de Almeida, Danilo Vilela Bandeira,
Germano Faria Correa, Gustavo Cunha Machala,
Gustavo Guelfi de Freitas, João Guilherme,
Fernandes Maranhão, Paulo Cesar do Valle
42
MEMÓRIA DIPLOMÁTICA
43 Intrusas no lago dos cisnes
70
Memórias de além-túmulo
João Guilherme Fernandes Maranhão
76
O fim da besta hora
Pedro Henrique Gomides
80
Ímpeto de mosca e
Anunciação
João Henrique Bayão
81
100 palavras na aritmétrica
de um impressionista
Artur Andrade da Silva Machado
82
-Ensaio Fotográfico
On the road
Thiago Carvalho de Medeiros
94
ARTIGOS E ENSAIOS
87 Memória de um encontro Norte-Sul
Artur Andrade da Silva Machado
94 O Brasil nas páginas da
Foreign Affairs
Natália Shimada
54 A linha que não alinha
99 O lugar do conceito de
Filipe Nasser
58
Responsabilidade ao Proteger na
evolução da justiça internacional
Os legados da Rio+20
Gustavo Cunha Machala e Jaçanã Ribeiro
62
CULTURA
-Poesia e Prosa
O nomadismo da letra
João Guilherme Fernandes Maranhão,
João Henrique Bayão e Pedro Henrique
Moreira Gomides
62
Artur Andrade da Silva Machado
108 Nossa diplomacia no mundo da teoria
Bárbara Boechat de Almeida e
Artur Andrade da Silva Machado
112 Ordens e medalhas no Itamaraty
Renato Levanteze Sant’Ana
117 As caretas do Barão: charges
sobre o Chanceler entre 1908 e 1912
Luana Alves de Melo
Juca - número 06
Daniel Torres de Melo Ribeiro
5
prolegômeno
resenha
Turma OSCAR NIEMEYER (com as mui sentidas ausências de Artur Machado, João Maranhão,
Pedro Cavalcante e Ramon Arruda) na Embaixada do Brasil em Buenos Aires
Todas as turmas felizes se parecem. Talvez
não fosse possível dizer essa frase há cerca de ano
e meio, quando éramos apenas 26 jovens desconhecidos (uns não tão jovens, outros não tão
desconhecidos) que tínhamos, de cara, apenas
uma coisa em comum: o fato de termos passado
no CACD no mesmo ano. Sim, havíamos lido os
mesmos livros, havíamos resumido os mesmos
textos, havíamos tido aula com os mesmos professores nos longos anos em que estudamos para
passar no concurso. Apesar de tudo isso, podíamos dizer que, além da aprovação no concurso,
compartilhávamos somente mais uma característica: éramos muito diferentes uns dos outros.
No começo, o entrosamento se deu baseado
na erudição conquistada durante a preparação
para o concurso. As conversas eram recheadas
de citações de autores que frequentavam as nossas estantes, de advérbios entre vírgulas, de lampejos de sabedoria que caíam muito bem em
questões discursivas, nem tanto em conversas
informais. O verniz de conhecimento - que no
caso de alguns estava mais pra guache - deixava, invariavelmente, suas marcas nos bate-papos.
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Com o passar do tempo, no entanto, passamos
a falar de assuntos mais normais, de banalidades,
de como Brasília era diferente do Rio Janeiro /
São Paulo / Porto Alegre / Belo Horizonte / Dourados /João Pessoa / Recife / Garça, de quantas
novidades estávamos enfrentando naquele momento. Se a maior parte das pessoas, quando
chegam a um ambiente desconhecido, começam
falando sobre banalidades, sobre o tempo, sobre
cerveja e futebol, para só depois conversarem
de temas mais sérios e profundos e, finalmente,
conhecerem de fato as outras pessoas, nós fizemos exatamente o oposto: começamos falando
sobre temas sérios, difíceis e complexos, mas só
passamos a conhecer verdadeiramente as outras
pessoas quando começamos a falar sobre trivialidades. Porque foi exatamente neste momento
que percebemos que poderíamos ter muito mais
em comum do que havíamos imaginado. Vimos
que, por trás daqueles especialistas em direito internacional, em História do Brasil, em integração
sul-americana, ou simplesmente em citar os autores certos nos momentos corretos, havia pessoas
com histórias, gostos e vontades muito parecidos.
Seria fácil dizer que essa mudança aconteceu de
uma hora para outra. Não há como negar, contudo,
que alguns eventos contribuíram decisivamente
para que isso ocorresse. As três semanas em Buenos
Aires, em janeiro de 2012, foram um desses eventos
marcantes. Ao curso intensivo de língua espanhola,
somaram-se os cursos intensivos de gastronomia,
cultura e, sobretudo, de convivência com os novos
colegas. Dividir “clases”, medialunas, apartamento e
aulas de tango com os que, até pouco tempo antes,
eram apenas adversários no concurso foi uma experiência inesquecível. Foi a primeira viagem oficial
dos novos diplomatas, deixa para aprofundar o conhecimento sobre um país que sempre será nosso
vizinho e sobre pessoas que sempre serão nossos
colegas. Tudo somado, quando se trata de um país
ou de uma pessoa, a regra é praticamente a mesma:
é difícil compreendê-lo sem conhecê-lo por inteiro.
Se a estada em Buenos Aires foi uma excelente
oportunidade para conviver à paisana com os colegas de turma, a viagem ao Rio de Janeiro serviu
para descobrir - pelo menos por alguns dias - não
só como funcionava a vida de um diplomata, mas
também como funcionavam os novos diplomatas
(alimentou, igualmente, a nossa imaginação com
uma questão dolorosa: como seria a vida de diplomata nos anos dourados do Rio de Janeiro, capital
do Brasil?). Viver o ápice de um grande evento internacional como a Rio+20 logo no começo da carreira
foi o batismo da nossa turma. Realizamos uma das
funções fundamentais da diplomacia: representar.
Como diplomatas de ligação, pudemos perceber
que todos os detalhes de logística são importantes para a boa realização do evento. Pequenas engrenagens em um mecanismo gigantesco, vimos
a roda da história passando na nossa frente, como
bem disse um colega, provavelmente entre uma e
outra ligação do famoso - e saudoso? - ponto focal. No final do evento, percebemos que existem
dois tipos de diplomatas: aqueles que trabalham e
aqueles que vão à praia (mas só se for a trabalho).
Aprender na prática – que mais parece lema de
faculdade – foi o que ocorreu na Rio+20. Por outro
lado, aprender com quem já praticou muito foi a
tônica das sessões de Orientação Diplomática. Coordenados por cinco Embaixadores, esses encontros
tinham por objetivo explicar aos jovens diplomatas
tudo aquilo que eles queriam saber, mas não tinham
um Embaixador para perguntar. Detalhes sobre o
Recepção na Embaixada do Qatar em
Brasília
funcionamento da carreira e generosas doses de
“petite histoire” marcaram as aulas – o nome não
era esse, mas o que tivemos foram verdadeiras
aulas de como ser diplomata. Graças à iniciativa
do Embaixador Denis Fontes de Souza Pinto, a
Orientação Diplomática foi conduzida pelos seguintes Embaixadores: Gelson Fonseca Junior,
José Vicente de Sá Pimentel, Georges Lamazière,
Denis Fontes de Souza Pinto e Tovar da Silva Nunes. Segundo o mentor do projeto, “os encontros
de Orientação Diplomática beneficiaram os jovens
diplomatas com ensinamentos de funcionamento da carreira diplomática e auxiliaram os diplomatas graduados a conhecer as novas gerações”.
Mas falar da nossa turma não é só falar dos
eventos, viagens e encontros com Embaixadores. Falar da nossa turma é falar das pessoas que,
por dois semestres, também fizeram parte dela.
Mesmo sem saber disso (agora eles saberão, caso
sobre espaço para enviar a Juca na próxima mala
diplomática), os diplomatas estrangeiros que dividiram conosco as aulas e palestras do Rio Branco
contribuíram para enriquecer ainda mais a nossa
formação. Se tivemos que ensiná-los a jogar futebol e a tomar caipirinha, aprendemos muito sobre
a história e a cultura de seus países. Além disso,
criamos laços com diplomatas que certamente
farão parte de nosso futuro. E arranjamos alguns
lugares diferentes para visitar nas próximas férias.
Foi mais ou menos assim que, de meros desconhecidos com quase nada em comum, passamos a ser diplomatas, colegas, amigos. As experiências compartilhadas nos aproximaram
em muitos sentidos. Conhecemos muitas coisas
novas em um ano e meio como diplomatas. Mas,
principalmente, conhecemos 25 novos amigos
com os quais temos e teremos muito em comum. E chegamos à conclusão de que quem se
parece mesmo são os alunos das turmas felizes.
Alexandre Souto, Luiz Felipe Pereira e
Turma OSCAR NIEMEYER
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perfil
perfil
8
1988, em Guilin,
sul da China
O construtor
de pontes
Alexandre Souto, Danilo Vilela Bandeira,
Gustavo Machala e Pedro Mendonça Cavalcante
Um dia na vida de Antonio de Aguiar Patriota
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perfil
São 11h15 da manhã de segunda-feira
quando o Chanceler Antonio de Aguiar Patriota saúda a equipe da JUCA em seu gabinete
de trabalho no Palácio Itamaraty, em Brasília. Durante a hora que se segue, o Ministro
abandonará os temas que diuturnamente o
preocupam para esboçar o perfil pessoal de
um cosmopolita, cuja vocação para o diálogo
intercultural manifestou-se desde muito cedo,
na esteira da vida nômade exigida pela carreira do pai - também diplomata.
Pouco a pouco, por meio de menções a momentos decisivos em sua vida, a livros, músicas
e filmes que forjaram sua sensibilidade artística,
a personagens marcantes em sua trajetória e a
aspectos da vida cotidiana, emerge a figura de
um diplomata de sólida formação humanista,
comprometido em absorver os elementos mais
positivos que cada cultura tem a lhe oferecer.
Nas páginas que seguem, o leitor da JUCA
terá a oportunidade de conhecer melhor a formação intelectual, a vida pessoal e o dia a dia
de um dos expoentes da tradição pacifista e
conciliadora da diplomacia brasileira.
Como é um dia normal em sua vida?
Na medida em que existem dias normais, o
dia começa cedo para mim, porque eu recebo
por email uma primeira filtragem da imprensa
nacional e internacional por volta das 7h. Às
vezes peço alguma providência, alguma nota
à imprensa ou algum procedimento em relação a algum brasileiro que esteja em situação
de emergência. Quando chego ao Itamaraty,
às 9h, geralmente tenho uma reunião rápida,
que envolve a chefe de gabinete, o assessor
de imprensa e o Ministro Haroldo Ribeiro, um
assessor polivalente. Aí examinamos a agenda
do dia, a imprensa nacional e internacional, os
compromissos, enfim, fazemos uma espécie de
reunião de gabinete ágil. Procuro me atualizar e
programar o imediato. Frequentemente recebo
visitantes estrangeiros, colegas de Ministérios,
parlamentares e representantes do setor privado e da sociedade civil. Tento também reservar
10
tempo para a leitura, pois há uma quantidade
enorme de material para ser lido. Tenho de reservar tempo para despachar com o SecretárioGeral. Também despacho com meus assessores
material relacionado a visitas presidenciais ao
exterior, a visitas de dignitários estrangeiros ao
Brasil e à preparação para conversas com meus
interlocutores. Enfim, isso é mais ou menos o
que pode haver de rotina, sempre lembrando
que há um número muito grande de viagens e
que, portanto, a rotina é variada, não há uma
grande previsibilidade. Isso sem falar nos compromissos sociais, almoços, jantares... Também
tento reservar um pouco de tempo para a
saúde física e mental. Procuro fazer exercícios
físicos três vezes por semana, sem esquecer a
música, o cinema.
O senhor tem uma estimativa de
quanto tempo passa no Brasil e no
exterior?
Segundo estatísticas preparadas pela Secretaria de Planejamento Diplomático, passo
mais ou menos 40% do tempo no exterior.
No Brasil, além de Brasília, incluem-se viagens
para outras cidades, principalmente São Paulo
e Rio de Janeiro. Em 2011, por exemplo, tivemos uma reunião do BASIC, em Inhotim, e da
Organização do Tratado de Cooperação Amazônica, em Manaus. Em 2012, passei mais tempo no Brasil do que em 2011, e uma das razões
foi a Rio+20. A Conferência exigiu uma permanência maior, sobretudo nos meses que a
antecederam, pois o mundo veio ao Brasil, de
certa maneira. Embora eu tenha ficado mais
tempo no Brasil, o número de chanceleres que
visitou o Brasil foi maior do que em 2011: até
setembro, recebemos o mesmo número de
chanceleres que no ano anterior inteiro.
Há alguma razão específica para que
tenha havido mais visitas em 2012?
Isso vem acontecendo em um crescendo, em
função da mudança do perfil internacional do
Brasil, do interesse pela interlocução com o Brasil.
Sad-Eyed Lady of the Lowlands
Canção épica, consta
do álbum “Blonde on
Blonde”, de 1966, geralmente tido como
o ponto máximo da
carreira de Dylan.
Com 11 minutos e
22 segundos, ocupou o lado quatro inteiro do
disco duplo quando do lançamento. A letra
estrutura-se na forma de uma série de descrições insólitas de qualidades atribuídas à “moça
de olhos tristes das terras baixas” (“with your
mercury mouth/ in the missionary times”),
coroadas por perguntas retóricas que, naturalmente, nunca são respondidas. Dez anos
mais tarde, na canção “Sara”, Dylan explicaria
a quem “Sad-Eyed Lady” se destinara: “Staying
up for days, in the Chelsea Hotel/Writing SadEyed Lady of the Lowlands for you”.
O mundo é um moinho
Provavelmente a mais
soturna das canções
de Cartola, abre o
segundo álbum do
sambista, de 1976. Especula-se que o fundador da Mangueira
tenha escrito “O mundo é um moinho” como um alerta a sua enteada, que, à época, estaria encaminhando-se
para a prostituição. Cazuza e Ney Matogrosso
produziram versões célebres da canção, que
sentenciava, lúgubre: “Ouça-me bem, amor/
Preste atenção, o mundo é um moinho/ Vai
triturar teus sonhos, tão mesquinho/Vai reduzir as ilusões a pó”.
Alguns colegas de nossa turma
encontraram o senhor no show do Bob
Dylan, aqui em Brasília. Ele tem algum
significado especial para o Senhor?
É verdade. Eu estava lá no show. Música em
geral tem um significado especial para mim.
Meu interesse vem desde muito jovem, tendo
estudado piano clássico desde os 6, 7 anos.
Gosto de todos os tipos de música: desde música clássica ocidental, passando por música
indiana, que ouço com frequência, até música
popular, samba, MPB, jazz, rock. Ouço também
música africana, música cubana, latina em geral. Há uma riqueza enorme. Quanto ao Bob
Dylan, trata-se de um grande compositor. Foi
a poesia da minha juventude, junto com Chico
Buarque, Caetano, Gil, John Lennon. Também
gosto muito de Cartola. Gosto de tocá-lo ao
piano. Acho uma combinação especialmente
feliz de melodia e letra.
O senhor poderia mencionar alguma
música do Bob Dylan e do Cartola em
particular?
Do Dylan há várias, em suas diferentes encarnações: a veia mais lírica, a veia mais política. Talvez uma das obras-primas do Dylan seja
“Sad-Eyed Lady of the Lowlands”. Das músicas com conteúdo político, “Masters of War”.
Do Cartola, “O mundo é um moinho”, “As rosas
não falam”.
O senhor ganha muita música de
presente das chancelarias?
O Ministro do Comércio indiano, Anand
Sharma, me deu recentemente quatro CDs
excelentes de música indiana, desde cítara até
flauta.
A vida pessoal é uma das partes
difíceis da vida diplomática, como
foi isso para o senhor, que é filho de
diplomata? Como foi sua decisão de
entrar para a carreira?
A vida diplomática oferece uma oportunidade interessante de viajar e conhecer pesso-
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perfil
as. No meu caso, fiz muitos amigos. Valorizo
as amizades antigas e recentes. A escolha de
uma carreira tem de ser uma decisão muito
pessoal. Por mais que existam experiências
positivas na sua família, você tem de se encontrar com sua própria vocação. Acho que
foi um bom caminho para mim, pois a carreira diplomática me trouxe realização profissional e pessoal. A relação com minha mulher
e meus filhos é muito importante. Converso
muito com meus filhos para entender a nova
geração. Entender a geração que me antecedeu é mais fácil; comunicar-me com minha
própria geração não exige esforço; já entender os mais jovens exige um movimento da
minha parte, exige um movimento do adulto.
No meu caso, faço isso com prazer, é uma interação enriquecedora, que me ajuda a ficar
atento a certos fenômenos que não saberia
interpretar de outra forma. Claro que o círculo se completa quando sentimos que os mais
jovens nos ouvem e apreciam a interação.
Como é o relacionamento com sua
esposa?
Acredito que a realização profissional de
marido e mulher é chave para um casamento
feliz. Na fase atual de vida em que nos encontramos, em que os filhos já cresceram e em
que há facilidade de comunicação e de mobilidade, morar em cidades diferentes é cada
vez mais frequente. No caso de funcionários
da ONU, por exemplo, isso é muito comum.
Há dificuldades, momentos de angústia. Tania estava no Haiti durante o terremoto, em
2010, por exemplo, e, até conseguir falar com
ela, você pode imaginar como fiquei. Hoje,
ela chefia, em Bogotá, o escritório do Fundo
de População das Nações Unidas. O respeito
e a amizade, além do amor, obviamente, ajudam a manter a união na distância. No nosso
caso, os reencontros são bastante frequentes. Acabamos de festejar, em Istambul, 33
anos de casados.
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Imagino que o senhor tenha tido uma
vida diplomática muito antes de ser
diplomata. Nós tivemos dificuldades
de encontrar os lugares em que o
senhor morou durante a sua infância
e sua adolescência. O senhor poderia
mencionar alguns?
Nasci no Rio de Janeiro e, com dois anos, fui
para Genebra, onde frequentei o jardim de infância, aprendi a falar francês. Com cinco anos,
meu pai foi para o Consulado em São Francisco, Califórnia, onde fui alfabetizado. Morei
também em El Salvador, onde estudei na Escola Americana, mas metade do dia estudava
em espanhol. Falei inglês, francês e espanhol
desde criança. Depois, passei um período relativamente longo no Rio de Janeiro (196167). Na adolescência, morei em Nova Iorque,
estudei em uma escola pública americana e
também na escola das Nações Unidas. Foi lá
que despertei para a vida internacional. Cada
professor era de uma nacionalidade. Depois
voltei a morar em Genebra e acabei fazendo
universidade lá, antes de prestar o concurso
para o Instituto Rio Branco.
Foi difícil passar no concurso?
Bom, o concurso é difícil para todo mundo. Decidi dedicar um ano de preparação e
passei na primeira tentativa. Para mim, foi um
período feliz e espero que seja para a turma
de vocês também. O Rio Branco foi um período em que descobri um outro Brasil. Como
eu só tinha morado no Rio, foi no Rio Branco
que conheci colegas de várias procedências,
embora o Itamaraty daquela época refletisse
menos a diversidade brasileira do que hoje
em dia.
Essa turma mantém contato?
Costumávamos ter encontros anuais, mas
depois as agendas foram ficando mais dificilmente conciliáveis.
Ministro Antonio de Aguiar Patriota com familiares (sua esposa, Tania, acima à esquerda,
seus dois filhos, Miguel e Thomas, acima à direita, sua mãe no centro à esquerda e seus
pais no centro à direita) e com a Presidenta Dilma Rousseff em visita à Nigéria e durante
formatura dos alunos da Turma 2010-2012 do Instituto Rio Branco
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perfil
O senhor poderia mencionar algum
colega?
Claro. Entre os subsecretários, há o Embaixador Paulo Cordeiro. Até pouco tempo atrás,
o Embaixador Gradilone, que foi para a Nova
Zelândia. No exterior, há a Lígia Scherer, Embaixadora em Moçambique. Começamos a
trabalhar na mesma divisão, sentados um do
lado do outro. A Ana Cabral, que é Embaixadora em Angola, conheço há mais tempo, pois
estudei para o concurso com ela e com outro
colega que está agora na Tunísia, Luiz Eduardo Maya Ferreira. Talvez o mais simples seja
citar todos: Carlos Alberto Ribeiro Reis, Carlos
Roberto Bevilaqua Penna, Carmelito de Melo,
Henrique Luiz Jenné, Henrique Sardinha, Hermano Telles Ribeiro, João Inácio Oswald Padilha, Marcos Vinicius Pinta Gama, Mariane
Bravo Leite, Paulo César de Camargo e Silvana
Peixoto Dunley. Lembro que colegas muito
queridos já faleceram.
E esse interesse especial do senhor
pela China? De onde vem? Qual foi o
contexto?
Pois é, o meu interesse pela China tem uma
origem bem específica. Aos dezoito anos, li um
livro chamado “Estrela Vermelha sobre a China”, de um jornalista americano que acompanhou toda a Longa Marcha de Mao Zedong e
foi enterrado com honras de herói em Pequim:
Edgar Snow. Li o livro com um enorme mapa
da China na minha frente e fui descobrindo
que já se aprende um pouquinho de chinês
com a geografia. Esse mapa era de um Atlas da
National Geographic que meus pais me deram
por essa época, ao descobrirem que eu adorava mapas. Para dar um exemplo de como é
possível aprender chinês com a geografia: Beijing é capital do norte; Nanjing, do sul. Bei é
norte; Nan, sul. Xian, onde está o Exército de
Terracota, quer dizer a paz do ocidente. An é
paz; Xi, ocidente. Tóquio para os chineses é
Dongjing, que quer dizer capital do oriente.
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Red Star Over China
Primeiro relato sobre Mao Zedong e
a Grande Marcha a
alcançar o Ocidente,
já em 1937, Red Star
Over China é uma
longa reportagem
escrita pelo jornalista norte-americano Edgar Snow, que acompanhou pessoalmente o avanço do Exército
Vermelho ao longo da década de 1930 e,
entrementes, realizou entrevistas pioneiras
com o líder da Revolução. Em uma época
na qual o desconhecimento sobre a China
era absoluto, Snow contribuiu para produzir
uma imagem positiva dos guerrilheiros maoistas, daí em diante vistos como integrantes
de um movimento progressista, combatente
do fascismo. Anos mais tarde, o próprio Mao,
ao analisar o impacto que a obra tivera sobre
a opinião pública ocidental, afirmaria: “Seu
mérito é comparável ao do [imperador] Yu ao
controlar as enchentes”.
Esse interesse do senhor vem de
antes de a China ficar na moda...
Não sei quando a China ficou na moda. Mas
a China sempre foi um país de grande relevância internacional, em função de seu território,
população, história, cultura. A experiência da
leitura desse livro trouxe para mim, em primeiro lugar, a dimensão da transformação histórica de grande impacto que foi a Revolução
Chinesa, a Longa Marcha como um símbolo
desse momento. Mas trouxe também um sentimento de proximidade, que facilitou minha
adaptação quando lá morei entre 1987 e 1988.
Na verdade, quando há interesse é possível
sentir-se próximo de qualquer cultura.
O senhor já tinha estudado
mandarim antes desse período?
Comecei a estudar um pouco em Genebra.
Em Pequim, tinha aula duas vezes por semana.
Como eu tinha filhos pequenos e a babá deles
só falava chinês, isso nos obrigava a aprender
em casa, no dia a dia também. Até hoje me lembro muito bem como se fala “tomar banho” e “ir
para o quarto dormir”. Há palavras que os meus
filhos até hoje usam em chinês, como xigua,
que é melancia.
O senhor tem aulas particulares de
chinês?
Costumava ter, mas o professor Wang deixou o Brasil e o tempo ficou curto. Ele não só
me deu aula de mandarim, como me ajudou
com a terminologia diplomática. Meu vocabulário é mais de uso doméstico. Para além disso, o Wang representou também uma janela
aberta para as novas gerações de chineses,
que viajam e usam a internet.
O senhor utiliza o chinês quando vai
à China? Isso abre um pouco mais as
portas?
Acho que sim. Sou partidário de se fazer
sempre um esforço para aprender as línguas
locais. Das seis línguas oficiais das Nações Unidas, podemos dizer que o diplomata brasileiro
costuma conhecer bem o inglês, o francês e o
espanhol. Mas não há muitos que falam árabe,
russo ou mandarim. Estamos fazendo um esforço concentrado para aumentar nossa capacidade. Mas, independentemente do número
de pessoas que falam a língua, aprender a língua local é uma manifestação de interesse e
de respeito. A população local sempre aprecia.
Quer ver um dado interessante? Quando eu era
jovem diplomata, não eram muitos os Embaixadores estrangeiros que falavam português
em Brasília. Hoje em dia, é raro o Embaixador
estrangeiro em Brasília que não fale português.
Mas houve, sim, uma situação curiosa, em que
pude usar o mandarim em uma visita à China.
Estava com o Ministro Celso Amorim em Pequim, em um carro, e o ar condicionado estava
muito frio. O motorista só falava chinês. E eu
consegui dizer “o ar condicionado está muito
frio” (leng feng ji tai leng). E o motorista aumentou a temperatura. Foi divertido ver o ar de surpresa do meu ex-chefe!
Nós falamos de música, mas pulamos
cinema e livros, que talvez sejam
pontos de interesse do senhor...
Nosso trabalho exige muita leitura, produção de textos e oratória. Ler é útil profissionalmente e indispensável para o desenvolvimento
intelectual do indivíduo. Sempre gostei muito
de ler. Ultimamente, o tempo que posso reservar para literaturas “extracurriculares” é limitado. Recentemente, tenho lido bastante o autor
franco-libanês Amin Maalouf. Além de seu livro
sobre política externa, “O mundo em desajuste”, há o romance “Samarkand”, sobre a vida do
poeta persa Omar Kayyám. Retrata o ambiente
cultural de um mundo interligado, desde o Irã
até o Uzbequistão, passando pelo Afeganistão,
pelo norte da Índia e pelo Paquistão, durante o
Séc. XII. É fascinante, além da excelente qualidade literária.
O Mundo em Desajuste
Obra de 2009
do escritor franco-libanês Amin
Maalouf, membro da Academia
Francesa
de Letras desde
2011, argumenta que as crises
econômica, ambiental e política que fustigam
o planeta têm por origem um desarranjo
mais profundo, relativo ao esgotamento
do sistema de valores sobre o qual o ocidente e o mundo árabe-muçulmano se
sustenta. Particularmente interessado na
situação do mundo árabe, Maalouf elabora sobre a importância da compreensão
mútua e do diálogo entre as diferentes
culturas. Para uma resenha completa da
obra, ver página 20.
15
perfil
Ministro Antonio de Aguiar Patriota com os Chanceleres de Colômbia, Peru,
Uruguai, Argentina, Venezuela, Guiana, União Europeia, Estados Unidos, Angola e
representantes do BASIC
16
O senhor poderia falar sobre alguma
leitura que marcou a sua adolescência
ou juventude?
“Cem anos de solidão” é um clássico que
marcou muito a minha geração. A literatura
latino-americana é muito rica.
Algum brasileiro em particular?
Desde criança, li muito Monteiro Lobato.
Gosto dos escritores nordestinos: João Cabral
de Melo Neto, Graciliano Ramos, José Lins do
Rego, Jorge Amado.
E o cinema?
Às vezes, sinto falta de oportunidades para
ver filmes de diferentes nacionalidades. Acho
que vocês terão ouvido falar do filme iraniano
“Separação”, que ganhou o Oscar de melhor
filme estrangeiro. Achei fascinante. Tento assistir
filmes fora do circuito habitual. No fundo, ir ao
cinema é mais fácil quando eu estou em Brasília.
Outro filme que vi recentemente chama-se “Melancolia”, de Lars Von Trier. Achei impactante.
Quanto aos brasileiros, há filmes excelentes. Central do Brasil, de Walter Salles. Cidade
de Deus, de Fernando Meirelles.
Melancolia
Obra mais recente do excêntrico cineasta dinamarquês Lars Von Trier, propõe uma
fusão extrema entre o estado de espírito de seus personagens e o mundo exterior.
Na noite de seu casamento, a depressiva Justine esforça-se para parecer satisfeita
e não arruinar a suntuosa festa organizada por sua irmã, a bem-resolvida Claire. À
medida que um gigantesco planeta azul batizado de “Melancolia” avizinha-se da
Terra, entretanto, os papéis invertem-se, e a iminência do desastre torna tênue a
fronteira entre sanidade e loucura.
Central do Brasil
Filme de Walter Salles, com roteiro de Marcos Bernstein e João Emanuel Carneiro. Retrata a história da professora aposentada, Dora, interpretada por Fernanda
Montenegro, e Josué, interpretado por Vinícius de Oliveira, um garoto que fica
órfão de mãe aos oito anos e que sonha em conhecer o pai. Dora ganhava a vida
escrevendo cartas para pessoas analfabetas na estação Central do Brasil, Rio de
Janeiro, onde conhece Josué e de onde partirá em uma aventura pelo sertão
da Bahia e de Pernambuco para realizar o sonho do novo amigo. O filme retrata
ainda a realidade brasileira dos subúrbios de uma cidade grande no final do Séc.
XX, bem como a situação da diáspora nordestina pelo Brasil e o problema da
desigualdade social.
A separação
Filme iraniano vencedor do Oscar e do Globo de Ouro em 2012, retrata as tensões conjugais e sociais derivadas de um divórcio litigioso em uma sociedade
na qual a tradição continua a ocupar papel central. Rompendo o estereótipo
atribuído aos filmes iranianos - que tradicionalmente são venerados pela crítica
especializada, mas tidos como “chatos” pelo espectador comum - “A Separação”
obteve expressivos resultados de bilheteria ao redor do mundo.
17
perfil
Um conto chinês
Filme argentino dirigido por Sebastián
Borenzstei e estrelado pelo onipresente
Ricardo Darín, relata
a história do encontro, em Buenos Aires, entre Roberto,
um veterano da Guerra das Malvinas, e Jun,
um chinês que está na cidade à procura de
seu único familiar vivo. A relação entre os
dois homens fará que Roberto abandone a
clausura em que se tem mantido pelos últimos vinte anos e volte à vida.
Todos se internacionalizando agora.
Muitos se internacionalizando. E quem sabe
uma menção especial ao cinema argentino, que
produziu grandes obras. “Un cuento Chino”, por
exemplo, não sei se vocês viram, um filme de
que a Presidenta Dilma Rousseff gostou muito.
O senhor mantém contato sobre
temas profissionais com seu pai, que
também foi diplomata?
Os meus pais são, antes de mais nada, duas
pessoas vitoriosas pelo vigor que têm, dada a
idade muito avançada. Meu pai tem 96 anos;
minha mãe tem 89.
Meus conselheiros são o Secretário-Geral,
os Subsecretários, os meus assessores, os Embaixadores no exterior, que estão acompanhando a agenda diária. A relação com meus
pais é de natureza afetiva. Temas internacionais podem surgir a partir de uma conversa
descompromissada e livre.
Há alguma figura de diplomata que
inspirou o senhor?
Olha, há duas figuras especiais, eu diria.
Uma delas é o Ministro Celso Amorim, com
quem trabalhei muitos anos, desde Conselheiro, na Missão junto às Nações Unidas em
18
1995, onde foi o Representante Permanente.
Trabalhei estreitamente com ele em vários
temas, inclusive em um projeto que marcou
muito a todos de que dele participaram, os
chamados “painéis” sobre o Iraque no Conselho de Segurança, em 1999. Dois outros colegas também participaram daquele trabalho, a
Ministra Gisela Padovan e o Ministro Leonardo
Gorgulho. Ela está em Washington, e ele hoje
de volta à missão junto à ONU. Ficamos alguns
meses, praticamente o dia inteiro, incluindo
sábado e domingo, dedicados a trabalhar e re-
Painéis do Iraque
Série de painéis
estabelecidos pelo
Conselho de Segurança em 1999,
sob a presidência
rotativa do Brasil
e a coordenação do então representante
permanente Embaixador Celso Amorim.
No contexto do acirramento das tensões entre o Iraque de Saddam Hussein
e os Estados Unidos, a meta dos painéis
era avaliar, de forma objetiva, a situação
humanitária, a evolução do processo de
desarmamento e as condições dos prisioneiros em território iraquiano. Após dois
meses de debates, o painel sobre desarmamento concluiu que a maior parte do
trabalho das inspeções fora realizada e
que seria possível passar para a fase de
monitoramento contínuo. Embora exitosos em seus propósitos, os painéis não foram capazes de evitar a escala beligerante
que se seguiu à eleição de George W. Bush
e ao 11 de setembro – com consequências conhecidas.
digir os relatórios. Normalmente o Secretariado é que faz esse trabalho. Tive muito contato
com o Sérgio Vieira de Melo, que na época era
o Subsecretário-Geral da ONU para Assuntos
Humanitários. Foi uma experiência profissional realmente interessante. Mas antes dele,
um chefe que marcou muito a todos que trabalharam com ele foi o Paulo Nogueira Batista. Foi meu chefe na delegação permanente
em Genebra, de 1983 a 1987.
O Paulo Nogueira Batista teve
seu perfil feito na Juca 4. Eles
conversaram com a viúva dele...
Elmira Nogueira Batista, uma grande senhora. Olha, se perguntar aos Embaixadores
Antonio Simões, Paulo Cordeiro, Hadil Rocha
Vianna (todos trabalhávamos com ele nessa
época), verá que nos marcou muito aquela
experiência. Às vezes ficávamos exaustos, mas
era um trabalho gratificante e aprendemos
muito. Sobretudo aprendemos. Por exemplo,
conforme conversei outro dia com um colega
que estava escrevendo uma tese sobre “o bom
negociador diplomático”, o Embaixador Paulo
Nogueira Batista não ia para uma reunião no
GATT ou na ONU sem ter lido os documentos
antes. Ele não era daquele tipo que diz: “Resume aí o que tem nesse papel”. Ele estudava, era
aplicado. Estabeleceu um padrão profissional
elevado, que me influenciou muito. Agora,
tive outros chefes, de quem fiquei amigo a
vida inteira, o Embaixador Henrique Valle, que
foi meu primeiro chefe na Divisão das Nações
Unidas; a Embaixadora Vera Pedrosa, que foi
minha chefe quando trabalhei na assessoria
internacional no Planalto, na época do Presidente Itamar Franco.
O senhor foi o primeiro de sua turma
no Rio Branco. Até que ponto isso
influiu em sua carreira?
A classificação do Rio Branco é baseada em
critérios objetivos, e, obviamente, ninguém
será prejudicado por estar entre os primeiros
Paulo Nogueira Batista
Embaixador que formou uma geração de
diplomatas, notabilizou-se pela tenacidade incomum que dedicava aos temas de
que se ocupava – e pelo comprometimento
que exigia, com alguma severidade, de seus
subordinados. Entre outras proezas, negociou o acordo nuclear com a Alemanha, na
década de 1970, performance que lhe granjeou o cargo de diretor da Nuclebras, nomeado pelo então Presidente Ernesto Geisel.
Mais tarde, foi representante permanente
em Genebra, à época das negociações que
culminaram na criação da OMC. Sua posição
era, por vezes, tão assertiva que a imprensa internacional elegeu-o o “maior inimigo
da Rodada Uruguai”. Morreu em 1994, aos
64 anos. Para um perfil completo de Paulo
Nogueira Batista, ver JUCA 4, disponível no
sítio do MRE.
colocados. Mas a avaliação do Instituto Rio
Branco baseia-se sobretudo no desempenho
acadêmico do diplomata, e a diplomacia é
uma carreira que envolve a personalidade
em seu conjunto: a capacidade de iniciativa,
a atitude, a capacidade de relacionamento, de
lidar com situações de tensão e imprevistos,
de usar a criatividade para conseguir resolver
problemas. Essas outras capacidades não são
tão facilmente aferíveis por uma nota no Instituto Rio Branco. E o que quero dizer com isso
é que os diplomatas que passam no concurso,
que é muito exigente, terão sempre oportunidades de se sobressair. Dou muito valor, sem
dúvida, ao desempenho acadêmico, mas também dou valor à atitude, à imaginação, à disposição de enfrentar desafios.
19
resenha
resenha
O Mundo em
Desajuste, de
Amin Maalouf
Jaçanã Ribeiro
É preciso dar-se conta da especificidade de nosso tempo:
estamos diante de uma grande oportunidade de reajustar
o mundo como condição de nossa sobrevivência
20
F. de la Mure / MAEE
Amin Maalouf ocupa hoje, na Academia
Francesa, a cadeira antes ocupada por LéviStrauss. Nascido no Líbano, esse escritor francófono passeia com maestria entre a literatura, o jornalismo e o ensaio político. Ao menos
é assim que considero O Mundo em Desajuste: um ensaio político lúcido que instiga à
ação, um livro forte cuja mensagem adquire a
qualidade de exemplo prático com sua escrita e publicação. Já em suas palavras iniciais, o
Maalouf romancista evoca duas belas metáforas para fazer o diagnóstico de nossa condição
atual. De acordo com a primeira, “entramos no
século sem bússola”, e nossos companheiros
de viagem devem se dar conta de que o navio
está à deriva e o tempo não é nosso aliado –
ele é, antes, nosso juiz. Para Maalouf, chegamos ao limiar de nossa incompetência moral,
o que é notório, dada a multiplicação de desajustes (econômico, financeiro, ambiental,
moral) que nos desafiam. Assim, um pouco
analogamente àquele antigo filósofo que saía
com uma vela acesa em pleno dia, Maalouf
pretende nos servir de guia, munido de uma
lâmpada, através de um jardim destruído por
uma tempestade – eis a segunda metáfora,
no momento exato em que uma tempestade ainda mais destruidora, mais violenta, se
anuncia. Nem só jornalista, nem só romancis-
ta, nem tão somente jardineiro, paisagista ou
filósofo, mas sim tudo isso mesclado em uma
prosa límpida e cativante, Maalouf inicia seu
livro com um questionamento: como reagir à
regressão que nos ameaça?
O livro está dividido em três partes. A parte
inicial, “As vitórias enganadoras”, apresenta o
final da Guerra Fria como um acontecimento
enganador. Segundo a visão do autor, a vitória
estratégica do ocidente acelerou seu declínio,
conjurado pelo fim do debate político, substituído pela explosão das divisões identitárias.
Essa é uma das ideias mais fortes do ensaio.
A saída da Guerra Fria representou menos
universalismo, menos racionalidade, menos
laicidade, menos debate. Houve uma “deriva
do ideológico ao identitário” que continua a
bloquear uma conscientização política mais
abrangente em nível mundial. Uma das consequências mais graves dessa deriva talvez seja
a existência de duas “interpretações da história”, ambas internamente justificadas, porém
incomunicáveis, que dividem, de um lado,
aqueles que denunciam a “barbárie do mundo muçulmano, impermeável à democracia”,
e, de outro, aqueles que denunciam o “cinismo do ocidente”, do qual a instalação premeditada do comunitarismo no Iraque, realizada
por meio de ocupação errática e desastrosa,
seria o exemplo mais eloquente. Para Maalouf,
trata-se do retrato de duas civilizações moralmente falidas: uns não tem nenhuma moral,
outros a perdem a cada dia.
A segunda parte do livro, “As legitimidades
perdidas”, apresenta um longo desenvolvimento sobre o processo de perda de legitimidade que afeta os países árabes. A figura
central desse desenvolvimento é, sem dúvida, Abdel Gamal Nasser. Maalouf retraça toda
a trajetória desse líder que conquistou ao
que chama de “legitimidade patriótica”, inicialmente no Egito e, mais tarde, na grande
maioria dos países árabes. Nasser será o mo-
21
resenha
delo de muitos outros depois dele, como Saddan Hussein, Gadaffi, todos tendo fracassado em representar para o povo árabe aquilo
que Nasser representou no pós-guerra de
1948 e na nacionalização do Canal de Suez,
em 1956: “com Nasser, os árabes tinham o
sentimento de ter reencontrado sua dignidade e de poder caminhar novamente entre
as nações com a cabeça erguida”. Entretanto, Maalouf não poupa do retrato de Nasser
o fato de ter sido vítima de sua própria retórica: “patriota dedicado, íntegro, inteligente e carismático, porém sem grande cultura
histórica ou moral”, foi quem mais contribuiu
para o fim do nasserismo. Um capítulo inteiro
trata somente da Guerra dos Seis dias, que,
segundo Maalouf, constitui a tragédia de referência que afeta a percepção que os árabes
têm do mundo e que pesa sobre seus comportamentos. Os árabes “tem o sentimento
de que tudo o que constitui sua identidade
é desprezado e odiado pelo resto do mundo”.
Esse duplo ódio, do mundo e de si mesmos,
aliado à falta de legitimidade que se sucede à
queda de Nasser, abre espaço à radicalização
dos movimentos islâmicos, cujas teses saem
fortalecidas pela ideia de que um chefe de
estado árabe não consegue enfrentar o ocidente. Maalouf diagnostica a emergência de
dois universos políticos paralelos, que hoje,
nos desdobramentos da Primavera Árabe,
ainda disputam legitimidade: aquele dos que
governam sem o povo, como o exemplo de
Sadate, cuja legitimidade é de jure, mas não
de facto, e o dos que estão com o povo, mas
não podem governar por não terem legitimidade de jure. A eleição do Hamas, em 2007,
embaralhou novamente as cartas. Seria interessante ouvir a opinião do autor sobre o
Egito, o Bareine e o Iêmen de hoje.
Na terceira e última parte do livro, “Certezas imaginárias”, Maalouf lança uma série
de ideias inovadoras, fortes e cheias de es-
22
Esse “epicurista fervoroso”
não perde a oportunidade de
discorrer longamente sobre
o prazer do conhecimento
e sobre a importância da
cultura na sobrevivência
dos homens. O século XXI
será salvo pela cultura, ou
perecerá
perança. Esse “epicurista fervoroso” não perde a oportunidade de discorrer longamente
sobre o prazer do conhecimento e sobre a
importância da cultura na sobrevivência dos
homens. O século XXI será salvo pela cultura,
ou perecerá. Diz o livro sagrado do Islã que
“os sábios são herdeiros dos profetas”, e insta:
“estude, do berço à tumba”. O conhecimento é assim a chave para compreender que as
ideologias passam, mas as religiões permanecem, pois o homem tem necessidades metafísicas tão essenciais quanto as materiais.
