INVESTIMENTOS MORTÍFEROS: HISTÓRIAS DE CAPTURA ENTRE MÃE E FILHA1 Ana Cláudia Santos Meira2 Escrevo na esperança de que as palavras me libertem do sangue. Do corpo da mãe. Mas, e se não existir eu além dessa mistura de carnes de mãe e filha? Me sinto deslizar para o buraco negro do corpo dela, onde sou cega e minha faca esgrima no ar. (BRUM, 2011, p. 16) 1 Uma ou Duas Palavras Para Começar Ela me roubou as palavras, a minha mãe. Sinto sua presença em tudo, na minha pele, no cheiro do meu corpo, no corpo das letras que escrevi. E por isso as palavras são menos minhas. E o indizível agora se tornou não mais uma busca pelo que está fora das palavras, mas uma impotência. (BRUM, 2011, p. 89) Ainda que este trabalho vá ser eminentemente teórico, é necessário dizer que ele nasceu da clínica, essa fonte viva daquilo que, na teoria, registramos com palavras; essa clínica tão viva que, paradoxalmente, me levou a estudar o tema do mortífero que está presente na pulsão de morte, uma força disruptiva, de desligamento, mas também, para além disso, o mortífero presente na pulsão sexual – por estranho que possa parecer. Esse tema surgiu da necessidade de pensar a trama que se faz ver na análise de pessoas que nos buscam com padecimentos severos, desesperos, agonias, terrores, inviabilidades, doenças somáticas; que nos chegam desvitalizadas, desistidas, esvaziadas, reféns, deprimidas, em pânico, com a alma em carne viva. O que se põe em cena no palco da análise desses casos? É a pulsão de morte desses analisandos, ou é a pulsão de morte que lhes foi imprimida... a pulsão de morte de seus 1 2 Este trabalho foi orientado por Ignácio Alves Paim Filho, que contribuiu com muito mais que a orientação. Psicóloga, Doutora em Psicologia, Membro Provisório do CEPdePA. 2 pais? Quando falamos de patologias tão graves, de funcionamentos tão regressivos, estamos lidando com a pulsão de morte em seu estado mais bruto, ou essa questão nos leva ainda mais adiante? O que roga por uma escuta é algo das mais primitivas relações desses sujeitos e seus progenitores. Neste trabalho, interessa-me compreender, em especial, a qualidade de investimento pulsional de mães dirigida às filhas, por escutar relatos, na clínica, que falam de vínculos bastante dramáticos. Ouvimos histórias de analisandos cujas mães estiveram imersas em lutos não elaborados, em questões familiares não resolvidas, em conflitos não processados, nas quais a imortalidade do Eu encontra refúgio na criança a quem deram a luz; mães que têm para com elas um olhar de desespero, de medo, de susto, e que parecem, muitas vezes, odiar sua prole. Então, que histórias pesadas são essas que parecem conjugar de forma tão precária, pulsão de morte e pulsão sexual? Como dar conta do que ali se presentifica, quando aquilo que essas mães projetam em suas filhas está longe de ser um investimento libidinal ou um desejo de conquistas e realizações na vida futura? Quando os sonhos que têm para sua cria não são aqueles ligados à pulsão de vida? Quando esses pais estão, eles mesmos, mergulhados em suas próprias vivências de morte? São histórias cujo enredo, para ser pensado e compreendido, necessita ligar ao Freud de 1914, com o seu investimento narcísico libidinal, com o Freud pós-1920, com a sua pulsão de destruição. Trabalharei com o que pode haver de mortífero no encontro entre a pulsão de morte e a pulsão sexual da dupla mãe e filha, exatamente em um momento em que “duas” significa “uma”, em que uma é o duplo da outra. Pensarei não naquilo que esse encontro pode ter de criativo e que, pela função de ligação de Eros, liga o desligado e possibilita a construção de representações; e que, pela função disruptiva de Tânatos, rompe com estabelecido, para que algo novo seja criado. Trabalharei com o dramático deste encontro entre a pulsão de morte das duas personagens, mãe e filha, em seus aspectos mortíferos, em uma insistência em buscar descarga, em uma repetição que carece de representação e simbolização; e com – por mais paradoxal que pareça – o tanático da pulsão sexual, que, quando excessivamente ligada, 3 impossibilita uma existência individual, a autonomia, a separação e a diferença. Ambas podem aprisionar alguém em uma condição de alienação. 