Ele também é a chave para compreender
que, no islã, o que ocorre é um sufocamento
do religioso pelo político – vitória dos sultãos
sobre os califas, contrariamente ao que se
passou no ocidente. O religioso se espalhou
no corpo social por causa desse sufocamento, escreve Maalouf. Daí uma das ideias mais
fortes do livro, a de que a ausência de uma
autoridade eclesiástica centralizadora e reconhecida como legítima favorece a expansão
de radicalismos: “a ausência de uma instituição ‘papal’ capaz de traçar a fronteira entre o
político e o religioso é o que explica, ao meu
ver, a deriva que afeta o mundo muçulmano”. O clérigo papal teria, na visão do autor,
o papel de sustentar a atividade de registro
de progresso a cada etapa da evolução dos
costumes, o que não ocorre no islã. Maalouf
é cristão confesso e escreve claramente que
não é especialista na religião islâmica.
Ainda nessa chave, o conhecimento teria um papel importante na desmistificação
da ideia de choque de civilizações. Parte-se
de um diagnóstico clínico correto: depois da
queda do Muro, as sociedades reagem aos
eventos políticos em função de seu pertencimento religioso. Maalouf vaticina que o erro
é partir do presente para construir uma teoria geral da História. As civilizações são compostas, móveis, permeáveis. Além disso - uma
ideia mais ousada - é chegado o momento de
transcender todas as civilizações, criando uma
civilização comum fundada em dois princípios
intangíveis e inseparáveis, que são a universalidade dos valores essenciais e a diversidade
das expressões culturais. Nesse contexto, o
autor dedica boa parte de sua reflexão para
pensar a figura do migrante, exemplo máximo
de duplicidade cultural, corrente de transmissão de valores e percepções, vetor de modernização, progresso social, liberação intelectual
nas sociedades de origem. É preciso, segundo
Maalouf, ver o emigrante dentro do imigrante,
ver sua duplicidade como algo unitário, ideia
que tem no Ministro Patriota - amigo pessoal
do autor - um grande entusiasta. O papel do
migrante seria de fundamental importância
se se pudesse transformá-los em ‘discípulos da
experiência europeia”, associando-os à comunidade plenamente, aceitando o fato de que
uma pessoa pode ser dupla, convidando a ser,
“entre sua cultura e a nossa, o intermediário
insubstituível”. Por essa razão o autor aposta
no papel edificante culturalmente que as diásporas vem exercendo e que deveriam exercer
com maior força nas comunidades em que se
encontram, aquele de criar laços de conhecimento mútuo que possam ser comunicados
aos suas comunidades de origem.
Essa é uma das apostas de Maalouf, dentre
outras tantas. Uma das mais interessantes, ao
mesmo tempo sóbria e cativante, é aquela relativa ao aquecimento climático, que Maalouf
toma emprestado de Pascal. Aposte que ele
exista, pois se ele não existir, não terá perdido
nada. Porém, caso ele exista, e você apostou
o contrário, as consequências podem ser catastróficas.
O livro fecha com outras apostas. A eleição
de Barack Obama é uma delas. Passado seu
primeiro mandato, Obama já foi reeleito, e os
efeitos de um “Novo Começo” ainda alimentam esperanças. Outra fonte de esperança de
Maalouf é a União Europeia, ao tempo de escrita do livro menos incerta de seus rumos e
tormentosa do que se encontra agora. Enfim,
seria preciso rever o próprio Prefácio escrito
depois do início da Primavera Árabe, eivado
de nova esperança que ainda espera ver resultados concretos nos desenvolvimentos da
Tunísia, Líbia, Egito.
Maalouf escreveu seu diagnóstico do mundo antes de começarem os protestos no mundo árabe. Hoje, quando se comemoram dois
anos de Primavera Árabe, a situação no Egito,
na Tunísia, no Iêmen, no Bareine e no Iraque
só demonstra a atualidade de seu pensamento e de seu alerta. Talvez o mundo nunca tenha sido ajustado, mas hoje seus desafios nos
demandam ações cada vez mais concertadas
e efetivas. O que incomoda Maalouf, ainda
agora, é a urgência. O desajuste, ou melhor, os
desajustes que denuncia nesse livro são, para
ele, fonte de uma regressão destruidora que
se anuncia, capaz de desorientar qualquer parâmetro de convivialidade internacional hoje
ainda de pé. É preciso agir agora, mesmo que
os caminhos apontados não pareçam os mais
fáceis. Maalouf convida-nos para um desafio
planetário, para o qual a concorrência de todas
as nações é de suma importância. Afinal, como
ele mesmo escreve, “não há mais estrangeiros
nesse século, só ‘companheiros de viagem’”.
MAALOUF, Amin. O Mundo em Desajuste: Quando
nossas civilizações se esgotam. Difel: São Paulo, 2011.
23
dossiê
dossiê
24
A política externa da
redemocratização contada por aqueles que
a conceberam
Nas páginas que seguem, o leitor da JUCA terá a oportunidade única de
acompanhar a evolução de vinte e cinco anos de nossa política externa
por meio de relatos pessoais dos homens responsáveis por pensá-la.
Sabe-se que não foram poucos os desafios a serem pensados nesse
período atribulado de nossa inserção internacional: novas concepções
nas áreas de integração regional, direitos humanos, meio ambiente,
desarmamento e comércio internacional, entre outras, demandaram
decisões arrojadas de toda uma geração de formuladores de política
externa. No comando, estiveram os presidentes José Sarney, Fernando
Collor de Mello, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio
Lula da Silva. A equipe da JUCA fez sua parte e conversou com os quatro
ex-mandatários vivos. Não ousaremos esboçar uma tentativa de síntese;
cabe ao leitor fazê-lo. Com a palavra, portanto, os Presidentes.
25
dossiê
José Sarney
“Eu não entendia por
que nós tínhamos
os olhos voltados
somente para o Norte
e abandonávamos
completamente os
nossos vizinhos”
Agência Senado
Danilo Vilela Bandeira
Gustavo Cunha Machala
Gustavo Guelfi de Freitas
26
Os incontornáveis e intermináveis compromissos
do então Presidente do Senado Federal não impediram que, por uma tarde, a equipe da JUCA fosse recebida por José Sarney de Araújo Costa na imponente
Sala de Reunião do Senado. Falando com nítido entusiasmo sobre a sua atuação na arena internacional – a
tal ponto que, em mais de uma ocasião, visitantes de
altíssimo escalão tiveram de aguardar a conclusão de
seu raciocínio na sala contígua -, o primeiro presidente da Nova República revisou seu relacionamento pessoal com Alfonsín e a aproximação com a Argentina,
os desafios da redemocratização, da dívida externa e
da condução de um país em meio à escalada da inflação, além de abordar momentos fundamentais de
nossa história diplomática - como a candidatura do
país à sede da Rio 92 e a adesão a tratados internacionais basilares. A seguir, trechos da entrevista.
Presidente, qual a maior realização de sua
política externa nos cinco anos em que o senhor
esteve à frente do governo?
A política externa nunca fez parte da política interna
no Brasil. Se analisarmos a história do Parlamento brasileiro, pelo menos ao longo da República, observamos que
nunca tivemos grandes debates sobre política externa.
Isso impossibilitou, na transição para a democracia, que
as forças políticas que participaram da transição tivessem
condições de pressionar o governo nas posições de política externa, proporcionando-me o único espaço em que
pude imprimir livremente a minha marca pessoal. Eu não
entendia por que tínhamos os olhos voltados somente
para o Norte, para a Europa, para os EUA, e abandonávamos completamente os nossos vizinhos, quando se pode
mudar tudo menos a geografia. E a geografia impunhanos uma eterna convivência com nossos vizinhos. Nesse
sentido, julguei que a primeira iniciativa que deveríamos
tomar em política externa era criar um espaço econômico
na América do Sul no qual pudéssemos ter capacidade
de união e, ao mesmo tempo, aumentar nossa competitividade econômica e nossa participação política. Por
isso busquei o fortalecimento de nossas relações com a
Argentina nos moldes do modelo trilhado pelo chamado Mercado Econômico Europeu. A integração da Europa começou com a paz franco-germânica, por meio do
Tratado do Aço. Considerei ser o parâmetro a seguir. Então mandamos, logo nos primeiros meses de governo, o
Olavo Setúbal a Buenos Aires, dando início aos primeiros
contatos com vistas a mudar o patamar de nossas relações. Eu almejava criar uma aproximação e uma parceria
de cooperação muito estreita, que rompesse com todas
as sombras e barreiras que nos tinham dividido no passado. Acho que todas elas baseadas em políticas equivocadas, a maior delas apoiada na premissa de que quem dominasse o Prata dominaria a América do Sul, uma teoria
do século XIX, inteiramente falsa.
O senhor acredita que esse projeto de
MERCOSUL é muito distinto do MERCOSUL que
se consolidou efetivamente?
Sim, porque nosso objetivo era criar um mercado comum que depois fosse aberto a todos os países da América do Sul. É por isso que o Tratado de Buenos Aires de
1988 falava em integração por setores, justamente para
que não tivéssemos que dar um passo à frente e outro
para trás, sabendo que um projeto dessa grandeza e dessa natureza teria problemas. Nós não queríamos ficar só
na retórica. Queríamos realizar, e para isso teríamos que
ter um projeto objetivo e exequível. O Tratado dava início
a essa integração setorial. A partir de 1990, com a ascensão de Menem e Collor, essa visão foi totalmente modificada, passando a vislumbrar apenas a construção de uma
área de livre comércio. Assim, a nossa integração, que era
uma integração política, física, econômica e cultural, em
suma, de toda natureza, passou a ganhar outros contornos. O resultado é que a partir daí começaram os problemas. Esse projeto grandioso e generoso passou a sofrer
com interesses pequenos, casuísticos e circunstanciais.
Mais recentemente, ele não recuperou esse
sentido?
Eu acho que não, eu acho que ao contrário. Abandonou-se esse projeto principal, e quanto ao projeto atual,
temos visto cada vez mais os países defenderem os seus
interesses internos, se fecharem, em vez de se abrirem
para um projeto comum. Não avançamos um passo em
sua construção institucional, como aconteceu com a
Europa, com todos os organismos e instrumentos que
montaram. Evidentemente, do ponto de vista econômico
não podemos negar que tivemos um sucesso extraordinário. A Argentina passou a ser o nosso maior parceiro e,
na América do Sul, mudamos, só com uma ideia, a face
do relacionamento entre os países. Isso foi simbolizado
em frase do Sanguinetti, ao mencionar em Uruguaiana
que “a coisa mais importante para nossos países, depois
de nossas independências, foi a criação do MERCOSUL”.
E eu acredito que essa continua sendo uma ideia não só
generosa, como necessária. O germe dela foi plantado e
se desenvolverá em algum momento. Podemos ter perdido o timing do andamento, mas é inevitável que ela vai
dominar a América, porque a tendência mundial é a de
desenvolvimento dos espaços econômicos.
Em que medida o senhor teve influências
das ideia de política externa do Presidente
Tancredo Neves?
O Presidente Tancredo nunca falou comigo a esse respeito. Eu não participei da elaboração do programa de
governo. Isto foi ideia pessoal minha. Até porque eu era
uma voz isolada dentro do Congresso, sempre discutindo
problemas de política externa.
Mas havia muitas tensões, não? Com os EUA?
Com os EUA era muito difícil. Naquele momento, a Guerra Fria estava dando margem, nos seus estertores finais, a
um cheque mate dos EUA em relação à União Soviética,
impulsionado pela intensificação da corrida tecnológica
e pelo agravamento das relações bilaterais, bem ilustrado
pela declaração de Reagan sobre o Império do Mal. Evidentemente, o reflexo aqui na América Latina era o alinhamento de nossos países em torno dessa corrida armamentista
e, ao mesmo tempo, a importância que Cuba assumia no
continente como símbolo de resistência a esse modelo.
E nesse sentido o senhor optou pelo não
alinhamento?
Eu optei pelo não alinhamento, porque estávamos
saindo de um processo autoritário no qual as forças que
viviam na clandestinidade precisavam de espaço de manobra para se manifestarem. Para construir a democracia,
o governo que estava nascendo deveria realmente ser
um governo que abrisse espaço para essas forças, pois
nós sabíamos exatamente o que significava o efeito desestabilizador que as guerrilhas poderiam ter nesse novo
mundo. Ao longo da história considerávamos que o perigo, em matéria de soberania, era a Argentina. Todas as
nossas hipóteses de guerra eram com a Argentina. Mas
agora estávamos diante de uma ameaça que vinha do
Norte. Temíamos uma intervenção dos EUA na América
Central. Não participamos do Grupo de Contadora, mas
fundamos o Grupo de Apoio a Contadora. Da coordenação entre ambos nasceu o Grupo dos Oito, mais tarde formalizado como Grupo do Rio. Naquele momento estávamos vivendo problemas muito sérios, estávamos debaixo
da guilhotina da dívida externa.
Qual o papel que o Itamaraty objetivamente
teve nessa renegociação da dívida?
Era muito mais lógico buscar uma negociação com o
governo dos EUA abordando a dimensão política da dívida, e não apenas a comercial. Mas ouvi do próprio presidente Reagan que isso era um problema bancário: “nós
27
Victor Bugge
dossiê
política para impor o sacrifício de um plano dessa natureza ao povo brasileiro. Como havia sido defendido por
Tancredo, não se podia deixar que a dívida externa fosse
paga com a fome do povo brasileiro.
No plano ambiental, a ideia da Rio 92 foi do
senhor?
não temos nada com isso”. O Secretário Baker naquele
instante era muito resistente. Tivemos uma reunião bastante tensa com ele da qual participou o então Vice-Presidente George Bush. Discutimos exatamente a respeito da
necessidade de que a dívida fosse tratada como um problema de política porque ela era de certo modo impagável. Essa foi a primeira grande virada da política externa.
A outra foi termos a visão mundial de que países do nível
do Brasil, da China e da Índia deveriam formar um grupo
também em nível internacional. Talvez isso tenha sido o
início da ideia dos BRICs. Nós tínhamos a dificuldade de
não termos um país africano para incluir nessa articulação, pois naquele tempo a África do Sul se encontrava em
regime de apartheid e seria impossível que viesse a fazer parte do grupo. Além disso, tínhamos o problema da
Nigéria, que almejava protagonismo em seu continente,
mas que também não tinha estrutura para um projeto
dessa natureza. Na minha conversa com o Deng Xiaoping
cheguei a citar esse problema…
A decisão de decretar a moratória teve alguma
interlocução com o Itamaraty?
Não. A decisão da moratória não teve interlocução com
o Itamaraty porque ficou muito mais na área econômica.
Não foi uma moratória política, foi uma moratória técnica.
Nossas reservas estavam na ordem de 3 bilhões de dólares,
o que não dava para as importações brasileiras de sessenta
dias. Não tínhamos mais tempo. Já tínhamos tentado, em
vão, muitas negociações com os EUA. Eles protelavam o diálogo e nos levaram a uma situação de estrangulamento.
Quando decretamos o Plano Cruzado, buscando uma
solução heterodoxa. Estávamos rompendo com uma
tradição que eles tinham montado para defender a economia mundial e o FMI. A ideia deles era forçar-nos a
seguir a receita do FMI, que era a receita da recessão. Eu
não tinha condições políticas de aceitá-la, pois a primeira
consequência seria a minha deposição. Eu não tinha força
28
A ideia da Rio 92 foi minha. Com o fim da Guerra Fria, o
problema do meio ambiente passou a ocupar esse vazio
na ideologia daquele tempo. O Brasil viu-se sentado no
banco dos réus com a Amazônia. Fomos vítimas de todas aquelas teorias de que a Amazônia era o pulmão do
mundo e de que estávamos tocando fogo na Amazônia.
Quando, na realidade, a preocupação com a Amazônia
tinha sido nossa, pois até as fotos dos satélites americanos que detectavam as queimadas na Amazônia tinham
sido encomendadas e compradas pelo Brasil. Desde
1972, na época da Conferência de Estocolmo, busquei
transmitir a minha preocupação sobre o assunto. Em
meu governo formulamos o programa Nossa Natureza
e criamos o IBAMA. Eu achava que deveríamos alterar
a legislação brasileira. Fomos pioneiros e hoje temos,
talvez, a melhor legislação ambiental do mundo. Mas as
pressões sobre o Brasil aumentavam. Tínhamos de fazer
algo em termos de Nações Unidas, e isso era colocar o
Brasil como sede da Conferência do Meio Ambiente. Estava resolvido que a sede seria na Noruega. Propusemos
que fosse no Brasil. Lançamos o desafio. Se o Brasil era
apontado como um dos vilões, queríamos que a Conferência fosse realizada aqui.
Qual o balanço que o senhor faz dos vinte anos
entre as duas conferências no Rio?
O nosso engajamento para que a Conferência fosse
aqui mudou a percepção mundial a respeito do Brasil e
de sua relação com o meio ambiente. Eu tive uma conversa com o Presidente Bush, no Japão, por ocasião do
sepultamento do Imperador Hirohito, na qual ele me
disse que os EUA não viam com bons olhos uma estrada
que estaríamos construindo, com financiamento japonês,
para atingir o Pacífico. Disse-me que seria a devastação
da Amazônia. Respondi-lhe que para mim era uma surpresa, pois eu estava tendo a notícia da construção dessa
estrada por ele. Em seguida perguntei-lhe se sabia qual
era a dimensão da Amazônia, se tinha ideia do tamanho
da floresta. Mencionei o fato de ser dez vezes o tamanho
do Texas, de forma que não era um lugar em que se poderia tocar fogo como em uma fogueira de folhas de outono. Hoje, o Brasil é visto como um defensor de temas relacionados à preservação do meio ambiente. Desapareceu
a imagem negativa do país que existia no final da década
de 1980. Questões como a de Belo Monte, por exemplo,
dinário. Ele dizia que o Uruguai é um país pequeno, mas
posso afirmar que sob o comando de Sanguinetti o Uruguai se expandia, crescia, tal é o poder de sua inteligência,
da sua capacidade política, do seu espírito público. Sem
falar no que ele representou nas relações conosco, entre
Argentina e o Brasil, e a ligação que tivemos Alfonsín, Sanguinetti e eu. Ficamos os Três Mosqueteiros dessa grande
causa, que é o MERCOSUL.
são muito menos importantes e mais específicas, diferentes da preocupação mais geral que existia na década de
1970 e 1980, quando a Amazônia era tida como um problema mundial, de proporções muito maiores.
Houve, em seu governo, uma mudança da
postura em relação aos Direitos Humanos?
Sim. Logo no início de meu mandato, em 1985, assinei
a Convenção Interamericana sobre os Direitos Humanos
(Pacto de São José da Costa Rica), reafirmando meu propósito político de consolidar no Brasil, dentro do quadro das
instituições democráticas, um regime de liberdade pessoal
e de justiça social, fundado no respeito dos direitos humanos essenciais. No ano seguinte, a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. No âmbito das Nações
Unidas havia um programa de ajuda e apoio institucional
a países recém-saídos de ditaduras, cujo objetivo principal era a defesa dos Direitos Humanos, e que contou com
o total apoio de meu governo. Após concluirmos nossos
respectivos mandatos, Alfonsín e eu éramos convidados
principais dos seminários organizados no âmbito desse
programa, pelo exemplo que demos ao longo do processo
de transição democrática em nossos países.
Nesse contexto, por que não se decidiu assinar
o Tratado de não Proliferação (TNP)?
O TNP não estava na mesa de negociações, não era
uma preocupação dos EUA. Ademais, o Brasil já havia
concebido a ideia do Atlântico Sul como Zona de Paz. As
pressões por assinatura foram posteriores; o tema não
tinha a prioridade que ganhou por parte da política externa norte-americana. Recordo que a política de aproximação e integração coma Argentina pôs fim às desconfianças mútuas, encerrando qualquer possibilidade de
corrida nuclear.
Naquele período a participação do Brasil no
Conselho de Segurança das Nações Unidas
(CSNU) já era uma questão?
O senhor poderia comentar a sua relação com
os presidentes Sanguinetti (Uruguai) e Alfonsín
(Argentina)?
CruzABr
Alfonsín foi uma figura extraordinária na política argentina e um grande estadista. Foi fundamental para a viabilização e construção do MERCOSUL. A Argentina estava dez
anos à frente do Brasil em termos de pesquisa nuclear e,
em meio a essa rivalidade, uma fotografia foi fundamental
para começar a solucionar a questão. Alfonsín, em um gesto político ousado, pediu-me para levar toda a comissão
de técnicos responsáveis pela pesquisa nuclear brasileira
à usina secreta de Picanegeo, na Argentina. Na mesma
viagem, Alfonsín comentou-me que a Argentina já dominava há bastante tempo a tecnologia de enriquecimento
de urânio. Quando o Brasil também concluiu essa etapa,
convidei-o para inaugurar a Usina de Aramar, até então
secreta, de tecnologia sensível, e onde há uma placa de
bronze com os seguintes dizeres: “Esta usina foi inaugurada pelo Presidente da Argentina, Dr. Raúl Alfonsín”. A partir
desse momento, não havia mais segredos com relação à
questão nuclear entre os dois países, um processo que outras nações tiveram enorme dificuldade para atingir. Havia
uma tranquilidade absoluta quanto ao entendimento entre nós. Há que se ressaltar a grande resistência dos militares argentinos a tais gestos de aproximação com o Brasil,
muito mais disseminada e ampla do que aqui, circunscrita
a grupos específicos e bem identificados. Quanto a Sanguinetti, o que posso dizer é que foi um parceiro extraor-
Eu procurei reavivar, em 1988, em discurso na ONU, a
necessidade do Brasil participar, como membro permanente, do CSNU. Mas isso era uma reivindicação histórica
brasileira que eu retomava e que remontava à época da
Liga das Nações. Na Segunda Guerra foi um compromisso
não cumprido de Roosevelt. O discurso visava a marcar a
posição brasileira. Não chegamos, no entanto, a entabular conversações com Japão, Índia e Alemanha. No que
diz respeito à Argentina, não cheguei a discutir o pleito
brasileiro de um assento permanente no CSNU com o
Presidente Alfonsín.
29
dossiê
Fernando Collor de Mello
“Não cabe ao Brasil
a adoção de atitudes
pequenas e gratuitas
como o chamado
terceiro-mundismo”
Ubirajara Dettimar/ Ag. Br
João Guilherme Fernandes Maranhão
Não raro, o quadro interno e o contexto internacional
alcançam curiosas convergências. No Governo Collor
de Mello, as mudanças por que passava o mundo
tinham progressiva expressão nas reformas e criações
políticas da República. No Brasil, tinha termo o
modelo desenvolvimentista das décadas pretéritas e
persistiam problemas macroeconômicos de monta,
enquanto a dissolução da União Soviética fazia
compreender que o mundo se reorganizava. Entre
1990 e 1992, Collor de Mello deixou um legado que
não se dissolveu pela força do tempo. Nas páginas
seguintes, em entrevista concedida por e-mail, o exPresidente – hoje aos 63 anos e senador por Alagoas
– fala desse patrimônio incorporado à história da
diplomacia: sua concepção de um país sem “complexo
de inferioridade”, a abertura econômica como ato
de modernização, o aprofundamento da confiança
com a Argentina por meio da criação da ABACC e
da consolidação do MERCOSUL e a reabilitação da
imagem internacional do país na esfera ambiental,
com a realização da Rio-92, entre outros temas.
Qual foi a maior realização de sua política
externa?
Considero o MERCOSUL uma de minhas principais realizações, ao lado da abertura da economia. Penso, com
convicção, que a ideia do Mercosul não era meramente
econômica, mas a criação de um espaço de colaboração,
de paz e solidariedade entre nossos vizinhos. Devemos
cuidar para que a amizade e a solidariedade sejam os elementos principais da argamassa que manterão unidas as
nossas nações, pois os desafios internacionais continuam
grandes e não podem ser enfrentados isoladamente.
O senhor poderia mencionar as características
contextuais que distinguem sua gestão da
PEB da gestão anterior?
A política externa de meu Governo fundamentou-se
em profunda e cuidadosa análise do cenário internacional
de então, na elaboração de seus possíveis desdobramentos e na antecipação das possibilidades de ação do país.
A configuração mundial que emergiu da Segunda Guerra
Mundial teve como uma de suas principais características a bipolaridade, ou seja, a concentração do poder em
dois polos principais que lutavam pela hegemonia. De
um lado estava o campo liderado pelos Estados Unidos,
e, de outro, aquele encabeçado pela União Soviética. Os
dois campos lutavam pela supremacia em todas as áreas.
Propugnavam a superioridade de sua ideologia, por meio
30
No seu governo, o Brasil aprofundou uma
postura mais participativa e colaborativa
quanto à defesa do meio ambiente. Qual é sua
avaliação dos avanços na implementação da
agenda da ECO-92? E qual foi o maior ganho
para o Brasil com a Rio+20?
A Rio 92 configurou êxito marcante e foi divisor de
águas na batalha ambiental ao conseguirmos unir as
ideias de proteção da natureza e desenvolvimento, consubstanciadas no conceito de desenvolvimento sustentável, o que se consolidou na Rio + 20. Registro o sucesso
de conseguirmos fazer que o progresso e a preservação ambiental não fossem vistos mais como conceitos antagônicos
e sim como forças que podem e devem caminhar juntas.
Agência Senado
de ações de propaganda, de busca de prestígio, e procuravam expandir a crença na superioridade de suas convicções em todo o mundo. Essa luta dava-se no terreno
econômico, na disputa tecnológica, na corrida armamentista, tanto nuclear quanto convencional. Embora os dois
lados não tenham chegado a se enfrentar diretamente no
campo militar, e por isso o período do pós-guerra foi chamado de Guerra Fria, os dois polos combateram por meio
do apoio a contendores como se verificou na África e na
Coréia. Do ponto de vista econômico, as áreas de influência
eram fortemente delimitadas e havia muita rigidez nas relações de troca. O sistema internacional essencialmente bipolar de depois da Segunda Guerra pode ser visto como uma
configuração em que os dois centros principais de poder
faziam exigências extremamente fortes em termos de lealdade e alinhamento, pois não se podiam permitir derrotas
ou fracassos – uma perda de um lado correspondia direta
e simetricamente ao ganho do outro – com consequências
imediatas em termos de prestígio aos olhos do mundo.
Essa configuração, que apresentei de forma muito esquemática e simplificada, já dava sinais de esgarçamento
mesmo no período de mais aguda bipolaridade, com o
crescente afastamento da China Comunista em relação à
União Soviética, o Movimento Não-Alinhado, a paulatina
formação do Mercado Comum Europeu, a busca de independência por parte de integrantes do Bloco Soviético
(Hungria em 1956, Tchecoslováquia em 1968). Esse movimento de relaxamento, que levou à derrocada do Leste
Europeu e da URSS pode ser simbolizado com a Queda
do Muro de Berlim, em1989, imediatamente anterior ao
meu Governo. No novo cenário, as fronteiras deixavam
de ser tão rígidas, a preponderância dos polos de poder
se esvaía e as forças da globalização tomavam impulso.
Os mercados não se circunscreviam aos limites anteriores
e aumentava a competição, com características cada vez
mais transnacionais. Havia uma nova realidade na qual o
Brasil deveria se inserir.
Como o senhor qualificaria a orientação de
sua política externa em relação aos Estados
Unidos? Havia uma intenção deliberada de
abandonar o terceiro mundismo?
O relacionamento com os EUA deve ser entendido como
um relacionamento maduro, de países independentes que
têm uma contribuição a dar à paz e à segurança internacionais. Deve, portanto, ser uma relação de respeito mútuo e
não cabe ao Brasil a adoção de atitudes pequenas e gratuitas como o chamado terceiro-mundismo, que reflete um
incabível complexo de inferioridade. No meu governo as
relações bilaterais foram de mútua aceitação de diferenças,
de confiança e de respeito recíproco.
O senhor é detentor do maior índice de viagens
ao exterior no período em que foi presidente
(considerando-se os presidentes até então).
O senhor credita esse fato a uma marca
pessoal ou a uma necessidade percebida
de que a participação mais ativa do Brasil
no sistema internacional (autonomia pela
participação) dependia também da presença
ativa do PR? Como reagiu o Itamaraty à maior
participação da Presidência nos fóruns e nos
canais diplomáticos usuais?
Considerei a chamada diplomacia presidencial importante para a consecução dos objetivos brasileiros em uma
fase de aguda transição, em que só o empenho direto do
Presidente daria o impulso necessário à necessidade de
afirmação do Brasil naquela época de incertezas. O Itamaraty, instituição pela qual tenho o maior respeito e admiração, foi crucial para as vitórias que pude obter, inclusive
na preparação de outro marco da minha política externa,
para a qual me empenhei pessoalmente, que foi a Rio 92.
31
Roberto Barroso
dossiê
Em que medida o MERCOSUL de hoje
representa o (ou diverge do) projeto que o
Sr. implementou? Em outras palavras, o Sr.
enxerga um processo de continuidade nessa
construção de um espaço de integração?
Para a consecução do ambicioso projeto de um Mercado Comum era necessário, continuar com o trabalho,
já iniciado por meu antecessor, de eliminação da tradicional rivalidade entre as duas potências sub-regionais,
o Brasil e a Argentina. Foram tomadas medidas para a integração, por meio da aproximação política e econômica.
Um marco desse processo de construção de confiança
mútua foram os acordos de cooperação nuclear, com a
constituição da ABACC, a Agência Brasileiro-Argentina de
Contabilidade e Controle de Material Nuclear, e a celebração do Acordo Quadripartite entre o governo brasileiro,
o argentino, a AIEA e a ABCC, que firmei em Viena. Essas
medidas de “confidence building” marcaram o meu Governo e foram a base de todo o processo de integração
regional, que tem sido seguido pelo Brasil como política
de estado – é, inclusive, matéria constitucional – e não
apenas de governo.
Considerando-se que um dos grandes
objetivos políticos a que o senhor se propôs
foi a liberalização e a modernização da
economia brasileira qual a avaliação que o
Senhor faz desse objetivo com a vantagem
de já termos avançado duas décadas após
esses acontecimentos?
Para a nova inserção, o Brasil deveria ser competitivo,
para o que necessariamente tinha que modernizar sua
economia e deixar de lado os mecanismos de proteção
de setores ineficientes da economia, sob pena da obsolescência e do esclerosamento. Esse quadro levou às
medidas de abertura que caracterizaram meu Governo
e foram a base para o desenvolvimento atual da economia brasileira. Por outro lado, havia que garantir espaços
econômicos que propiciassem mercados adequados em
32
uma situação internacional de globalização crescente.
Essa consideração nos levou a empreender a construção
do Mercado Comum do Sul, o MERCOSUL, um espaço
econômico, mas também de solidariedade.
A campanha brasileira por um assento
permanente no Conselho de Segurança lhe
parece uma prioridade de política externa?
Quanto à participação como membro permanente
do Conselho de Segurança da Organização das Nações
Unidas, considero que não será conquistada por meio
de campanha política. Embora seja necessária a democratização do Conselho de Segurança e a presença de
países emergentes, o Brasil, para se habilitar ao Conselho, deverá adquirir posição de maior relevância na configuração internacional de forças, tanto por meio do desenvolvimento econômico sólido quanto pela aquisição
de peso estratégico. A participação no Conselho implica
prestígio, mas também pesada responsabilidade na manutenção da paz e da segurança, o que tem um custo
alto, para o qual a sociedade brasileira deverá estar preparada. Ademais, o processo de afirmação e integração
regional do Brasil deverá estar em fase que possibilite
representarmos, sem contestações, nossa sub-região no
concerto internacional. Quando esses requisitos estiverem atendidos, o Brasil será naturalmente levado a posições de maior influência mundial.
Para que serve a política externa? O senhor
acredita que ela foi útil para alcançar objetivos
de política interna em seu governo?
A política externa significa a projeção do país no exterior e é essencial para a sua defesa, a sua segurança e o
seu desenvolvimento. Deve ser uma feição permanente
do Estado e não mero complemento ou coadjuvante da
política interna, apesar de haver óbvio inter-relacionamento. Assim, os interesses de Estado sobrepõem-se aos
interesses eventuais de um governo e dizem respeito à
própria sobrevivência do país no sistema internacional.
Fernando Henrique Cardoso
“Minha maior realização
foi fazer o Brasil voltar a
ser um país normal”
Danilo Vilela Bandeira
Barbara Boechat de Almeida
Paulo Cesar do Valle
A silhueta do ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso
desenhava-se contra um céu tempestuoso de uma tarde de
primavera quando a equipe da JUCA foi introduzida em seu
gabinete. Jovial, quase indiferente aos 81 anos que ostenta,
o presidente de honra do PSDB falou por quase duas horas
sobre a política externa de seus dois mandatos. Enfatizou o
seu papel como mediador da reinserção do país em um sistema internacional em acelerada mutação, os desafios da integração regional em um período de nuvens negras da economia internacional e os ditames de uma política externa
que, nas palavras do então Chanceler Luiz Felipe Lampreia,
pretendia “afastar-nos das posturas terceiro-mundistas”. A
seguir, trechos da entrevista concedida no instituto que leva
seu nome, na região da República, em São Paulo.
Presidente, qual foi a maior realização de sua
política externa?
Minha maior realização foi fazer o Brasil voltar a ser um
país normal e não ter inibições no seu relacionamento
com o mundo. Porque nós sempre tivemos uma posição
– historicamente, não importa o governo – de um país
grande, de influência relativa na América Latina e muito fechado, economia fechada, sempre desconfiado dos
EUA, da Europa. Houve momentos, como vocês sabem,
de uma política externa mais agressiva, a chamada PEI,
mas que via o Brasil como parte do terceiro mundo, o
que naquele momento tinha a sua justificativa. Quando
eu cheguei ao governo, o Brasil já era um país bastante
diferente, tinha um peso específico bem maior. Eu dizia
na época, quando era candidato, que o Brasil não era um
país subdesenvolvido, era um país injusto. Já era a 10ª
economia do mundo, mas havia quase um complexo no
relacionamento com os EUA e a Europa. Eu fiz oposição ao
Sarney, mas ele teve dois grandes méritos: primeiro, ele
foi muito tolerante internamente, o que era importante
para a democracia. Segundo, o Sarney abriu o Brasil para
a América do Sul. Então nós já estávamos numa posição
diferente. Veio o Collor, com seus rompantes, e quebrou
o isolamento econômico. Você pode discutir se deveria
ter sido negociado ou não, mas de qualquer forma era
muito difícil ter um impulso como o do Collor, para poder
abrir a economia. E o Collor tinha complexo de primeiro
mundo, adorava Tatcher. Ele já tinha um relacionamento
vigoroso com o primeiro mundo, mas não deu tempo de
fazer nada. No governo do Itamar – no qual eu tinha bastante influência - já era óbvio que o Brasil tinha que se
acomodar na ordem emergente nova, que era a globalização. Então o que a política externa tinha de fazer, e isso
continua, é defender os interesses nacionais do país em
um contexto diferente do anterior.
33
dossiê
E o que seria esse país normal?
É isso, não ter receio de negociar. Por exemplo, tem
globalização, tem a OMC, então vamos usá-la. A primeira questão colocada em litígio foi no meu governo, do
algodão. Nós criamos no Itamaraty um grupo para poder acompanhar a questão. Eu tive de brigar com uma
pessoa que admiro, que mais tarde nomeei Embaixador
no Vietnã, porque ele deu uma entrevista em que disse
que eu queria transformar o Itamaraty numa associação
comercial. Eu disse, olha, o Itamaraty também tem de
entrar nessa briga comercial. Se tem que brigar com os
EUA, briga, mas não vamos transformar um choque específico em um choque global. E isso vale para todos, vamos defender nossos interesses de forma competente. A
primeira reunião de G20 foi feita no meu governo, ainda
com os Ministérios da Fazenda.
Comenta-se muito que o peso da Fazenda,
não apenas no G20, mas em outras instâncias,
foi maior que o do Itamaraty.
É provável que isso seja verdade. Primeiro, porque
nós tínhamos uma dificuldade financeira enorme, e isso
pesava. Segundo, a equipe era muito competente, e era
reconhecida internacionalmente, mas eles sempre jogavam em conjunto com o Itamaraty, para o qual eu sempre dei muita importância.
Quais eram as grandes questões do período?
Naquela época, nós tínhamos algumas questões complicadas. A primeira era a consolidação do Mercosul. A
segunda era a posição brasileira em relação ao Conselho
de Segurança. A terceira era a questão da ALCA. O Mercosul foi uma experiência complicada, porque começou
como uma iniciativa burocrática, nem mesmo econômica, que foi aceita, com certa dificuldade pelo Itamaraty,
e com alguma resistência pela Fazenda. Inicialmente,
avançou muito na parte comercial, mas os empresários
e a população não participaram do processo, pois foi o
Executivo que conduziu. Além desses temas, eu achava
que a América do Sul tinha que ser prioridade e por isso
a primeira reunião do continente foi feita por mim. Havia muita dúvida no Itamaraty, por causa das suscetibilidades que isso poderia levantar – e levantou. O México
não gostou, tanto que eu tive que convidar o chanceler
mexicano, Jorge Castañeda – que é meu amigo – para assistir à reunião. Por que América do Sul? Eu percebi que
o Mercosul, do jeito que ia, seria basicamente um acordo
do comércio e logo empacaria na competição comercial.
Por isso, achei que nós deveríamos ir pelo outro lado,
pela integração física. Falamos com o BID, decidimos fazer eixos de integração, fazer a IIRSA, para evitar que se
concentrasse tudo no comércio, fazer algo que vinculasse os países mais profundamente. Outra prioridade, mais
34
complicada, era a Alca. Havia data marcada pelos americanos, para fechar as negociações - 2005. Eu achava inviável e os americanos, a certa altura, também desistiram
do projeto. Mas ao longo de toda a negociação, a postura brasileira foi totalmente reativa. O Brasil nunca soube
se situar diante da questão da integração hemisférica,
com medo dos EUA, e sempre com o problema da agricultura. Não era só isso, havia mais do que isso, as compras estatais, serviços, as consultoras, que não gostam
de competição. Como nunca houve uma ideia clara se
nós ganharíamos ou perderíamos, o que nós fizemos foi
cozinhar em banho maria. A decisão foi tomada em Belo
Horizonte, com a ideia do single undertaking - só estaria
resolvido quando tudo estivesse resolvido -, que era uma
forma de não fazer. Depois disso, a questão virou uma
coisa política. Quem queria a ALCA, era pró-americano;
quem não queria, era anti-americano. A verdade é que
ninguém sabia se ganharíamos ou perderíamos e por
isso foi sendo empurrado com a barriga. Na reunião em
Miami, com o Celso, acabaram com a ALCA, dizendo que
cada um poderia escolher o que quisesse. Os EUA, que
àquela época já não estavam mais sob liderança do Clinton, tinham outros interesses e passaram a assinar acordos bilaterais, que de certa forma isolaram o Brasil. Nós
temos um acordo com Israel e o acordo automotivo com
o México, e mais nada.
Se o PSDB tivesse ganhado a eleição, em
2002, o resultado teria sido diferente?
O PSDB não tinha nem ideia. Era a mesma coisa, não
havia consenso no país. Nenhum partido tinha pensamento de política externa no Brasil.
E a candidatura brasileira a um assento
permanente no Conselho de Segurança?
Isso era uma obsessão do Celso [Amorim]. O Brasil sempre será candidato a uma posição num órgão como o CS,
então tem de manter. Agora, quando eu assumi a presidência, os argentinos e os mexicanos eram contrários a
nossa candidatura, e nós não tínhamos nem consolidado
o Mercosul. Eu falei, à época, que nós teremos uma cadeira
lá, mas só quando houver uma reforma mais ampla, sem
isso eu não vejo quem ganha. O Brasil vai ter ônus de dizer
não ou sim, responsabilidades militares. Na Argentina, eu
disse que preferia ter uma boa relação com os argentinos
a ter uma cadeira naquele Conselho de Segurança, daquele momento. E coloquei a questão em banho maria. Mantivemos a candidatura, mas não forçamos. O Celso voltou,
forçou, forçou, e não deu, porque não tem reforma, é uma
batalha de Itararé. Não vai ter reforma porque ninguém
quer, a China não deixa. Os grandes não querem reformar.
A China não quer por causa da Índia e do Japão, na Europa
é uma briga. É falta de realismo. Um dia o Brasil vai ter, o
G20 é melhor do que o atual Conselho – que é impasse e
veto. A minha posição sempre foi a de que as uvas ainda
estão verdes, não adianta colher. Se não vai haver mudança, não vale a pena fazer um esforço gigantesco. Você mantém o princípio, mas não coloca seus canhões atirando.
Isso vale para outras áreas, como a participação
brasileira nas negociações no Oriente Médio?
Na minha época valia, mas eu não diria isso hoje. Os problemas internos hoje não são mais a mesma coisa, não são
tão graves. Quando eu assumi o governo, isso aqui era um
caos total, não havia Estado, por causa da inflação.
Outro assunto polêmico foi a assinatura do
TNP. Muita gente diz que o Brasil perdeu uma
oportunidade de barganha.
Não havia barganha possível. Eu pessoalmente sou favorável ao tratado de não proliferação, sou signatário com outras
personalidades do mundo, acho que temos que desnuclearizar. Nós temos que ter a capacidade de pesquisar aquilo que
nos interessa, estarmos prontos se for necessário. Outra coisa é fazer uma política baseada em poderio atômico, a Índia
fez isso, e ganhou o apoio dos EUA ao Conselho. A Índia está
estrategicamente situada, de tal forma que os EUA precisam
dela, para conter a China e o Paquistão. Nós, não. Para a sorte
de nosso povo, nós vivemos numa área que não é estratégica
para os EUA. Então não podemos fazer jogo estratégico, porque não temos esse cacife.