2 Investimentos Narcísicos, o Berço do Eu Ideal E ela lá fora, com medo que eu vá embora, fingindo desconhecer que não posso partir. Nunca pude. Porque arrasto comigo o corpo dela, que me engolfa e engole. (BRUM, 2011, p. 15) Em uma condição de absoluto desamparo, o bebê humano nasce – se deixarmos – entregue à morte. O que o salva desse destino certo é que, normalmente, ele tem a sorte de ser encontrado por um objeto – o sujeito da ação específica, em geral a mãe – que lhe imprime vida, vindo a dar forma ao que, em um segundo tempo, é registrado como uma experiência de satisfação por esse infante que começa a ter, ali, inaugurado o desejo. Isso é o que Freud (1895, p. 196) vai explicar em seu “Projeto para uma Psicologia Científica”: “o organismo humano é, no início, incapaz de levar a cabo a ação específica. Ela efetua-se por ajuda externa, na medida em que, por meio da eliminação pelo caminho da alteração interna, um indivíduo experiente atenta para o estado da criança”. Hausen (2000, p. 55) indica que a mãe “[...] aquela da ação específica, faz com que a criança, a do desamparo, conheça o mundo, a partir de sua intermediação, deixando-lhe marcas de suas expectativas”. O aparato psíquico vai se constituindo a partir da intimidade dessa relação, mediante as vivências de satisfação e também de dor proveniente da falta. O Eu do sujeito não é, nesse momento, aquele que faz as ligações; ele é o produto dessas ligações3. É o agente da ação específica que ensinará ao bebê desamparado de que forma vão se ligar ação externa com desconforto interno. Aquilo que era energia livre vai se transformando em energia ligada, esboçando um princípio de organização psíquica. Assim vai ocorrendo repetidas vezes, se tudo correr razoavelmente bem, na direção do desenvolvimento. A pulsão sexual relaciona-se com o Eu, no qual, a princípio, toda a cota disponível de libido é armazenada. Freud (1940) chama esse estado absoluto de narcisismo primário. 3 Aqui está contida a noção de um bebê passivo, que somente se tornará um bebê ativo – com potencial para estabelecer ligações – depois do encontro com o objeto, que o investirá narcisicamente e, assim, inaugurará a capacidade do bebê de buscar a repetição de experiências prazerosas. 4 Ele perdura até o Eu começar a catexizar as ideias dos objetos com a libido e a transformar a libido narcísica em libido objetal. Na famosa citação sobre o investimento narcísico dos pais nos filhos, no período inicial da vida, Freud (1914) identifica que sua atitude terna é, na verdade, produto de uma revivência e uma reprodução de seu próprio narcisismo, que tiveram, há tempos, de abandonar. Sendo elevado à condição de Sua Majestade, o Bebê, o filho será idealizado, estará destinado ao sucesso e protegido de qualquer dificuldade; ele, porém, deverá concretizar os sonhos que seus pais jamais puderam realizar: No ponto mais delicado do sistema narcísico, a imortalidade do Eu, tão duramente acossada pela realidade, a segurança é obtida refugiando-se na criança. O amor dos pais, comovente e no fundo tão infantil, não é outra coisa senão o narcisismo dos pais renascido que, na sua transformação em amor objetal, revela inconfundivelmente a sua natureza de outrora. (FREUD, 1914, p. 37) É na mesma linha que Leclaire (1977, p. 10) descreverá a “criança maravilhosa que é, primeiramente, a nostalgia do olhar materno que fez dela um extremo de esplendor, semelhante ao Menino-Jesus em majestade, luz, joia cintilante de poder absoluto”. O Eu Ideal dessa fase é regido pelas leis do narcisismo primário. Habitamos aqui o solo em que reina um estado de completude e uma