Se o senhor nos permite fazer uma citação do
chanceler Lampreia, ele disse o seguinte: “na
área internacional, nosso objetivo principal era
inserir o Brasil no mainstream internacional,
afastando-nos gradualmente das posturas
terceiro-mundistas que haviam sido articuladas
no passado, e das ambiguidades que tinham
origem no governo militar, baseadas na ideia
de Brasil potência.” O senhor acredita que esses
objetivos foram alcançados?
A ideia de Brasil potência era basicamente uma ideia
dos militares, bomba atômica, etc. Assustava todo mundo, e não mudava nada. Hoje, o Brasil opera na América
Latina sem que haja essa preocupação de que nós sejamos sub-imperialistas.
Em mais de uma ocasião, o governo do senhor
atuou para a preservação da democracia no
Paraguai. Naquelas ocasiões, o Mercosul teve
algum papel? Como o senhor compreende,
hoje, a atuação do Brasil em prol da estabilidade
regional?
Diria que me engajei bastante na manutenção da democracia no Paraguai, mas também no quadro do conflito que
existia entre o Equador e o Peru, onde atuamos muito fortemente para resolver o conflito e conseguimos.
No caso do Paraguai, onde estive duas ou três vezes, posso dizer que a atuação do Brasil foi definitiva. Em um dado
momento, não sei exatamente quando, o Clinton me telefonou e conversamos sobre o que fazer com o Paraguai. Minha primeira reação foi dizer: sai dessa. Deixa o Paraguai por
nossa conta ou não vai dar certo. E, de fato, o Clinton deu
ordem por lá para que não chateassem e aí foi o Itamaraty e
as nossas forças armadas que atuaram diretamente.
O que aconteceu foi que, em um dado momento, o
Wasmosy pediu para vir secretamente ao Brasil. Ao chegar, ele disse que pretendia demitir o Oviedo e que temia
um atentado contra sua vida. Respondi que, infelizmente,
se o Oviedo o matasse, eu não poderia fazer nada, mas
que, se ele não fosse morto, ele poderia ter certeza de
que o Brasil sempre apoiaria a ordem estabelecida no
Paraguai. De fato, o Oviedo se rebelou. Minha reação se
deu em duas etapas. Primeiro, consultei o exército para
entender quanto tempo demoraria para ocupar Itaipu.
Afinal, se Itaipu parar, meio Brasil para. Como era rápido,
tomei a segunda ação: entrei em contato com o Ministro do Exército da época, o Zenildo, e pedi para que ele
interviesse junto ao Oviedo, que tinha sido seu aluno. O
Zenildo é jeitoso e conseguiu falar com o Oviedo e insistir
que o Brasil não aceitaria o golpe, sendo melhor resolver
pacificamente. O Oviedo foi para Argentina e, mais tarde, o Menen me pediu que eu recebesse o Oviedo aqui,
porque ele não podia mais ficar lá, por outras razões que
35
dossiê
eu não sei quais são. Depois da vinda do Oviedo para o
Brasil, a situação no Paraguai se acalmou.
A segunda situação delicada foi com o Cubas, que me
ligou pedindo balas de borracha, para conter confrontos
que estavam acontecendo no Paraguai. Depois de um
dia, liguei de volta e disse: olha, você vai se sair mal. Tem
muita gente morrendo. Vem pra cá. Depois do meu telefonema, ele negociou com o Oviedo e nós mandamos um
avião ao Paraguai para trazer o Cubas para o Brasil.
Se esses processos ocorressem hoje em dia o
Brasil não agiria sozinho, mas no âmbito das
instituições que foram criadas nos últimos
anos, não?
36
muito grande e íamos perder. E perdemos. Votamos a favor
dele e, para sinalizar a clara posição do governo brasileiro,
eu o recebi, sendo presidente. É tudo o que eu sei, apesar
de ter ouvido várias interpretações – foi derrubado, não
foi derrubado. Não havia razão nenhuma para o Brasil não
defender o Bustani. No mandato dele como diretor, nunca
soube que ele tivesse feito coisa errada, embora tenham
acusado depois, provavelmente porque queriam tirá-lo de
lá. Insisto que nunca ninguém veio a mim pra dizer que nós
tínhamos que tirá-lo de lá, mesmo porque nós não tínhamos força pra tirar e a ordem foi de votar a favor dele, mas
ele teve muito poucos votos. Quando os americanos se
juntam com não sei quem e não sei quem, eles derrubam.
Como foi a construção do Mercosul no
contexto da desvalorização do Real? A
Argentina foi consultada?
Provavelmente. Mas hoje o Brasil tem menos capacidade de fazer isso do que tinha naquela época. Hoje a
América Latina está, na verdade, mais dividida do ponto de
vista ideológico do que estava antes. Não posso dizer que
o Brasil dava as cartas, porque essa expressão é incorreta.
Nós nunca demos as cartas. Mas o Brasil era a referência, e
não precisava dizer isso pois não existia o outro lado. Nos
últimos anos, houve a emergência do Chavez e de todo
um eixo que não existia. Hoje, a ação do Brasil como mediador é dificultada porque nós até falamos com todos os
atores, mas não mandamos fazer. A emergência do Chavez foi muito significtiva. Ele tem características fortes de
liderança, sabe lidar com cena, tem jogo de cintura, sabe
lidar com a mídia e tem charme. É inteligente, lê mais do
que pensam que ele lê. Além disso, sua capacidade de influência aumentou muito com o barril do petróleo a US$
100. Na minha época, o barril custava US$15. Bem ou mal o
Chavez teve a capacidade de articular um discurso de oposição aos americanos e ao mundo capitalista que tem eco e
apoio aqui e alí. É um discurso que o governo do Brasil não
pode fazer, simplesmente porque não pode. Além disso, o
Lula não é assim, o Lula não é de romper instituições. Nem
eu poderia fazer esse tipo de discurso. Ninguém no Brasil.
Não, a Argentina não foi consultada. Em primeiro lugar,
a desvalorização não foi uma decisão do governo. Foi o
mercado que impôs. Não foi uma decisão nossa. Eu queria mudar a política cambial porque achava que a política
do Banco Central de bandas deslizava muito lentamente
e estava já no limite; não podia continuar. Tinha que mudar, acelerando a desvalorização. Essa política do Banco
Central se justificou no fortalecimento da moeda, mas
depois começou a ser impeditiva. É possível que se nós
tivessemos mudado em 1997, antes da crise asiática, as
coisas poderiam ter sido diferentes, mas não mudamos.
Porque ninguém queria. Isso porque quando você muda
a regra ou abre a economia, muita gente perde. Porque
quando você tem um negócio dessa natureza e você tem
abertura da economia e depois estabilização da moeda,
muitas pessoas vão perder, mas economia é assim – infelizmente ou felizmente. Eu li muita economia e muito o
Capital e não tem jeito, isso vai acontecer. E uns vão perder e outros vão ganhar. Tem que olhar o país e não a
pessoa que vai perder.
Presidente, uma questão sensível foi a OPAQ,
que sempre causa muita controvérsia. Qual a
interpretação que o senhor faz do episódio?
A política externa do seu governo serviu ao
propósito de alcançar objetivos de política
interna?
O que eu soube do assunto foi o seguinte: o Bustani,
a quem eu recebi na época, era diretor da organização e
não era funcionário do Brasil. Era funcionário internacional.
Recebi a informação de que a situação dele era insustentável e que os americanos estavam fazendo uma pressão
muito forte. A ordem que eu dei foi a de apoiá-lo, e o Brasil
ficou com ele. Inventaram que o Celso Lafer tinha feito um
acordo com o chanceler americano - o Colin Powel. Eu nunca soube dessa história. O que eu soube é que não havia
mais condições políticas de mantê-lo, porque a pressão era
Não. Não me lembro de nenhum objetivo de política
interna relacionado à política externa. A função da minha
política externa era fazer com que o Brasil tivesse um papel nesse mundo que emergia.
De forma mais ampla, para que serve a
política externa?
Primeiro, para garantir a soberania do país. Junto com
as Forças Armadas, ela trabalha para manter a integridade territorial, o que continua sendo muito importante. O
Brasil faz isso, e sempre fez. A política externa brasileira
sempre foi orientada para preservar. Preservar que, na cabeça do Barão do Rio Branco, era cuidar do rio da Prata e
manter boas relações com os Estados Unidos, para poder
existir. Hoje não, é muito mais complicado que isso. Hoje
você tem que realmente perceber qual é o interesse estratégico do país. Isso pode parecer palavra, mas é muito importante. Vou dar um exemplo: a Argentina se equivocou
estrategicamente. Ela não entrou na I Guerra Mundial, ao
lado dos Aliados; não entrou na Segunda, e quando ela
resolveu recuperar, que foi com o Menem, e o Menem foi
demais para a coisa, mandou uma corveta, sei lá o que,
para o Iraque, para demonstrar que ele era aliado carnal
dos americanos. Até hoje eles são aliados preferenciais da
OTAN. Mas errou. Ele não percebeu. Ficou com a Inglaterra e depois não ficou nem com os Aliados. O Brasil, sempre, desde a República, operou mudanças estratégicas.
Nesse sentido, o senhor acha que o Itamaraty
orientou muito a sua política externa?
Ah, isso sim. O diálogo com o Lafer, meu com o Itamaraty era fluido, era permanente e fluido. Sempre foi fluido.
Com quem que o Presidente interage no dia a dia, no trabalho? Era com o Itamaraty, no meu tempo, com as Forças Armadas e com os seus Ministros de confiança. Casa
Civil, Fazenda, isso é um grupo do governo. Itamaraty, no
meu caso, sempre teve essa função, mesmo na questão
que extrapolava o comercial.
O senhor apontaria algum traço que
diferenciaria a sua gestão das gestão
anterior, do Collor/Itamar, ou de gestões
anteriores?
Certamente, com relação ao período dos militares,
muito diferente. Com relação ao Sarney, houve um aprofundamento na questão da América do Sul. E na medida
em que o Brasil ficou democrático e ficou mais organizado, o nosso peso aumentou, na América do Sul e nos Estados Unidos. A relação que eu tinha com o Clinton, não era
uma relação de subordinação. Eu nunca precisei de nada.
Era uma relação normal.
Houve algo que o senhor não conseguiu
realizar, de política externa?
Certamente. Veja bem, estamos aqui falando de uma
época em que o Brasil estava começando a se organizar,
mas ainda não era uma coisa que o mundo reconhecesse. Nós não conseguimos, por exemplo, mudar a ordem
financeira. Não deu em quase nada. Foi feita uma coisa
importante, que foi o G-20, que foi o início da coisa toda,
a reunião em Cancun. Mas era mais difícil você ter peso
nessas circunstâncias. O peso era mais meu que do Brasil,
pessoalmente, de ter acesso aos italianos, aos franceses,
aos espanhóis, aos portugueses. O Mario Soares era meu
amigo desde os anos 70.
E, nesse sentido, há muita continuidade
entre o governo do senhor e o do seu
sucessor?
A falta de continuidade é retórica. O discurso é diferente. Eu diria que, com essa América Latina, eu seria menos
leniente com, digamos, as relações democráticas aqui. Eu
teria mais capacidade de segurar, a Bolívia, principalmente. Eu acho que era possível ter sido mais firme, evitar que
o chavismo tivesse ganhado a cabeça do Evo Morales.
Mas, no geral, eu acho que essa coisa do Paraguai, que
foi feita agora, e a entrada da Venezuela foi errada. Nós
não exigimos da Venezuela o necessário para ela entrar
no Mercosul, pela porta dos fundos. Você afasta o Paraguai e põe a Venezuela. Nós estamos criando um problema com o Paraguai por muito tempo, não é? Eu preferia
que o Lugo não tivesse sido destituído como foi, mas o
Lugo não tinha mais condições de governar. Tanto não tinha que não houve reação nenhuma. Então eu seria mais
cauteloso em relação a ser tão duro com o novo presidente que está lá. E isso vai ter peso para nós, custo para
nós. Em nome do quê? O pobre do Lugo não tinha mais
base, capacidade política de governar. Caiu rápido, mas
não se esqueçam de que o Jânio caiu muito mais rápido.
E também é discutível. Ninguém discutiu a carta dele no
Congresso, que foi aceita. Foi aceita na hora. Não deram
condições de defesa, mas ele não tinha como se defender.
Não tinha mais base política para governar. No caso de
Honduras, também, nós exageramos. São questões pontuais, que têm mais a ver com um sentimento ideológico do que com uma política de motivação ideológica. Eu
estive recentemente na Venezuela, nas eleições, foi uma
loucura. Uma mobilização de Governo, de Estado, quase
fascista. E ele queria se aproximar do Lula, e eu falei com
o Lula, e o Lula me enganou: “Vou falar com ele, vou falar
com ele”. E nunca falou, né? Pelo contrário. Foi lá e apoiou
o Chávez. “Você acha que o Chávez vai ganhar”. E eu falei:
“Acho que vai, mas o Brasil tem que ver a longo prazo. Um
dia, o outro lado vai ganhar”.
O que seria uma brevíssima síntese de sua
política externa?
Foi uma espécie de adaptação do Brasil às condições
emergentes do mundo e ao que nós tínhamos feito
aqui. O Brasil tinha que estar à altura do que já era e do
que o mundo era. Entender com mais realismo o mundo
de hoje.
37
dossiê
Luiz Inácio Lula da Silva
Ricardo Stuckert
“Era necessário ter pleno
conhecimento de nosso
potencial e não aceitar
passivamente o lugar
subalterno que os países
hegemônicos quiseram
tradicionalmente conferir
ao Brasil”
Barbara Boechat de Almeida
Germano Faria Corrêa
Poucos foram os períodos na história da diplomacia
brasileira em que tanto foi feito em tão pouco tempo. Em
estreita harmonia com seu Chanceler, Celso Amorim, Luiz
Inácio Lula da Silva defendeu uma política externa “ativa
e altiva”, cujos efeitos ressonaram em múltiplos campos angariando defensores e detratores. Na conversa que segue, Lula abordou momentos controversos de sua gestão
externa - como as negociações com Turquia e Irã em torno
do programa nuclear iraniano e a adesão da Venezuela ao
Mercosul – mas, acima de tudo, destacou a reconquista da
autoestima do brasileiro e o importante papel da diplomacia como catalisadora do desenvolvimento nacional.
Impossibilitado de se encontrar com a equipe da JUCA em
razão de suas muitas viagens, o ex-Presidente, ainda assim,
fez questão de falar sobre os oito anos de seus dois mandatos. A seguir, a íntegra da entrevista concedida por e-mail.
Presidente, qual foi a maior realização de sua
política externa?
Não sei se a maior, mas a que me deu maior satisfação, em meus dois mandatos como Presidente, foi a de
recuperar a autoestima do nosso povo sobre a viabilidade do Brasil como nação. A confiança reconquistada
em nós mesmos, a convicção de que podíamos ser um
país mais desenvolvido e mais justo, um país para todos
os brasileiros refletiu-se em nossa ação internacional. O
Brasil passou a ter outra visão sobre seu lugar no mundo.
Fomos capazes de entender o momento de transição por
que passava o sistema internacional no início do século
XXI – em direção a uma ordem cada vez mais multipolar
– e apostamos em iniciativas para transformar o Brasil e a
América do Sul em um dos pólos dinâmicos desse novo
mundo. Para fazer isso era necessário ter pleno conhecimento de nosso potencial e não aceitar passivamente o
lugar subalterno que os países hegemônicos quiseram
tradicionalmente conferir ao Brasil.
O senhor poderia mencionar uma característica
que distingue sua gestão da Política Externa da
gestão anterior?
Deixo essa comparação entre os distintos governos para
os diplomatas, historiadores e cientistas políticos que, com
o devido distanciamento, poderão avaliar as mudanças
conceituais e práticas que introduzimos na política exter-
38
Ricardo Stuckert
na brasileira, sem as quais o Brasil não teria hoje a inédita
projeção internacional que conquistou. Quero ressaltar, no
entanto, duas medidas que adotei com efeitos diretos e
duradouros sobre a política externa brasileira:
Primeiro, adequamos o Itamaraty às novas responsabilidades que o Brasil passou a ter no mundo. Ampliamos o
número de diplomatas em 40% e criamos 34 novas embaixadas: 15 na África, 6 na América Latina e Caribe, 5 na
Europa, 3 no Oriente Médio e 3 na Ásia. Para atender os
cidadãos estrangeiros que nos procuram e os brasileiros
no exterior, abrimos 19 novos consulados;
Depois, ampliamos os canais de debate entre a sociedade civil organizada e o governo. Envolvemos na reflexão
sobre a política externa os mais diversos setores da população. Além do empresariado urbano e rural, envolvemos
também as universidades e os centros de pesquisa, as
centrais sindicais, as entidades da agricultura familiar, as
organizações não-governamentais voltadas para o tema
ambiental, dos direitos humanos, da igualdade étnica e de
gênero etc. Nunca a política externa ocupou um lugar tão
destacado nos debates públicos em nosso país.
Para que serve a política externa? O senhor
acredita que ela foi útil para alcançar objetivos
de política interna em seu governo?
Desde o primeiro dia de meu primeiro mandato deixei claro que a política externa do Brasil não seria apenas
uma forma de projetar o Brasil no mundo. Ela deveria ser
entendida como um componente essencial de um novo
projeto nacional de desenvolvimento. Logo no mês de
janeiro de 2003, visitei com todos os meus ministros (inclusive o Chanceler) alguns dos municípios mais pobres
do Brasil. Aquele foi um momento marcante, que deixou
claro para a nossa equipe o sentido que deveriam ter todas as ações de governo, inclusive na área externa.
Para vencer nossos históricos desafios necessitávamos
crescer, distribuir renda, pôr fim à exclusão social, reduzir nossa vulnerabilidade externa, lograr estabilidade
macro-econômica e aprofundar nossa democracia. Num
país com um passivo social tão grande como o Brasil, o
Estado tem o papel central de criar oportunidades, combatendo a pobreza e a desigualdade. Por isso, nas negociações comerciais – na OMC, na ALCA ou com a União
Européia, para citar alguns exemplos – buscamos evitar
acordos que limitassem a margem de manobra da sociedade e do Estado brasileiros para adotar políticas públicas
essenciais ao país, em matéria de investimentos, compras
governamentais, agricultura, bens industriais e serviços.
Em paralelo, fortalecemos o comércio com o MERCOSUL,
a América do Sul e toda a América Latina, região para a
qual exportamos parte expressiva de produtos de maior
valor agregado. Ampliamos também nossa relação com o
mundo árabe, a África e a Ásia.
O Ministro Celso Amorim, em artigo que faz
balanço da sua gestão à frente do Itamaraty,
afirma que, além de aliar pragmatismo e
princípios, a política externa do governo
Lula também teve certa dose de audácia e
irreverência, que contribuiu para os resultados
positivos alcançados. Em que momentos da
política externa o senhor acredita que a audácia
e a irreverência foram mais importantes?
Muito dessa percepção de audácia e irreverência se deve
ao fato de que decidimos mudar nossa relação com o mundo. Compreendemos que não podíamos sofrer, de forma
passiva, aquilo que muitos chamaram de “globalização”.
Partimos de uma avaliação que se provou correta: ao
longo das primeiras décadas do século XXI, o mundo vivia profundas mudanças na correlação de forças. Mudanças que exigiam de nós uma atitude diferente daquela
adotada no passado. Isso ficou mais evidente com a crise
financeira de 2008, mas os sinais já vinham de antes.
Nossa diplomacia tinha de pôr em prática sua vocação
universalista, tantas vezes proclamada, mas nem sempre
aplicada por alguns governos. Um país tão grande como
o Brasil não pode aceitar o papel subalterno que muitos
querem lhe atribuir. Precisamos ter uma presença forte no
mundo. Daí a opinião de que fomos audazes e irreverentes quando atuamos para criar o G20 comercial na OMC;
não aceitamos o projeto da ALCA, que significaria a virtual anexação das economias latino-americanas pelos EUA;
demos início ao processo de entrada da Venezuela no
MERCOSUL e criamos a UNASUL e a CELAC; incentivamos
39
Antonio Milena
dossiê
a criação dos fóruns birregionais envolvendo América do
Sul – Países Árabes e América do Sul – África; ajudamos a
promover importantes articulações entre os grandes países emergentes, tais como o IBAS, o BRICS e o BASIC; e
defendemos, no âmbito do G20 financeiro, o combate à
crise econômica internacional pela via da regulação democrática dos fluxos e do crescimento com justiça social,
rejeitando a tradicional receita recessiva baseada na atrofia do Estado e no corte de direitos e serviços essenciais.
Como foi o processo de aproximação com o Irã
e como o senhor avalia os efeitos da mediação
turco-brasileira no caso do programa nuclear
iraniano?
Aprendi ao longo da vida, especialmente no movimento sindical, a importância da negociação. Buscar pontos
de convergência, apostar naquilo que aproxima as posições e não no que divide. Por isso, nunca acreditei na política de colocar países contra a parede, de demonizar governos. No caso do Irã, havia um impasse crescente sobre
o programa nuclear e a Agência Internacional de Energia
Atômica havia feito uma proposta para enriquecimento
de urânio fora do país. A proposta era boa e trazia o Irã
para a mesa de negociações junto com os P5+1 (EUA,
Reino Unido, França, Rússia, China e Alemanha). A desconfiança de lado a lado era muito forte. A maior parte
da sociedade iraniana não acredita na boa fé das grandes
potenciais devido a sua experiência histórica com elas. Na
primeira metade do século XX, o país foi vitima da prepotência britânica e russa. Depois, durante a ditadura do Xá,
tornou-se um satélite dos Estados Unidos, uma espécie
de policia da região do Golfo. As intervenções posteriores no Afeganistão e no Iraque ajudaram a alimentar esse
40
clima de insegurança. As grandes potências, por sua vez,
nunca acreditaram em um acordo com o Irã e, por isso,
não se empenharam em explorar essa possibilidade.
Em 2010, junto com o Primeiro Ministro Erdogan, da
Turquia, fomos ao Irã. A Turquia é um país muçulmano
e membro da OTAN. O Brasil, um grande país em desenvolvimento, conhecido por sua postura independente e
sem histórico de atuação colonialista. Convencemos com
grande esforço o Governo iraniano a aceitar a proposta
da AIEA. E o fizemos com pleno conhecimento dos membros do Conselho de Segurança, França e Estados Unidos,
em particular. Infelizmente, nossa iniciativa foi vítima do
seu próprio sucesso. Demonstramos, na prática, que era
viável uma verdadeira solução negociada. Isso incomodou as grandes potências nucleares que, provavelmente,
nos consideraram como “intrusos”. Elas preferiram as sanções no Conselho de Segurança. Hoje a situação é pior do
que a de 2 anos atrás. Mas ainda acredito que há espaço
para uma solução negociada.
Qual função o senhor atribui à diplomacia
presidencial? Quais êxitos da política externa o
senhor atribui ao exercício dessa função?
É inegável que a diplomacia presidencial ganhou muito espaço nos últimos anos, sobretudo porque fomos
capazes de estabelecer uma nova articulação entre as
questões internas e externas. Além disso, as facilidades
de locomoção, as novas tecnologias de comunicação e a
maior interdependência entre os países fizeram dos Chefes de Estado e de Governo atores cada vez mais importantes na formulação e mesmo na condução da política
externa. Mas no caso do Brasil, os êxitos da política externa e a projeção internacional que alcançamos nos últimos
Durante o governo do senhor, houve grande
insistência sobre a necessidade de reforma
do Conselho de Segurança, para aumentar
sua legitimidade e eficácia. No entanto, a
reforma ainda parece um objetivo remoto. O
senhor acredita que os esforços dispensados
compensaram?
anos são consequência da grande transformação que experimentamos internamente. Foi o Brasil que mudou. Depois de mais de duas décadas de estagnação, retomamos
o crescimento. E um crescimento diferente, resultado de
um amplo processo de distribuição de renda, expansão
do emprego nunca vista, aumentos dos salários acima
da inflação, apoio à agricultura familiar, generalização do
crédito, sobretudo para os mais pobres, e sólidas políticas
governamentais em educação, habitação e saneamento
básico. Tudo isso provocou uma profunda mudança econômica e social em nosso país.
Diferentemente do passado, pudemos realizar essa
transformação mantendo o equilíbrio macroeconômico
e reduzindo consideravelmente nossa vulnerabilidade
externa. E o mais importante é que tudo isso ocorreu em
pleno ambiente democrático.
Nossa diplomacia, reconhecidamente uma das melhores do mundo, e o interesse do Presidente da República
no trato das questões internacionais, contaram muito.
Mas o novo lugar que o Brasil passou a ocupar no mundo
é, sobretudo, uma conquista da sociedade brasileira.
Essa é uma aspiração histórica da diplomacia brasileira, que meu governo encampou com afinco. O Conselho
não pode continuar preso a uma realidade internacional
completamente superada e a uma correlação de forças
que não existe mais. Um mundo mais democrático na tomada de decisões que afetam a todos é a melhor garantia
de nossa segurança coletiva. A reforma do Conselho de
Segurança da ONU é um passo essencial pra isso ocorrer. O déficit de participação permanente dos países em
desenvolvimento no Conselho só agrava sua falta de legitimidade e de autoridade. É inexplicável que em pleno século XXI regiões tão importantes como a América Latina e
a África não tenham assentos permanentes no Conselho.
Para dar novo impulso à reforma, nós criamos o G4 (Brasil,
Índia, Alemanha e Japão). Já contamos com importante
número de apoios, inclusive de membros permanentes
como França e Reino Unido. Sempre tive plena consciência de que o processo não seria fácil e levaria tempo, mas
nem por isso iríamos desistir desse desafio. Não tenho
dúvida de que quando a reforma vier, o Brasil será contemplado com um assento permanente.
A entrada da Venezuela no MERCOSUL interessa ao Brasil em todos os sentidos. A Venezuela é um grande país,
com uma população de 27 milhões de habitantes, com
nível de renda elevado. Possui uma das maiores reservas
de petróleo e gás do mundo. Essa ampliação permitiu
projetar o MERCOSUL à sub-região andina da América do
Sul, além de fortalecer os vínculos e as oportunidades de
desenvolvimento da região amazônica. Essa tendência se
fortalece com a decisão boliviana de ingressar no bloco e
a crescente aproximação com o Equador. Mas não creio
que isso ocorra em detrimento da ALBA. São duas iniciativas distintas – mas não opostas – de integração regional.
A ALBA é um grande acordo de cooperação, não é uma
união aduaneira e nem um acordo de livre-comércio.
Quem perdeu muito nos últimos anos como projeto de
integração foi a Comunidade Andina. Mas isso ocorreu
bem antes da saída da Venezuela. Quando Colômbia e
Peru decidiram negociar individualmente acordos de livre-comércio com a União Européia e os Estados Unidos,
a Comunidade Andina ficou muito fragilizada.
Ricardo Stuckert
Na recente Cúpula do Mercosul, a Bolívia
assinou o protocolo de adesão ao bloco e o
Equador sinalizou interesse. A entrada desses
países e da Venezuela indica, na opinião
do senhor, um reconhecimento do modelo
de integração do MERCOSUL sobre outros
projetos, como o da ALBA?
41
memória diplomática
memória diplomática
42
Intrusas no lago
dos cisnes
Natália Shimada
Como uma insólita reportagem lançou-me em uma improvável
viagem pelo passado de duas corajosas mulheres no Itamaraty, e o
que aprendi no percurso
43
memória diplomática
A edição de junho de 1959 da revista “Lady”
parecia estranhamente interessada na possibilidade de diplomatas mulheres conseguirem a introdução de um “fardão” diplomático
feminino no vetusto ambiente de trabalho do
Itamaraty. “Os homens têm seu uniforme de
embaixador, mas as mulheres, não. É preciso
44
que tenham”, defendia a publicação. Hoje, 54
anos depois, o anacrônico fardão não é nem
remotamente uma das preocupações das
mulheres no Itamaraty. Nas últimas décadas,
conquistamos espaço e notoriedade, mas a
representatividade feminina na carreira continua relativamente baixa.
As mulheres entre os cisnes
A inusitada publicação foi parar em nossas mãos por meio de nosso professor de
Direito Internacional, Dr. Márcio Garcia – assíduo e curioso frequentador de sebos da
capital federal. Na capa, um ecktachrome
da atriz Tônia Carrero seguido por um título
que, hoje, poderia soar algo irônico: “Tônia
Carrero, um rosto bonito”.
Entre matérias sobre cuidados com o sol,
artigos que prenunciavam os livros de autoajuda e dicas sobre moda, encontrava-se a
reportagem que chamara a atenção de nosso
professor. Uma matéria curta, de quatro páginas ricamente ilustradas por fotografias, sob
o título “Itamarati (sic) aceita mulheres entre
os cisnes”. O objetivo da matéria era retratar a
presença feminina no Ministério das Relações
Exteriores, bastante escassa à época. Segundo
a revista, havia então apenas 19 mulheres na
carreira diplomática.
Além de fazer um breve percorrido pelo histórico de avanços e retrocessos da mulher no
Serviço Exterior Brasileiro, a reportagem detinha-se no perfil das únicas quatro “moças” que
seguiam os cursos do Instituto Rio Branco. Duas
cursavam já o segundo ano - a pernambucana
Maria Natividade Duarte Ribeiro e a carioca
Anunciata Padula - e as outras duas, Maria Rosita Guliker de Aguiar e Thereza Maria Mendes
Machado, ambas cariocas, recém ingressavam
na academia diplomática.
O texto tratava das perspectivas para a carreira e da vida pessoal das quatro diplomatas.
Destacava o desejo das moças de “sair do Brasil
e levar nosso país para bem longe, propagá-lo o
máximo possível e, talvez, um dia serem notícia
internacional, como foi Claire Boothe Luce (sic)”
- política norte-americana e a primeira mulher
designada para chefiar uma grande embaixada
de seu país, em Roma, durante o governo de
Dwight D. Eisenhower, na década de 1950.
Ao explicar que as moças
não poderiam se casar
com outro diplomata, a
reportagem julga que “essa
proibição é lógica”, já que,
“sendo ambos de carreira, o
que aconteceria se ele fosse
nomeado, por exemplo,
para o Japão, e ela para a
África do Norte (sic)?”
O periódico também enfatizava a preocupação com a vida amorosa das jovens diplomatas, já que, naquele momento, eram todas
solteiras. “Sabem que a escolha de um marido,
na sua carreira, é mais difícil. Há de ser um
homem que possa acompanhá-las onde (sic)
quer que forem”, destaca a revista. “-Um marido pintor, por exemplo, é ideal...”, concluiu
uma das entrevistadas. Na época, valia ainda a
proibição de casamento entre um diplomata e
um funcionário público, que só seria revogada
em 1961. Com relação a essa questão, a revista reflete com precisão a mentalidade de seu
tempo. Ao explicar que as jovens não poderiam se casar com outro diplomata, a reportagem julga que “essa proibição é lógica”, já que,
“sendo ambos de carreira, o que aconteceria
se ele fosse nomeado, por exemplo, para o Japão, e ela para a África do Norte (sic)?” Naturalmente, nada havia de lógico nessa proibição
– tanto é verdade que, hoje, casamentos entre
colegas de profissão não são raros no Itamaraty. O texto afirmava ainda que as jovens dificilmente abandonariam a carreira para se casar
com um colega.
45
memória diplomática
Mais de meio século depois da edição nº 28
da revista Lady, seria possível investigarmos
como cada uma dessas quatro diplomatas
conduziu sua carreira na diplomacia? Teriam
obtido igual ou ainda maior êxito que a diplomata norte-americana? Como conciliaram a
profissão com a vontade de constituir família?
Eu me fazia essas perguntas ao iniciar meu
trabalho - sem saber por onde começar. Afinal,
como encontraríamos essas diplomatas? Inevitavelmente, todas já estariam aposentadas
e talvez, casadas, tivessem adotado um novo
sobrenome. O que se seguiu – para a minha
sorte, e para a sorte do leitor da JUCA - foi uma
série de agradáveis coincidências, que permitiram contato pessoal com duas das entrevistadas pela revista Lady, Thereza e Rosita.
Logo no início, aprendemos que a Thereza da reportagem era a embaixadora
Thereza Maria Machado Quintella, mãe do
ministro Ary Quintella - nosso professor no
Instituto Rio Branco. Dada essa coincidência, foi-nos possível saber um pouco mais
sobre a vida da embaixadora Thereza. Descobrimos, por exemplo, que olhávamos para
seu retrato quase diariamente, na antessala
do auditório Embaixador João Augusto de
Araújo Castro, no Instituto, onde se encontra uma galeria de todos os Diretores-Gerais
de nossa academia. Eu sempre prestava bas-
Foi assim que soubemos
que, sim, a embaixadora
Thereza havia sido
extremamente bemsucedida em sua carreira
– como planejara no dia em
que concedera a entrevista,
em 1959
46
tante atenção nessa fotografia em particular, porque era a única que retratava uma
mulher, em meio a mais de uma dezena de
fotografias masculinas. Foi assim que soubemos que, sim, a embaixadora Thereza havia
sido extremamente bem-sucedida em sua
carreira – como planejara no dia em que
concedera a entrevista, em 1959.
Rosita teve uma carreira bastante diferente.
Pouco tempo depois de entrar para o Itamaraty, apaixonou-se por um colega de profissão,
Luiz Villarinho Pedroso, que viria a ser nosso
embaixador em Riade e Varsóvia, nos anos
1980 e 1990. Para possibilitar o casamento,
Rosita precisou deixar a carreira e, embora tenha sido readmitida alguns anos mais tarde,
aposentou-se ainda como Segunda Secretária.
Quando tomei conhecimento de que o desenvolvimento das carreiras das duas - que se
iniciaram na mesma data - havia sido tão diferente, senti que precisava descobrir mais sobre
a vida dessas diplomatas para entender os motivos e razões dessas diferenças. Senti, ainda,
que a história das duas diplomatas estava intrinsecamente ligada à história da mulher no
Itamaraty, com seus avanços e retrocessos ao
longo das décadas. Eu sabia que tudo isso teria
profunda relação com minha própria história.
Afinal, também sou diplomata, sou mulher e
trabalho em um ambiente ainda predominantemente masculino. Assim como aquelas quatro jovens da reportagem, estou em início de
carreira, tenho planos, sonhos e ambições. Era
hora de conhecê-las pessoalmente.
Percalços na caminhada rumo
ao topo
A embaixadora Thereza Quintella gentilmente recebeu-me em sua casa no Rio de
Janeiro, numa manhã de domingo. Logo que
entrei, chamou-me a atenção a grande quantidade de móveis e peças decorativas prove-
nientes das mais variadas partes do mundo. A
tapeçaria e as caixinhas russas foram os itens
que mais atraíram meus olhares. A embaixadora explicou-me que praticamente tudo o
que estava dentro daquela casa havia sido
adquirido na Áustria, Rússia e Estados Unidos,
países onde estavam localizados os últimos
postos em que serviu. Depois de tomarmos
juntas um delicioso café da manhã, conversamos durante longo tempo na sala de sua residência, de onde tínhamos uma vista belíssima
para a praia de São Conrado.
A embaixadora contou-me que não lia nem
conhecia a Revista Lady - até o dia em que o
repórter visitou o Instituto Rio Branco. Confessou-me que sentia vergonha da matéria e
que esta foi motivo de piada entre os colegas
durante um bom tempo, porque consideravam-na “boba demais”. De fato, o tom da reportagem é leve, ingênuo e quase patriarcal.
Propositadamente ou não, retrata as alunas
como “moças” inocentes, cuja “ideia fixa” era
“introduzir o ‘fardão’ diplomático para as mulheres”. Na legenda de uma das fotos, elas são
descritas como “confiantes no futuro e na sua
carreira, jovens alegres e de sorriso satisfeito”.
Thereza sequer guardou uma edição da revista Lady. Uma amiga, Alcina Carbonar, mulher
do embaixador Orlando Soares Carbonar,
guardou um exemplar e, muitos anos depois,
por ocasião de uma mudança, presenteou-a
com a revista.
47
memória diplomática
A embaixadora recorda que
as dificuldades começaram
logo na primeira escolha
de lotação. Thereza foi
designada para a área de
emissão de passaportes
e Rosita, para a consular,
que na época “eram as duas
divisões menos valorizadas
no Itamaraty”
48
Naquela época, diferentemente do que
ocorre hoje, os alunos do Rio Branco não recebiam remuneração. Entre as quatro diplomatas entrevistadas, Anunciata era a única que
recebia bolsa, porque havia deixado o emprego no Ministério do Trabalho para se dedicar
ao curso. Da turma de Thereza, apenas dois
colegas ganhavam uma “bolsa simbólica”, nas
palavras da embaixadora, por serem os únicos
que não vinham de uma família carioca. “As
pessoas tinham praticamente que apresentar
um certificado de indigente para receber a
bolsa”, lembra Thereza.
Conversamos longamente sobre a trajetória profissional da embaixadora e sobre os
obstáculos por ela encontrados. A princípio,
Thereza disse que não havia se dado conta
daquilo que identificou como preconceito
contra a mulher no Itamaraty. Isso porque o
Departamento Político (equivalente ao que
hoje é uma Subsecretaria-Geral) era chefiado
por uma mulher, da mesma forma que o Rio
Branco também era comandado, na prática,
por uma ministra, a segunda na hierarquia do
Instituto. Para ela, as mulheres tinham um lugar de destaque na carreira.
No entanto, a embaixadora recorda que as
dificuldades começaram logo na primeira escolha de lotação. Thereza foi designada para
a área de emissão de passaportes e Rosita,
para a consular - que, à época, “eram as duas
divisões menos valorizadas no Itamaraty”. Se
tivesse tido a chance de escolher, teria optado pela Divisão do Pessoal, que acreditava
ser uma oportunidade de se fazer conhecida
dentro do Ministério, uma vez que não tinha
parentes na carreira. Thereza avalia que, naquele momento, o mérito pesou menos que
o gênero, já que, ao final do curso no Instituto Rio Branco, havia ficado em sexto lugar em
uma turma de 13 pessoas e, mesmo assim,
não conseguiu trabalhar com o que queria. Os
homens, por sua vez, costumavam ser designados para as áreas políticas e econômicas.
Houve mais uma decepção na primeira remoção, em 1964. Thereza desejava um posto
na América do Sul, porque já era casada e o
marido não poderia acompanhá-la ao exterior.
Assim, as visitas mútuas seriam facilitadas. No
entanto, foram-lhe oferecidos postos que considerava de menor prestígio, os consulados em
Baía Blanca, na Argentina, e em Valparaíso, no
Chile. Preferiu a primeira opção.
Cinco anos depois, na segunda remoção,
quando quis sair do país novamente, expôs seu
interesse por uma experiência em embaixada,
mas somente ofereceram o consulado em Gênova, na Itália. Dessa vez, Thereza conta que
resolveu adotar postura mais ativa e empenhou-se para conseguir um posto de seu agrado. Elaborou uma lista de nove postos em que
teria interesse em servir e seu chefe à época
apresentou-a ao responsável pelas remoções.
A lista incluía Nova York, Washington, entre
outros. O esforço rendeu frutos e foi removida
para Bruxelas, em missão junto à Comunidade
Econômica Europeia. Com base nessas primeiras experiências, a embaixadora avalia que, no
início de sua carreira, as mulheres sofriam discriminação. “A administração dava um jeito de,
sem que a gente percebesse, nos colocar de
lado, nos deixando em posições menos relevantes. Quando a gente percebia, estava totalmente fora do mainstream”, desabafou. A embaixadora considera, ainda, que outras colegas
não tiveram a mesma sorte que ela, “não souberam se impor em um mundo dominado por
homens nem souberam demonstrar seu valor
profissional”. Conta, por exemplo, que, a uma
colega, “pediam que fosse ao banco, para fazer
esse tipo de serviço, mesmo com a presença de
contínuos na divisão”.
Para sua terceira remoção, Thereza demonstrou interesse em servir na Bacia do Prata, novamente, por questões familiares. Decidiu-se
que ela deveria ir para Montevidéu, no Uruguai,
onde havia três postos (embaixada, consulado
e missão junto à Associação Latino-Americana
de Livre Comércio). Ao designá-la para este último, seus superiores justificaram-se afirmando
que ela não poderia ir para nenhum dos outros
dois postos, porque já havia uma mulher em
cada um – um estranho critério de lotação.
Como se não bastasse a desconfiança vinda
dos homens, havia ainda o receio de algumas
mulheres em relação a seu trabalho. Esse dado
curioso foi retratado pela Secretária Viviane Rios
Balbino, em seu livro “Diplomata: substantivo
comum de dois gêneros”. Segundo as pesquisas
realizadas pela autora, não são raros os casos
em que mulheres afirmam preferir trabalhar
com chefes homens, em detrimento de chefias
do mesmo sexo. Os motivos para essa preferên-
49
memória diplomática
cia variam bastante, mas quase sempre estão
relacionados a certos preconceitos de gênero,
como, por exemplo, a ideia de que as mulheres
seriam menos equilibradas emocionalmente.
Thereza lembra, ainda, que quando já era
conselheira e estava de volta ao Brasil, em 1979,
e foi convidada para ser chefe da Divisão de Imigração, houve quem duvidasse de sua eficiência
no cargo, já que deveria estar em contato direto
com a Polícia Federal, uma instituição predominantemente masculina. Mas ela conta que não
teve problema algum com a Polícia Federal e
que, ao contrário, construiu ótimo relacionamento com seus interlocutores. Em meados da década de 1990, como embaixadora em Moscou,
também não enfrentou dificuldades por ser mulher. “As autoridades russas sempre me trataram
com enorme cordialidade e respeito”, diz
Obstáculos jurídicos à
ascensão da mulher
Nos anos 1990, havia a percepção de que
já era chegada a hora de uma mulher ser promovida a embaixadora, e Thereza encontravase entre as candidatas naturais. Em 1987, foi
promovida a Ministra de Primeira Classe e trabalhou para que seu feito fosse repetido por
outras colegas. Como Diretora-Geral do Instituto Rio Branco (cargo que ocupou entre 1987
e 1991) e como Presidente da Fundação Alexandre de Gusmão (entre 2001 e 2005), a embaixadora sempre trabalhou para a realização
de eventos e seminários que discutissem a situação da mulher em atividades profissionais
e círculos de poder, em geral, e no Itamaraty,
em particular. Para ela, o primeiro passo para
evitar que certas injustiças continuem a ocorrer é reconhecer que o preconceito e a discriminação existem e devem ser combatidos.
Em 1995, acompanhou, na IV Conferência das
Nações Unidas sobre a Mulher (Pequim), a então primeira-dama Ruth Cardoso, que chefiou
50
a delegação brasileira na ocasião. Thereza, no
entanto, lamenta que muitas mulheres tão ou
mais capazes que ela não tenham conseguido prosperar na carreira, devido aos múltiplos
obstáculos que se ofereciam às mulheres.
Maria Rosita fez uma
escolha que sequer lhe
passava pela cabeça
naquele junho de 1959:
pediu exoneração para se
casar com um colega. Sua
decisão foi motivada pela
lei que proibia o casamento
de diplomata com
funcionário público – lei de
1946 que, Rosita acreditava,
continuava em vigor
Apesar de a história profissional de Thereza
ter sido de sucesso, ela pode ser considerada a
exceção, e não a regra, entre as mulheres que
ingressaram na diplomacia em meados do século XX. Além de casos de preconceito, como
os relatados pela embaixadora, muitas mulheres sofriam as consequências da proibição do
casamento com outros funcionários públicos e
do instituto da agregação.
Maria Rosita de Aguiar Pedroso é um desses casos. Visitei-a em sua residência, no Rio de
Janeiro, onde fui calorosamente recebida por
ela, seu marido, o Embaixador aposentado Luiz
Villarinho Pedroso e o filho do casal, o ministro
Luiz Eduardo de Aguiar Villarinho Pedroso. Conversamos durante uma tarde inteira, na sala de
seu apartamento na praia de São Conrado.
“Quando voltei pro
Ministério, mais de dez
anos depois, meus colegas
de turma já eram todos
conselheiros, ministros”,
afirma Rosita. “Alguns
funcionários ficavam até
sem graça de me chamarem
de secretária”, lembra, com
um sorriso no rosto
Maria Rosita fez uma escolha que sequer lhe
passava pela cabeça naquele junho de 1959:
pediu exoneração para se casar com um colega. Sua decisão foi motivada pela lei que proibia o casamento de diplomata com funcionário público – lei de 1946 que, Rosita acreditava,
continuava em vigor.
Anos depois, quando o casal vivia em Lima,
Rosita descobriu que tal lei já não existia. Fora
modificada em 1961, pelo então presidente
Jânio Quadros, pouco antes do casamento.
O casal conta que ficou sabendo dessa mudança porque um amigo diplomata, o futuro
embaixador Gilberto Velloso, havia se casado
com uma professora primária que, apesar de
ser funcionária pública, não precisou pedir
exoneração. Quando soube da revogação da
lei, Rosita iniciou sua saga para ser reincorporada ao Serviço Exterior Brasileiro. Naquele
momento, duas opções se apresentavam: a
reintegração e a readmissão, sendo a primeira
muito mais complexa que a segunda, já que
envolvia o recebimento de todos os benefícios que a diplomata havia deixado de receber durante os anos em que ficou afastada. A
readmissão, por outro lado, era um processo
mais simples e, por ser um procedimento me-
ramente administrativo, dependia apenas da
assinatura do Ministro das Relações Exteriores.
Durante a entrevista, o casal mostrou-se
um pouco ressentido com a Administração
do Ministério da época, que “deveria estar sabendo da mudança da lei e ter nos alertado”,
evitando assim que Rosita ficasse tanto tempo
fora dos quadros do Itamaraty. “Quando voltei
pro Ministério, mais de dez anos depois, meus
colegas de turma já eram todos conselheiros,
ministros”, afirma Rosita. “Alguns funcionários
ficavam até sem graça de me chamarem de
secretária”, lembra, com um sorriso no rosto.
Mesmo após sua readmissão, Rosita continuou sendo prejudicada pelas leis da época,
que, em casos de remoção, obrigavam um dos
cônjuges à “agregação”, ou seja, “afastamento
do exercício do cargo”, neste caso, “para acompanhar o cônjuge, funcionário da Carreira de
Diplomata, removido para posto no exterior
ou que já se encontre servindo no exterior”.
Esse período não contava como tempo de
serviço e, por isso, a carreira do cônjuge que
decidia pela agregação era atrasada. Evidentemente, as normas não diziam que a mulher
deveria ser o cônjuge a agregar, mas, na prática, era muito mais comum que elas abrissem
mão de suas carreiras para acompanhar os
maridos. Assim aconteceu com Rosita e com
muitas outras, prejudicando a trajetória de várias mulheres competentes que não conseguiram trilhar o mesmo caminho de Thereza, que,
nas palavras do embaixador Luiz Villarinho Pedroso, “foi a melhor embaixadora que o Brasil
teve no século passado”.
Nosso “fardão” atual
Os obstáculos jurídicos que diminuíam a
presença feminina no Itamaraty foram todos
derrubados ao longo do século XX. A partir
de 1954, o concurso à carreira voltou a admitir o ingresso de mulheres. Alguns anos mais
51
memória diplomática
Os obstáculos legais que
diminuíam a presença
feminina no Itamaraty
foram todos derrubados ao
longo do século XX. Apesar
de tudo isso, a discrepância
entre os gêneros, em
termos numéricos, ainda
permanece. O percentual
de mulheres na carreira de
diplomata continua baixo,
em torno de 20%
tarde, a proibição de casamento entre diplomatas e servidores públicos deixa de existir,
assim como a obrigatoriedade da agregação
para acompanhar cônjuge em missões no exterior. No início do século XXI, acompanhando
política informal de valorização da mulher na
diplomacia, muitas diplomatas foram promovidas às classes superiores da carreira e hoje
Luiz Villarinho Pedroso e Maria Rosita
52
Thereza Quintella
ocupam lugar de destaque nos quadros do
Itamaraty, tanto na Secretaria de Estado quanto em postos no exterior. Apesar de tudo isso,
a discrepância entre os gêneros, em termos
numéricos, ainda permanece. O percentual de
mulheres na carreira de diplomata continua
baixo, em torno de 20%, índice que se mantém mais ou menos inalterado nas diversas
classes da carreira.
A questão de gênero sempre esteve muito
presente na turma 2011-2013 do Instituto Rio
Branco. Somos apenas três mulheres, em um
universo de 26 alunos e representamos, assim, um pouco mais de 10% do total. Essa cifra
pode ser considerada um recuo, visto que, nos
últimos anos, entre um quarto e um quinto
dos aprovados no concurso eram mulheres.
Felizmente, nossa turma parece ter sido um
ponto fora da curva. A turma 2012-2014 tem
nove mulheres, em um total de 30 alunos.
Não raras foram as vezes que palestrantes
e professores nos indagaram sobre a quantidade de mulheres na turma. E, após nossa
resposta, a reação costumava ser a mesma:
olhos esbugalhados e desconforto, geralmen-
te acompanhados de algum comentário de
pesar. Antes de entrar na carreira diplomática,
eu nunca havia pensado que poderia haver
uma sub-representação feminina no Ministério. Lembro-me bem da primeira vez que tive
a chance de refletir sobre isso. Em maio de
2012, uma jornalista de O Globo entrou em
contato comigo para uma rápida entrevista
sobre como era ser mulher em uma carreira
considerada tipicamente masculina. A matéria
intitulada “Invasão feminina nas carreiras públicas” identifica, além da diplomacia, as áreas
fiscal, de segurança pública e a jurídica como
tradicionalmente masculinas.
Muitas são as possíveis explicações para a
baixa proporção de mulheres em nossa carreira, como aponta o já mencionado livro de Viviane Rios Balbino. Entre elas, está exatamente
a imagem masculina da carreira, corroborada
pela mídia. Além disso, as características peculiares da profissão poderiam engendrar difi-
culdades para a convivência com o cônjuge e
para a criação dos filhos, o que a autora chama
de “mito da impossibilidade de constituição de
uma família”. A relativa menor obstinação das
mulheres, quando comparada à dos homens,
em serem aprovadas no concurso, também é
analisada nesse livro como uma possível razão
para a sub-representação feminina.
Sejam quais forem os motivos atuais da
baixa presença de mulheres no Itamaraty, certamente, hoje, eles são menos numerosos e
menos impeditivos do que há 50 anos - o que
deve ser motivo de orgulho para o Ministério
e para a sociedade brasileira. Ainda assim, e
apesar dos avanços, podemos pensar que o
gradativo aumento da participação feminina
no Itamaraty deve ser ideia fixa e objetivo de
toda a instituição – deixando para trás, definitivamente, os tempos em que diplomatas mulheres eram uma curiosidade vista com complacência e paternalismo.
53
memória diplomática
A linha que não alinha
Filipe Nasser*
A política externa brasileira e o Movimento dos Não-Alinhados
Índia, Egito, Indonésia, China, Turquia. Seleção das
potências emergentes. Estrelas da nova multipolaridade. Próceres de uma ordem internacional mais
global, colorida, plural; menos assimétrica, hegemônica, ocidental. Marrons, azeites e amarelos a diluir a
branquelice reinante na elite dirigente dos assuntos
globais.
Mas – epa! – cadê o Brasil nesse escrete? Onde está
o abre-alas dos BRICS? O vértice central do IBAS? O
dínamo da Unasul? O anfitrião da Cúpula América
do Sul-Países Árabes? O enfant terrible de Cancun? O
meio-campista de Teerã?
Surpresa: não estava. Bem, pelo menos não com
a sua força máxima, que fique claro. É óbvio que não
estamos falando do mundo circa 2008. Afinal, o Brasil
tem – e deve ter! – cadeira cativa em qualquer novo
arranjo da governança global.
O ano agora é 1955. A ordem ainda é rigidamente
bipolar. Estamos na Primeira Conferência Afro-asiática, realizada, entre 18 e 24 de abril, em Bandung, na
Indonésia. Pelos umbrais do Gerdung Meka – o centro de conferências da cidade javanesa, hoje museu
que homenageia a conferência –, cruzou o diplomata brasileiro Adolpho Justo Bezerra de Menezes, que
ocupava o honroso cargo de Segundo Secretário da
Embaixada em Jacarta. Relata nosso homem em Bandung, entusiasta do movimento cujas sementes testemunhou serem semeadas:
Bandung firmou-se como um símbolo do término da intromissão do Ocidente, direta e soberanamente, nos negócios da Ásia e da África. Foi um marco, mostrando
o fim de um período começado em 1493, com a chegada de Vasco da Gama às
Índias. No entanto, se a conferência teve esse caráter impiedoso, ao dar bilhete azul
aos ocidentais que ainda desejavam permanecer por aqui como patrões, também
teve o mérito de proporcionar clima de conciliação e de apaziguamento de que
todo o mundo bem estava carecendo. 2
54
1
Verdade seja dita: o Brasil, por mais que possa se
orgulhar das muitas proteínas africanas e asiáticas
em seu DNA, não pertencia geográfica, geopolítica
ou espiritualmente ao mundo afro-asiático em contexto de descolonização e de ebulição das independências nacionais. Enquanto o Terceiro Mundo
adquiria contornos e feições mundo afora – firmando-se verdadeiramente como conceito operacional
das relações internacionais –, Juscelino Kubitschek
chegava ao poder e, com ele, a promessa de que o
Primeiro Mundo aterrisaria no Brasil.
Não que JK não desse bola para outros países
em desenvolvimento e para seus líderes – Juscelino recebeu vários deles, inclusive em uma ainda
“infundada” Brasília—, mas a auto-imagem que se
buscava projetar era de afirmação do Brasil moderno, democrático, ocidental, embicado na pista
do desenvolvimento e da prosperidade. O espírito
prevalecente no Catete e, depois, no Planalto ainda
não era de contestação da estrutura da ordem internacional de um ponto de vista dos injustiçados
deste mundo.
Se foi em Bandung que se plantou a semente
do Movimento dos Não-Alinhados (MNA), o desabrochar teve palco em Belgrado, na antiga Iugoslávia. A primeira Cúpula de Chefes de Estado do
MNA foi patrocinada por Josip Broz Tito, entre 1º
e 6 de setembro de 1961, sob a sombra do temor
de aniquilação nuclear mútua entre as superpotências. Naquele ano, já não havia meias palavras
sobre a divisão do mundo em dois campos geopolíticos e ideológicos antagônicos. Além disso, a
onda de descolonização que varria o mundo afroasiático já havia demonstrado, a quem quisesse
ver, sua irreversibilidade.
1 Registro aqui um agradecimento especial aos amigos Dawisson Belém Lopes, João Augusto Costa Vargas, Luiz Feldman e Matias Spektor, sem cujas observações, sugestões e críticas
este ensaio jamais teria superado – se é que chegou a superar – o estágio do subdesenvolvimento.
2 DE MENEZES, Adolpho Justo Bezerra. O Brasil e o mundo ásio-africano. Brasília: FUNAG, 2012, pp. 252.
* Filipe Nasser foi o editor-chefe da JUCA 1, de 2007
Na reunião preparatória da Cúpula de Belgrado,
esta realizada no Cairo, entre 5 e 12 de junho daquele mesmo ano, o observador brasileiro foi ninguém
mais ninguém menos do que João Augusto de Araujo
Castro. Em seu relatório, Araujo Castro observou, em
um tom crítico sobre as perspectivas de participação
brasileira:
Nenhum outro país enviou ‘observador’ ao Cairo. A única explicação plausível para
nossa atitude, aos olhos das chancelarias, era de que a nova política exterior do
Brasil desejava precisar em que consistia o não-alinhamento, a fim de determinar
se era ou não possível, dentro do quadro de seus compromissos internacionais, examinar a possibilidade de seu comparecimento à conferência de cúpula. 3
A esta altura, já vingava a Política Externa Independente (PEI) de Jânio Quadros, que incorporou o Sul ao
radar diplomático brasileiro. Quadros reservava à política externa o espaço de progressismo possível em seu
Governo, já que a sua política econômica se servia despudoradamente do ideário ortodoxo-liberal da época.
Expressar solidariedade terceiro-mundista em face da
comunhão de problemas advindos do subdesenvolvimento compunha o quadro em que política interna
e o projeto de inserção internacional do Brasil se fundiam na aurora dos anos sessenta. Apesar de Quadros
jamais ter disfarçado a inspiração que buscou nos líderes do Movimento, isso não implicou adesão ao MNA.
Parte da resistência brasileira advinha das incertezas a respeito do leme conceitual do movimento: afinal do que se tratava extamente aquela posição de
“meio” no calor da Guerra Fria? A desconfiança em torno do emprego do termo “neutralismo” para designar
o Movimento dos Não-Alinhados, por exemplo, era reconhecida por Araujo Castro:
Evitava-se cuidadosamente a introdução do conceito de “neutralismo”, “neutralidade”, ou mesmo “neutralidade ativa” (...) O não-alinhamento não significaria,
assim, indiferença ou alheamento aos problemas que contribuem para a caracterização da crise mundial; existe, pelo contrário, subentendida, a premissa,
um tanto farisaica, de que somente os países não-alinhados, eqüidistantes dos
dois blocos de potências, estavam em condições de contribuir para a gradual
consolidação da paz. 4
O Chanceler Afonso Arinos desfaz um outro nó
da malha conceitual, distinguindo neutralidade, à
suíça, do neutralismo terceiro-mundista.
A nossa política é independente mas não neutralista, principalmente porque, na
minha opinião, o neutralismo é uma forma de engajamento (...) A neutralidade
é uma posição diplomática e jurídica suficientemente esclarecida, analisada, estudada, pesquisada e exposta (...), [a]o passo que o neutralismo representa, sem
dúvida, com todas as vantagens, com toda a importância desta ação, um determinado tipo de ação que não é abstenção, que não é omissão, mas é, isto sim,
influência e intervenção. 5
A citação faz sair à superfície outro elemento
importante para compreender o entusiasmo morno do Brasil: o espírito de Bandung arriscava colidir
com a tradição soberanista e não-intervencionista
da política externa brasileira em um momento de
nossa história política, social e diplomática que (ainda) não admitia a flexibilização e relativização de
tais conceitos. Talvez resida aí um das contradições
inerentes à PEI: cheia de opinião sobre os ventos
do mundo, mas ainda hesitante em manobrar os
lemes da História.
O Brasil nunca integrou o MNA plenamente.
Mantém, desde então e até os dias de hoje, o status de observador junto ao agrupamento. Daí a
pergunta: o que explica que um país que tem or-
3 CASTRO, João Augusto de Araujo. Documento 12. Relatório do ministro João Augusto de Araújo Castro, observador do Brasil à Reunião Preliminar da Conferência de Chefes de Estado
e Governo de Países Não-Alinhados apud FRANCO, Álvaro da Costa (Org.). Documentos da Política Externa Independente. Volume 1. Rio de Janeiro: CHDD & Brasília, FUNAG, 2007, p. 94.
4 CASTRO apud FRANCO (2007). pp. 94-95.
5 FILHO, Afonso Arinos. Diplomacia Independente. Um legado de Afonso Arinos. São Paulo: Ed. Paz & Terra, p. 231.
55
memória diplomática
gulho de uma política externa historicamente independente, tão frequentemente assumindo, em
caráter formal ou informal, o papel de porta-voz
dos anseios do mundo em desenvolvimento, nunca tenha participado plenamente do MNA – megafone dos povos marginalizados deste planeta?
A resposta curta e fácil é que o caráter “independente” que se procura imprimir historicamente à política externa brasileira (ou a seu discurso) se revelou
refratária a alinhamentos automáticos de qualquer
espécie, inclusive ao próprio não-alinhamento. Com
a palavra, novamente Araujo Castro:
Como tentamos definir, na breve declaração que fomos chamados a fazer
no âmbito da Conferência do Cairo, ‘nenhum país ou bloco de países, alinhados ou não-alinhados, tem (...) um monopólio sobre princípios ou monopólio sobre a independência’. (...) Continua extremamente vago e difuso
o conceito de não-alinhamento. Que é alinhamento? O Brasil é um país alinhado? Sabemos que não é neutro, que ideologicamente é parte do Ocidente. Podemos, entretanto, dizer com segurança que pertença ao ‘bloco ocidental’? Na realidade, nenhum ato jurídico internacional nos vincula à ‘defesa’
do Ocidente. (...) Não creio que tenhamos grandes vantagens políticas em
repetir que pertencemos ao bloco ocidental, porque uma rígida identificação
com o moderno conceito político de Ocidente, caracterizado como aliança
de países altamente industrializados, poderá dificultar nossos contatos com
o mundo do subdesenvolvimento, onde poderemos encontrar excelente
campo de ação para a dinamização da política exterior do Brasil. 6
Em artigo para a revista Foreign Affairs – publicado curiosamente somente após a sua prematura
renúncia –, Quadros oficializa a visão:
Not being members of any bloc, not even of the Neutralist bloc, we preserve
our absolute freedom to make our own decisions in specific cases and in
the light of peaceful suggestions at one with our nation and history. (…)
The first step in making full use of our possibilities in the world consists in
maintaining normal relations with all nations. 7
Traduzindo em miúdos, o Brasil se enxergava
tão desalinhado a quaisquer blocos de poder que
a hipotética participação formal no Movimento dos
Não-Alinhados parecia, na psiquê diplomática brasileira, com uma forma de alinhamento e, pior, de engessamento da ação externa brasileira.
Há um outro aspecto importante. É Arinos, o primeiro dos Chanceleres da PEI, quem articula a explicação de que a resistência expressada pela nossa
6
7
56
8
CASTRO apud FRANCO (2007), p. 95.
QUADROS, Jânio. Brazil New Foreign Policy. In Foreign Affairs. Vol. 40, N. 1 (Oct. 1961), p. 20.
FILHO (2001), p. 231.
diplomacia em se alinhar aos não-alinhados tem
origem nas divergências verificadas entre a identidade brasileira – particulamente debaixo do sol de
nosso interregno democrático – e o perfil político
dos países de proa do Movimento:
Quando observamos a gama de estados chamados neutralistas com vários dos
quais nos sentimos, no momento, ligados em aspectos específicos de natureza
econômica, e também em aspectos gerais de conduta política, ligados pelas mais
gratas, cordiais e afetuosas relações, concluímos que, nesses estados, prevalece
um certo tipo de estrutura político-constitucional que independe das ideologias
no sentido social, que os aproxima dentro de um certo quadro de aparelhamento
quase comum. O partido único instituído, a concepção da liberdade política, determinadas restrições à livre empresa econômica, determinadas conexões com blocos
internacionais, tudo isso estabelece ua homogeneidade formal, estrutural, com a
qual não nos sentimos, realmente, aparentados, nem mesmo aproximados. 8
A Política Externa Independente de Jânio Quadros e
João Goulart tinha como bússula a independência dos
Estados Unidos e da União Soviética. Entretanto, é lícito
admitir que o sentido implícito de conquista de autonomia no slogan diplomático brasileiro alvejava antes a
Casa Branca do que o Kremlin.
Já o Movimento dos Não-Alinhados, apesar de se
propor, nos dias altos de sua glória, bissetriz entre Washington e Moscou, era refratário à visão de mundo do
primeiro e mais próximo espiritualmente ao segundo.
No cômputo geral, naquele quadrante particular da História, é lícito supor que, se o Brasil estivesse mais próximo a um dos campos, este continuaria a ser o Ocidente.
Daí não se alinhar à OTAN, muito menos ao Pacto de Varsóvia... e nem à Declaração de Belgrado.
Os mesmos predicados que talvez fizessem do
Brasil líder natural dos Não-Alinhados, talvez tenham
distanciado o País dele: a grandeza das dimensões,
a tradição pacifista, a capacidade de aproximar posições entre pobres e ricos, entre pobres e paupérrimos (que vem acompanhada da indisposição de
tomar partido a priori).
De um ponto de vista externo, foram a identificação
com o Ocidente e os rumos do próprio Movimento
que distanciaram o Brasil da iniciativa capitaneada por
Nasser, Nehru, Nkruma, Sukarno e Tito. De um ponto
de vista interno, o projeto de modernização conservadora patrocinado mesmo pelo regime democrático, a
ausência de impulso popular em favor da afirmação da
identidade não-alinhada e, afinal, o triunfo, já em 1964,
de um regime de exceção marcadamente conservador
terão também afastado o Brasil do espírito de Bandung.
***
Mesmo que o canal preferencial não tenha sido o
Movimento dos Não-Alinhados, o conceito de Terceiro
Mundo foi paulatinamente incorporado ao discurso e
prática da política externa brasileira. O Brasil tem sido
mais ativo no G-77 – do qual é fundador e permanece,
até os dias de hoje, como membro ativo e politicamente engajado – e na construção do Diálogo Norte-Sul
nos fóruns internacionais mais, digamos, formais. Desse modo, é possível inferir que, historicamente, o Brasil preferiu exercitar seus músculos terceiro-mundistas
nas tribunas multilaterais sob as tendas da ONU. Afinal,
além de ocidental, o Brasil sempre foi un grand pays du
Sud e, no mais das vezes, devoto do multilateralismo
onusiano. Aliás, nas negociações relativas especificamente à agenda de desarmamento e não-proliferação
nuclear, a diplomacia brasileira é tipicamente associada
às posições não-alinhadas – qual seja, a militância contra a injustiça inerente à ordem nuclear global.
A política externa brasileira passou a alternar dois
paradigmas fundamentais – o globalista e o alinhamento à potência hegemônica –, frequentemente
apresentando os dois elementos combinados. Com
efeito, o paradigma globalista necessariamente representou a aproximação com outros países em desenvolvimento. Em outras palavras, no léxico da política
externa brasileira, universalismo pressupõe terceiromundismo, embora não se limite a ele.
Desde o advento da PEI, dois outros períodos da política externa brasileira apresentaram um marcado sotaque
sulista: o Pragmatismo Responsável do Presidente Geisel
e do Chanceler Azeredo da Silveira e a era precipitada
pelo Presidente Lula e pelo Ministro Celso Amorim.
A historiografia provavelmente confirmará a tese
de que a política externa geiseliana traduziu em ações
concretas o que a PEI pregou no plano discursivo e das
ideias. O encampamento efetivo da causa da descolonização, o discurso de urgência da reforma das instituições internacionais, o reconhecimento pioneiro da independência da Angola, o restabelecimento de relações
diplomáticas com a China Popular perfilam-se entre as
ações que posicionaram o Sul no centro da política externa brasileira e/ou em que o Brasil se afirmou internacionalmente como integrante do Terceiro Mundo.
Mais recentemente, a prioridade outorgada à aproximação com outros países em desenvolvimento não
encontrou eco particularmente no Movimento dos Não-
Alinhados, cuja atualidade deverá ter-se perdido sob
os escombros do Muro de Berlim. A própria noção de
Terceiro Mundo – tal como cunhada pelo historiador
francês Alfred Sauvy em tempos imemoriais, precisamente para agrupar os países que não eram nem
membros do bloco capitalista, nem do seu rival comunista – foi despida do significado original. Mesmo
a vulgar equiparação de Terceiro Mundo à pobreza
encontra-se algo datada, na medida em que a decantada redistribuição do poder global – causa e consequência da emergência das novas potências do antigo Sul – diluiu a fronteira entre quem é rico e quem
é pobre nas relações internacionais contemporâneas.
Para além da curiosidade histórica, este debate
sobre o não-alinhamento aos Não-Alinhados faz
algum sentido para a política externa dos nossos
dias? O Movimento dos Não-Alinhados pode até
oferecer um palco interessante para a apresentação dos pontos de vista brasileiros, mas certamente não se converterá na Sapucaí de nossas alegorias
diplomáticas. A pergunta a ser feita provavelmente é: existe um mapa de política externa brasileira
possível nesta curva da História que rejeite o Sul
como diretriz ou conceito operacional?
É possível especular que haja ênfases na construção
do discurso terceiro-mundista ou de contestação dos
rumos da governança global e sua prometida reforma.
É igualmente válida, do ponto de vista da execução da
política, a discussão sobre em quais arranjos bilaterais,
plurilaterais e multilaterais apostar. Para além disso,
permanece viva a questão se o Brasil se enxerga internacionalmente como membro do Sul e como isso se
traduz em projeto de inserção internacional.
Perguntas instigantes em um momento em que o
Brasil participa proativa e criativamente da formação
de geometrias variáveis de poder: IBAS, BRICS, Unasul,
CELAC, ASPA, ASA, o novíssimo mecanismo de coordenação Turquia-Brasil-Suécia, toda uma sopa de letrinhas diplomáticas dos nossos tempos.
Brasil, Índia, África do Sul, Indonésia, China, Turquia. Seleção das potências emergentes. Estrelas da
nova multipolaridade. Próceres de uma ordem internacional mais global, colorida, democrática; menos
assimétrica, hegemônica, ocidental. Marrons, azeites
e amarelos a diluir a branquelice reinante na elite dirigente dos assuntos globais.
57
memória (recente) diplomática
Os legados da Rio+20
Gustavo Cunha Machala
Jaçanã Ribeiro
O Embaixador Luiz Alberto Figueiredo e o Ministro Laudemar
Aguiar descrevem a transposição de um rubicão negocial e
logístico
Não são apenas 20 anos que separam a Rio
92 da Rio+20. As transformações mundiais nesse intervalo são gigantescas, seja em termos
econômicos e tecnológicos seja em termos
sociais e ambientais. As quase 50 mil pessoas
que se encontraram no Rio puderam participar de mais de 500 eventos oficiais e milhares
de debates e discussões públicas que fizeram
da cidade, por nove dias, a verdadeira capital
global. A participação não se restringiu a eventos presenciais. A estrutura de tecnologia da
informação desenvolvida pela organização
da Conferência permitiu que a sociedade civil
pudesse contribuir diretamente com a atuação
dos quase 12 mil delegados oficiais.
58
Na condução de toda essa logística, por parte do Itamaraty, esteve o Ministro Laudemar
Aguiar, Secretário Nacional do Comitê Nacional de Organização da Rio+20. Em entrevista
à Juca, o Ministro Laudemar alertou que os
modelos de licitação e de planejamento de
eventos dessa magnitude deveriam ser aprimorados urgentemente. Para tanto, sugere,
como um dos legados da Rio+20, a conscientização política de que a manutenção de um núcleo permanente de coordenação de grandes
eventos dentro do Itamaraty ajudaria a minimizar problemas decorrentes de convocações
inarredáveis de pessoal, que sempre acabam
por desfalcar seus postos de origem.
O Ministro Patriota encontra populações indígenas durante a Rio + 20
Um núcleo permanente de
coordenação de grandes eventos
dentro do Itamaraty ajudaria a
minimizar problemas decorrentes
de convocações inarredáveis de
pessoal, que sempre acabam por
desfalcar seus postos de origem.
Ministro Laudemar Aguiar
Contudo, para o Ministro Laudemar, antes
de representar uma história de vitória sobre o
inesperado, sempre presente na organização
de qualquer evento, a realização da Rio+20
permanecerá como uma comprovação da excelência da capacidade organizativa brasileira.
“O primeiro legado imaterial, o maior de todos,
é que o Brasil tem capacidade para fazer qualquer evento internacional de qualquer magnitude”. Na opinião do Ministro, o Brasil mostrou
que está fazendo desenvolvimento sustentável não só na teoria, não só com o Governo,
mas com as empresas e a sociedade civil como
um todo. Ademais, as campanhas de acessibilidade, de inclusão social, de parcerias, de conectividade, de sustentabilidade que fizeram
parte da Conferência, dão mostra de como o
modelo brasileiro faz escola na organização de
eventos multilaterais de grande magnitude.
Do ponto de vista da condução diplomática,
o salto brasileiro, nesses 20 anos, também foi
bastante qualitativo. Se em 1992 a diplomacia
brasileira atuava na defensiva, buscando resguardar interesses brasileiros e afastar as críticas de que o País era uma ameaça ao meio
ambiente, devido às queimadas na Amazônia
(confira entrevista do ex-presidente José Sarney, nesta Juca, falando sobre esse tema), no
início da segunda década do século 21, somos
uma diplomacia que procura estar na dianteira das discussões ambientais. Como explica o
Embaixador Luiz Alberto Figueiredo, chefe da
delegação brasileira à Rio+20, o papel brasileiro na condução das negociações que levaram
ao texto final da Conferência foi crucial, demonstrando a capacidade de nossa diplomacia de utilizar o instrumental técnico de que
dispõe o negociador multilateral. Confira, em
seguida, trechos da entrevista concedida pelo
Embaixador Figueiredo à Juca.
59
memória (recente) diplomática
A Conferência Rio 92 ficou marcada como
uma conferência que lançou documentos
seminais, processos que foram muito importantes na sequência das discussões sobre o Desenvolvimento Sustentável. O que
marcará a Rio+20?
Sem dúvida nenhuma, a Rio 92 e a Rio + 20
são conferências fundamentalmente diferentes.
A Rio 92 resultou do amadurecimento de vários
processos que convergiram para a conferência.
Por exemplo, a negociação das Convenções de
Biodiversidade e a do Clima, como também a de
Desertificação, a Agenda 21, os Princípios do Rio,
enfim, textos seminais para a consideração, até
hoje, dos temas de desenvolvimento sustentável.
A Rio +20 não é o desembocar de processos. Ela é,
sim, lançadora de processos novos. Ela não é o final de um caminho, ela é o início de um caminho.
Nesse particular, o tema pelo qual ela será, possivelmente, lembrada, é o lançamento do processo
dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável
(ODS). Abriu-se um processo de negociação que
será conduzido em Nova York e que desembocará
no ano de 2015, quando se espera que os países
adotem esses Objetivos. Os ODS têm um caráter
global que difere fundamentalmente dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), uma
vez que se destinam a todos os países e não apenas aos países em desenvolvimento. Eles têm um
olhar de sustentabilidade que os Objetivos do Milênio não necessariamente tiveram. Portanto, de
certa forma, os ODS serão complementares aos
ODM. Porém, os resultados da Conferência não
se esgotam nisso. A Rio + 20 lança várias novidades, vários aperfeiçoamentos até das Conferências desse tipo nas Nações Unidas, especialmente
na área de participação da sociedade civil. Como
vocês sabem, nós organizamos quatro dias de diálogos sobre temas de desenvolvimento sustentável, diálogos da sociedade civil, exclusivamente, em que não havia participação de governos,
no formato de 10 mesas redondas , sendo que
cada mesa preparou 3 recomendações que foram, depois, enviadas aos Chefes de Estado na
Conferência propriamente dita. Entretanto, o
exercício não se restringiu a esses quatro dias, ao
contrário: houve todo um processo preparatório
participativo, transparente, aberto, com o uso da
60
internet, de modo que qualquer pessoa poderia
opinar e sugerir questões. Desses diálogos participaram grandes especialistas de vários ramos
da sociedade civil, desde ONGs, empresas, academia, com a preocupação de equilíbrio de gênero e de equilíbrio norte-sul. Tivemos a intenção
de obter uma diversidade de opiniões real, uma
riqueza de pontos de vista. Portanto, essa inovação, que é uma inovação brasileira, ela marcará
muito essa Conferencia também, porque, após a
Conferência, nós ouvimos muito de outros colegas que “não vai se poder fazer novamente uma
conferência da ONU sem essa inovação”. Os próprios membros do Secretariado me disseram isso.
Foi uma inovação que o Brasil criou e que nós esperamos que prospere para outras conferências.
Tivemos uma palestra com o ex-Secretário-Geral Embaixador Ruy Nogueira durante nosso ano letivo de 2012, em que sua
atuação foi merecidamente elogiada, sobretudo quando se referiu aos desafios do
fechamento do texto. Inclusive, comentouse que com o texto da Conferência, “todos
ganharam e todos perderam”. Com relação
ao fechamento do texto, o Senhor poderia
comentar se houve também inovação na estratégia de ação diplomática brasileira?
Na verdade, o que a delegação brasileira fez foi
utilizar o instrumental que está à disposição do
negociador multilateral. Você tem que escolher o
processo de acordo com as necessidades da hora.
Nesse caso, foi uma escolha feita com certa ante-
Houve uma série de
manifestações das delegações
elogiando o espírito
democrático, transparente e
inclusivo que o Brasil imprimiu à
negociação. Alguns até disseram
que era um “renascimento do
multilateralismo no que ele tem
de melhor”.
A Rio +20 não é o
desembocar de processos.
Ela é, sim, lançadora de
processos novos.
cedência, pois era previsível que o Comitê Preparatório (CP) da Rio + 20 não conseguisse adotar o
texto ao final dos trabalhos do Comitê. Como se
sabe, a última sessão do Comitê foi já no Rio de
Janeiro, imediatamente antes desses quatro dias
dedicados ao diálogo de desenvolvimento sustentável. Mas mesmo o estabelecimento desses
quatro dias entre o término da ultima sessão do
CP e a conferência foi uma escolha pensada, porque era importante ter algum tempo entre o fim
dos trabalhos do comitê e o inicio dos trabalhos
da conferência propriamente dita, para eventual
correção de rumos, para tentar negociar o que
ainda não estivesse fechado. Então, isso foi um
instrumento usado pela delegação brasileira. O
negociador multilateral tem uma caixa de utensílios à sua disposição e vai usá-la de acordo com
a necessidade. Nesse caso, tínhamos uma conferência bem mais curta do que foi a Rio 92, ou seja,
uma conferencia de três dias. A Resolução das
Nações Unidas dizia que ela seria precedida por
três dias da última sessão do CP. A interpretação
brasileira foi: o precedido não quer dizer em sequência. Então, criamos esses quatro dias de intervalo entre uma coisa e outra, como uma medida
prudencial para atender às necessidades da negociação. Foi importante que isso tivesse acontecido, porque nos ajudou a, como presidência da
conferência, tomar as rédeas da negociação ao
término do CP e realizar o que veio a se chamar
Consultas Pré-Conferência. Nessas Consultas
Pré-Conferência, que aconteceram exatamente
nesses quatro dias, conseguimos fechar o texto.
Foi uma negociação clássica, no sentido que foi
uma negociação conduzida por negociadores,
até que se esgotassem as possibilidades de negociação dos temas. Ou seja, ninguém parou de
negociar porque estava a espera de uma solução
mágica. A negociação foi até o final desses quatro dias. E o Brasil assumiu a responsabilidade de,
com base na negociação, preparar um texto final
que foi o texto aprovado. Devo dizer que após
essa adoção, houve uma série de manifestações
das delegações elogiando o espírito democrático, transparente e inclusivo que o Brasil imprimiu à negociação. Alguns até disseram que era
um “renascimento do multilateralismo no que
ele tem de melhor”. Enfim, obviamente ficamos
contentes com isso, enquanto delegação brasileira, porque houve um reconhecimento de que
é possível conduzir uma conferência de maneira
transparente, que inclua todas as vozes, e se chegar a um resultado. Claro que é sempre um processo muito difícil. Temos que levar em conta que
ao fim dos trabalhos do CP, mais de 60% do texto
continuava sem acordo. Como se pode imaginar,
a parte sobre a qual havia acordo eram temas
mais ou menos incontroversos. Todos os temas
em que havia algum tipo de controvérsia ou de
visão diferente entre as partes estavam abertos.
O desafio nosso, enquanto presidência da conferência, ao assumir a responsabilidade de concluir essa negociação, era de lidar com esse mais
de 60% do texto de uma maneira que atendesse
ao interesse legitimo das partes e refletisse, da
melhor maneira possível seus pontos de vista. Ao
mesmo tempo, buscamos chegar a um texto que
fosse equilibrado, no sentido em que todos pudessem se reconhecer naquele texto; ainda que
nem todas as ideias de uma parte estivessem lá,
aquela parte poderia ler o texto e ver que sua preocupação estava atendida. Isso o Brasil foi capaz
de conseguir nesses quatro dias, através de um
processo paciente, ouvindo a todos e buscando
entender o que cada grupo de países propunha,
a fim de buscar uma solução que, se não fosse a
ideal para aquele país, pelo menos era uma solução com a qual ele se sentisse satisfeito ou, pelo
menos, atendido.
Ao mesmo tempo,
buscamos chegar a um
texto que fosse equilibrado,
no sentido em que todos
pudessem se reconhecer
naquele texto
61
cultura
poesia e prosa
O nomadismo
da letra
João Guilherme Fernandes Maranhão
João Henrique Bayão
Pedro Henrique Moreira Gomides
Em compasso ou descompasso, diplomacia e literatura
continuam juntas no século XXI
Um possível pince nez em mãos, o olhar sereno, mas, talvez, com um quê de melancolia.
E disse o Conselheiro Ayres, na tentativa de
justificar os revezes que lhe trouxeram o nomadismo, a viuvez e a ausência de filhos: “Vi
revoluções”. Um dos mais notórios diplomatas
da literatura brasileira evoca, tanto em Esaú e
Jacó quanto em Memorial de Ayres, as vivências pitorescas – frequentemente estranhas
62
àqueles que se dedicam a outros ofícios – que
não raro pontilham os misteres diplomáticos.
Ayres, porém, não deixa os espetáculos que
sorveu com os olhos novecentistas soçobrarem nos desvãos da memória ou se perderem
em exercícios de eloquência: verte-os em palavras, plasma-os em seu diário. Diplomacia
e literatura, afinal, no Brasil e noutras plagas,
não raro estendem os braços uma à outra.
Sujeito que percorre searas sinuosas, aprendendo a sempre driblar vicissitudes e conservando, em alguma medida, certo gosto pelo
desterro, o diplomata não raro encontra no
fazer literário um meridiano a que se agarra e
que lhe confere estabilidade em meio à fluidez de sua jornada itinerante. Qualquer escritor, em verdade, busca na palavra um remanso
em meio às agruras que, de súbito ou pouco
a pouco, eclodem: a consciência da finitude,
a complexidade desconcertante que governa
e desgoverna os homens. Escrever, sabe-se, é,
também, e quase sempre, um gesto de perpetuação. Ayres, por exemplo, viúvo e sem filhos,
faz de seu diário uma derivação de si. Da mesma forma, Brás Cubas, a habitar o além e avesso à ideia de saber-se findo, leva aos vivos suas
memórias, já que a inexistência de uma descendência o impede de, mais concretamente,
desdobrar-se no plano terrestre.
Seres mais etéreos e menos estáticos, alguns diplomatas, pode-se supor, encontram
na literatura o adubo com que guarnecem
certas lacunas. Movidos pela necessidade de,
no papel, forjar mundos, homens, situações,
ora propositadamente evadindo-se de realidades circundantes, ora as confrontando
(pois a ficção não raro confere ao real uma
carnalidade que o relato objetivo, paradoxalmente, esmaece), muitos diplomatas erigiram
grandes obras, colheram prêmios, fizeram-se
célebres. Não em vão grande parte das salas
do Instituto Rio Branco recebem os nomes de
João Cabral, de Merquior, de Nabuco, de Rosa.
Não em vão goza Vinícius, nas bocas e ouvidos
da maior parte dos brasileiros, de uma popularidade que excede a conferida a qualquer
outro diplomata.
Findados os dois primeiros parágrafos, o
leitor já indaga sobre os rumos da argumentação tecida até o momento. Afinal, constatado
o fato de que foram citados, poucas linhas acima, apenas medalhões da atividade literária,
pode-se perguntar sobre a continuidade de
uma prática que, a depender da perspectiva,
constitui, de fato, uma tradição. Escrevem os
diplomatas que pertencem às mais modernas
gerações? E, se escrevem, publicam livros?
Também eles, assim como Ayres, convertem
a substância das coisas vividas em palavras
gravadas sobre a lauda branca, que convida,
desnuda, ao jogo agridoce da criação?
A resposta é sim.
A produção de diplomatas cuja atividade
se concentra nas últimas duas décadas, além
de considerável, reflete distintas tendências
e abrange diferentes gêneros. Revela, ainda,
que a noção arquetípica de um diplomata-escritor esboroa-se face à complexidade do real.