ilusão de onipotência, no qual o bebê não precisa tomar conhecimento da existência do outro (FREUD, 1914). Não existe um terceiro, nem falta, nem ausência, nem castração, nem morte. Nem para a mãe, nem para o bebê. E será fundamental que, por algum tempo, assim se processe. Durante algum tempo, esse descendente será tomado como extensão e complemento narcísico de seus pais, mais precisamente de sua mãe, com quem teve, ao longo de nove meses, de fato, a vivência de serem um só. Em um estado de Eu Ideal, mãe e bebê viverão uma ilusão de perfeição e plenitude, pela qual se completam em uma relação idílica, na qual dois significa um. O conceito de duplo fornece-nos subsídios para pensar esse momento da relação de uma mãe com sua filha em um espectro que vai desde essa condição inaugural até, como veremos, o que de mais trágico pode acontecer nesse vínculo. No artigo “O Inquietante”, Freud (1919) toma o conto “O Homem da Areia”, de Hoffmann, para descrever o fenômeno do duplo em personagens que parecem semelhantes ou iguais e que possuem conhecimentos, sentimentos e experiências em comum. É o que acontece quando uma 5 pessoa se identifica totalmente com outra, a tal ponto que fica em dúvida sobre quem é o seu Eu. Para ele, essa qualidade de inquietante estranheza advém do fato de o duplo ser uma criação que data de um tempo remoto – quiçá há muito superado – um período em que o Eu não se distinguira ainda nitidamente do mundo externo e de outras pessoas. Ser duplo do outro, nesse ponto, é estruturante. Há esse tempo em que, por carecer de autonomia, o bebê depende por completo da capacidade da mãe – especificamente dela, em um primeiro tempo – de compreender e de providenciar o que ele necessita. Identificada com ele, como se fossem um só, a mãe sabe o que deve fazer para assegurar, por ele, sua sobrevivência e integridade. Segundo Freud (1919), uma das funções do duplo é proteger contra a aniquilação e a morte, através de uma enérgica negação do poder da morte. Tomando algumas ideias de Rank, ele aponta que o duplo garante, em sua origem, uma segurança contra o desaparecimento do Eu. Mãe e bebê estão unidos em um só corpo e uma só carne. McDougall (2000, p. 33) propõe que é aí que começa a vida psíquica: “com uma experiência de fusão que leva à fantasia de que existe apenas um corpo e um psiquismo para duas pessoas, e que estas constituem uma unidade indivisível”. Para a autora, essa fantasia primordial em todo ser humano, do “corpo-único”, tem seu protótipo biológico na vida intrauterina, onde, de fato, o corpo-mãe proveu todas as necessidades vitais dos dois seres. Freud (1919, p. 365) já identificara o corpo da mãe como esse lugar idealizado, que, pelo fenômeno do unheimlich, temos a estranha sensação “este lugar é-me familiar, estive aqui antes”. O lugar é a entrada para o antigo heim [lar] de todos os seres humanos, para o lugar onde cada um de nós viveu certa vez, no princípio. O estranho é o que sobra, a sensação desse lugar de vida e de morte, de sobrevivência e de inexistência. 6 3 “Minhas Mãos da Mãe”: do Eu Ideal ao Ideal do Eu Se eu nada sou além desse corpo torturado que nem é posse, é extensão, o que eu teria a dizer de meu? As palavras que rastejam de mim como vermes gordos de hemácias me fazem desconfiar de que não há um sujeito que diz, não há eu. Então, quem fala? De quem são as palavras que me constrangem?. (BRUM, 2011, p. 16) Em 1923, Freud define que a primeira e mais importante identificação de um bebê é a sua identificação com o pai em sua própria pré-história pessoal. Trata-se de uma identificação direta e imediata, e é mais primitiva do que o reconhecimento e o investimento em um objeto. Marucco (1998) a denominará de identificação primária passiva, para falar desse movimento primeiro em que o bebê está receptivo; ele é identificado pela mãe, voz passiva do verbo. Do berço esplêndido, que, um dia, foram os braços da mãe – desse trono