Esqueçamos a imagem do viajante desenraizado, ancorado nas experiências vividas ao
longo da carreira, a modelar uma ficção que,
embora às vezes críptica, fatalmente remete
às particularidades a que teve acesso em decorrência de sua profissão. A ideia de que as
duas atividades – diplomacia e literatura – necessariamente devam basear-se em um simbiótico enlace é, aliás, contestada por um dos
que pertence às mais contemporâneas gerações de diplomatas que, coincidentemente ou
não, dedicam-se à literatura. O poeta e crítico
literário Felipe Fortuna, atualmente ministro
de segunda classe, cujo último livro foi lançado em fins do ano passado, afirma que o fazer
literário – embora possa, em muitas ocasiões,
ser insuflado por experiências decorrentes do
ofício diplomático – depende, fundamentalmente, de uma curiosidade a que se somam
talento e prática. “O fato de o indivíduo, na
condição de diplomata, vivenciar singularidades políticas e conhecer realidades outras,
de culturas distintas, não necessariamente lhe
confere as qualidades de que depende um
bom escritor”, diz o poeta. Na poesia de Fortuna, por exemplo, há inflexões que se devem a
vivências associadas à sua carreira. Em “Maneiras de Jacarta”, do volume Estante, evocações
da capital indonésia plasmam-se ao material
poético do autor:
“O calor de Jacarta apodrece o ar:
seu abraço contaminado e forte
deixa nódoas na pela e na textura (...)”
63
poesia e prosa
O Suicida,
de Felipe Fortuna
Não me chamem pelo meu nome:
eu não atenderei. Meu braço
não alcança, sequer pertence
à cãibra ou carrega buquês.
Uma perna arqueou-se, lúcida;
a outra recebeu a sombra
que depois recobriu o corpo.
Minha cabeça permanece
ainda o objeto imperfeito
que se abria e provava, em tosca
posição. Mas agora não
doo, nem respiro, nem escuto,
ainda quando abrem à força
os meus olhos lisos de vidro.
Tentam saber se tenho raiva,
e por isso roçam, apalpam?
Mas eu já saí. Por escrito
expliquei por que não quis mais.
A mão descansa em mim, igual
à mosca que vai retornar.
64
Determinados aspectos poéticos, porém,
derivam de impressões cuja eclosão independe do lugar. A série “Poemas para a aula de ginástica”, composta por dez seções, surgiu com
base em observações feitas pelo autor em
uma academia de ginástica carioca. “O espanto que então me causaram os materiais usados nas academias e a relação entre espelho,
exercícios e música poderia ter sido suscitados
em vários outros lugares”, acredita. O contexto determina a produção literária: “Baudelaire
não viu lycra e látex, eu vi”, ironiza Fortuna.
Mobilidade e episódios pitorescos acumulados em uma vida não pressupõem o estofo
com o qual se constrói a obra literária. Adriano
Pucci, conselheiro, que publicou, em 2008, O
avesso dos sonhos, reconhece que a carreira
pode fornecer interessantes subsídios para o
ofício literário. “Etimologicamente, o diplomata é ‘aquele que carrega o papel dobrado’,
é alguém que aprende a lidar com o peso e a
medida de cada palavra – o mot juste aplicado
ao poder”, esclarece. É um “forasteiro profissional”, munindo-se do estudo de idiomas e do
contato com outros povos para cinzelar suas
concepções. Mas a conjunção entre carreira
e talento literário é fortuita. Se, por um lado,
Melville escreveu Moby Dick após “percorrer o
Pacífico, viver entre canibais, participar de um
motim, ir para a cadeia e dela escapar”, Emily
Brontë, “que viveu reclusa e morreu aos trinta
anos de idade”, escreveu o Morro dos ventos
uivantes.
Inegavelmente, a diplomacia confere àquele que a exercita um adensado estatuto ontológico (permitamo-nos o fraseado filosófico).
O “adensado” visa a frisar a intensidade da
influência referida, já que essa correspondência ontológica se aplica a todas as profissões.
Diplomatas que escrevem, no entanto, às vezes parecem buscar certa dissociação entre as
duas dimensões que os compõem – a diplomacia e a literatura. Vejamos exemplos: Adriano Pucci, em seu O avesso dos sonhos, trouxe
à baila histórias inter-relacionadas, vertidas
em prosa simples e direta e ambientadas em
um microcosmo rural. Jorge Tavares, de forma
ainda mais contundente, forjou, à maneira de
Tolkien, um universo meticulosamente descrito nos quatro volumes que compõem A guerra das sombras, publicados ao longo dos anos
2000. Já Marcelo Cid, atualmente em Berlim,
professa, declaradamente, a fé borgiana, evidenciada em seus dois livros publicados: o romance Os unicórnios, de 2010, e o volume de
contos Os doze nomes e outros contos, publicado no ano seguinte. Gabriela Gazzinelli, jovem secretária em Boston, recorreu ao legado
machadiano. Entrevê-se um pouco da lucidez
mórbida do defunto-autor Brás Cubas no pássaro narrador de seu elogiado romance de estreia, Prosa de Papagaio. Mário Araújo, um dos
vencedores na categoria “Contos e Crônicas”
do Prêmio Jabuti 2006 pelo livro A Hora Extrema, apresenta especial interesse no tema da
desigualdade, o que ganha expressão lírica no
conto “Rauziclíni”, um dos que compõe a obra
Restos, de 2008. Por fim, na obra de Alexandre
Vidal Porto, atualmente ministro de segunda
classe, sexualidade, desejo e poder misturamse no romance Matias na Cidade, publicado
em 2005. Mais recentemente, Sergio Y. Vai à
América rendeu ao autor o Prêmio Paraná de
Literatura.
Paradoxo do exílio
A diplomacia não faz, sozinha, o escritor.
Poderia, por outro lado, obstá-lo? Após dois
anos de serviço no calor gabonês de Libreville,
Gabriela Gazzinelli reconhece que “uma rotina
fora da literatura traz elementos para a literatura”. Há, claro, diversos condicionantes da
vida diplomática que, em certo grau, dobram
a pena e a ela negam a plenitude do exercício
literário. “Por serem muito diferentes uma da
outra, a escrita diplomática tem de ser isolada da escrita literária”, defende. Risco sempre
à espreita, principalmente para aqueles cujo
ofício envolve as formas rígidas da linguagem
burocrática, é assimilar, às vezes irrevogavelmente, os vícios do fraseado burocracial.
E assim fiquei, em reportagem.
Além da diferença de estilos – aqui a linearidade dos telegramas; alhures, a sinuosidade
da escrita poética – a diplomacia impõe, reiteradamente, a distância em relação à língua
materna. É aquilo a que Gabriela se refere
como o “paradoxo do exílio”. Entre jovens aspirantes a voos diplomáticos sob a égide do
Itamaraty é comum a ideia de que o diplomata vivenciará, ao longo de sua carreira, experiências sumamente interessantes no exterior.
Pensa-se que o exílio pode ser fecundo para a
escrita. “Mas o exílio te distancia da sua língua”
assevera Gazzinelli. E o convívio cotidiano
com a língua é importante para quem escreve.
Para Felipe Fortuna, a questão do exílio é
uma dimensão que a diplomacia impõe e acaba por envolver, não apenas a língua, mas todos os aspectos da vida social. “Eu não tinha
ideia do peso dessa dimensão”, confessa o
poeta. Aos privilégios que só a distância oferece contrapõe-se um preço a pagar: não raro
lamenta o diplomata a impossibilidade de, em
um momento de luto, poder sofrer junto aos
parentes. Trata-se, para Fortuna, de uma escolha. “Não sou vítima do meu ofício”, elucida.
As asperezas da distância não ganham, absolutas, um lado da balança. Todo exílio pode
ser fecundo. “Muitas vezes a distância evidencia o quão caras ao autor são determinadas
questões”, acrescenta Gabriela. Por um lado,
os afastamentos, continentais, oceânicos,
muitas vezes imensos, vibram a corda da saudade doída. Por outro, concedem tempo ao
escritor para que em seu texto surjam formulações fadadas, em outras situações, a jamais
converterem-se em letra impressa. Em alguns
casos, as vantagens do “paradoxo do exílio”
manifestam-se caudalosamente. Há observadores particularmente reativos aos ambientes
estranhos em que são inseridos. Para eles, a
pluralidade de situações vividas em exílio faz
borbulhar o caldeirão das ideias. É o caso de
Vidal Porto, para quem a ausência evocou presença: escrever, para ele, era a forma de ligarse, de novo, ao português que lhe fora, não
sem a anuência do autor, subtraído.
Combate em duas frentes
A menção aos ídolos literários das gerações
de antanho traz à tona a discussão sobre o descompasso entre as rotinas de trabalho de um
Rosa ou de um Cabral de Melo Neto e dos que
hoje confrontam suas pretensões literárias em
meio a uma carreira cada vez mais caracterizada por dinamicidade, pluralidade temática e
deslocamentos espaciais singulares, súbitos e
intensos. “Foi-se o tempo do otium cum dignitate ciceroniano”, constata o conselheiro Pucci,
ao lembrar que dois colegas, escritores, estão
licenciados, a fim de dedicarem-se a suas atividades literárias.
A queixa da falta de tempo, espremido por
tecnologias ubíquas, pode bem ser um subterfúgio a camuflar momentos de esterilidade. O
ministro Fortuna ressalta o valor da disciplina,
que se sobrepõe aos óbices do tempo. Fichas
de leitura, arquivos organizados, listas e notas
compulsivas propulsionam sua atividade. A dificuldade em conciliar a vida cotidiana profissional com a produção literária impõe o aproveitamento de quaisquer lapsos de imobilismo
inescapáveis, como as constantes idas e vindas
em viagens aéreas. Pucci, que escreveu seu livro paralelamente à elaboração de sua tese de
CAE, em que disserta sobre questões fronteiriças entre Brasil e Uruguai, acredita ser a literatura um ofício obsessivo. “Não é trabalho de ourivesaria, a demandar tempo: escrevo quando há
uma compulsão avassaladora”.
Não obstante sua predileção pelos momentos matutinos para transformar as ideias em
palavras, Gabriela Gazzinelli acaba por dedicar
noites e finais de semana à escrita, mesmo reconhecendo não ser muito metódica. Fortuna
planeja, em tabelas, suas leituras; no arquivo do
escritório, organiza anotações, inventaria ideias,
busca conciliar os afazeres que o esperam na Esplanada com o fazer a que sua paixão o impele.
Jorge Tavares, por sua vez, embora tenha
começado o construir o mundo de A Guerra
das Sombras ainda na Faculdade, terminou
sua saga de fantasia já como membro do qua-
E assim também paralisei
o que de mim mais gostariam
de ver em bruta sucessão:
a mão que vai com pouca tinta
escrevendo as palavras mais
simples encontradas no dia;
o susto em tudo a despertar
o olhar que nunca se equilibra
sob as pálpebras, entretido
em escandir a luz que passa
e se projeta à outra esquina.
Vim, vi, e agora terminei:
Supremo e todo no comando,
constituí a supressão.
Mandei nutrir minha saúde
com o que sobrava demais:
o corpo na sua estatura
igual ao tamanho da mesa.
Logo escolhi a posição:
um molde fóssil que deixei
à extinção, indiferente
aos vincos puros do lençol.
Ali deixei ou me atirei
sem lembrar de Sandra e de Márcia,
não de Regina, não de Sônia,
como se a porta permitisse
que passassem, e não me vissem.
(Mas eu fiquei atento: o rastro
que me leva aonde deitei
também serve para fugir,
e foi a fuga o que eu segui).
Muitos somos os suicidas
a desejar a brevidade:
mas falo por mim, não por quem
quis imitar mortes alheias.
E é por isso que hoje, ao abrir
esse portão de ferro-gusa,
deixei tortos, de lado, os passos
que me trouxeram para dentro.
E nem acordei nem perdi:
gravei um retorno melhor,
no chão, para servir de guia.
65
poesia e prosa
O dia arqueja frente ao outro.
O dia está preso ao cordão
que então seguia até saber
onde o não se dobrava, o não
se esticava, o não se torcia
e devorava toda a sombra.
Agora me chama a razão:
vou resvalando à marginal
de tudo o que aprendi, sem dor
(como espero) e sem parecer
hesitante ao sentir o sol:
pois eu nasci para sair.
E não quero seguir a esmo
o fio que se produz sem cortes
sobre a rua longa onde piso.
Não sigo.
Prefiro que tudo
me deixe sem chão e sem curvas
até que um cansaço sem luzes
traduza meu corpo e o cubra
com uma palavra estrangeira.
De que maneira apressaria
o que outros poetas fizeram?
Insisto: poetas caídos,
horizontais ou verticais,
que acordam e dormem depois
de entrarem no mesmo automóvel.
dro diplomático. O tempo foi conquistado à
maneira dos guerrilheiros: devagar e sempre.
Os dois últimos livros que compõem a quadrilogia foram redigidos em quatro anos. “Deixei
de escrever todo dia ou passei a escrever por
períodos mais curtos de tempo”, detalha. Ao
fim de sete anos, criou um universo a que se
tem acesso em cerca de mil e trezentas páginas. Durante o processo, nenhuma grande cisão entre o diplomata e o construtor de
mundos. “A criação literária me permite desenvolver a emoção. A diplomacia dá espaço
ao lado racional”, explica Tavares.
Inspirações
Em relação aos autores que inspiram as novas gerações de diplomatas escritores, a regra
é o universalismo. Vidal Porto, por exemplo,
cita, dentre outros, Maupassant, Machado,
Roth e Kafka como algumas de suas referên-
***
Pequena amostra literária
JUCA sugeriu que alguns diplomatas apresentassem trechos de suas obras literárias. Esperase que os temas, imagens e estilos evocados por essas linhas despertem a curiosidade do leitor.
Trecho “A Hora Extrema”, de Mário Araújo,
publicado em 2005 e terceiro colocado no
Prêmio Jabuti, de 2006.
A víbora branca se esconde
no grande jasmim que plantou
Alfonsina Storni. As mãos
que ali colheram já se foram.
Jamais serviram para o mar
que transportou à terra, em vão,
Kostas Karyotakis. Ondas
roeram seus braços e suas
pernas de náufrago.
Quando finalmente o rádio dá as horas, são onze
e quarenta e oito. Inicia imediatamente uma nova
contagem, como nas lutas de boxe e nas partidas de
basquete. Desta vez, a pulsação dos números na cabeça é acompanhada pelas batidas do coração aflito.
Envereda para o quarto devagar, obrigado a ter cuidado, o ritmo dos passos em desarmonia com o restante
de si. Alcança a janela e contempla a noite que segue
em branco, fazendo duvidar do que acaba de dizer o
rádio e do que diria qualquer relógio. Então, de joelhos
numa cadeira, põe-se a abrir a janela, impaciente, mas
lentamente devido à sua força pequena, fazendo a vidraça escorregar macia nos caixilhos até que se trave,
enquanto a noite começa a acender o quarto, com seu
Mário Araújo
66
cias. Não faltaram escritores brasileiros contemporâneos quando os entrevistados foram
indagados sobre o que estavam lendo. Michel
Laub, Alberto Mussa e Milton Hatoum foram
lembrados. Marcelo Cid é convictamente borgiano. Jorge Tavares é fã confesso de Dostoiévski. Na biblioteca de Felipe Fortuna abundam
os clássicos.
Pouco se conclui. Algo se constata. As novas
gerações de escritores brasileiros continuam
laborando na tessitura de renovadas tradições
literárias. É um caminho pontilhado por doses grandes de talento e de dedicação. Temse uma produção plural e rica, que evidencia
o seguinte: por mais oscilante que seja a relação, diplomacia e literatura têm tudo a ver
– e continuam a alimentar-se amistosamente.
Diante da nova produção, o Conselheiro Ayres
possivelmente deixaria amainar o pessimismo
e permitiria a seus olhos espertos e experientes o luxo do assombro.
vento fresco, seus aromas e suas luzes de vaga-lumes. Falta um minuto. Sente um arrepio, que se explica certamente por
sua afeição inata à natureza, por conter ele também ramos, orvalho, folhas e pedras. Começa a contar mais lento agora,
bêbado dos cheiros do jardim, e sessenta morosos segundos depois, compreende que a meia-noite é a hora secreta em que
lesmas e jasmins reúnem-se para exalar. As cores sombrias explodem, numa vibração não perceptível às criaturas diurnas.
O silêncio de fora se sobrepõe ao silêncio de dentro, sendo aquele um silêncio mais fresco, molestado por ruídos sempre
imprevisíveis, ao passo que o silêncio de dentro está estagnado, oprimido entre os rugidos do pai e os suspiros do bebê –
somente a mãe aprendeu a arte da sublimação mesmo inconsciente. Invadido pelo silêncio, pelo olor e negror da noite, o
quarto do menino não pertence mais à casa, foi anexado pelo mundo. A meia-noite é, na verdade, a hora da noite extrema.
Mas a meia-noite só dura um segundo, ou um minuto, e não há que esperar pelo desenrolar do novelo da madrugada. Então,
com o rosto acariciado pelo vento cordial do enigma decifrado, ele desce a vidraça e devolve o corpo à imobilidade sob as cobertas quentinhas. No seu mais íntimo, sabe que a noite é mesmo uma estátua, inalterada das oito às cinco. Dorme tranquilo.
Muitos escritores têm certa repulsa à palavra “inspiração”, o que é compreensível uma vez que essa
palavra poderia remeter a um alheamento do escritor do mundo real, do mundo do trabalho, como
se ele simplesmente recebesse das musas todo o
produto do seu trabalho, sem que fossem necessários maiores esforços para a realização da sua obra.
De fato, nesse sentindo a resistência à ideia da
inspiração se justifica, mas creio ser inegável a
existência de alguma coisa dada de presente ao
escritor, mesmo que essa etapa da criação artística seja também fruto de muito trabalho. Explico:
uma boa ideia, daquelas capazes de fundar um
romance ou de construir um enredo do início ao
fim, pode surgir na mente do escritor a qualquer
momento da forma mais rápida e banal que se
possa imaginar.
Claro que para que isso aconteça com certa frequência ajuda muito um certo treinamento do escritor, estar preparado para reconhecer uma boa
ideia, estar atento ao mundo que o cerca, ler muito, ser capaz de intuir a maneira mais adequada
de narrar a história que lhe cai nas mãos. Depois
desse contato privilegiado com as musas, no entanto, tudo é trabalho, trabalho muito duro.
No meu caso, não vejo como encurtar o caminho
até o produto final sem muitas horas escrevendo
e reescrevendo frases, lutando com a sintaxe, tentando decidir entre seis e meia dúzia, que, afinal,
ainda que expressem o mesmo valor, têm sons diferentes, ritmos diferentes.
Pensava eu que o exercício da escrita pelo menos
encurtasse a distância entre a primeira e a última
versões de uma frase. Mas vejo que não é assim.
Haverá sempre dezenas de tentativas antes da frase definitiva - se que é se chegará isso, pois muitas
vezes cada leitura da frase já publicada é uma nova
tentação de lhe dar novos contornos.
E é preciso uma enorme paciência para polir o
pequeno fragmento que se tem à frente mesmo
quando a arquitetura inteira já está na nossa cabeça e o desfecho que já escolhemos nos parece
genial. Outra coisa boa é a disciplina, qualquer
que seja ela, desde que os dias sejam mais ou
menos iguais.
No meu caso em particular, só consigo começar um
texto quando já tenho uma boa ideia da sua estrutura, do contrário, me perderei fatalmente. É como
ir enchendo de carne um esqueleto. Outra particularidade que resulta em muito trabalho é o fato de
raramente encontrar um caminho e segui-lo até o
fim, como se tudo o que passasse pela cabeça convergisse em benefício daquela ideia inicial. Em vez
disso, tenho ideias as mais dispersas, díspares, e depois tenho que fazer um grande esforço para descobrir o que pertence a este texto e o que pertence
a outro. Acaba sendo um processo de montagem
de ideias, cenas e palavras que só funciona quando
se aprende algo muito difícil: jogar no lixo a ideia
que é ótima, mas não se encaixa, o parágrafo que
ficou bem escrito, mas que não pertence ao texto
que se está elaborando.
67
poesia e prosa
Mas só
um disparo acertou o rumo,
o caminho mais perto: o sal,
a febre, o respirar mais tenso,
como fez Cesare Pavese
em seu vórtice, e na mudez
de um verso final, decassílabo.
Um corpo, no entanto, desceu
ao fundo – todo o corpo um modo,
em pausa, de silêncio e água.
E embora nem mesmo nadasse,
tinha a visão de outros poemas
que Hart Crane deixou de escrever.
Longe do mar, os pés no chão
e as duas mãos dentro da guerra,
Georg Trakl detonou a bala
violenta em pânico e pólvora,
mas o branco
dos olhos só
lhe surgiu
contra o branco pó
que o enterrou durante o inverno.
(Lá fora faz medo: mas dentro
de casa, depois de seladas
todas as portas e janelas
e servidos o pão e o leite,
a cabeça de Sylvia Plath
mastiga o gás
engole a luz
da manhã mais simples do mundo).
Consulto com pressa, em voltagem
dupla, meu relógio que conta
as pedras e os redemoinhos
do rio que corre em Paul Celan.
Tudo passou: anéis e dedos,
flores e vasos, prazer e
zéfiro, ferrolhos e portas.
Tudo fechado: ninguém ouve
o tiro permanente, não
recomendável, de Vladimir
Maiakovski em seu cubículo,
a flor de abril como uma orelha
de cão. Ninguém pendura a foto
de Sergei Iessênin sem chão,
em combustão, acima do
espaço que ocupou a mão
rasante e curta de Marina
Tsvetaeva, mão de cera.
68
Trecho de “Prosa de
papagaio”, de Gabriela
Guimarães Gazzinelli.
Gabriela Guimarães Gazzinelli
As lembranças mais vivas que tenho da escrita do “Prosa” voltam aos meses que passamos num quarto umbroso de hotel em
Bas-de-Gué-Gué, Libreville. Era bem simples:
janelas sem vista, teto manchado, lâmpadas fracas. Não tinha escrivaninha. Escrevia
numa bandeja de pés dobráveis que, na hora
de dormir, guardava no vão entre a cama e
o criado-mudo. Quando cansava da escrita, a
única coisa em que podia repousar os olhos
era a cortina de tecelagem local.
Contra o verde das listras verticais, estampadas em cinza, preto e branco, sereias africanas enfileiravam-se do piso ao teto. Fitava
aquelas sereias estilizadas (se é que eram sereias, ele suspeitava serem lagostas). Remeteriam a que histórias? O que simbolizariam
assim dispostas, com seus pentes enfeitiçados, cortinando uma janela tão pequena?
Que mistura de bens e males se entreteceria
nas escamas de suas caudas arqueadas?
Quarto, bandeja, sereias talvez se revelem
numa leitura diametral do texto.
O Peru revistado
O discurso de brinde sobre o peru deu-me o
que pensar. Tenho-me sentido deslocado: eu, um papagaio, pertencendo a uma das minorias da vizinhança,
incompreendido pela mentalidade dominante, de seres autocêntricos, arbitrários e irascíveis. Vivo submerso
nas trivialidades da vida humana, mundo ao qual não
pertenço. Como é insólito! Minha identidade fragmentou-se. Sinto-me suspenso em um entre-lugar, já não
pertenço mais a espaço algum, nem ao humano, nem
ao papagaio. Não sei se sou eu ou um outro. Como dizem por aí, devo ser um outro!! (...)
A experiência radical da alteridade que ora
experimento provoca em mim grande empatia pelo
peru que, como se mencionou no último capítulo, é
sempre um outro, seja no Brasil, nos Estados Unidos, na
Turquia ou na França, na Índia ou em Portugal. (...) O
peru, apesar de sua inteligência, de sua alma nobre e
sensível, é reduzido à materialidade mais bruta: o peru
de natal. Recusam-lhe uma identidade própria que poderia, quiçá, salvá-lo do forno. (...)
Por que só seriam merecedores de odes o
rouxinol e o sabiá? Acaso são mais dignos que o nosso
desprestigiado amigo? Que nos miremos no peru – que
suporta com tanta circunspeção e gravidade este triste
fado de signo da alteridade! Proponho ainda que alguma jovem poeta incógnita dedique ao peru um livro
inteiro dos poemas mais belos e dignificantes, que há
de se tornar o livro sagrado da literatura comparada,
da filosofia de gênero e de minorias e dos movimentos
emancipatórios das guerrilhas urbanas. Meus olhos
se enchem de lágrimas, quando penso na grandeza
dessa obra nasciturna. Fico realmente comovido. (...) O
querido leitor purista terá de sofrer mais alguns medíocres versos meus, para incentivá-lo a compor esse grande elogio ao peru:
Participem do tributo ao peru,
que, coitado, anda tão jururu!
Trecho de “Matias
na cidade”, de Alexandre Vidal Porto
O som agudo de uma brecada de carro interrompe
tudo - qualquer coisa.
Espera-se que tal agudeza seja seguida do barulho
metálico, abafado, do choque entre dois carros ou
entre um carro e um poste. O silvo do pneu negro cria
a expectativa de tragédia. Sempre foi assim e continuará a ser assim enquanto durarem os carros sobre
a face asfaltada da Terra. Ninguém espera, porém,
que a brecada acabe no nada, num barulho oco.
Não se pensa que o grito agudo do carro possa ser
eternizado pelo grito ainda mais agudo de uma mãe,
ou de uma avó, ou de qualquer mulher desesperada
com o ataque de um automóvel contra o filho, o neto
ou o marido.
Matias pisou no freio do carro por reflexo, por medo
de envolver-se no acidente, por prudência e covardia.
Queria evitar qualquer contato com aquela gente
e com aquele infortúnio. Quis acelerar e ir embora
quando a mãe, chorando, com um filho ferido demais para chorar, pediu-lhe ajuda e caridade.
Não disse nada, nem sim nem não, quando a mulher invadiu seu carro com o filho que um transeunte
ajudou a recolher do asfalto. Matias não queria falar.
Ouvia, no entanto, o gemido da criança, o choro da
mãe e o nome de todos os santos.
O que teria acontecido se a vida não tivesse seguido
seu caminho natural de perseguição à morte? Matias
tinha curiosidade em saber se a vida havia finalmente encontrado a morte no corpo daquela criança.
Não ouvia mais gemidos. Não sabia se a morte havia estado ali no seu carro, às suas costas. Pensava
nas manchas brilhantes de sangue sobre o couro do
assento. Preocupavam-no as manchas de barro nos
tapetes impolutos de seu carro negro.”
Alexandre Vidal Porto
Meu processo de produção literária tem
de ser disciplinado porque me sobra
pouco tempo livre para escrever. Normalmente escrevo à noite, depois do jantar, e
durante os fins-de-semana. Produzo devagar. Releio e edito diversas vezes. Como
escritor, quero que meu texto seja simples
e claro e que possa ser compreendido pelo
leitor sem grande dificuldade. Por isso, favoreço a ordem direta e as frases curtas.
Não quero que o rebuscamento limite o
entendimento do que tenho a dizer.
Quando começo a escrever, já tenho delineados os personagens, mas não o desenvolvimento completo da trama. A história
vai-se desvelando à medida que a escrevo e
é condicionada, pelo menos parcialmente,
pelo que seria a interação plausível entre os
personagens e pelos processos existenciais
em minha vida pessoal. Acabo, por exemplo, de iniciar um novo romance, para o
qual tenho personagens e paisagem, mas
cujo enredo completo ainda desconheço.
Nada disso tem fim. O corpo
persegue a si mesmo um pedido
e atende a sombra. Nunca mais
veloz pulsante ardente idílico
o ritmo sem respiração.
Pois eu nasci para sair:
aqui me encontro muito breve
o corpo agora amortalhado
de quantas tentativas foram
vãs.
Sou vertical.
Porém, deito
e vou pronunciando adeus.
Os meus amigos me olham morto.
Ninguém me toca, nenhum cúmplice
se aproxima e me abraça muito
e pergunta por que, por que
não assinei o manifesto.
Eu me exibo sem saber como
defender minha tese bruta
com teorias sobre forcas,
venenos, pistolas e saltos.
Um desses amigos nem chora
ao pressentir minha razão.
Não quis pescar comigo, nunca
viu desse modo os meus cabelos?
Outro amigo não vai querer
concordar comigo de novo
e marcar encontro no dia
seguinte, sob o sol e as frutas.
E seu pensamento atravessa
como um líquido no meu corpo,
eu, cujas unhas crescem, cuja
pele deve ser bem raspada
ou defendida contra a rosa.
69
poesia e prosa
Memórias de
além-túmulo
João Guilherme Fernandes Maranhão
Sobre os curiosos fatos que sucederam após Juca Paranhos
voltar da morte à vida, pena da risota empunhada e altivez
na algibeira
Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
(Um desses poetas novos)
†1912 - 2012*
70
Acordei sobressaltado. As suíças desgrenhadas e a fronte sulcada em reentrâncias de dúvida e tensão pouco faziam justiça ao semblante
imponente de meu busto. Monumento que me
causou deletéria impressão logo na entrada do
edifício em que surgi. Meu corpo diáfano, imenso,
espectral transdescendera. Não se sabe por que
desígnios eternos, foi-me dada a oportunidade
de deixar o futuro escatológico da humanidade e
devassar, cá embaixo, o legado de nossa miséria.
O edifício – o qual, vim a saber depois, trazia meu
nome – recordava-me, vagamente, o panóptico
de Bentham. Um jardim central ladeado de sóbrios aposentos, em cujas partes superiores dos
umbrais de entrada, em letras garrafais, epítetos
curiosos estavam encimados. Não me lembraram
todas as pessoas aí designadas. Provavelmente, a
nominata era ilustre. De qualquer forma, lugar de
honra parece o destino ter a mim reservado. As
paredes do piso inferior traziam inúmeras fotografias minhas. De início, assaltou-me a ideia de que,
inadvertidamente, tornara-me pai de uma espécie
de religião simoniana. A razão, porém, acudiu-me
logo. A austeridade estética era a de um liceu.
O leitor incrédulo, a princípio, faz juízo pouco
lisonjeiro de meu relato. Não tenho culpa de estar alçado ao panteão dos heróis. O certo é que a
eternidade tornou-me livre de circunspecção. Se
em vida busquei somar a depuração das formas
à vitalidade da ação, o fluir infindo que sorvi, no
Meu corpo diáfano, imenso,
espectral transcendera. Não se sabe
por que desígnios eternos, foi-me
dada a oportunidade de deixar o
futuro escatológico da humanidade
e devassar, cá embaixo, o legado de
nossa miséria
páramo atemporal, despojou-me de decoro, cautela e vontade. Ressurgi, vazado em carne e osso,
sem a ânsia de um télos, sem qualquer inquietação mundana. A vibrátil dinâmica das coisas vivas,
ferindo-me os sentidos, oblitera toda dúvida: o
descanso celestial provoca abulia. Não a ponto
de amordaçar a vaidade, sobreposta à surpresa.
Consideram-me grande, não há que objetar.
Escrutinei os corredores, as salas, o pátio central. Tive, subitamente, inconteste prova da carnalidade que me fora investida, por motivos então
insondáveis: senti fome. Era manhã. Abriam-se,
então, as portas do Instituto Rio Branco.
Os estudantes adentravam o recinto com certo ar que me consternava. Perdia, por completo, a
serenidade com que o infinito me galardoara. Por
indubitável, não tinham as feições que exige o ofício diplomático: nem todos eram altos, e mesmo a
estes faltava certa distinção. Despertou-me a atenção a presença de funcionários negros e amarelos.
Vestimentas coloridas feriam a monotonia do tom
cinza, infortúnio para esta narrativa, ressentida das
metáforas monocromáticas que ficaram ausentes.
Ao divisar mulheres com pastas de trabalho em
mão, senti o sangue verter sobejamente para a face.
Recobrada a fleuma, por absoluto aborrecimento
de quem não alcançará da existência mais que este
derradeiro vislumbre da realidade, pude entregarme à tarefa de perscrutar o estranho entorno. Sem
saber se minha humanidade reencarnada poderia
fazer alarde à vista dos pupilos, ingressei, com cautela, em uma das salas do andar superior. As criaturas que lá estavam tinham os olhares perdidos no
espaço. O mundo pesava naquele recinto. Assim
parados, alguns debruçados sobre estranhos cartapácios luminosos, pareciam graves e tolos. Vistos
da perspectiva celestial, eram vítimas de uma faina
inútil. Ocorre que minha mesquinhez de homem
apegara-se a mim após minha descida: ter o amor
à nomeada satisfeito em um desvão do universo é
o máximo deleite. Não, Eclesiastes não estava certo,
e aqueles seres alienados tinham alguma razão em
consumir-se para serem grandes.
71
poesia e prosa
Logo percebi que a nova fórmula de treinamento dos diplomatas brasílicos era perfeita:
socialização, controle e emulação. Tudo concorrendo, graciosamente, para trazer os esquizoides ao grau mínimo de sociabilidade, os
impetuosos à comedida pusilanimidade e os
radicais-liberais ao amor da tradição.
Certo, não me pus de acordo com tudo que
ali se passava. Estou com Rodó: deve-se evitar
o ódio ao extraordinário e a exaltação do medíocre. Faltava senso de nobreza naquele meio.
Aliás, provas há bastantes de que o modelo preparatório não é assim tão eficaz. O que dizer dos
megalomaníacos, dos iluministas extemporâneos, dos doidivanas que pululam no meio diplomático? Algumas pessoas são incorrigíveis.
Algum tempo foi necessário para notarem minha
presença no instituto. Compreendi, perfeitamente,
a razão. No início, eu era muito denso, e aqueles seres, demasiado etéreos. Então, tal qual um potente
paquete atravessa a névoa que encobre as proximidades da enseada, podia eu transpassar aquelas
frágeis criaturas. Após terem alcançado o mesmo
nível de consistência que tinha, suas inteligências
atingiram perfeita intelecção.
Depois de ter sido notado por todos,
passei por um período de terrível
lembrança. Vou poupar o leitor
dos detalhes grotescos. Sumario o ocorrido de forma rápida
e indolor. Em que pese minha
boa fé e compromisso com a
verdade, advirto que relatos lapidares costumam soar falsos,
como explicações mal cosidas.
Se assim é, não é por minha
culpa. A natureza da linguagem
limita minhas nobres intenções.
Se o leitor compreender, bem.
Se não, estou certo de que se
trata de um chato, amante de
discursos longos. A esses sujeitos, não os quero como amigos.
72
Os estudantes adentravam o recinto
com certo ar que me consternava.
As criaturas que lá estavam tinham
os olhares perdidos no espaço.
Assim parados, alguns debruçados
sobre estranhos cartapácios
luminosos, pareciam graves e tolos
Antes da historieta, tenho que relatar um sonho que tive. Sei que não parece oportuno interromper assim a sequência de uma narrativa,
mas certas lembranças aprumam-se cá encima
e deitam estacas impertinentes. Talvez seja a
culpa pelos fatos oníricos. A passagem da morte
para a vida foi como despertar de um sono irrequieto. Em minha alucinação noturna, montava um javali que trazia uma medalhinha de
Nossa Senhora no focinho. A medalha era
de ouro e reluzia com tal força ígnea que
me obrigava a permanecer de olhos fechados. Estava eu em vestes talares de
branco alvíssimo, com meus parcos
cabelos esvoaçantes, em tresloucada correria no dorso do javardo, em meio ao Palácio do
Itamaraty. Meu inconsciente trazia à superfície essa
imagética duplamente
sacrílega, como a anunciar os fatos que açoitariam minha dignidade.
Passei longa estadia em
um hospital de alienados.
Acreditavam-me insano,
por óbvio. Acabei conhecendo um graduado
diplomata, que, por alguma razão, resolveu tomar
minha história por verdadeira.
Visitava-me amiúde e tinha o hábito de vociferar, com irritante intimidade: “O senhor
estava certo, Paranhos! O realismo é a única
forma de encarar o Império do Norte!”. Não
dizia exatamente com essas palavras, mas o
artificial e burlesco do exemplo cabem-lhe
à justa. Suportava a maçada porque aquele
homem de olhar alongado com lumes de
desvario era minha única salvação. Com seu
auxílio, comprovei quem eu era. Eu mesmo
redigi os argumentos para a ação de reconhecimento de identidade post mortem.
Também obtive ajuda de um senador -digno
do epíteto “nosso Talleyrand brasileiro”. Melhor não citar nomes. O leitor compreenderá.
No Palácio do Itamaraty, um triste vislumbre do que foi o Palácio no Rio de Janeiro.
O ambiente da nova capital não despertava paixões – muito funcional, para oferecer
algum atrativo estético; demasiado monótono, para que a vida tivesse lugar. Malgrado essa visão leteia, algumas coisas jamais
sofrem mutação. O séquito de bajuladores,
já amaneirados pelo tirocínio laudatório; o
murmúrio constante daqueles que planejam
suas vidas como quem calcula a envergadura da Terra; a luta por diminutos espaços de
poder; as veleidades dos embaixadores; a
afetação dos metidos a intelectuais; as tarefas rotineiras, sempre a embaciar a imagem
gloriosa do diplomata; a ostentação de títulos como se o nome das coisas mudasse a
Estava eu em vestes talares
de branco alvíssimo,
com meus parcos
cabelos esvoaçantes, em
tresloucada correria no
dorso do javardo, em meio
ao Palácio do Itamaraty
essência delas. Tudo evocava reminiscências
de uma profissão amada. Evidente, subtraídos esses pequenos aborrecimentos.
Dos aborrecimentos livrava-me minha
bela assistente. Sempre que se inclinava, o
olhar ia certeiro pousar no bico de seus sapatos. Isso, no início. Olhos furtivos. Não queria açular as paixões do baixo ventre. Com o
tempo... Bem, com o tempo e a experiência,
a gente aprende que é melhor respeitar a
pudicícia que as pessoas trazem na superfície. Voltemos aos fatos relevantes.
Fui agraciado com uma repartição especial,
diretamente ligada ao Gabinete do Ministro.
Minha presença era resultado da imposição
legal; não da credulidade de meus colegas.
Claro, também contei com o apoio do Ministro
de Estado, homem inventivo e capaz de transcender a obviedade da superfície e alcançar
os frutos da perspicácia. Com raras exceções,
criam-me um impostor ou um lunático. Ninguém ousaria dizê-lo diante do Chanceler.
Sorriam com dentes fartos, afetavam deferência a minha figura, davam leves pancadinhas no braço do Ministro e encetavam uma
narrativa monótona sobre a definição das
fronteiras na República. Quando estava longe do Ministro, um meneio com a cabeça já
era o bastante. Se ao menos houvesse alguma
genialidade naquelas figuras desprezíveis, eu
aguentaria de bom grado a falta de cortesia.
Aquilo não me surpreendia, irritava-me.
Nada que se passava ali poderia causar sobressalto. No exercício da função diplomática,
o mundo começa a ficar pequeno com o tempo. O problema é que tudo fica mais profundo. E era na profundidade da Casa que eu me
perdia. A convivência sempre intensa, voraz,
absoluta. Um passo e ali estava seu homólogo
nas agruras, um espelho de sua própria mesquinhez e soberba. Tudo permitia a cópula
obscena desses dois elementos: o imaginário
alteado aos píncaros da glória, onde a palavra
73
poesia e prosa
é espada para a conquista da paz e da prosperidade; a realidade amesquinhada em memorandos, instruções e subsídios. Quod non est in
actis non est in mundo ! Talvez o mundo lá fora
estivesse em expansão.
Antes, orbitávamos em um universo hemisférico com poucas ligações vicinais, uma principal com o Norte e uma grande ponte com o
Velho Mundo; agora, abraçamos o globo com
imensas autoestradas e aeroplanos. Alguns
consideram isso progresso. Eu lhes pergunto:
quem fará a manutenção de tantas vias?
Certo, o leitor dirá que o que vai aí escrito é
coisa de gente avançada nos anos, reacionária.
De fato, estou tão alquebrado quanto em minha primeira vida. De qualquer modo, não há
quem me leve a palma em questões temporais.
Estou acima de considerações assim diminutas.
Ao menos, foi o que compreendi dos discursos
em minha homenagem no Palácio do Itamaraty. Verdadeiras preleções. Um cartaz imenso
com minha imagem ao fundo, um bigode imenso, um embaixador com retórica de cura de almas, com aquelas pausas cadenciadas, prédica
monocórdica só interrompida pelo altear de voz
no fim das frases, vogais alongadas. O conjunto
dos fiéis com um olhar fixo e rente de que não
se pode extrair nenhum estado de espírito – cacoete de diplomatas para dissimular o aborrecimento. Clima modorrento.
Observava tudo do alto, da Sala dos Tratados.
Assistir às próprias exéquias como se fora uma
festa não apraz nem enobrece. Aliás, prefiro as
palavras de meus contemporâneos a meu respeito. Descobri um belíssimo texto de Juansilvano
Godoi publicado na Revista Americana em 1913,
digno do que fiz por meu país. Diz esse afável
amigo no que seria um belo obituário: “La estructura de su cabeza despoblada de cabellos es monumental, redondeada, vasta, del orden braquicéfalo.
El hueso coronal, espacioso, ancho, levantado, formando con los parietales y temporales una bóveda
craniana de regularidad irreprochable, constituye
74
Dos aborrecimentos livravame minha bela assistente.
Sempre que se inclinava, o
olhar ia certeiro pousar no
bico de seus sapatos
una obra de arte acabada.”. Essas bondosas palavras consolaram-me. Sentia-me, então, desamparado, relegado ao ostracismo. Se tamanha
dignidade flui do meu escalpo, imagine o leitor
o que poderia fazer com minhas mãos estendidas sobre aquela turba. Contive meu impulso
medonho. Não iria abusar de meus poderes.
Se Juansilvano tivesse voltado a esta existência ingrata, talvez não fosse tão elogioso.
Já se ia longe no tempo sua estadia no Rio
de Janeiro como plenipotenciário paraguaio.
Talvez, as rusgas nas relações entre nossas
pátrias pudessem afetar nossa amizade. A ele
não poderia ser mais grato: retificou palavras
ofensivas de certo embaixador sobre minha
pessoa. Tal biltre foi autor de acinte que jamais
poderia conceber: “Este omnipotente canciller
no tenía ningún orden en su casa, ni horas para
comer ni para dormir. Acribillado de deudas, no
pagaba ninguna. Un camarero dirigía su casa.