majestoso, onde, por algum tempo, usufruiu de todo o investimento materno –, é chegado o momento em que, para ganhar mundo, o bebê deve crescer e deixar o colo da genitora. E é necessário que ela permita. Hausen (2005, p. 88) reconhece o: “[...] quão difícil é para as mães o partejar: nascer, porque já não é possível permanecer no ventre materno, e o nascer passa a representar o processo de separação e individuação, que, a partir daí, norteia a própria vida”. Na medida em que mãe e bebê podem matar o fascínio de tantas majestades e abandonar o paraíso ofertado por esse estado inicial de Eu Ideal – que é, em última instância, alienante –, há um crescimento psíquico em direção à construção de um Ideal do Eu, ao narcisismo secundário, que remete às marcas inicias da castração e da constatação de que não se é tudo nem se tem tudo; pelo contrário. Contudo, esse estado não é facilmente abandonado. Freud (1914) já afirmava: O indivíduo se revelou incapaz de renunciar à satisfação que uma vez foi desfrutada. Ele não quer se privar da perfeição narcísica de sua infância e, se não pode mantê-la, perturbado por admoestações durante seu desenvolvimento, e tendo seu juízo despertado, procura readquiri-la na forma nova do Ideal do Eu. O que ele projeta diante de si como seu ideal é o substituto para o narcisismo perdido na infância, na qual ele era seu próprio ideal. (FREUD, 1914, p. 40) 7 O Ideal do Eu é, para Freud (1921), o herdeiro do narcisismo original em que o Eu infantil bastava-se a si mesmo, e é só por essa possibilidade – de refugiar-se, então, no Ideal do Eu que está por vir – que aceita negociar com o Eu Ideal. Na medida em que pode abdicar de seguir exclusivamente guiado pelos princípios desse Eu Ideal, pode aceitar as imposições e exigências que o mundo oferece e buscar, então, outras formas, meios e metas – melhores e piores – de encontrar satisfação no Ideal do Eu, na comparação com o Eu. Fica marcada, a partir daqui, a necessidade de o império de uma relação dual e fechada ir, progressivamente, cedendo lugar a uma relação triádica, presente desde sempre na dupla, mas que pode ser concebida e vivida, na medida em que for reconhecida a falta, a incompletude, a castração. Nessa via que leva do ser identificado à possibilidade de desejar, Paim Filho et al. (2009, p. 91) indicam o aforismo “Só poderei vir a ser, se tiver sido o duplo de alguém” para evidenciar que todo filho é um duplo da mãe. Então, em um primeiro tempo, isso é constitutivo. “Esse outro [mãe], com seu mundo pulsional e representacional, cumpre a função de inaugurar a psicossexualidade no infante, vivida como o grande encontro incestuoso, a sedução originária” (p. 91). Se tudo correr bem – apontam os autores – esse duplo sofrerá fissuras ou rupturas pela ação interditora da figura paterna, por uma castração que também é estruturante para o psiquismo. Estaríamos falando aqui de desejo edípico, que sai das certezas alienantes do Eu Ideal para as incertezas do Ideal do Eu (PAIM FILHO, 2012) e que contempla as diferenças. A imortalidade do Eu Ideal diz respeito à Narciso; Édipo é mortal. Se a morte simbólica do progenitor não pode acontecer ou ser vivida, os filhos perdem também eles direito a uma existência própria e individual. Será preciso renunciar a esse lugar, pois, se a dupla mãe e filha permanece nesse encontro incestuoso, o desfecho só pode ser trágico. Quando isso não acontece, quando essa etapa não está superada, o próprio Freud (1919, p. 352) alerta que o duplo inverte seu aspecto. Então: “[...] de garantia de sobrevivência, passa a inquietante mensageiro da morte”. 