Mal vestido, sin placeres, sin pasiones, ávido solamente de poder, despreciaba los honores y no
quería ser más que William Pitt.”.
Se dívidas houve, são as de toda uma nação para comigo; se quis ser alguém nesta
vida, foi eu mesmo, mas fundido com a pátria, despersonalizado, entregue ao sacrifício
dos heróis, dos santos!
Desculpe-me o leitor essa verve de tribuno. Não anelo provocar o tédio alheio. Daqui para frente, excluamos a retórica e as
citações. Já chego ao meu triste ocaso. Sem
rodeios. Não inventarei um Deus ex machina.
Não preciso emular Eurípides. Afinal, o que
conto é uma tragédia pessoal.
Sei que o leitor não me
crê totalmente e faz muito
bem nisso. Eu mesmo não
acreditaria neste relato se já
não tivesse subjugado a morte
Recordações de Juansilvano e tantos outros amigos queridos, eu as tinha em meu
gabinete de trabalho. A interrupção veio inoportuna e ingrata, para provar que o mundo
cá dentro continuava estreito e fundo. Mudara o Chanceler, mudaram-se os planos. Por
decisão irrecorrível fui posto à disposição
do Departamento de Pessoal. O juízo veio
de cima, da cúpula demiúrgica que me dera
existência, a única existência que conhecera.
Caminhava para o limbus patrum. Logo eu,
que criara aquele mundo.
A notícia fatídica chegava em hora não
tão desagradável. Avizinhava-se o tríduo de
pândega e despudores que antecede a
quaresma. Nunca fui dado a esse
hábito de passar da insidiosa
obscenidade para as preces
tímidas e áridas da QuartaFeira de Cinzas. Não quero
dizer que não seja amigo
dos pequenos excessos
da lascívia a que todos
os homens sucumbem. A
verdade é que não deitava
tanta importância nessas
coisas, nem no sagrado, nem no profano.
Costumava ficar em
casa, para colocar a
leitura em dia. E uma
dorzinha aguda no peito
sempre a me incomodar, o
rosto inchado, uma meningite renitente...
Não, leitor lúgubre e maldoso! Não tive fim semelhante ao anterior. Sobrevivi àquele carnaval.
Pena que não pude voltar à minha digna prebenda. Voltei para lugar menos honroso, desses que
não ousariam mencionar meus biógrafos. Faço
votos de que o amor à hagiografia não esmoreça depois do que segue revelado. Sei que o leitor
não me crê totalmente e faz muito bem nisso. Eu
mesmo não acreditaria neste relato se já não tivesse subjugado a morte.
Mais uma vez, torno lapidar os dissabores
que tive. Se em vida, não se os pode encurtar,
a escrita se presta complacente a esse fim. Há
que se considerar, ademais, que não busco a
catarse do leitor. Minha tragédia não poderá
invocar arquétipos de nenhuma espécie. Uma
confabulação foi posta em marcha por meus
inimigos. Um longo processo de interdição,
notas picarescas na imprensa sobre o ocorrido, diatribes deploráveis no Ministério, proventos suspensos. E aqui estou.
De volta a este quarto branco, divisando
pessoas igualmente vestidas de branco. Um homem de jaleco reinicia
seu discurso em tom condescendente e enervante. Com
certo ar de receio, tenta
convencer-me de que sofro de uma estranha combinação de mitomania e
megalomania. Seu rosto
me incomoda. A fisionomia evoca o Oliveira
Lima: cara rechonchuda,
um bigode antiquado
ocultando os lábios, olhar
de criança triste. Não bastasse essa agravante, ele tenta
usar argumentos lógicos recorrendo à história. Suporto até
o limite. Então, nos atracamos violentamente. Ninguém terá melhor
conhecimento de história do que eu!
75
poesia e prosa
O fim
da besta
hora
Pedro Henrique Gomides
76
O tédio e a consciência de que a existência é um redemoinho lotérico levaram-me a
estudar o georgiano. A solidão e o desespero
levaram-me a Medea Korsantia.
Não foi a primeira língua hermética sobre a
qual me debrucei. Com paixão púbere, estudei o letão e o lituano. Perguntaram-me sobre
a utilidade dos meus esforços. Bocejava, evocava a beleza inequívoca das mulheres bálticas. Terminada a escola, dominava os mais relevantes idiomas indo-europeus; começava a
ter fluência no turco, ramo obsedante da árvore altaica; ingressava, com curiosidade maníaca, no ramo fino-úgrico das línguas urálicas.
Diziam que eu era prodigioso.
Meus pais instavam-me a estudar o Direito.
A exortação materna insuflou o medo necessário à aquiescência. Bacharelei-me, tolerei a
aspereza do positivismo jurídico. Preferi, quase sempre, o pessimismo filosófico dos grandes céticos à utopia ordenadora dos legisladores. Ao receber o diploma, já havia traduzido
Schopenhauer e Cioran para idiomas que julguei adequados a suas reflexões erosivas. O
alemão foi vertido para o turco; o francês, para
o húngaro. Lanzio Amenábar, chefe tirânico
da editora Atma, ao ver minhas traduções,
julgou-as inúteis. Astuto, não ignorou meu talento: fui contratado.
A intensidade do desgosto familiar equiparou-se à do meu deleite intelectual. Engavetei
meu bacharelado com orgulho febril.
Encetei projetos heterodoxos, que, contrariamente às previsões maledicentes, triunfavam. Traduzi a História das religiões, de Chantepie de la Saussaye, para o estoniano e para o
romeno. Toda a obra de Jorge de Lima ganhou
versões em línguas eslavas: esloveno, servocroata, búlgaro, macedônio (a tradução para
o montenegrino, consubstanciada em edição
primorosa, com ilustrações de Espinoza Pekovich, foi um arrebatador sucesso editorial). Os
romances invernais de Artêmis Dodeskaden,
Com paixão púbere, estudei
o letão e o lituano.
Perguntaram-me sobre
a utilidade dos meus
esforços. Bocejava, evocava
a beleza inequívoca das
mulheres bálticas
lavrados em um português considerado indigesto, tornaram-se mais palatáveis nas versões
sueca, dinamarquesa e norueguesa. Intuí que
os alexandrinos labirínticos de Fédor Sebastião Rivadávia, tornados surpreendentemente
populares, encontrariam expressão elegante
nas aglutinações harmônicas do finlandês.
Lanzio Amenábar negava-se a reconhecer,
sem restrições, a fertilidade das minhas sugestões. Temia que o avanço de meu estranho tirocínio editorial, somado a meus conhecimentos linguísticos, fosse destroná-lo.
Durante os quase seis meses que passei
em Kazan, incumbido de trasladar todas as
Mil e uma noites para o tártaro – irrecusável
e delirante proposta da República do Tartaristão –, voltei para casa duas vezes. Enterrei
meu pai; depois, minha mãe.
Ao fim da estada em Kazan, Searle Minnikhanov, dono da editora que me empregava,
levou-me a Moscou. Vivi excessos inéditos:
embriaguei-me numa dacha às margens da
cidade; tentei – em vão – seduzir a curadora
de uma exposição de arquitetos construtivistas. No último dia de viagem, em jantar na embaixada da Geórgia, Minnikhanov, fascinado
com a obra de Hamlet Paliashvili e de Dmitri
Belluci Taktakishvili, poetas decadentes – ambos estrábicos – idolatrados no Tartaristão,
77
poesia e prosa
zir Cioran. Estudei o georgiano afincadamente.
apresentou-me a Evgeni Kakhidze, homem de
Explorei a famosa New Grammar de Irving Crowolhos angulosos, editor renomado em Tbilisi.
ley; a maior parte dos Vergleichende grammatisDisse-me que conhecia minhas traduções de
che Grundlagen der südkaukasischen Sprachen,
Cioran; são “robustas”, disse. Lamentava não
de Hartmann Löwenthal; toda a Kratkaia Gruhaver traduções da obra do cético romeno
zinskaia Grammatika, de Marina Dolenga.
para sua língua natal. Quer dar início à tarefa?
Em Tbilisi, pouco após terminar a tradução
Pouco depois, faleceu Lanzio Amenábar. Rede Précis de Décomposition, conheci Medea
cebi boa parte de seu espólio; apontou-me, em
Korsantia. Vi-a nos vestíbulos que ladeavam a
breves parágrafos testamentários, seu sucessor.
sala de Kakhidze; gestos langorosos, o nariz
Em Kazan, recebi prêmios eminentes. Minenorme e delicado. Tinha em mãos (mãos brannikhanov propôs outros projetos: a tradução
cas, dedos vibrantes) os originais de seu primeidos vinte tomos da Dialética da Pornografia
ro romance, A besta hora e os frades perfunctóOcidental, de Leão Meledendri, e da Vindicarios. Kakhidze havia elogiado a narrativa: trama
ção do Erotismo Satânico, de Lukas Madeiro
policialesca, situada em uma Tbilisi futurista,
Håfstrom; uma edição luxuosa do Rubaiyat,
protagonizada por um arquiteto que pensa ser,
de Omar Khayyam, com ilustrações “viscerais”
em intermitentes delírios noturnos, a versão redo desenhista Dominguez Vautré. A ênfase
diviva de um antigo poeta armênio.
em temas lúbricos foi, provavelmente, o motivo da minha repulsa (os
desenhos obscenos de
Vautré evocaram a boeEm mim, sob a capa do polímata, férreo
mia de Kazan, a volúpia
poliglota, erodia o sentido das coisas.
mongólica das moças
que vi nas pistas labiríntiA disciplina pareceu-me uma virtude
cas do Ermitage Club).
atroz; a solidão, uma perturbação do
Ao voltar, assumi a
chefia da editora Atma.
espírito. Sabia, sempre soube: somos um
Seguiram-se trabalhos;
estremecimento frívolo
alheio à magnitude dos
meus esforços, enriqueci.
Às vezes, lembrava-me
de Kazan, dos desenhos
Não tardaram a editar o livro. Tampouco
de Dominguez Vautré, das estranhas fórmulas
tardaram as reedições: o protagonista, Baraglutinadas do tártaro. Em mim, sob a capa
bieri Mistral, arquiteto transmudado em detedo polímata, férreo poliglota, erodia o sentitive, tornou-se herói literário. Encarnou-o, no
do das coisas. A disciplina pareceu-me uma
cinema, Vlado Kumaritashvili, outrora wrestler
virtude atroz; a solidão, uma perturbação do
cultuado no país. Kakhidze, lançado o filme,
espírito. Sabia, sempre soube: somos um esvoltou-se às traduções, demandadas no Cáutremecimento frívolo.
caso, na Rússia, na Europa. Um veio dourado!,
Minhas ponderações foram breves. Dispus
seus olhos, argênteos, refletiam vindouras
tudo com celeridade. A editora foi passada às
glórias editoriais. Propôs, inicialmente, duas
mãos do especulador e financista Modesto Léversões: para o alemão e para o português.
fèbvre. Convenci Evgeni Kakhidze: quero tradu-
78
Lembrei-o de minha regra: não traduzo para
o português. É um pedido pessoal de Medea
Korsantia, asseverou.
Assenti. No dia seguinte, encontramo-nos,
autora e tradutor.
Senti o quê? Um obscurecimento no ventre,
que vencia as diligências do intelecto. Era o prelúdio do amor? A resposta manteve-se suspensa. As línguas e suas literaturas eram minha existência, o desvelar do mundo que elas, condões
preclaros, tornavam possível. O amor, uma abstração em laudas, uma intangibilidade prazerosa, desfrutada em tercetos turcos, em alexandrinos armênios, em decassílabos húngaros.
Medea Korsantia era um fulgor real. Primeiramente, senti-a nas páginas d’A besta hora.
Procrastinei a tradução para o português;
comecei os trabalhos em alemão. Vivi horas
pânicas, notívago, lutando contra as páginas
iniciais, que não se curvavam ao cálculo da
sintaxe germânica. Não posso traduzir você –
escrevi a Medea.
Fizemos um passeio nas vinícolas de Tiflis.
Uvas imemoriais em cálices de cerâmica; o torpor do Cáucaso em estranhos sucos fermentados. Depois, em seu apartamento, conversamos sobre Barbieri Mistral. “Sou eu, e todos os
que, avessos ao agora, se prendem ao límbico
espaço do passado e do futuro”. E os frades
perfunctórios, a seita que persegue Mistral?
“O mal, evidentemente, e, ao mesmo tempo,
a prova de que o delírio nem sempre se opõe
à razão; não delirasse, Mistral não saberia existirem os frades infames”. Na cama, entendi o
corpo de Medea: os desvãos entre as pernas
e as nádegas; as concavidades olorosas das
axilas. A boca era elíptica, vibrátil à luz morna.
Suspendi a tradução para o alemão; verti
as primeiras frases para o português: “Barbieri Mistral, arquiteto e celibatário, adquiriu a
obra completa do poeta Lori Tumanyan. Ao
ler o último poema, publicado em 1877, grifou todos os seus versos. Pensou que eram
pungentes e aterrorizantes. Desde então,
começou a crer que era, não sabia por que
meios, Lori Tumanyan”.
Liberta, em português conciso, fluiu a prosa d’A besta hora. Concluí os trabalhos em um
ano, ao lado de Medea Korsantia.
Viajamos. Conheci mares, terras, céus descortinados.
O que eu havia sido? Fixei a solidão despercebida, a austeridade da autoemulação infindável; lembrei-me de uma passagem do romance
de Medea: desespero é o horizonte morto, que
não oferece nada por que esperar.
79
peosia
poesia e prosa
ÍMPETO DE MOSCA
joÃO HENRIQUE BAYÃO
“Könnten wir uns aber mit der Mücke verständigen,
so würden wir vernehmen, daß auch sie mit diesem Pathos durch die Luft schwimmt und in sich das fliegende
Zentrum dieser Welt fühlt.”*
*“Se pudéssemos entender a mosca, perceberíamos que
ela navega no ar animada por essa mesma paixão e, em
seu voo, sente, em si, o centro do mundo”.
Friedrich Nietzsche
Ímpeto de mosca
num mergulho incerto, não intencionado
Na descrença decerto numa crença fosca
No intuito vago ainda ludibriado
A palavra errada sem momento algum
Na ausência plena de qualquer presença,
No sentido pleno de nobre carência,
Confusão extrema, nasce o dilema
No mergulho incerto, na palavra incerta,
No exemplo incerto em minha cabeça,
De uma mosca inútil em sua desavença,
Com o sentido oblíquo de sua destreza
Na queda em vazio de suas lembranças,
Fuga mal intencionada de sua certeza
O mergulho incerto para as profundezas
De um vazio pleno que a complemente
No zumbido eterno que a faz descrente.
80
Anunciação
JoÃO HENRIQUE BAYÃO
Do céu acima veio acertar-me o olho
De modo que, no primeiro instante
Tive de fechá-lo no impulso
Não doeu, mero instante de cegueira
O estalo fora quase um afago
Inesperado, é claro
- Eu não contava olhar para cima
Esclareço – não tenho crenças
Não acredito, portanto, no acaso
Não foi preciso aceitar
Veio-me de graça
com inestimável preço
Não foi preciso agradecer
Tampouco houvera indulgência
Somente um ocorrido molhado
Num lampejo em que meus olhos
Imediatamente cerraram-se e reabriram
Nada mais que num lampejo promissor
Pois ao abrir os olhos
O mundo antes turvo
acre, seco, surdo
quis encontrar-me de acaso
e no entanto, hoje penso,
não fora nada além de uma gota
A primeira gota
A anunciação da tempestade
100 palavras na
aritmétrica de um
impressionista
ARTUR ANDRADE DA SILVA MACHADO
Perfeito seria escrever rascunho,
De punho, sem recursos filosóficos.
Óbvio que exemplos mil ficam de fora...
É hora, serei direto e conciso.
Adjetivos? Corto, assim como artigos.
Arbitro entre pensamentos genéricos.
Aéreo, permito-me a reflexão?
Não. Talvez daqui vinte ou trinta anos,
Quando terei achado enganos em
Cânones de qualquer literatura...
Murmúrio... São colegas que acabaram.
Batem-se por poucos goles de expresso.
Confesso que esta aqui não ficou mal.
Qual? Padece de justificativa?
Priva-se, como toda outra obviedade
Que invade minhas métricas palavras.
Lavro, torço, aprimoro, alteio, limo.
Estimo obter parágrafos poéticos.
Perplexo, reviso minhas respostas,
Que reprovo, reavalio, entrego.
81
ensaio fotográfico
Veículo da
expedição, com
equipagem
completa, em uma
calma estrada de
Tamil Nadu
On the road
Texto e fotos de Thiago Carvalho de Medeiros
O sul da Índia no olhar de um ciclista
82
Entre setembro de 2008 e janeiro de 2009,
três amigos pedalaram por mais de 3.000 km
através dos Estados indianos de Tamil Nadu,
Kerala, Karnataka e Goa. Esse espaço, historicamente disputado pelas dinastias drávidas, cujos feitos de guerra mesclam história
e mitologia e cujo expansionismo influenciou
a cultura de lugares tão distantes como o sudeste asiático, foi, em séculos mais recentes,
palco dos colonialismos português, francês e
britânico, que deixaram suas marcas na arquitetura e nos costumes de lugares como Pondicherry, Cochin e Calicute.
Os elefantes de trabalho ainda são
relativamente comuns em Kerala.
Esses “tratores” naturais valem
muito, e seus proprietários, que os
alugam, são homens ricos
Durante a possessão, Shiva fala aos seus fiéis
em sânscrito clássico
83
ensaio fotográfico
De economia majoritariamente agrária, o Sul da Índia destaca-se por melhores taxas de alfabetização, expectativa de vida e fertilidade que os Estados do norte. A paisagem alterna cidades vibrantes, plácidos terrenos de
rizicultura artesanal, reservas ecológicas devotadas à proteção de tigres,
palácios e fortalezas de dinastias há muito extintas, suntuosas residências de marajás, extensas redes de canais naturais, margeados por
campos de arroz (as “backwaters” de Kerala), templos e locais de
peregrinação do islã, do hinduísmo e do cristianismo, belas praias,
cidades de arquitetura colonial e muito mais. Entre as manifestações culturais mais interessantes, destacam-se as formas
tradicionais de vida do povo da região. A indumentária é de
especial interesse: saris (longos pedaços de tecidos finos enrolados em forma de “vestidos”) para as mulheres, e dhotis
(longos pedaços de tecidos grossos enrolados em forma de “saias”) para os homens. Os festivais religiosos,
como o Divali, as cerimônias de possessão de brâmanes pelo espírito de Shiva, e o “ski” de búfalo
nos campos alagados de arroz (“kambla”) são
manifestações bastante pitorescas.
As imagens aqui reunidas foram feitas
durante a “road trip”, seguindo as principais rodovias que margeiam as costas,
desde Chenai (a antiga Madras, no estado de Tâmil Nadu) até Goa.
Trabalhadores preparam
o templo de Tanjavore
para seu aniversário de
1.000 anos
84
O ashram de Vivekanda foi construído em uma ilha próxima da
costa de Kanyakumari (ou Cabo
Komorin), cidade que abriga um
velho templo dedicado à virgem
Sita. A cidade, que se localiza no
extremo sul do subcontinente indiano, é ponto de encontro das águas
do Oceano Índico, da Baía de Bengala e do Mar da Arábia, e é local
de peregrinação
Colheita manual do arroz, feita exclusivamente por mulheres, às margens de uma
estrada em Tamil
Fiéis acampam perto do templo em festival
religioso na cidade sagrada de Hampi
Hora do recreio em uma escola rural em
Tamil Nadu
Um “mercado” de rua, em Nagapatinam
85
artigos e ensaios
artigos e ensaios
86
Memória de
um encontro
Norte-Sul
Artur Andrade da Silva Machado
O jantar que reuniu o Instituto Rio Branco e o Council on
Foreign Relations
87
artigos e ensaios
Brasília, 28 de fevereiro de 2012:
A turma toda estava empolgada
com aquele segundo encontro com
Julia Sweig. A impressão geral era
que a Julia representava os Estados
Unidos que, de repente, se interessavam pelo Brasil. O relatório sobre
o Brasil que ela publicara no âmbito
do Council on Foreign Relations (CFR)
retratava nosso País com excepcional otimismo. Era o Brasil potência
emergente, que fora capa de edição
da The Economist; o Brasil dos BRICS,
do G20 Financeiro; o Brasil que superava a Crise Econômica Mundial
e a desigualdade social doméstica
e que ganhava admiração em toda
parte, inclusive no gigante do norte.
Os Estados Unidos passavam a
buscar esse novo Brasil com curiosidade também renovada. E a Julia era
como um símbolo desse processo.
Na primeira vez em que ela fora conversar com os alunos do Instituto Rio
Branco, houve forte empatia mútua.
Ao invés de ministrar uma palestra,
ela decidiu estabelecer uma “conversa franca” com o auditório Emb. João
Augusto de Araújo Castro e, quando um aluno da plateia fazia uma
pergunta, ela respondia com outra.
Queria ouvir a opinião dos alunos,
instigar debates e lançar provocações. E é claro que os alunos corresponderam.
Todos os tópicos mais espinhosos no relacionamento entre Brasil
e EUA foram abordados. Os jovens
diplomatas revelaram frustração
com o escasso comprometimento
estadunidense nos regimes multilaterais do clima e do comércio. Perguntaram sobre o Caso do Algodão,
88
JUCA: Por que seu interesse pelo Brasil?
JULIA: Sempre tive interesse pela América Latina. O Brasil é
a potência mais relevante da América do Sul e ganhou relevância global. Então entender o Brasil é imporante para
qualquer acadêmico ou think-tank interessado em política
externa dos EUA.
JUCA: Os países sul-americanos têm buscado uma integração de tipo político, em paralelo à integração comercial idealizada no passado. Como deve ser avaliada essa mudança?
JULIA: A palavra integração é bastante carregada: significa
muita coisa para muita gente. Algumas das instituições criadas
para promover a integração econômica claramente falharam,
desapareceram ou estão desaparecendo. Mas eu acho que a
grande história por trás da integração econômica na América
Latina é a institucionalização da democracia, o que significa
mais e mais pessoas com direito a participar do processo politico – a votar, a ter uma voz – e a participar do mercado.
JUCA: Essa inclusão social tem sido um dos principais objetivos do Brasil e alguns dos nossos programas, como o
Fome Zero, foram exportados para outros países. Qual
seria o papel do Brasil na superação das causas e consequências da pobreza na América Latina?
JULIA: Os programas de combate à desigualdade que estão
sendo desenvolvidos não apenas no Brasil, mas também em
outros países, como o México e Colômbia, baseiam-se na
noção de que é preciso combater a pobreza no curto e no
longo prazo. O maior desafio do Brasil ao enfrentar as causas
estruturais da desigualdade é o de democratizar o acesso à
educação e à inovação. É por isso que essa nova classe média
brasileira tem de virar não apenas uma classe consumidora,
mas também produtora. É aí que você consegue combater
as causas da desigualdade. Vocês conseguiram grande sucesso até agora. Eu acredito que o Brasil terá sucesso nesse
projeto e isso será maravilhoso para a América Latina. Mas
também acho que não podemos assumir que o Brasil tem
a única receita certa. Também podemos ver sucesso em outros lugares que não refletem exatamente o modo brasileiro.
* Julia Sweig é a diretora da Iniciativa Brasil Global no CFR.
** Entrevistadores: Bruno Rezende e Danilo Bandeira.
JUCA: O senhor avalia que as sanções contra o Irã
têm funcionado?
HAASS: Depende de qual é a sua definição de “funcionar”. Se você entende que isso significa que elas tiveram um impacto no Irã, sim, elas funcionaram, se a sua
definição é “elas mudaram o comportamento deles”,
então não. Eu escrevi muitos livros sobre sanções, as
sanções por si mesmas não podem conseguir tudo. A
questão real é qual é o preço que o Irã está disposto
a pagar por seu programa nuclear. Eles estão preparados para pagar um enorme preço econômico, ser isolados diplomaticamente, ser atacados militarmente?
JUCA: O senhor não concorda que o fato de as
conversas com o P-5 não terem funcionado até
então justifica a entrada de novos atores no processo negociador?
HAASS: Não vejo nenhuma razão especial para isso.
O que falta não é novos atores, é a vontade do Irã
de aceitar suas obrigações internacionais. Não é uma
questão de mediadores, de atores diplomáticos, o
Irã sabe o que deve fazer: que deve cooperar com a
AIEA, dar garantias à comunidade internacional sobre suas atividades, mas se recusa a fazer isso. Não é
uma questão de o Brasil, Argentina, índia, ou outro
país para mediar. O que falta é um país cumprir suas
obrigações internacionais. Ter novos atores mediando não vai mudar a situação para melhor.
JUCA: O mesmo se aplica ao conflito entre Israel
e Palestina?
HAASS: Esse conflito tem ocorrido há décadas. Também não precisa de mais mediadores. Se os brasileiros acham que têm alguma ideia original para so-
as Bases na Colômbia, os Assentamentos em
Cisjordânia e Gaza. Indagaram sobre as perspectivas de democratização das instituções
multilaterais financeiro-monetárias e políticas.
Quiseram saber sobre o embargo a Cuba e as
sanções contra o Irã... Falando sobre a Declaração de Teerã e a Resolução 1973 do CSNU
sobre a Líbia, um aluno chegou a comparar a
diferença de atitude de Brasil e EUA na solução multilateral de crises com a parceria entre
“good cop and bad cop”, tão recorrente no
mundo de Hollywood. A interação foi longa e
lucionar o problema, eu os convidaria a expô-la. Eu
ficaria surpreso se houvesse ideias originais que contribuíssem para uma solução entre as partes. Acho
que o Brasil deveria se preocupar mais com assuntos
nos quais o país tem um papel evidente a exercer:
negociações internacionais de comércio, energia,
clima, agricultura, regionais... esses assuntos fazem
sentido. Eu não acho que o Brasil tenha uma posição
muito particular em relação ao Irã e a Israel.
JUCA: O senhor não acha que há um paradoxo em
defender um assento permanente para o Brasil
no CSNU e, ao mesmo tempo, ver com reservas
uma atuação mais assertiva do Brasil no Oriente
Médio ou na crise iraniana?
HAASS: Se o Brasil fosse um membro do Conselho,
obviamente participaria da mediação. Ele pode participar agora, mas eu tenho a visão de que o mundo
não precisa de mais participantes diplomáticos independentes, e novas iniciativas diplomáticas. Pessoalmente, acho que o Brasil deveria estar no Conselho,
que a Índia deveria estar no Conselho. O CSNU está
cada vez mais desligado do mundo. Uma constelação de poder que representava o mundo nos anos
1940 não se aplica mais ao mundo de hoje.
* Richard Haass é o Presidente do CFR. Até junho
de 2003, foi diretor de planejamento politico do Departamento de Estado. Também foi assistente especial
do Presidente George W. Bush e director senior para assuntos do Oriente Próximo e Sul da Ásia, no Conselho
de Segurança Nacional.
** Entrevistadores: Alexandre Souto, Danilo Bandeira, Gustavo Machala e Paulo Cesar Valle.
sincera e, após algumas horas, Julia confessava que seria uma satisfação pessoal ver o Brasil no CSNU e, na sequência, um aluno tomou
coragem e pediu a palavra para revelar que
seguia a palestrante no twitter.
Era de se esperar, portanto, que esse segundo encontro seria evento de grande interesse. Quando a direção do Instituto Rio Branco (IRBr) circulou documento perguntando
quem gostaria de participar de jantar oferecido ao Instituto pelo CFR, a adesão foi unâmine e imediata. Nos intervalos entre as aulas,
89
artigos e ensaios
debatiam-se as atividades e as motivações da
think-tank de Nova Iorque, bem como o alcance de suas recomendações.
Os mais desconfiados logo reuniram artigos
científicos e reportagens versando sobre o Conselho. Política externa, democracia, bipartidarismo, liberdade intelectual, debate informado,
opinião pública, elites profissionais, influência
política. Esses conceitos compunham o campo
semântico comum a qualquer tentativa de explicar a atuação do Council on Foreign Relations.
JUCA: Como especialista em América Latina
como a senhora imagina que seria a reação de
México e Argentina, caso o Brasil conseguisse o
assento permanente no CSNU?
SHANNON: A expansão do CSNU é um interessante
desafio global. Para quem quer que entre com a expansão, sempre haverá insatisfeitos. Mas você não
pode expandi-lo para todos os membros da ONU,
senão ele viraria o que é a Assembleia Geral. Acho
que as sensibilidades das nações que não forem contempladas pela expansão devem ser consideradas,
mas acho que descontentamentos serão inevitáveis,
porque, para que o Conselho funcione, sempre ficará alguém de fora. O Conselho não pode triplicar ou
duplicar de tamanho. Acho que o descontentamento faz parte do processo, então sempre teremos sensibilidades na Argentina, México, Colômbia – quem
quer aspire participar da expansão – os vizinhos da
Alemanha ou nações africanas.
JUCA: Como avaliar as divergências no relacionamento entre Brasil e EUA? Haveria problemas de
compreensão entre os dois países?
SHANNON: Acredito que há algumas razões históricas para essas divergências. Primeiro, Brasil e EUA são
dois países com dimensões continentais, que tendem
a priorizar temas de política interna. Com certeza isso
se aplica aos EUA e acho que também acontece no
Brasil. Acho que parte da incompreensão advém do
desconhecimento que o público geral nos EUA tem
90
O CRF é uma das think-thanks mais influentes dos Estados Unidos. Conta com quase
4.700 membros, incluindo proeminentes figuras das vidas política, empresarial e acadêmica dos EUA, e edita a revista Foreign Affairs.
Repleto de mesas-redondas, grupos de estudos, relatores especiais e forças-tarefa independentes, o cotidiano do Conselho volta-se
à contemplação de temas candentes da política internacional e questiona-se acerca do
posicionamento dos EUA. Segundo defendem
de muitos temas. O Brasil não é o único país sobre o
qual o público americano tem uma imagem não acurada. Segundo, a comunidade política nos EUA que
lida com América Latina tende a se especializar no
espanhol, o que faz as pessoas em focarem suas... Eu,
por exemplo, falo apenas espanhol e portunhol, de
modo que receio ter uma desvantagem em enternder o que ocorre aqui, quando comparado a outros
países da América Latina. E não estou sozinha nisso:
acho que é muito comum na comunidade. Assim,
os especialistas que estudam a política hemisférica
também privilegiam outros países devido a questões
linguísticas.
JUCA: Isso poderá mudar no futuro?
SHANNON: Vejo que isso já está começando a mudar. Algumas das melhores universidades dos EUA
estão construindo centros de estudos sobre o Brasil
– quando eu estava fazendo meu PHD em Harvard,
eles estavam criando um Brazilian Institute. A Universidade de Columbia está abrindo um escritório aqui
e outro no Rio. Essa mudança já está começando então a próxima geração de estudantes terá uma oportunidade e vários incentivos para estudar português
e para melhor conhecer o Brasil.
* Shannon O’Neil é especialista do CFR para a
América Latina.
** Entrevistadores: Gustavo Machala e Pedro Cavalcante.
Metropolitan Club. O luxuoso salão
do Metropolitan Club foi a primeira
sede dos jantares organizados pelo
CFR para discutir a política externa
dos Estados Unidos
Elihu Root. O estadista
estadunidense, que ganhou o prêmio
Nobel da Paz em 1912, é figura
fundadora do CFR e o protótipo do
conceito de Wise Man
seus membros, a ideia por trás do Conselho é
informar o debate público acerca de questões
de importância crítica para a política externa
dos Estados Unidos.
Bem, àquela época, a emergência econômica e política do Brasil aparecia no topo da lista
de interesses internacionais dos EUA e, assim,
em 27 de fevereiro de 2012, chegava a Brasília
uma ampla comitiva, organizada pelo CFR. A
comitiva reunia 19 personalidades do âmbito
governamental, da academia e do setor privado dos EUA. Chamava atenção a presença
de importantes figuras do expressivo business
sector estadunidense: grande parte da comitiva constituía-se de presidentes e diretores
executivos de grandes empresas que desejavam ampliar seus negócios no Brasil.
No dia 28, a comitiva estadunidense ofereceu um jantar, no Salão Panorâmico do Royal
Tulip Hotel, à turma 2011-13 do Instituto Rio
Branco. Afora a vista para o lago Paranoá, não
havia nada de especial no formato do encontro,
já que a organização de jantares de discussão
intelectual é prática fundadora do Conselho.
A deferência foi, no entanto, evento extraordinário na rotima do IRBr. Apenas futuramente os alunos viriam a conhecer a razão
histórica daquele jantar. Em 10 de junho de
1918, Elihu Root – cuja carreira em constante alternância entre funções públicas e setor
privado o legou o título de protótipo do wise
man estadounidense – convidou uma coleção
de mentes ilustres de sua época para um jantar no Metropolitan Club, em que se discutiria
a política externa de uma potência em franca
ascensão. A iniciativa foi bem recebida e os
jantares black tie passaram a ocorrer com regularidade mensal, até que, em 1921, o dinner
club do ex-Secretário Root fundiu-se ao braço
americano do Comitê Transatlântico para Relações Internacionais, dando origem ao CFR.
O bipartidarismo e a vocação para motivar
debates na sociedade civil são também dessa
91
artigos e ensaios
época, já que muitos dos membros oriundos
do Comitê Transatlântico haviam ajudado a
formatar o ideal wilsoniano de relações internacionais, em que a opinião pública presta contribuição capital para a paz mundial.
O primeiro secretário administrativo da Foreign Affairs, a título de exemplo, foi Hamilton Fish Armstrong, um jovem colaborador
que havia participado da delegação à Conferência de Paz de Paris, quando o ideal de
opinião pública teve força para abolir a diplomacia secreta e formalizar o sistema de
segurança coletiva da Liga das Nações, baseado na “Moratoire de la Paix”.
O propósito de aproximar a sociedade
civil estadunidense a temas internacionais
justificou, cerca de 80 anos após seu lançamento, a organização daquela comitiva
ao Brasil. A comitiva passaria por múltiplas
cidades e teria encontros com diversos segmentos da sociedade brasileira. Começando
por Brasília, era bastante conveniente incorporar à agenda da visita um encontro com
os jovens diplomatas do IRBr.
Embora o black tie tenha saído de moda
nos eventos da diplomacia brasileira, cada
aluno escolheu sua melhor gravata ou vestido para a ocasião. A preparação para o jantar
envolveu também leitura de notícias, artigos
e relatórios tratando de temas da política
internacional e dos avanços no desenvolvimento brasileiro. Era preciso passar uma boa
imagem do País e os interlocutores representavam uma instituição de respeito.
Com quase um século de história, o CFR
teve oportunidade de acompanhar os mais
trágicos eventos da política mundial e opinar
acerca das maiores inflexões da política externa estadounidense. O Conselho pôde posicionar-se contrário à segregação econômica da
Alemanha após a IGM e favorável a uma política de boa-vizinhança para a América Latina.
Chegou a argumentar que a Nova Política Econômica da União Soviétiva criaria boas oportunidades de negócios de risco e, já em 1939,
passou a defender a criação de um regime internacional de desarmamento que levasse em
conta as “diferenças” entre as nações.
A Força-Tarefa do CFR sobre o Brasil
Além de sua rotima de eventos na Harold Pratt House, o CFR passou, desde 1995, a organizar forças-tarefa independentes para tratar de temas de maior complexidade e relevo, já tendo publicado mais de 50 relatórios.
O Conselho reúne e financia um grupo de especialistas com variadas opiniões políticas e formações acadêmicas, que deve publicar relatórios consensuais sobre tema designado. Cada força-tarefa é independente para
publicar os resultados de seus estudos, mas o CFR entra com apoio instucional, buscando alcançar visibilidade midiática e influenciar profissionais dos poders Executivo e Legislativo.
O Conselho organizou uma força-tarefa independente voltada para compreender e explicar o novo Brasil e,
em 2011, lançou o relatório Brasil Global e as Relações Estados Unidos-Brasil.
Entre outras coisas, o relatório recomenda: 1) que o Congresso dos EUA venha a eliminar a tarifa sobre etanol;
2) que a Casa Branca dê o primeiro passo para retirar a necessidade de visto à entrada de brasileiros nos EUA;
3) que o Departamento de Estado venha a apoiar o pleito brasileiro por um assento permanente no Conselho
de Segurança da ONU.
92
Harald Pratt House
Localizada na esquina da 68th Street com a Park Avenue,
Nova Iorque, a mansão que serve de sede ao CFR foi construída com os melhores materiais possíveis, entre 1919 e
1920, por Harold Irving Pratt.
O Sr. Pratt foi membro do CFR de 1923 até seu falecimento, em 1939. Seu pai fundara a Astral Oil, que, ao final do
século XIX, fundira-se à Standar Oil, do grupo Rockefeller,
um grande contribuinte e doador ao Conselho. Em 16 de
abril de 1945, a mansão foi doada ao Conselho pela Viúva
de Harold I. Pratt.
Além dos jantares-debate e outras atividades do Conselho,
a casa costuma ser alugada para celebrar casamentos de
personalidades da sociedade novaiorquina.
Quando o Brasil ganhou espaço específico
na agenda do Conselho, foi porque o País esteve na linha de frente de um importante desenlace da história mundial moderna: a ascensão
de potências não-tradicionais na conjuntura
da crise econômica do mundo desenvolvido.
O CFR não tardou a perceber o conjunto de
transformações centradas no Brasil e logo organizou uma força-tarefa independente para
compreender o vizinho austral e suas relações
com os EUA. A comitiva que veio a Brasília já
havia aprendido bastante sobre o Brasil e estava preparada para aprender ainda mais.
No jantar do Royal Tulip Hotel, o prato principal foi cordeiro assado. Como començais,
distribuídos em mesas de seis a oito pessoas,
alunos do IRBr e personalidades da comunidade política estadunidense trocavam opiniões
sobre o Brasil, seus programas nacionais, sucessos e desafios do seu projeto de desenvolvimento. A relação bilateral com os EUA era
retratada como madura e promissora, capaz
de resistir a qualquer divergência conjuntural
e aprofundar-se no ilimitado.
Além da rica discussão política, a revista
JUCA aproveitou a oportunidade do jantar
para entrevistar três membros do CFR: Richard
Haass, presidente do CFR; Julia Sweig, diretora
da iniciativa Brasil Global; e Shannon O’Neil, especialista em América Latina. A transcrição de
trechos dessas entrevistas, dispostos em caixas
independentes ao longo da matéria, poderá
dar um gostinho ao leitor mais interessado do
que foi esse atípico encontro Norte-Sul.
Membros da Comitiva ao Brasil
Richard N. Haass, Presidente do CFR
Robert John Abernethy, Presidente, American Standard
Development Co.
Howard E. Cox Jr., Parceiro consultivo, Greylock
Kim G. Davis, Diretor Executivo, Charlesbank Capital Partners, L.L.C.
Joel S. Ehrenkranz, Pearceiro Senior, Ehrenkranz &
Ehrenkranz LLP
Bart Friedman, Parceiro, Cahill Gordon & Reindel
Michael E. Gellert, Parceiro Geral, Windcrest Partners
Mimi L. Haas, Presidente, Mimi and Peter Haas Fund
Donna J. Hrinak, Presidente, Boeing Brazil
Ann F. Kaplan, Presidente, Circle Financial Group
Shannon K. O’Neil, Especialista em América Latina (Douglas Dillon Fellow), CFR
Jeffrey A. Rosen, Vice-Presidente, Lazard
Stanley S. Shuman, Diretor Executivo, Allen & Company LLC
Julia E. Sweig, Diretora da Iniciativa Brasil Global, CFR
Aso O. Tavitian, Presidente, Tavitian Foundation
David B. Weinberg, Presidente e Princiapl Oficial Executivo, Judd Enterprises, Inc.
Robert G. Wilmers, Presidente e Princiapl Oficial Executivo, M & T Bank Corporation
Jeffrey A. Reinke, Chefe de Gabinete do Presidente, CFR
Sharon R. Herbst, Diretor de Projetos Especiais, CFR
93
artigos e ensaios
O Brasil nas páginas da
Foreign Affairs
Daniel Torres de Melo Ribeiro
Em 75 anos de história, o Brasil foi objeto
central de 21 artigos da Foreign Affairs. A análise desses escritos revela o olhar de estudiosos
estrangeiros, intelectuais brasileiros e até Presidentes da República (ver box) acerca de momentos significativos da vida nacional.
Os primeiros dois artigos sobre o Brasil têm
em comum a análise sobre governos de Getúlio Vargas. “The new régime in Brazil”, de Ernst
Hambloch, foi publicado em 1938 e discorria
acerca do Golpe do Estado Novo. Para o autor,
o evento apenas ratificou um processo já em
curso de centralização do governo na figura do
Presidente Vargas, a quem eram dirigidas severas críticas. O governo autoritário instaurado
não seria condizente com as tradições políticas
brasileiras. Sobre a Política Externa do Estado
Novo, o autor já anteviu que não haveria maior
aproximação com Itália e Alemanha, mas uma
mera política de barganha.
O segundo artigo sobre Vargas, escrito em
1950 por G. H. Haring, “Vargas returns in Brazil”, manteve o tom crítico à figura de Getúlio.
O autor destacou o contexto diverso da nova
Presidência de Vargas e as divisões tanto em
sua base de apoio como dentro das Forças Armadas brasileiras, aspectos que contribuiriam,
quatro anos mais tarde, para seu suicídio.
Entre as décadas de 1950 e 1960, intelectuais brasileiros valeram-se da Foreign Affairs
para suas publicações. Gilberto Freyre assinou
dois artigos para a revista. O primeiro, “Slave
Monarchy and Modern Brazil”, de 1955, apresenta a tese de que a figura do Imperador
brasileiro, ao projetar-se acima da autoridade
dos senhores rurais, contribuiu para atenuar as
94
relações patriarcais e teria efeitos duradouros
sobre a organização política do país.
“Misconceptions about Brazil”, publicado
em 1962, tem como pano de fundo a instabilidade vivida pelo país após a renúncia de Jânio
Quadros. Gilberto Freyre tece duras críticas aos
jornalistas estrangeiros que não compreenderiam a complexidade do país. A formação histórica brasileira teria produzido, segundo o au-
tor, uma sociedade democrática, inclusive sob
o ponto de vista racial, com instituições sólidas
e comprometidas com ideais nacionais, que
não poderiam ser ignoradas.
Em “Brazil, What Kind of Revolution” de
1963, Celso Furtado discorreu sobre a necessidade de mudança dos paradigmas sociais do
Brasil, no momento em que o país passava por
rápido surto de crescimento. Embora o autor
aceitasse o pressuposto marxista da possibilidade (e necessidade) de mudança social como
uma doutrina essencialmente humanista,
afirmava que a revolução no Brasil dar-se-ia,
provavelmente, por meios democráticos, de
maneira gradual e respeitando-se liberdades
civis, o que não ocorrera em outras revoluções
de cunho marxista. O autor, entretanto, não
excluiu a possibilidade de processos revolucionários violentos, sobretudo em virtude da
enorme parcela da população miserável ainda
no campo e de um retrocesso autoritário - o
qual se confirmaria no ano seguinte.
Hilgard Sternberg, em “Brazil: Complex
Giant”, de 1965, aborda a questão do uso do
território. O autor destaca o baixo nível de
produtividade agrícola do país, a concentração de terras danosa ao surgimento de uma
classe-média rural e a baixa eficiência das políticas estatais para a questão.
Durante as décadas de 1970 e 1980, dois
assuntos dominaram as páginas da Foreign
Affairs: a situação política do país e as relações Brasil-Estados Unidos. Escrito no auge do
regime militar em 1971, “Brazil: All power to
the Generals”, de David Trubek e Henri Steiner,
buscou responder quanto tempo mais duraria
o regime. Os autores afirmaram que não havia
perspectivas de abertura política naquele momento pelo apoio de setores importantes da
população ao governo. Concluíram, ao final,
que enquanto o crescimento econômico continuasse, segmentos importantes da população civil seguiriam apoiando os militares.
Em 1975, contudo, após o fim do “milagre
brasileiro”, “Decompression in Brazil”, de Fernando Pedreira, trata da decisão de abertura,
atribuída ao próprio governo. O autor destacou a retomada dos ideais de uma “intervenção
saneadora” de 1964, as divisões internas entre
os militares e o receio de desgaste após anos
de governo e abusos. Aludiu-se, ademais, à
perda de controle sobre elementos das Forças
Armadas. A situação econômica é apresentada
como perigo ao processo de abertura controlada, caso se deteriorasse abruptamente.
“Between Repression and Reform”, escrito
por Fritz Stern em 1978, relata as impressões
do autor em viagem pela Argentina e pelo
Brasil. O autor destacou o processo de abertura feito no Brasil sob controle estrito dos militares, que buscavam equilibrar pressões pela
abertura na sociedade civil e pelo autoritarismo dentro das Forças Armadas.
“Brazil: On The Tightrope Toward Democracy”, de Juan de Onis, insere-se no contexto
das eleições presidenciais de 1989. O autor
discorre sobre os grandes desafios brasileiros,
como a hiperinflação e a superação de desigualdades sociais. Ao analisar as eleições, de
Onis destaca a fragilidade dos partidos, à exceção do PT de Lula e do PSDB de Mario Covas, a
fragmentação do PMDB e o desejo popular de
mudança e de novas lideranças. O autor conclui
que o novo presidente deveria adotar reformas
econômicas, privatizações e formar coalizões
políticas para enfrentar os desafios do país.
Albert Fishlow escreveu dois artigos de
grande relevância para o estudo das relações
Brasil-Estados Unidos nas décadas de 1970 e
1980. “Flying down to Rio”, de 1978, apresenta perspectivas para as relações bilaterais no
contexto do mal-estar causado pela política
de direitos humanos de Carter e a oposição
norte-americana ao Acordo Nuclear BrasilAlemanha. O autor propõe, como política efetiva de aproximação norte-americana com o
país, maior comprometimento com o desenvolvimento brasileiro, inclusive pela transferência de tecnologia.
O segundo artigo de Fishlow, “The United
States And Brazil: The Case Of The Missing
Relationship”, analisa as relações bilaterais no
95
artigos e ensaios
contexto da crise da dívida de 1982. Para o
autor, o governo Reagan, com seu resgate da
polarização Leste-Oeste e promoção do livrecomércio, não teria sucesso em melhorar as
relações com o Brasil, então sofrendo recessão
e altas taxas de inflação que o impeliam a uma
política externa pragmática. Fishlow ressalta
o dano criado pela elevação dos juros norteamericanos e prevê o surgimento de novas
tensões comerciais, uma vez que o Brasil estimularia cada vez mais as exportações para
cobrir o pagamento da dívida, como de fato
ocorreu no caso de produtos de informática
em meados da década.
À exceção da entrevista com o Presidente Fernando Henrique Cardoso em 1995, não
houve artigos sobre o Brasil na década de
1990. Em 2002, “Two Ways to Go Global”, de
Peter Hakim, apresentou comparação entre os
modelos de inserção internacional do México
pós-NAFTA e do Brasil, que assume uma postura autônoma e de diversificação de parceiros.
O autor alerta para o fato de que o Brasil provavelmente resistiria aos esforços de liberalização
comercial capitaneados pelos Estados Unidos,
sobretudo a ALCA. Propõe, ainda, que Estados
Unidos e Brasil busquem terreno comum para
diálogo, uma vez que o apoio brasileiro seria
necessário para a atuação norte-americana na
América Latina.
Em 2003, “Lula`s Brazil”, de John Williamson, analisou as perspectivas do mandato do
Presidente Lula, no contexto da crise provocada pelo temor de investidores pela vitória do
petista. O autor condicionou a superação da
crise ao compromisso de Lula de manter uma
política econômica conservadora e ao retorno
de capitais estrangeiros ao país. Caso o novo
governo fosse bem sucedido, as políticas propostas por Lula poderiam ser benéficas para
toda a região e, inclusive, para a relação com
os Estados Unidos.
No ano seguinte, “The Reluctant Partner”, de
Peter Hakim, analisa os primeiros anos da política externa do governo Lula. O autor destaca
96
a singularidade e pragmatismo do novo governo, que gerariam pontos de tensão e oportunidades de cooperação. Harkim propôs, nesse
sentido, que a melhora da situação interna do
Brasil seria pressuposto para os interesses norte-americanos no Hemisfério.
Os artigos publicados na segunda metade
da década assumiram um tom mais otimista.
Escrito em 2008, “Brazil`s Big Moment”, de Juan
de Onis, concentra-se, sobretudo, nos recursos
energéticos, naturais e humanos à disposição
do país. Pela primeira vez, questões ambientais são apresentadas, relacionadas ao desmatamento na Amazônia, emissões de carbono e
produção de biocombustíveis. De Onis propõe
que a cooperação com os Estados Unidos poderia dar-se em áreas como produção de alimentos, mudanças climáticas, energia e segurança regional.
Em 2010, “A New Global Player”, de Julia
Sweig, ressalta a emergência brasileira como
ator global relevante por suas credenciais diplomáticas e peso econômico e estratégico,
tanto em termos de recursos energéticos atuais, como futuros, em especial a água. A autora
busca, igualmente, explicações para o envolvimento brasileiro nas negociações sobre o programa nuclear iraniano. Sweig propõe que os
Estados Unidos deveriam considerar a ascensão brasileira como a emergência de um novo
parceiro global.
“Bearish on Brazil”, de Ruchir Sharma, publicado em 2012, assume, por fim, um tom pessimista. O artigo destaca a incapacidade brasileira de acompanhar o crescimento de China
e Índia e responsabiliza os elevados gastos
sociais do Governo, em detrimento de investimentos em infraestrutura ou melhorias em
educação como parte do problema.
A necessidade de melhor aproximação
norte-americana do Brasil é tema recorrente
em tais escritos, derivada da percepção da singularidade brasileira - tanto pelas dimensões
continentais e potencialidades, quanto pela
formação de seu povo.
Jânio, Sarney e FHC: Autonomia, transição democrática e reforma
Três Presidentes da República brasileiros estiveram nas páginas da Foreign Affairs. Jânio Quadros
e José Sarney assinaram artigos sobre a política externa e o processo político brasileiro, ao passo que
Fernando Henrique Cardoso concedeu entrevista a
James Hoge Jr., editor do periódico em 1995.
Publicado em 1961, semanas após a renúncia de
Jânio Quadros, o artigo “The New Brazilian Foreign
Policy” é considerado um dos documentos fundamentais da Política Externa Independente. A constatação básica que orienta a formulação da “nova
política” é a de que o rápido crescimento do Brasil
impunha uma política externa pragmática, voltada
para o desenvolvimento nacional, e universalista,
ainda que com identidade arraigada aos valores Ocidentais. Com base nessas premissas, Jânio advogava
maior aproximação com os novos Estados afro-asiáticos e maior atenção dos países desenvolvidos para o
mundo em desenvolvimento, caso desejassem manter esses países afastados do socialismo.
Escrito 25 anos depois, “Brazil: A President`s Story”
é uma narrativa pessoal do Presidente José Sarney
sobre as circunstâncias trágicas que o levaram a assumir o mandato presidencial. Escrito em tom de otimismo em relação ao futuro do país, durante a estabilização momentânea trazida pelo Plano Cruzado, o
artigo relata os desafios brasileiros, sobretudo no que
se refere à superação das desigualdades e término
da transição democrática, com a nova Constituição.
No campo da política externa, o Presidente discorreu
sobre a questão da dívida, uma das grandes contingências do país e da América Latina. Reafirmou
a necessidade de uma renegociação em bloco das
dívidas, tal como prevista no Consenso de Cartagena. Digno de nota é o tom crítico das relações
com os Estados Unidos. Sarney criticou a postura
norte-americana em relação a América do Sul que
viria recebendo “tratamento de terceira classe”. O
presidente identifica nesse tratamento a causa de
sentimentos antiamericanos na região.
“Fulfilling Brazil`s Promisses” é entrevista de
Fernando Henrique Cardoso ao editor da Foreign Affairs no início de seu primeiro mandato em 1995. O Presidente discorreu sobre os
desafios de seu mandato, internos e externos.
Reafirmou o comprometimento brasileiro com
a integração regional e com a diversificação de
parceiros. Sobre as relações com os Estados Unidos, afirmou que ambos os países partilhavam
os mesmos valores e mantinham boas relações
apesar de eventuais fricções. Perguntado sobre
o papel do Brasil no contexto da divisão NorteSul, o Presidente afirmou que tal divisão teria
sido superada, sendo os valores vencedores da
Guerra Fria partilhados tanto pelo Norte quanto
pelo Sul. Fernando Henrique discorreu acerca
das reformas necessárias no país e foi enfático
ao qualificar a situação econômica como sólida,
após ser indagado sobre possível contágio da
Crise Mexicana de 1995.
97
artigos e ensaios
98
O lugar do
conceito de
Responsabilidade
ao Proteger
na evolução
da justiça
internacional
Artur Andrade da Silva Machado
Por uma diplomacia idealista e propositiva
99
artigos e ensaios
Tem-se às vezes a impressão de que as Nações
Unidas, às vésperas de seu vigésimo quinto
A tensão criativa que se processa no equacionamento da justiça internacional é interpretada, pela tradição filosófica ocidental,
segundo relação dialética que, fundada na Hélade, se reproduz contemporaneamente. Nos
diálogos de Sócrates com os filósofos sofistas,
Platão relata a tensão entre duas concepções
de justiça, em esforço precursor do debate
entre universalismo e relativismo. Ateniense
convicto na existência da razão como denominador comum das realidades humanas, Sócrates defendia a possibilidade de encontrar
preceitos morais universais, porque racionais;
ao passo que, para os sofistas, cuja concepção
filosófica era conformada por um nomadismo
que os colocava em contato com diferentes
culturas, qualquer preceito moral deveria ser
matizado culturalmente antes de sua formulação e aplicação (PLATÃO, 2008).
Na sociedade internacional contemporânea, a concepção de justiça é antes de tudo
um patrimônio público negociado politicamente. Se, para realistas como Morgenthau
(2003), concepções nacionais de justiça excluem-se em inconciliável jogo de vencedores
e perdedores; para autores da Escola Inglesa
como Bull (2002), o ideal de justiça das sociedades ocidentais choca-se com o imperativo
de organização das relações internacionais.
Reconhecidos os limites e as contradições do
justo, nações que queiram pautar suas relações internacionais em ideais de justiça encontram forte apelo para priorizar a busca por
consensos e por equilíbrios de posições.
Este é o caso do Brasil, que, em sua inserção
internacional, promove um ideal de justiça
universalista, mas consensualista. Os princípios de justiça universais de Platão encontram
espaço na tradição cultural e na política externa brasileiras. Contudo, o Brasil apregoa que
mudanças em princípios nacionais e locais de
justiça somente podem ser alcançadas pela
via do convencimento, jamais por exercício de
100
aniversário, parecem postas à margem da
realidade política, como se seus princípios e objetivos fossem um estorvo e seus mecanismos e
processos se tivessem mostrado inadequados.
Nota-se uma perda de confiança na ação
organizada da comunidade internacional e um
abusivo retorno à ação unilateral, às intervenções, abertas ou indiretas.
(MAGALHÃES PINTO.
Discurso por ocasião da abertura da XXIV
AGNU. In: CORRÊA, 2008)
subjugação da crença do Outro. Para convencer interlocutores externos sobre a moralidade das regras internacionais, faz-se necessário
manter diálogo racional com culturas diferentes. Nesse caso, o Governo brasileiro tem
advogado que se erigem consensos internacionais, somente na ausência de repúdio aos
valores e crenças dos interlocutores.
Na história das relações internacionais, é
possível identificar raros consensos com relação a ideais de justiça. O princípio da Responsabilidade de Proteger (R2P), se algum dia tiver
alcançado esse consenso, torna-se cada vez
mais politizado, o que se deve ao abandono
dos compromissos com o frágil equilíbrio de
visões que viabilizaria o conceito.
Caso o Brasil aceite o desafio de engajamento propositivo na estruturação normativa do R2P (BIERRENBACH, 2011), será preciso
restabelecer o compromisso desse conceito
com a justiça, antes que seja politizado, descartado ou imposto pela força. Neste ensaio,
argumento que o conceito de Responsabilidade ao Proteger (RwP), principal proposta brasileira na agenda de normatização da
responsabilidade humanitária internacional,
é exemplo de uma política externa idealista
(PAROLA, 2007), criativa e promissora.
Justiça internacional como
concepção pública
Na concepção ocidental, a ideia de justiça
é contingente dos princípios de equidade e liberdade. Nenhum sistema de interação social
pode ser concebido como justo se estabelecer
desigualdades injustificadas entre os agentes
da interação. Para John Rawls (2008), a distribuição desigual dos benefícios da interação
social somente é legítima quando essa desigualdade gera ganhos absolutos significativos para todos os demais agentes sociais. Segundo esse preceito, cumpre ponderar que o
modelo de representação e votação desigual
do Conselho de Segurança da ONU somente
poderia ser aceito na medida em que trouxesse maior eficácia no atendimento de necessidades de paz e segurança por parte de toda a
comunidade internacional.
Tampouco é justo o sistema normativo que
não se baseie no princípio da liberdade, pois,
sendo a justiça uma concepção pública, deve
ser negociada em liberdade e jamais imposta.
Seja a partir do contratualismo de Rawls, seja
a partir da ação comunicativa de Harbemas, o
processo de formação de consensos em uma
sociedade pluralista exige inclusão e mediação de visões diferenciadas sobre o que é justo (PAROLA, 2007).
Na sociedade internacional, definida pela
existência de unidades soberanas de representação sociopolítica, o imperativo de equidade manifesta-se em dois níveis. Por um lado,
é justo que interajam como iguais os Estados
representando diferentes nações; por outro,
cumpre equalizar direitos fundamentais dos
humanos representados. Essas promessas de
igualdade, arroladas como compromissos do
artigo 1º da Carta de São Francisco, são desequilibradas pela distribuição desigual do estoque de poder internacional.
Se existe o que se poderia chamar de uma
concepção pública de justiça internacional,
sua manifestação prática cede aos mecanismos de sustentação de poder de uma ordem
internacional injusta. O case da sociedade internacional frequentemente coloca em cheque a convicção socrática no justo universal,
dando razão à retórica realista de conformidade ao injusto e de conformação dos justos.
Teleologias de uma
concepção internacional
de justiça
Dado que a noção de justiça em uma sociedade internacional funda-se no equacionamento de princípios e expectativas nacionais
e locais sobre certo e errado, seria inelutavelmente utópico buscar preceitos consensuais
de justiça internacional?
Pelo contrário, a noção de justiça como patrimônio coletivo é mais facilmente compreendida como processo que como princípio, já que
este é atemporal enquanto aquele é histórico.
É nesse sentido que a história de compromissos internacionais permite evidenciar consensos acerca de preceitos morais abstratos
que fundamentam narrativas teleológicas de
justiça. Entre esses preceitos, três merecem
destaque: i) a equidade no nível das representações políticas, evidenciada pelo imperativo
moral de redução de desigualdades na participação de comunidades políticas organizadas
na formação de compromissos internacionais,
nos benefícios e custos relacionados à ordem
social; ii) a equidade no nível dos indivíduos
representados, consubstanciada na definição
de direitos e garantias fundamentais para a
dignidade da pessoa humana; e iii) o regramento do uso da força, preceito moral que
deriva dos dois precedentes.
A primeira vertente de avanço de um ideal
teleológico de justiça incorpora movimentos
de transformação da ordem internacional que
permitam maior inclusão e maior igualdade
entre Estados. Nem sempre esse avanço ocorreu de forma linear. Por exemplo, na passagem da ordem de Utrecht – pautada no com-
101
artigos e ensaios
promisso com soberanias sacrossantas para
os menores principados europeus – para a ordem de Viena – em que chega ao ápice a conformidade ante o intervencionismo dos mais
poderosos –, registra-se retrocesso na ideia de
justiça como igualdade em nome da justiça
como paz (WATSON, 2004). Não obstante, a
evolução dos grandes acontecimentos internacionais que se lança com as ondas de descolonização da década de 1940 e culmina, nos
dias de hoje, nas negociações para reforma
das principais instituições econômicas internacionais reflete uma clara aproximação entre
os polos da díade ordem- justiça.
O compromisso com a equidade no nível
dos indivíduos representados abarca dois movimentos teleológicos: de uma parte, diversas
instâncias de representação na comunidade
internacional adotam uma missão humanitária
na defesa dos direitos mais fundamentais da
dignidade da pessoa humana; de outra, a comunidade internacional tem aceitado compromissos com a melhoria da situação socioeconômica das populações mais pobres e excluídas
de níveis mínimos de bem-estar e consumo de
produtos de necessidade elementar. A sensibilização de atores da comunidade internacional
com o compromisso teleológico com os direitos atualmente arrolados no Estatuto de Roma
é mais antiga, originando-se com o repúdio ao
inexplicável sofrimento da população civil nas
guerras de unificação italiana. A sensibilização
com o sofrimento causado pela pobreza e pela
miséria extremas é ainda recente, ensejando
compromissos apenas subsidiários por parte
da comunidade internacional.
O terceiro campo de avanço da justiça internacional é o da proibição do uso da força,
uma vez que a violência contra iguais é a negação última de qualquer concepção de justiça. Nessa vertente, cabe nota para o fato que
grandes saltos na tecnologia da violência e no
seu emprego ensejaram igualmente grandes
avanços no regramento internacional do uso
da força, passando-se de ordenamentos em
que Estados teriam uma compétence de guerre
102
(VATTEL, 2004) para a institucionalização de
sistemas de segurança coletiva, cuja versão
contemporânea se positiva nos artigos 2º,4º,
25 e 42 da Carta de São Francisco.
Os três objetivos de justiça aqui lembrados
têm estrutura interpretativa aberta, de modo
que seus conteúdos variam histórica e casuisticamente. É, aliás, devido à liberdade interpretativa que se pode observar a articulação,
renovação e revisão de consensos internacionais, a partir dos quais seria justificável uma
presunção de teleologia dos preceitos de justiça internacional. Da mesma forma, qualquer
retrocesso irrefletido na marcha das teleologias da justiça aponta para certa degradação
moral da ordem política internacional.
O intercruzamento das
grandes narrativas de justiça
O contato e a tensão entre ordem e justiça
atingem seu ponto máximo quando esta exige a reforma daquela. Se a justiça depende
da ordem para ser efetiva, a ordem depende
da justiça para ser legítima. Assim, acomodar
avanços da concepção pública de justiça no
sistema normativo será talvez a principal função daqueles que influenciam a ordem social.
Quando se chocam os movimentos de
avanço de cada vertente teleológica de justiça, é preciso atualizar os regramentos internacionais, equilibrando as novas expectativas
com garantias tradicionais. Trata-se de difícil
reforma de paradigmas, envolvendo a articulação de novos consensos. Contudo, é imperativo que seja justa a resultante do contato
entre as diversas concepções de justiça, velhas
e novas, nacionais e globais.
O contemporâneo movimento de reforma
do sistema de segurança coletiva da ONU
amarra-se a expectativas de atualização do
equilíbrio entre as três narrativas teleológicas
de justiça. A ideia de intervenção humanitária
resume uma nova proposta de justiça internacional, priorizando-se a equidade no nível
World Summit Outcome Document (2005)
Responsibility to protect populations from genocide, war crimes,
ethnic cleansing and crimes against humanity
dos indivíduos representados sobre compromissos nas outras duas narrativas. Trata-se de
rara inflexão no modo como se articulam os
valores de soberania, direitos humanos fundamentais e proibição do uso da força.
Segundo Inis Claude Jr., “[t]here is real danger
that newly created international organizations
may not be simply too little and too late, but
also already out of date.” (1971, p.46). A proposição aplica-se para explicar a incapacidade da
Liga das Nações em evitar a II Guerra Mundial
e inaptidão da ONU para pacificar o sistema internacional da Guerra Fria. Mas também serve
para analisar a crise do sistema de segurança
coletiva do pós-Guerra Fria, em que conflitos
intraestatais são combatidos com instrumentos
forjados para responder a conflitos entre Estados. Da mesma forma que a Liga das Nações foi
feita para evitar uma nova I Guerra Mundial e a
ONU, uma nova II Guerra Mundial; a proposta intervencionista da II Guerra do Golfo não serviu
para atuar na Somália e o não-intervencionismo
pós-Somália ensejou a catástrofe de Ruanda.
O problema do paradigma histórico é que,
por vezes, sua lembrança ofusca peculiaridades
do presente. Durante a década de 1990, o reforço de compromissos humanitários por parte de
uma concepção norte-atlântica de justiça internacional instituiu, em termos práticos, a figura
da intervenção humanitária, ao mesmo tempo
em que possibilitou o surgimento de novos
paradigmas de ação e inação da comunidade
internacional diante de conflitos domésticos.
Essa nova proposta de uso da força encontrou reação imediata em importantes atores
do sistema internacional. Em sua estratégia de
segurança publicada no ano 2000, por exemplo, a Rússia define entre as principais ameaças de então: “the utilization of military-force
actions as a means of "humanitarian intervention" without the sanction of the UN Security
Council, in circumvention of the generally accepted principles and norms of international
138. Each individual State has the responsibility to protect its
populations from genocide, war crimes, ethnic cleansing and
crimes against humanity. This responsibility entails the prevention of such crimes, including their incitement, through
appropriate and necessary means. We accept that responsibility and will act in accordance with it. The international community should, as appropriate, encourage and help States to
exercise this responsibility and support the United Nations in
establishing an early warning capability.
139. The international community, through the United Nations, also has the responsibility to use appropriate diplomatic, humanitarian and other peaceful means, in accordance
with Chapters VI and VIII of the Charter, to help to protect
populations from genocide, war crimes, ethnic cleansing
and crimes against humanity. In this context, we are prepared to take collective action, in a timely and decisive manner, through the Security Council, in accordance with the
Charter, including Chapter VII, on a case-by-case basis and
in cooperation with relevant regional organizations as appropriate, should peaceful means be inadequate and national authorities are manifestly failing to protect their populations from genocide, war crimes, ethnic cleansing and
crimes against humanity. We stress the need for the General
Assembly to continue consideration of the responsibility to
protect populations from genocide, war crimes, ethnic cleansing and crimes against humanity and its implications, bearing in mind the principles of the Charter and international
law. We also intend to commit ourselves, as necessary and
appropriate, to helping States build capacity to protect their
populations from genocide, war crimes, ethnic cleansing
and crimes against humanity and to assisting those which
are under stress before crises and conflicts break out .
law” (RÚSSIA, 2000, p. 3). A doutrina da intervenção humanitária trouxe não apenas a apreensão de soberanistas, mas, também, o receio
generalizado com o uso seletivo dos novos
mecanismos de uso da força.
103
artigos e ensaios
A responsabilidade com a
justiça internacional durante
o processo de reordenamento
da normativa da intervenção
humanitária
A necessidade de fazer avançar o compromisso internacional com a justiça humanitária não
pode justificar retrocessos na concepção pública de justiça. A imposição de práticas que se
acreditam mais progredidas moralmente pode
encerrar retrocessos quando prejudique outros
valores importantes até então pacificados.
A dissociação entre a missão humanitária, a
desigualdade entre Estados e a banalização do
uso da força foi o principal objetivo perseguido
pela Comissão Internacional sobre Intervenção
e Soberania do Estado (ICISS) no relatório sobre
a Responsabilidade de Proteger (R2P), de 2001.
A ICISS tentava viabilizar a ideia de intervenção humanitária, por meio da racionalização
de contextos e limites à proposta de justiça
humanitária norte-atlântica, evitando tanto a
não-intervenção trágica de Ruanda quanto o
intervencionismo injustificado.
Nesse afã, a Comissão logrou formular algumas proposições interessantes e equilibradas.
Em primeiro lugar, o entendimento de soberania
como responsabilidade visava à reafirmação de
um significativo grau de equidade no nível das
unidades de representação. Segundo, a tipificação de três âmbitos de exercício da responsabilidade subsidiária da comunidade internacional
– prevenção, reação e reconstrução – permitia
cobrar maior engajamento internacional com
o desenvolvimento na solução de conflitos. Por
último, a intervenção humanitária foi racionalizada como caso especial na seara de possíveis
reações a conflitos, devendo cumprir com seis
critérios: right authority; just cause; right intention; last resort; proportional means; reasonable
prospects of success (ICISS, 2001).
Apesar da sofisticação da proposta, sua incorporação como parte de uma concepção pública
de justiça foi bastante difícil. Afinal, se os aconte-
104
cimentos internacionais já atestavam o abuso da
estratégia intervencionista mesmo na ausência
de legitimidade, como seria possível acreditar
que o conceito de R2P não concorreria para o esboroamento definitivo da soberania negativa?
Quando se discutiu o texto de positivação
para a nova doutrina, em 2005, os Estados decidiram impor ainda mais restrições ao conceito,
que perdeu sua amplitude, sendo novamente
associado a episódios de tragédias humanitárias. Ora, as tragédias humanitárias apresentam, como característica geral, sérias dificuldades para atuação preventiva. Além disso, o
método de análise casuística de crises tradicional do Conselho de Segurança da ONU tende a
trabalhar com um leque de medidas que exclui
o apoio ao desenvolvimento e a fazer uso seletivo e politizado de circunstâncias semelhantes.
O texto do Documento Final da Cúpula Mundial de 2005 incorpora o conceito de R2P com
pelo menos dois desequilíbrios: i) um desequilíbrio interno, na media em que o R2P torna-se
pró-intervenção, negligenciando o papel da
comunidade internacional na prevenção de
conflitos e no apoio ao desenvolvimento e à capacitação; e ii) um desequilíbrio externo, já que,
ao trabalhar com um texto aberto e impreciso,
o processo de tomada de decisão internacional
perpetua uma estrutura de poder ultrapassada
e acostumada a priorizar interesses geopolíticos sobre princípios de justiça.
Em julho de 2009, a Assembleia Geral da
ONU discutiu meios de implementação do conceito de R2P, motivada por relatório do Secretário-Geral Ban Ki-Moon de janeiro do mesmo
ano. Em seu relatório, Ban Ki-Moon afirmou que
o conceito de R2P gozava de consenso restrito
e recomendou pensar a doutrina em três pilares: i) as responsabilidades protetoras do Estado; ii) assistência internacional e capacitação;
e iii) resposta rápida e decisiva. No relatório, o
Secretário-Geral enfocou a responsabilidade
da comunidade internacional de evitar grandes
tragédias humanitárias, recomendando um
uso flexível dos instrumentos de ação (ONU,
5 passos até a proposta brasileira de RwP
1 º passo: Durante a década de 1980, surgiram apelos sobre um “droit d’ingérence”, em debates internacionais. Com os desastres humanitários da década de 1990, o CSNU aprovou mandatos para algumas “intervenções humanitárias”, por vezes invocando razões de segurança para legitimá-las.
2 º passo: Em 2000, a força dos ideais humanitários trazidos pelo Relatório do Milénio do Secretário-Geral
das Nações Unidas, intitulado We the Peoples, motivou o Canadá a lançar a Comissão Internacional sobre
Intervenção e Soberania do Estado (ICISS). Em 2001, a ICISS publicou o relatório chamado Responsabilidade de Proteger (R2P), segundo o qual a comunidade internacional deveria assumir a responsabilidade sobre
a proteção do núcleo das necessidades humanitárias das coletividades nacionais.
3 º passo: Em paralelo a esse debate, ocorria a segunda onda de reformas da ONU. Entre 2004 e 2005, como
resultado do relatório do Painel de Alto Nível sobre Ameaças, Desafios e Mudança (A More Secure World:
Our Shared Responsibility), a Comissão de Consolidação da Paz foi criada com formato pensado para estabelecer uma ligação entre o CSNU e o ECOSOC.
4 º passo: Os líderes mundiais trouxeram o conceito de R2P à deliberação dentro das Nações Unidas. Depois
da cúpula da ONU que teve lugar em Nova York, em 2005, os artigos 138 e 139 do Documento Final da Cimeira
Mundial (A/RES/60/1) definem o R2P como a responsabilidade subsidiária da comunidade internacional para
garantir os direitos humanitários fundamentais de indivíduos e coletividades, quando os governos nacionais
não conseguem fazê-lo. Em 2006, o conceito foi recordado por uma resolução do CSNU relativa à proteção de
civis durante conflitos armados (S/RES/1674). Em 2009, o Secretário-Geral da ONU publicou relatório sobre
a implementação do R2P, o que levou a novo debate na AGNU.
5 º passo: Depois de revelar, repetidas vezes, suas preocupações com os limites políticos do R2P, o Brasil
encontrou, em 2011, a oportunidade para lançar discussões sobre um conceito novo e complementar: a Responsabilidade ao Proteger (RwP). O conceito foi primeiramente mencionado durante o discurso da presidenta
Dilma Rousseff durante a abertura da 66a sessão da AGNU. Durante um debate aberto no Conselho Segurança sobre a proteção de civis (9/11/11), a delegação brasileira preparou uma nota conceitual, na qual se
pede por método e responsabilidade nas ocasiões em que a comunidade internacional decide recorrer ao
uso da força. Em 21 de fevereiro, o Ministro Patriota e o professor Edward Luck copresidiram um debate aberto sobre a RwP e os discursos dos participantes foram disponibilizados pela Coalizão Internacional pelo
R2P. Enfim, após o Relatório do SGNU: “Responsabilidade de Proteger: resposta pronta e decisiva” (A/66/874S/2012/578), os Estados-membros da ONU debateram o RwP em um diálogo interativo informal (5/9/2012).
105
artigos e ensaios
A/63/677, 2009). Durante o debate, evidenciouse a ausência de consenso com relação à nova
doutrina, sobretudo no que se refere à implementação de sua dimensão intervencionista.
Embora haja vozes a afirmar comprometimento irrestrito com o confinamento da doutrina
ao texto de 2005, muitos Estados apresentam
ressalvas quanto aos seguintes tópicos: possíveis ações unilaterais; desatualização do Conselho de Segurança; seletividade no uso da força;
passagem de ações de prevenção para intervenção; negligência a causas estruturais de
conflito como subdesenvolvimento e pobreza
extrema (ICRtoP, 2009).
A despeito da falta de consenso com relação
a importantes aspectos do conceito de R2P
não desenvolvidos pela breve menção do texto de 2005, a nova doutrina foi usada para justificar os secessionismos de Kosovo, da Ossétia
do Sul e da Abcásia, bem como uma intervenção rápida e decisiva durante a crise na Líbia.
O uso indiscriminado do conceito, sem apoio
explícito do Conselho de Segurança, reanimou
receios com a seletividade do uso da força e
com a fragmentação das garantias negativas
da soberania. O elevado número de mortes de
civis, a imparcialidade de alguns atores-chave
envolvidos na intervenção e o impactante assassinato da liderança líbia trouxeram dúvidas
quanto ao acerto do novo compromisso humanitário. De fato, acordar em um novo instrumento sem definir circunstâncias, limites e
processos de maneira precisa traz sérios riscos
à implementação, de modo que, com o fechamento da crise, houve múltiplas discussões, no
âmbito da ONU, sobre a acontabilidade do uso
da força por parte da instituição.
Em uma dessas circunstâncias (ONU, 2011b),
o Brasil apresentou uma nota conceitual sobre
a Responsabilidade ao Proteger (RwP) – princípio
cujo condão é aperfeiçoar a R2P. Em resumo, a
RwP encerra 5 propostas objetivas: i) prevenção é sempre a melhor política; ii) intervenção
como ultima ratio; iii) imperativo de mandato
106
detalhado do CSNU para o uso da força; iv) uso
da força deve respeitar as regras do jus in bello;
e v) criação de mecanismos de monitoramento
do uso da força (BRASIL, 2011). Com essa sugestão, o Brasil não apenas aborda a implementação da R2P de forma propositiva, como também abre espaço para maior discussão acerca
de como acomodar o avanço da teleologia humanitária com antigas concepções de justiça.
Após a crise da Líbia, será preciso intenso
esforço de reconsideração da doutrina de R2P
para evitar sua politização. Se a comunidade
internacional virá adquirir um novo instrumento de justifica do uso da força, é preciso que se
criem mecanismos de defesa contra intervenções seletivas, bem como de promoção da confiança dos Estados nos processos de tomada de
decisão internacional. Para que a intervenção
humanitária seja encarada como um princípio
de justiça, é preciso protegê-la de interesses
geopolíticos imparciais, de secessionismos arbitrários, de abusos de autoridade e de poder,
de consequências trágicas quanto aos direitos
humanos de civis.
Para que seja possível avançar com a teleologia da equidade humanitária sem prejuízos
para uma concepção pública de justiça, é preciso reequilibrar seu relacionamento com a equidade entre Estados e com a proibição do uso
da força. O conceito de RwP contribuirá para
esse fim, conquanto incorpore visões diversificadas sobre justiça internacional e forje novos
consensos.
Perspectivas
A noção de justiça é uma concepção pública
que serve ao funcionamento orgânico de uma
sociedade. De fato, a estabilidade de regras sociais pode ser assegurada por poder ou por justiça, sendo esta via menos custosa que aquela. A
justiça em escala nacional e local é mais diversa
e mais humana, na medida em que reflete com-
promissos morais com padrões de conduta surgidos espontaneamente a partir do convívio em
sociedade. A justiça internacional, fruto da interação negociada de diferentes culturas, é um
imperativo das relações sociais sustentado por
relações de poder, que será tanto mais controverso quanto menos flexível e abarcativo.
O contexto atual aponta para séria inflexão
na ordenação multilateral do uso da força,
trazendo implicações para uma concepção
pública de justiça, na qual se equilibram três
objetivos abstratos: equidade entre indivíduos;
equidade entre Estados; combate à violência.
Com o desastrado fechamento da crise da Líbia, em 2011, fragilizou-se o consenso internacional que permitiria avançar com o ideal de
proteção humanitária.
É preciso repensar o princípio de R2P com
uma lógica inversa à que foi criado: visando ao
fortalecimento das garantias negativas da soberania e do regramento restritivo do uso da força.
As propostas trazidas no âmbito da primeira
formulação da RwP ajudarão a reequilibrar os
objetivos de justiça internacional, mas é sobretudo a capacidade de lançar discussões a principal virtude do conceito. A proposta do RwP
lança, portanto, perspectivas de novas discussões que merecem ser estudadas.
A ampliação dos dois primeiros pilares do
R2P para além do confinamento do texto de
2005 pode ser de interesse para dissociar o
conceito do processo normativo que culmina
majoritariamente na intervenção. Pode-se pensar na elevação do nível de compromisso internacional com a prevenção de conflitos e com a
cooperação em capacitação, desenvolvimento
e combate às causas estruturais de conflitos, já
que os esforços de base têm também um papel
legitimador da pretensão de intervir. Ademais,
a formulação da RwP pode ser usada para justificar um maior zelo com a mitigação dos efeitos
adversos de sanções econômicas, incorporando o mecanismo de smart sanctions. Em suma,
o Brasil poderia cogitar a abertura política da
formulação da RwP, que poderia funcionar
como um guarda-chuva de propostas de aperfeiçoamento do R2P, por meio, por exemplo, da
convocação de uma comissão internacional sobre a matéria.
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107
artigos e ensaios
Nossa diplomacia
no mundo da
teoria
Barbara Boechat de Almeida
Artur Andrade da Silva Machado
Como teoria e prática interagem no cotidiano da Política
Externa Brasileira
A oposição entre teoria (conhecimento contemplativo) e prática (conhecimento aplicado)
é tema que motiva recorrente discussão. Para
quase todos os desafios da vida em sociedade,
abordagens teóricas e práticas convergem tanto quanto divergem, ao apresentar explicações
e soluções. Nesse contexto, cabe perguntar: até
que ponto a experiência prática pode beneficiar-se do pensamento teórico e vice-versa?
A Revista JUCA decidiu trazer essa discussão
para o a diplomacia brasileira, entrevistando
cinco colegas: os Embaixadores Gelson Fonseca Junior e Georges Lamazière, o Ministro
Alexandre Guido Lopes Parola e os secretários
Rodrigo de Oliveira Godinho e Amena Martins
Yassine. Em comum, os cinco diplomatas estimam incorporar pensamento teórico em suas
atividades práticas.
Desde o marco de criação da Cátedra de
Política Internacional em Aberystwyth, no período entre-guerras, o debate especializado em
relações internacionais expandiu-se exponencialmente na prática acadêmica. Hoje em dia,
importantes universidades do mundo disponibilizam grades dedicadas ao estudo do que
vem sendo chamado de Teoria das Relações Internacionais (TRI). No Brasil, por muito tempo o
108
pensamento teórico sobre relações internacionais manteve-se segmentado tematicamente,
de modo que cada nicho das Ciências Sociais
trazia uma visão própria sobre o assunto. Desde
a década de 1970, contudo, começaram a ser
criados institutos especializados em relações
internacionais, de modo que, atualmente, diversas universidades do Brasil dedicam-se ao
estudo e ensino de TRI.
Começando do começo, deixamos claro que
TRI é um conceito epistemológico cuja vocação
é congregar sob um único termo os infindos
postulados teóricos sobre relações internacionais. Esses postulados são tão diversos entre si
que se convencionou dividi-los em correntes
de pensamento. Assim, a comunidade acadêmica especializada em relações internacionais
sole categorizar ideias e classificar pensadores
em determinadas escolas teóricas: realistas,
idealistas, institucionalistas, marxistas, construtivistas, críticos, feministas, pós-estruturalistas,
pós-modernistas, normativistas, pós-colonialistas, entre muitas outras.
No Instituto Rio Branco (IRBr), o ensino de TRI
foi somado ao currículo do curso de formação
bem mais recentemente que na academia. Segundo o Embaixador Gelson Fonseca Jr., isso se
O diplomata trabalha com
contradições e zonas cinzentas e, diante de uma situação
concreta, não há tempo para
pensar teoricamente. A teoria
não é, por si mesma, um instrumento de política externa.
Mas serve para criar sensibilidades; para formalizar atitudes que já estão presentes no
pensamento de cada um e que
ganham expressão nas funções práticas
Embaixador Gelson Fonseca Jr.
deve ao fato de o ensino de teoria ter-se consolidado no IRBr antes da institucionalização de TRI como
matéria. Segundo o Embaixador, o Instituto sempre
tentou – com iniciativas que variaram ao longo do
tempo - fornecer a seus alunos fundamento teórico
para suas ações. No passado, havia as disciplina de
Teoria Política e de Teoria do Poder, baseadas nas
formulações teóricas da ESG. Ao mesmo tempo, o
Embaixador Saraiva Guerreiro ensinava teorias de
direito. Nesse sentido, o IRBr tem sido responsável
por criar interesse teórico em muitos diplomatas. Entre nossos entrevistados, três de cinco colegas afirmaram que teriam iniciado seu
apreço por TRI no curso de formação do IRBr.
Pensar como a teoria é usada no dia a dia
da diplomacia é tanto mais interessante em
momento em que a própria academia – pelo
menos a norte-americana – vem se afastando
da aplicação rigorosa das teorias de RI desenvolvidas até o momento. Em ”Leaving Theory
Behind”, Walt e Mearsheimer argumentam que,
atualmente, os pesquisadores têm sucumbido
à tendência de tentar avançar o conhecimento
apenas por meio do teste de hipóteses formuladas ad hoc. Após a análise de uma pequena
quantidade de dados, formular-se-iam hipóteses que passariam a ser testadas exaustivamente, até serem comprovadas ou refutadas.
Se na academia a tentação de fugir da contemplação teórica é grande, na prática ela é
certamente maior. Entre aqueles que colocam
em prática a Política Externa, a imensa pressão
de tempo – a necessidade de achar soluções e
respostas rápidas para os problemas – e também a diversidade na formação acadêmica podem desanimar os diplomatas a se engajarem
em indagações teóricas.
Contudo, nas conversas que tivemos com
os colegas diplomatas que, apesar das dificuldades, decidiram se engajar no estudo de TRI,
percebemos o diagnóstico comum de que o
embasamento teórico é fundamental para organizar ideias e aumentar a capacidade de interpretação da realidade. Além disso, o uso de
conceitos comuns ajuda a facilitar a comunicação, ao permitir o desenvolvimento de uma
linguagem compartilhada por todos aqueles envolvidos com o estudo de teoria. Como
comentou o Embaixador Gelson Fonseca, “a
teoria ajudaria a criar maior sensibilidade”. Segundo Rodrigo Godinho, “por vezes é possível
antecipar considerações do discurso de outras
nações por meio do reconhecimento de categorias de correntes de TRI”. Essa análise é compartilhada por Amena Yassine, que comentou
109
artigos e ensaios
Como dizia Karl Popper,
todo cientista tem uma filosofia da ciência mesmo que
não saiba que a tem. Com
TRI é a mesma coisa
Embaixador Georges Lamazière
que “o conhecimento teórico muitas vezes nos
permite perceber que tentam consolidar uma
ideia de mundo que não é aquela que queremos patrocinar.”
Com efeito, muitos dos conceitos do jargão
prático de relações internacionais têm elevada
carga teórica. Multipolaridade, Estados falidos,
soberania, interesse nacional e muitos outros
conceitos que usamos quotidianamente foram
semanticamente preenchidos por proposições
e análises originadas ou retrabalhadas na academia. Como ressaltou o Embaixador Lamazière, conscientizar-se sobre as premissas teóricas
que basearam a formação de conceitos como
esses permite ao diplomata desnaturalizar proposições, adotando retórica que defenda os interesses de seu país.
Apesar das semelhanças em seus comentários, os diplomatas entrevistados têm afinidades teóricas bastante diferentes. O ponto fortalece o argumento apresentado por Joseph Nye
Jr., em “Understanding Global Conflict and Cooperation”, em que o autor defende que a grande separação teórica em correntes de pensamento existente na academia não se transpõe
para a prática. Na vida diplomática, diferentes
teorias ajudariam a elucidar diferentes problemas, diferentes situações. Não é possível adotar
apenas um arcabouço teórico para entender
todas as situações que os diplomatas precisam
interpretar e compreender.
Outro ponto comum que permeia o discurso
de nossos colegas é que a teoria tem um tempo
necessariamente diferente do tempo da prática.
Análises perfeitas e sem furos não servem para
nada se obtidas depois do acontecimento do
fato. O ideal científico de análise cautelosa e detida, de avanço do conhecimento, ainda é utópico para aqueles que trabalham com diplomacia.
Talvez para os norte-americanos como Nye,
apenas a diferença de tempos entre os dois
campos dificulte a aplicação de arcabouços
teóricos à prática. No caso brasileiro, a situação é mais complicada, já que teorias de RI são
criadas, em grande medida, nas universidades
do Norte Global. Em “A iminente revolução no
mundo social”, Raewyn Connell chega a definir
teoria como aquilo que é feito no norte. Segundo ela, haveria uma divisão do trabalho na área
acadêmica, com clara dimensão geopolítica. A
“periferia” seria a zona utilizada para a coleta de
dados em grande escala e, mais tarde, após a
sistematização teórica, a área para aplicação do
novo conhecimento. Já o “centro” seria responsável pela formulação conceitual e metodológica, pelo processamento de dados e, finalmente,
pelo debate intelectual.
O texto trata das ciências sociais em geral,
mas a preocupação não é estranha ao campo
de RI. Vários textos críticos da área têm ressaltado a cegueira do arcabouço teórico disponível
àqueles que estudam relações internacionais a
partir do Sul. Afinal, as teorias não são apenas
métodos para que se consiga prever ou explicar
algo. Teorias informam quais as possibilidades
de ação e intervenção humana. Elas informam
o que vemos (nossa percepção de mundo) e
sugerem o que devemos fazer (nossas receitas
de ação normativa). A Teoria da Dependência
não poderia ter sido desenvolvida no Norte,
onde o problema da dependência não afeta a
vida das pessoas. É nesse contexto que se tem
Imaginar a prática sem a teoria é
correr o risco de acreditar que a
realidade se descortina ao olhar
imediato; por outro lado, pretender que a teoria sozinha possa
dar conta do esforço de atuação
sobre o concreto é caminhar pela
vereda das ideias que apenas entendem o mundo, sem o compromisso de transformá-lo
Alexandre Guido Lopes Parola
110
A transição da teoria para a prática envolve um pouco de ciência, mas também um pouco de arte. O grande risco é quando a
relação entre teoria e prática está desequilibrada e descolada
de conhecimento empírico sólido
Rodrigo de Oliveira Godinho, diplomata e professor de TRI no IRBr, desde 2011
apontado que a preponderância da produção estadunidense levaria o campo como um
todo em direção a temas e preocupações que
dizem respeito tão somente aos Estados Unidos. Como afirma Robert Cox, não existe uma
teoria que seja independente de seu contexto
histórico: “theory is always for someone and for
some purpose”. Nesse sentido, seria preciso ter
cautela ao fazer uso de muitos conceitos de TRI
para a formulação de Política Externa Brasileira.
A solução, evidentemente, não passa pela
suposta não adoção de uma abordagem teórica. Afinal, por processos lentos, mas seguros,
alguns postulados teóricos passam a fazer parte do senso comum das pessoas e, assim, passamos a defender certas verdades sem nem
mesmo nos darmos conta que foram, um dia,
apenas postulados teóricos. Certas suposições
passam a ser verdades absolutas, das quais não
temos consciência.
A resposta possível é buscar teóricos de
países do Sul Global. No caso brasileiro, essa
diversificação foi incorporada como bandeira
normativa, explicitada, por exemplo, no livro
Concepts, Histories and Theories of Interna-
É interessante pensar em como a
PEB está relacionada com os principais conceitos das RI. O discurso
da Presidenta Dilma na última sessão anual da Assembleia Geral da
ONU, por exemplo, fala sobre democratização das instituições internacionais, que é uma discussão
lançada pelo professor David Held.
tional Relations for the 21st Century: Regional
and National Approaches. O Embaixador Gelson Fonseca lembra, ademais, que, muitos diplomatas guiam suas ações por convicções teóricas próprias, muito embora não as tenham
sistematizado. Exemplifica a proposição o caso
do Embaixador Araújo Castro, que foi um dos
maiores pensadores da nossa política externa.
O Embaixador Araújo Castro não sistematizou
seu pensamento, nem citava outros autores;
teve, no entanto, uma densa formação teórica
quando jovem, com influência de teóricos da
ESG, de Hans Morgenthau, de Max Weber.
É grande o esforço tanto para avançar o conhecimento teórico formulado no Sul, quanto
para aproximar o lado que produz a reflexão
do lado que a aplica. Como lembrou o Embaixador Lamazière, ao contrário dos Estados
Unidos, em que alternância entre períodos de
governo e períodos de academia permite aos
funcionários do Departamento de Estado acumular capital intelectual para depois gastá-lo;
no caso do Itamaraty, esse acúmulo tem de
ocorrer durante a atividade prática e nos momentos de cursos de aperfeiçoamento, como o
CAE e o CAD, concomitantemente ao interesse
pessoal. O mais importante, nesse caso, é colocar a reflexão teórica como parte da vida dos
diplomatas, uma vez que, como nos disse Alexandre Parola, “Os esforços de transformação
da realidade não se podem dar sem a construção, por um lado, de diagnósticos específicos
sobre os problemas a serem superados e, por
outro, sem a construção de algo que os pósmodernos gostam de chamar de grandes narrativas. A produção desse diagnóstico e dessas
narrativas é uma tarefa que nos cabe e entendo que para ela contribuirá, sim, o esforço de
entendimento e de apreensão conceitual da
realidade que é dado pela reflexão teórica.”
Amena Martins Yassine, diplomata e
professora de TRI no IRBr, entre 2010 e 2011.
111
artigos e ensaios
Ordens e
medalhas no
Itamaraty
Renato Levanteze Sant’Ana
Breve apanhado sobre as muitas maneiras pelas quais o
Ministério das Relações Exteriores reconhece e premia
aqueles que honram o legado de Rio Branco
112
Uma ida ao Museu Histórico e Diplomático do
Palácio Itamaraty no Rio de
Janeiro é suficiente para transmitir ao público visitante a importância das condecorações na vida
protocolar do corpo diplomático. Além
de diversos bustos, que portam inúmeras insígnias fielmente reproduzidas, há uma saleta
inteiramente dedicada a medalhas e a ordens
estrangeiras recebidas ao longo da vida de
alguns ilustres diplomatas de nossa história.
Nessa sala estão expostas também algumas
das condecorações outorgadas pelo Brasil a
seus nacionais e a estrangeiros. O Itamaraty possui, porém, algumas condecorações em sua trajetória institucional que
são hoje pouco conhecidas, inclusive
por membros da casa. Esse artigo visa a
trazer algumas curiosidades sobre a medalhística diplomática e, sobretudo, despertar o interesse do leitor para o tema.
Primeiro, é necessário diferenciar ordem
honorífica de medalha. Uma ordem é uma
honraria concedida por Estado ou instituição
e é composta não apenas por uma condecoração, mas pela inscrição do agraciado em
um grupo hierarquicamente organizado em
graus. Costumeiramente, uma ordem é divida em cinco graus: grã-cruz, grande oficial,
comendador, oficial e cavaleiro, obedecendo
a tradições das antigas ordens de cavalaria.
Uma medalha, por sua vez, premia mérito específico e, embora possa apresentar variações
de categoria (bronze, prata, ouro, por exemplo), não implica a adesão do agraciado a um
grupo organizado.
Não há necessária precedência de ordens sobre medalhas. O fato que originou o reconhecimento do agraciado costuma ser mais relevante que a honraria em si. O Decreto 40.556/56,
que regula o uso de condecorações em uniformes militares estabelece uma ordem de prece-
dência, na qual as ordens
honoríficas têm relativo
destaque, sendo precedidas
apenas pelas medalhas concedidas por atos de bravura e por
participação em combate.
As ordens, por terem sido outrora ligadas a casas monárquicas e a privilégios de
nobreza, foram extintas no Brasil com a primeira Constituição Republicana, juntamente
com os títulos nobiliárquicos. Apenas em
1932, durante o Governo Vargas, elas voltaram ao Brasil por meio da reinstituição da
Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul.
A Ordem Nacional do Cruzeiro do
Sul foi a nova denominação da antiga
Imperial Ordem do Cruzeiro, mas desta se diferencia por ter seu quadro
composto somente por estrangeiros
que tenham se tornado dignos do reconhecimento da Nação brasileira. O
Chanceler da Ordem Nacional do Cruzeiro
do Sul é o Ministro das Relações Exteriores,
que, auxiliado pelo Cerimonial, processa as indicações e organiza as cerimônias de admissão e
de imposição de insígnias. Ela possui um sexto
grau, o grande-colar, destinado a agraciar altos
dignitários, como Chefes de Estado. Poucas ordens brasileiras possuem o grau grande-colar.
A ordem que ocupa, todavia, a maior atenção do Cerimonial é aquela entregue todo dia
20 de abril, nas comemorações do Dia do Diplomata: a Ordem de Rio Branco. Criada em
1963, a Ordem de Rio Branco homenageia o
patrono da Diplomacia brasileira e contempla
membros nacionais e estrangeiros. É composta pelos cinco graus tradicionais. Existe ainda,
uma medalha de prata anexa à ordem. Essa
medalha não pertence formalmente à ordem
(não é um sexto grau), mas, não raro, é indevidamente classificada como “grau medalha”.
A Ordem de Rio Branco possui um Quadro
Ordinário, composto pelos diplomatas da ati-
113
artigos e ensaios
ensaios
va, com um número limitado de membros, bem
como um Quadro Suplementar, ilimitado, composto por diplomatas aposentados e demais
pessoas físicas e jurídicas. A maior parte das ordens brasileiras possui essa divisão entre Quadro Ordinário e Suplementar (ou Especial). Sempre o Quadro Ordinário visa a agraciar o pessoal
da ativa de determinada carreira (isso ocorre
nas Ordens do Mérito da Defesa, do Mérito Naval, do Mérito Militar, do Mérito Aeronáutico,
etc.) ou a agraciar nacionais (ordens mais gerais
como a Ordem Nacional do Mérito, Nacional do
Mérito Educativo, do Mérito Judiciário do Trabalho, etc.). Em todas essas ordens, o Quadro Ordinário tem efetivo limitado e todos seguem uma
estrutura piramidal, em que o grau mais baixo
(cavaleiro) possui maior número de membros
que os demais graus. O efetivo diminui a cada
grau até o último (grã-cruz ou grande-colar), seguindo a lógica de hierarquia. A única exceção
dentro das ordens nacionais é a Ordem de Rio
114
Branco, que, sem aparente motivo, possui a forma de uma pirâmide invertida, com um efetivo
maior de membros grã-cruz que comendadores,
oficiais e cavaleiros somados. Aliás, o grau grãcruz é ilimitado no Quadro Ordinário.
No que se refere às medalhas, o Itamaraty
concede, regularmente, apenas três. A primeira e mais comum é a já mencionada Medalha
de Rio Branco (anexa à Ordem de Rio Branco).
As outras duas são as Medalhas Prêmio Lafayette de Carvalho e Silva e Prêmio Barão do
Rio Branco. A primeira medalha-prêmio (termo comumente utilizado para medalhas que
agraciam desempenho acadêmico-escolar) é
destinada aos primeiro (em prata) e segundo
(em bronze) colocados no Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata. Já a Prêmio
Barão do Rio Branco é recebida pelos primeiro
(vermeil – uma combinação de prata, ouro e
outros metais) e segundo (prata) colocados no
Curso de Formação do Instituto Rio Branco.
Em 2010, a Lei 12.281 criou a Medalha Sérgio Vieira de Mello, de responsabilidade do
MRE, com o objetivo de reconhecer serviços
de excepcional relevância em proveito das
relações exteriores ou do Direito Humanitário
prestados por pessoas físicas ou jurídicas. Seu
estatuto ainda não foi concluído.
Em outros períodos da História, o Itamaraty condecorou brasileiros e estrangeiros
com medalhas comemorativas, criadas para
celebrar eventos relevantes e destinadas a reconhecer o esforço dos agraciados na organização das festividades ou na perpetuação da
memória histórica do fato celebrado. Temos
como exemplo a Medalha Centenário do Barão do Rio Branco, criada em 1945, a Medalha
Centenário de Lauro Müller, criada em 1964,
e a Medalha Palácio Itamaraty, criada em
1999, para comemorar o centenário do Palácio Itamaraty no Rio de Janeiro como sede do
Ministério das Relações Exteriores, nunca re-
gularizada ou outorgada. São medalhas que
acompanharam as festividades do momento
e que, portanto, não são mais entregues.
Como se pode ver, existem inúmeras condecorações no âmbito do Itamaraty, mas o
tema perdeu relevância nos tempos mais
recentes. No que tange à medalhística diplomática brasileira, o desafio parece ser
conseguir atrelar a prática de condecorar ao
objetivo maior de valorização de mérito no
seio da carreira. Para além das paredes do
Palácio, o gesto de condecorar é um claro
sinal de reconhecimento e prestígio outorgado pelo Itamaraty aos demais brasileiros
e estrangeiros e não pode ser menosprezado. Resta à Casa de Rio Branco continuar o
aprimoramento de seus estatutos de condecorações no sentido de adequar uma prática
tão tradicional às exigências de um Ministério das Relações Exteriores cada vez maior e
mais atuante no cenário internacional. 115
artigos e ensaios
116
As caretas do
Barão: charges
sobre o Chanceler
entre 1908 e 1912
Luana Alves de Melo
A obra e a vida de José Maria da Silva Paranhos Júnior foram objeto
de intensa discussão no país, suscitando manifestações populares
e diversas publicações. Essas representações não eram isentas,
mas imbuídas de visões de mundo, no que diz respeito ao papel
da imprensa em relação à política externa e à conduta do Barão do
Rio Branco. Nesse contexto, a revista Careta é de especial interesse,
pois, por ser uma publicação nova, de teor humorístico e satírico,
possuía uma linha editorial responsável por críticas irreverentes. A
política externa não é seu principal assunto; entretanto, questões
mais polêmicas são discutidas, como a relação entre Brasil e Estados
Unidos, o imperialismo de alguns países, os acontecimentos
relacionados à I Guerra Mundial e as relações com os vizinhos.
117
artigos e ensaios
A intenção do ensaio é fornecer uma leitura
crítica e contextualizada das charges e anedotas da revista, porventura revelando manifestações da imprensa que ainda não haviam
sido estudadas. A análise de Careta pode desvelar mais significados que a leitura de uma
publicação jornalística comum. O interesse
desse tipo de estudo já foi demonstrado no
ano do centenário do falecimento do Barão,
ocasião em que as caricaturas do chanceler
foram estudadas de forma mais profunda,
com exposições, como a promovida pela Fundação Alexandre de Gusmão, e o lançamento de um livro sobre o tema (“O Barão do Rio
Branco e a Caricatura”, da historiadora Ângela
Porto).
A revista Careta
A imprensa brasileira, no início do século
XX, passou por transformações causadas pela
modernização e por mudanças sociais. A imprensa periódica era, então, o veículo difusor
da modernidade e desenvolveu novos códigos, privilegiando uma linguagem simples
para retratar o cotidiano (GARCIA, 2005, p. 29).
Segundo Garcia, “Os humoristas e caricaturistas encontraram nesta imprensa moderna
um espaço fértil para a produção de figuras e
desenhos [...] alcançava um novo tipo de público: a população analfabeta” (Ibid., p. 30).
Influenciada pela argentina Caras y Caretas (Ibid., p. 31), Careta se propunha a ser
irreverente e crítica – principalmente em
relação à política e aos costumes sociais –
configurando-se como uma das mais importantes revistas de sua época (SODRÉ,
1977 APUD GARCIA, op. cit., p. 35). A linguagem provocativa e o apelo visual das
charges – que chegaram a gerar conflitos
com o governo – resultaram na longa duração das publicações e no sucesso de
público. Publicada sem interrupções de
1908 a 1960, “foi um empreendimento
do jornalista e empresário Jorge Schmidt, […] [que optou] por uma publicação
mais simples e, por isso mesmo, mais
popular: a Careta” (GARCIA, op. cit., p.
29). Müller destaca a importância de
categorizar Careta corretamente: mais
do que uma revista humorística, re-
118
tratava os costumes da época, de “cunho
jornalístico e de costumes, […] utilizava
frequentemente a artifício das imagens
[…] para representar o panorama da sociedade” (MULLER, 2011, p. 213).
A metodologia adotada para a análise
foi a de leitura crítica, tentando revelar
as estratégias discursivas e as relações
com o contexto histórico a que pertencem. As charges foram cuidadosamente interpretadas, por se julgar que apresentam elementos significativos para
se entender o imaginário da época no
que diz respeito ao Barão do Rio Branco, além de ser um importante índice
para a análise da opinião pública. O
termo charge, utilizado nesse trabalho, não se confunde com a ideia de
caricatura; ao contrário, transcendea, pois não é apenas um desenho
em que as características do objeto
ou ser desenhado são exageradas.
A charge
refere-se a uma forma de representação humorística, caricatural e de caráter potencialmente
político que satiriza um fato específico. […] Os desenhos de humor produzidos
pelos artistas do traço representam uma forma
de interpretação de sua realidade circundante, e
são, ao mesmo tempo, reflexos diretos da produção cultural da sociedade na qual estão inseridos.
Como produto cultural específico de um grupo, a
caricatura não se define apenas pela semelhança
entre o caricaturado e seu retrato, mas pelo caráter identitário estabelecido entre o meio produtor
e o público. E, por engendrar novos sentidos, as
charges também são portadoras de representação (GARCIA, op. cit., pp. 71-73).
O período foi escolhido por apresentar
coincidência entre a publicação da revista –
lançada em 1908 – e os anos finais de atuação
do Barão. As representações relacionadas ao
Barão do Rio Branco estavam concentradas,
quantitativa e qualitativamente, nos meses
próximos ao episódio do telegrama nº 9 e ao
falecimento do chanceler brasileiro. O interesse pela produção da revista Careta se amplifica quando as dimensões visuais – charges e
caricaturas – e escritas – legendas – são consideradas, uma vez que a conjunção das duas
vertentes de comunicação pode ampliar a
gama de significados discutidos. A estratégia
de humor iconográfico em conjunto com a
palavra escrita pode comunicar mais, em decorrência da maior dificuldade do governo de
censurar esse tipo de publicação.
119
artigos e ensaios
A opinião pública e a Política
Exterior no Brasil
Segundo o senso comum, a opinião pública, no Brasil, teve, historicamente, pouco
interesse sobre as questões de política externa. Entretanto, o interesse pelo assunto tem
aumentado principalmente após a redemocratização do país, devido a transformações
tecnológicas. Conforme afirma Faria,
O caráter insulado do processo de produção
da política externa brasileira, fortemente centralizado no Itamaraty, tem sido amplamente reconhecido. Há, porém, indícios de alterações importantes nesse padrão tradicional, a partir do início
da década de 1990 (FARIA, 2008, p. 80).
Entre as causas para tal fenômeno, menciona-se o não envolvimento do país em guerras
e a resolução dos problemas fronteiriços – um
120
feito pelo qual se homenageia, principalmente, o Barão do Rio Branco –, assim como a autonomia do Executivo; a delegação feita pelo
Legislativo ao Executivo; o caráter do presidencialismo; o isolamento autárquico do modelo
desenvolvimentista; e a profissionalização e o
prestígio do corpo diplomático (Ibid., p. 81). A
situação de insulamento da política externa e a
falta de dados acessíveis conduzem à ausência
de obras interpretativas acerca da importância
da opinião pública para a política exterior do
país. Conforme Manzur, a ausência de estudos mais sistemáticos não implica, entretanto, a inexistência de interesse sobre o assunto
(MANZUR, 1999, p. 30), e a intenção desse trabalho é justamente entender um pouco da
opinião pública da época, por meio da análise
dos exemplares de Careta. Manzur conceitua o
termo opinião pública como um “conjunto das
correntes de pensamento expressas em um
país em determinado período” (Ibid., p. 30), que
engloba a expressão de grupos políticos, econômicos e sociais, naquilo em que apresentem
um consenso. Segundo Sartori,
As opiniões não são inatas, nem surgem do
nada. A questão “o que é opinião pública?” é melhor respondida através de três processos e na
seguinte ordem: (a) a disseminação de opiniões
a partir de níveis da elite; (b) o borbulhar de opiniões a partir das bases; e (c) identificações com
grupos de referência. (SARTORI, 1994, p. 132)
Nesse sentido, a revista Careta tem
importante papel. Por ser revista identificada,
geralmente, com as classes menos abastadas,
por ser de fácil compreensão e por ser vendida a preços acessíveis, a revista influencia o segundo aspecto, isto é, a repercussão dos fatos
sob o ponto de vista a partir das bases e das
massas do país. Em relação à opinião pública, Manzur atesta que é muito importante “o
papel da imprensa, que tanto espelha quanto
induz a formação de opiniões” (MANZUR, op.
cit., p. 31). De fato, no Brasil, a imprensa é um
dos maiores medidores das diferentes correntes de pensamento, ao mesmo tempo em que
constitui forte variável de influência da população, uma vez que é por intermédio da mídia
que a sociedade tem, muitas vezes, acesso às
informações.
A Careta não deixou de se posicionar acerca dos temas internacionais entre os anos
de 1908 e 1912. Embora o tema principal da
revista fosse a vida da sociedade brasileira,
os temas internacionais também receberam
atenção. Além das matérias e figuras relativas
às outras searas do sistema internacional e de
cobertura sobre a vida social das embaixadas, com cobertura fotográfica e escrita sobre
bailes, jantares e recepções promovidos por
embaixadas e legações estrangeiras e pelo
serviço diplomático, a revista teve uma ampla
cobertura sobre acontecimentos relacionados
ao Barão. No período estudado, foram vinte
e cinco charges, excluindo-se outras representações nas quais o Barão costumava estar
presente. Ademais, a temática esteve presente
em cinco capas da revista.
O Barão na revista Careta
Os episódios relacionados ao Barão entre
1908 e 1912 foram amplamente representados na revista Careta. O método de análise
escolhido para interpretar essas representações foi o de leitura crítica, com intenção de
explicitar as estratégias de legitimação ou
de crítica à condução da política externa do
Brasil. No caso das charges, que contam com
recursos visuais e textuais, como o uso de legendas, buscar-se-á demonstrar as estratégias
utilizadas para demonstrar ao leitor as causas
da posição adotada pela revista. O estudo cronológico dessas representações, embora possa fornecer um panorama interessante, é, de
certa forma, fatigante, e faz perder a oportu-
121
artigos e ensaios
nidade de organizar essas representações em
torno de eixos de significação. Dessa forma, a
análise das figuras foi estruturada em torno
de quatro temas que foram recorrentes entre
1908 e 1912.
O primeiro tema trata das querelas que envolveram o chanceler brasileiro e o argentino
Estanislao Zeballos – principalmente o telegrama nº 9 –, enquanto o segundo faz leves
críticas ao Barão, tanto no que diz respeito à
sua relação com o Legislativo brasileiro quanto no que diz respeito à gestão do serviço diplomático brasileiro. A terceira temática trata
122
de assuntos relacionados à política internacional e regional então em voga. Finalmente,
um quarto grupo temático trata das manifestações de apreço, da legitimidade e do prestígio do Barão do Rio Branco, ao longo dos anos
estudados e por ocasião de seu falecimento.
Estanislao Zeballos esteve nas capas de Careta, caracterizado satiricamente como “tradittore de telegramas”, em uma alusão ao episódio do telegrama nº 9 (Careta, Rio de Janeiro,
ano I, nº 23, 7 de novembro de 1908, capa). Na
mesma charge, aparece a imagem do Barão,
a perseguir figura feminina identificada como
a paz. No que diz respeito às charges que tratavam de temas relacionados à política internacional, a questão que envolvia Zeballos foi
uma das mais constantes na publicação, pelo
menos no período estudado. Foram oito menções, diretas ou indiretas, ao chanceler argentino, todas em 1908. Na quarta edição da revista, aparece a primeira charge relativa ao tema,
intitulada “A renúncia Zeballos” (Careta, Rio
de Janeiro, ano I, nº 4, 27 de junho de 1908, p.
13). Zeballos, em segundo plano, com chapéu
e livros nas mãos, está em atitude cabisbaixa
que sugere sua partida e aparente decepção,
enquanto a figura do Barão, apoiada em uma
mesa, em primeiro plano, deixa transparecer a
ideia de permanência, o que se coaduna com
a legenda da charge, “Barão: … Enfim só”. Na
charge “o meeting Zeballos” (Careta, Rio de
Janeiro, ano I, nº 18, 3 de outubro de 1908, p.
19), o chanceler argentino é retratado a fazer
um discurso, posicionado em cima de uma série de livros. Na verdade, trata-se de uma forma de escárnio da revista, pois a suposição é
a de que Zeballos é retratado da forma como
se vê: gigante, perto de outros tão pequenos.
Acometido por grande vaidade, o diplomata
argentino se sobrepõe aos livros e às leis, enquanto o Barão é retratado ao rés do chão –
ou seja, consciente da realidade que o cerca.
O argentino foi objeto de charge novamente
(Careta, Rio de Janeiro, ano I, nº 20, 17 de outubro de 1908, p. 16), em ilustração que retrata Assis Brasil a segurar o topete de Zeballos,
intitulado como “vaidade”. Ao ser perguntado
de que destino dar à cabeleira, o Barão é enfático: “Guarda... na prateleira das Missões”. O
Barão não é representado como a contraposição direta a Zeballos, mas como diplomata
competente e consciente de suas vitórias, enquanto o diplomata argentino parecia basearse, segundo a opinião de Careta, em vaidades.
A revista chega a ser ainda mais direta em
relação a Zeballos, publicando, ainda em 1908,
a charge “A biographia de um idiota” (Careta,
Rio de Janeiro, ano I, nº 24, 14 de novembro
de 1908, p. 13), sobre a trajetória de Zeballos.
A revista chama-o de “Saltimbanco ridículo” e
“vaidoso cretino”, entre outros apelidos, sem
referir-se ao seu nome até o final da charge – a
figura que o retrata, porém, é inconfundível. A
revista retrata, ironicamente, a forma pela qual
o diplomata, alçado à condição de chanceler,
foi destituído do cargo posteriormente, chafurdando-se no “pântano mais próximo”. Depois dessa derrota, “após alguns segundos de
martírio indizível, a triste vítima conseguiu desapegar-se do lodo, e num esforço supremo,
abraçou-se a uma estaca misericordiosa cuja
extremidade apodrecida atravessava as profundezas do charco”, pântano a que se nomeia
“ridículo”. A estaca a que se refere o texto aparece na charge com a legenda de “La prensa”,
e Zeballos nela se apoia para proferir discurso
violento contra “os autores de seu infortúnio”.
O diplomata argentino, porém, exalta-se excessivamente, caindo novamente no pântano,
para sempre assombrado após a morte – metafórica, ou seja, o ostracismo – de Zeballos.
Careta também tratava de outros assuntos
relacionados à política internacional, em tons
que nem sempre eram elogiosos ao Barão do
Rio Branco. Em “A posteridade é nossa” (Careta, Rio de Janeiro, ano I, nº 5, 4 de julho de
1908, p. 13), os caricaturistas se baseiam em
uma notícia do jornal O Paiz - “à semelhança
dos Estados Unidos, a República Francesa vai
deixar os seus negócios e os interesses de
seus nacionais em Venezuela a cargo da legação brasileira em Caracas”-, para fazer uma
crítica à gestão do Barão. A legação brasileira
em Caracas é representada como uma mulher
frágil e atribulada, pois tem que dar conta dos
interesses americanos e dos interesses franceses, além dos assuntos brasileiros. Enquanto o
Barão a assiste impassível, a legação solicita,
por piedade – o que reforça sua fragilidade e
o fato de que está sobrecarregada-, ser alçada
à condição de embaixada, ao que o Barão responde: “Ora, deixe-se de tolices. Eu sou ministro... dos estrangeiros”, no que é uma crítica ao
suposto descaso para com os nacionais brasileiros e para com o serviço diplomático.
Outra questão bastante criticada em 1910
foi a da politicagem na qual o Barão estaria supostamente envolvido, e os danos de tal contexto aos interesses nacionais. Na charge “Um
belo trabalho” (Careta, Rio de Janeiro, ano III,
nº 85, 15 de janeiro de 1910, p. 15), a Câmara,
representando, de modo geral, os políticos da
época, é retratada como uma senhora mais
velha, de traços um tanto toscos e sugerindo
certa malícia e maldade, que está prendendo
o Barão no tronco da politicagem – como se
123
artigos e ensaios
fosse, mesmo, um escravo de conchavos políticos. A legenda da charge é clara: “O patriotismo tal qual o interpretam os politiqueiros da
cadeia velha”, ou seja, os integrantes do mais
antigo grupo de políticos da República – que
estavam envolvidos com a política desde a
Monarquia. Parece ser da opinião da revista
que não é uma opção para o Barão o envolvimento com a Câmara, mas uma necessidade,
devido à importância do Legislativo nas decisões orçamentárias. Essa interpretação se confirma quando a charge “Um pélago de lama”
(Careta, Rio de Janeiro, ano III, nº 84, 8 de janeiro de 1910, p. 19), que tratava da questão da
concessão do condomínio da Lagoa Miriam ao
Uruguai, é analisada. O pragmatismo do Barão,
que precisa da Câmara para aprovar determinadas decisões, é em parte criticado – por manchar o idealismo das ações de política externa
– e em parte tolerada – por sua necessidade.
Outro grupo de charges retrata os assuntos de política regional e internacional e sua
relação com o Barão. Em particular, chama a
atenção charge sobre o ABC, em que o Barão
é retratado como um professor tentando ensinar a três crianças – vestidas com as cores das
bandeiras do Chile, da Argentina e do Brasil –
os princípios e as vantagens do agrupamento,
sem obter sucesso (Careta, Rio de Janeiro, ano
III, nº 120, 17 de setembro de 1910, capa). O
Barão é então representado como um grande
mestre das relações regionais. Em outra ocasião, a questão da importação das farinhas
americanas é tratada (Careta, Rio de Janeiro,
ano IV, nº 141, 11 de fevereiro de 1911, capa).
O Tio Sam é representado com as cores e formas típicas, a carregar farinha americana. O
Barão aparece abrindo o que seriam as portas do Brasil para tal importação, em nome
da amizade que une os dois países. Em uma
representação que flutua entre crítica e tolerante, o pragmatismo do chanceler brasileiro
é mais uma vez retratado.
124
O prestígio do Barão é patente quando
se constata que estava
presente já nas primeiras capas de Careta.
Durante o ano de 1908,
a revista teve suas capas ilustradas por personalidades artísticas
culturais e políticas, como o presidente da República, Afonso Pena, “O Chefe”; Ruy Barbosa,
representado jocosamente ao lado de um Código Civil que ampara uma cadeira; e o doutor
Osvaldo Cruz, “general da Brigada Mata Mosquitos”, entre tantos outros. O retrato do chanceler brasileiro, com expressão séria, estampa
a capa da segunda edição da publicação (Careta, Rio de Janeiro, ano I, nº 2, 13 de junho de
1908, capa). Outra mostra de seu prestígio político está na charge “Gata Ministerial” (Careta,
Rio de Janeiro, ano IV, nº 171, 9 de setembro
de 1911, p. 11), sobre a composição do próximo gabinete, em que o Barão é mencionado
nos seguintes versos:
“Nesta gata certamente
Quem tem melhor posição
E não sae, nem que arrebente
É o Barão”
A habilidade do chanceler brasileiro é louvada na charge “No ‘ground’ Itamaraty” (Careta, Rio de Janeiro, ano I, nº 7, 18 de julho de
1908, p. 23), em que o Barão é representado
como hábil jogador que maneja com maestria a bola “política internacional”, conforme
a legenda da charge: “Si hay un valiente que
quiera luchar con otro valiente, que venga”,
estrategicamente em espanhol, devido ao
contexto da crise do Telegrama nº 9. Finalmente, por ocasião do falecimento do Barão,
Careta rende diversas homenagens ao Barão. Na edição imediatamente posterior à sua
morte, a revista, com cerca de cinquenta páginas, dedicou mais de vinte páginas ao Barão,
com fotografias e textos sobre o diplomata e
seu sepultamento, em uma demonstração do
prestígio do chanceler brasileiro (Careta, Rio
de Janeiro, ano V, nº 194, 17 de fevereiro de
1912, passim). A edição posterior teve como
capa uma das charges mais laudatórias de Careta, com a apresentação dos muitos ganhos
que a atuação do Barão trouxe ao Brasil, entre
os quais podem ser citados o Acre, a questão
do Amapá, as Missões, as vitórias na Haia (Careta, Rio de Janeiro, ano V, nº 195, 24 de fevereiro de 1912, capa). Esse conjunto de êxitos
é apresentado na charge como uma carga
pesada e difícil para o substituto do Barão à
frente da chancelaria brasileira, Lauro Müller.
Considerações finais
em seu conjunto, uma visão articulada, que
não deixa de apresentar as contradições que
já faziam parte do imaginário brasileiro à época. A revista Careta é, na ausência de outros
dados, um importante fator de mensuração
da opinião pública brasileira no início do século XX, mesmo porque atendia a um público
que nem sempre recorria a outras leituras.
Nas ocasiões em que o interesse nacional foi
confrontado mais drasticamente, segundo os
produtores da revista, essa opinião pública torna-se menos sutil, mais exagerada, atingindo
maior número de charges e capas. Essas fontes
já apresentavam uma visão de mundo específica, cujas representações, longe de apenas informar, compartilham interpretações e críticas. Foi
possível apreender um pouco do pensamento
da sociedade da época, demonstrando-se que,
em consonância ou em desacordo com a posição oficial, o pensamento sobre a realidade
internacional foi, no período, abundante.
Coexistiam, dessa forma, representações
que expressavam a legitimidade do Chanceler brasileiro e que criticavam alguns de seus
atos. As críticas aos vizinhos ou a outros atores da Política Internacional eram frequentes.
Manifestou-se apoio ao Barão, muito embora
isso não signifique que as representações de
Careta fossem totalmente favoráveis à condução de política externa do país; como era de se
esperar, a revista também apresentou críticas
pontuais. Finalmente, a revista também apre-
A análise das publicações de Careta entre
1908 e 1912 tanto limitou o escopo da
pesquisa quanto revelou a repercussão
que o chanceler teve, mesmo entre setores mais populares, em um período que
seu prestígio estava consolidado. Em decorrência de sua veia humorística, a revista Careta pôde fazer análises da situação
que, se não foram exatamente profundas
em sua individualidade, demonstraram,
125
artigos e ensaios
Referências
Arquivos pesquisados
Acervo Digital da Biblioteca Nacional. Disponível para acesso
em <http://bndigital.bn.br/wdl.htm>.
Careta, Rio de Janeiro, 1908-1912. Disponível para download no sítio eletrônico <http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/Careta/Careta_anos.htm>. Último acesso
em 25 de setembro de 2012.
Referências bibliográficas
SARTORI, Giovanni. A Teoria da Democracia Revisitada. São
Paulo: Editora Ática, 1994. P. 132
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil.
Rio de Janeiro: Graal, 1977. APUD GARCIA, S., op. cit., p. 35
FARIA, Carlos Aurélio Pimenta de. Opinião pública e política
externa: insulamento, politização e reforma na produção
da política exterior do Brasil. Rev. bras. polít. int., Brasília, v. 51, n. 2, Dec. 2008. Disponível para consulta no sítio
eletrônico
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0034-73292008000200006&lng=en&nrm=i
so>. Último acesso em 20/12/2011.
sentou charges cujo conteúdo se referia ao lugar do Brasil no mundo, principalmente no que
diz respeito às suas relações com os vizinhos
mais próximos.
Essas ideias, embora aparentemente desconexas, fazem parte de um coeso sistema de
pensamento sobre a imagem que a sociedade brasileira tem sobre a atuação do país em
âmbito externo. Se for verdade que, em 1908,
a população apresentava essa espécie de reflexão – em uma relação de influência mútua
e interação complexa entre a sociedade e as representações apresentadas em Careta -, cotejar o passado com o presente permite concluir
que, enquanto alguns desses pensamentos
parecem obsoletos – como é o caso da rivalidade com países vizinhos –, outras, embora
claramente transformadas pelo novo contexto
interno e internacional, sobrevivem.
126
MANZUR, TÂNIA MARIA PECHIR GOMES. Opinião pública e
política externa do Brasil do Império a João Goulart: um balanço historiográfico. Rev. Bras. Polít. Int. 42 (1): 30-61 [1999]. P.
30. Disponível para consulta no sítio eletrônico <http://www.
scielo.br/pdf/rbpi/v42n1/v42n1a02.pdf>. Último acesso em
20/12/2011.
GARCIA, Sheila Nascimento. Revista Careta: um estudo sobre
humor visual no Estado Novo (1937 – 1945). Dissertação
(Mestrado) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho. Faculdade de Ciências e Letras de Assis, 2005. Disponível
para consulta no sítio eletrônico <http://www.athena.biblioteca.unesp.br/exlibris/bd/bas/33004048018P5/2005/garcia_sn_
me_assis.pdf>. Último acesso em 20/12/2011.
MULLER, Fernanda Suely. (Re)vendo as páginas, (re)visando os laços e (des)atando os nós: as relações literárias e
culturais luso-brasileiras através dos periódicos portugueses (1899-1922). 2011. 2 v. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de
São Paulo, 2011. Disponível para consulta no sítio eletrônico
<http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=fernanda%20
suely%20muller%20doutorado%20revista%20Careta&sourc
e=web&cd=1&ved=0CCsQFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.
teses.usp.br%2Fteses%2Fdisponiveis%2F8%2F8150%2Ftde10082011-132047%2Fpublico%2F2011_FernandaSuelyMuller.pdf&ei=aOL0TqG8DIaXtwfChpjQBg&usg=AFQjCNEiqCzR
vdoYzW4kYQ262Y3iN-h3aA>. Último acesso em 20/12/2011.
DIPLOMACIA E
HUMANIDADES
Juca Diplomacia e Humanidades - Número 06 - 2012 IRBr
06
Ano 6 - 2012
juca.irbr.itamaraty.gov.br
A revista dos alunos do Instituto Rio Branco
NESTA EDIÇÃO:
DOSSIÊ
Política externa e
redemocratização:
com a palavra, os Presidentes
Patriota, um perfil pessoal
A pena e a renda:
literatura e diplomacia
Mulheres no Itamaraty
de antanho
Os rubicões da Rio+20
Memórias de além-túmulo:
o Barão, redivivo
Instituto Rio Branco
O que é Juca?
É a revista anual dos alunos do Curso de Formação em Diplomacia do Instituto Rio Branco. Compõem o universo temático deste
periódico a diplomacia, as relações internacionais, as demais ciências humanas, as artes
e a cultura - todas agrupadas sob o binômio
“Diplomacia e Humanidades”. Concebida
para refletir a produção acadêmica, artística e
intelectual dos alunos da academia diplomática brasileira, a Juca visa também recuperar
a memória da política externa do País e difundi-la nos meios diplomático e acadêmico.
Por que Juca?
REVISTA JUCA
José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Chanceler que ingressou no panteão dos heróis
nacionais na qualidade de patrono da diplomacia brasileira, era conhecido nos seus dias
de juventude e boemia como Juca Paranhos
- à época, ainda despido de honraria nobiliárquica que viria a batizar nossa academia
diplomática. Fosse o Itamaraty do século XIX
organizado como é hoje, o jovem diplomata que consolidara as fronteiras nacionais e
estabeleceria novo paradigma para a política
externa brasileira, seria tratado, em sua temporada na academia diplomática, por Terceiro Secretário Juca Paranhos. A revista elaborada pelos diplomatas recém-ingressados
no Instituto Rio Branco presta homenagem
à política exterior legada pelo Barão do Rio
Branco e ao próprio, que antes das glórias
nas questões arbitrais e políticas foi o... Juca.
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Intrusas no lago dos cisnes - Ministério das Relações Exteriores