8 4 Destinos Capturados: Quando o Duplo Segue Um E ela sente que nunca mais o grito cessará, aquele grito é para sempre, é um grito para toda a vida e para além da vida. Gritos são coisas que não viram palavras, palavras que não podem ser ditas. Não há como escapar da carne da mãe. O útero é para sempre. (BRUM, 2011, p. 14) O corpo da mãe segue, normalmente, sendo um lugar ideal e repetidamente buscado. É para onde, mesmo na idade adulta, voltamos em busca de refúgio e do suposto conforto de que, um dia, desfrutamos, quando tivemos atendidos todos os nossos anseios, satisfeitas todas as nossas necessidades sem, para isso, sequer precisarmos pedir. É um lugar que, pelo menos em nossa fantasia, certa vez existiu. McDougall (2000, p. 33) indica que a nostalgia de um retorno a essa fusão ilusória restará enterrada no fundo de cada um de nós, “o desejo de tornar-se mais uma vez parte dessa mãe-universo onipotente do início da infância, sem nenhuma frustração, nenhuma responsabilidade, nenhum desejo”. Então, refugiamo-nos pelo tempo necessário para recuperar as condições para voltar a enfrentar o mundo que nos aguarda fora do corpo da mãe. Um mundo com frustrações, mas um mundo com vida; a nossa vida. Mas o que faz com que algumas analisandas não retornem para o mundo ou sequer tenham saído desse colo da mãe, tendo feito dele seu mundo? Na clínica, McDougall (2000, p. 37) identifica “[...] uma solicitação muda de união fusional” com a mãe-universo, uma busca de fundir-se em um único corpo, do qual segue sendo parte indissolúvel, formando a fantasia de que há “um corpo para dois, um sexo para dois, um psiquismo para dois e até uma única vida para dois”. Ao mesmo tempo, esse corpo é para onde, felizmente, não podemos voltar. Felizmente, porque voltar seria equivalente a morrer; a mesma equivalência que se apresenta para quem ficou nesse lugar, para quem dali não quer ou não pode sair, ou para quem pensa que não pode. A imagem do vampiro sugerida por Parat (2011, p. 140) representa bem esse movimento. Na “clínica do vampiresco” – como a autora denomina certos transtornos da maternidade – a indiferenciação é da mãe e da criança, mas também da mãe e sua própria 9 mãe, em uma identificação vampiresca, em “[...] uma anulação da diferença de gerações que deixa para cada uma o fardo dos lutos precedentes impossíveis”. Esse é o lugar de uma imortalidade que se alimenta da mortalidade do desejo edípico, do narcisismo secundário, do Ideal do Eu e dos mandatos exogâmicos. Estaria tudo certo se, para manter-se alojada nesse lugar, a filha não tivesse que pagar um valor alto por isso, pagar com a própria vida. Essa mãe fálica, completa e onipotente, que tudo pode oferecer e garantir para sua cria, captura o bebê em um narcisismo primário, universo de tramas e dramas alienantes, na crença de que ele é o único e ilimitado dono dela. Nessa história de alguém que ficou capturado, Marucco (1998, p. 214) explica: ficase preso na “[...] inscrição de histórias traumáticas tanáticas ‘inoculadas por e desde o outro’, que se repetem demoniacamente”. Não há uma fronteira – na história pessoal – entre o Édipo, com seus desejos (e sua temporalidade) e os desejos de seus pais. A pulsão sexual se apodera da pulsão de morte e, por um pacto de imortalidade sem vida (MARUCCO, 1998), mãe e filha quedam imortais. Aprisionada no narcisismo com sua promessa de imortalidade, fundida e confundida com o outro, esta carece de uma possibilidade de discriminação entre seus próprios anseios, do presente, e os desejos do outro, do passado. Quem fala é “[...] a história dos pais, a representação de seus desejos” (p. 229). Mãe e filha permanecem coladas, quando esta segue sendo objeto daquela. Se o duplo segue determinando os destinos do Eu Ideal e, por conseguinte, do sujeito, Freud (1919, p. 351) indica que haverá “o constante retorno do mesmo, a repetição dos mesmos traços faciais, características, vicissitudes [...] por várias gerações sucessivas”, pelo que a descendência não pode diferenciar-se ou distanciar-se. Freud (1933b) atribui ao “caráter ‘demoníaco’ da compulsão à repetição” situações de pessoas em cujas vidas há uma permanente repetição não corrigida, mesmo em prejuízo de si próprias, assim como outras pessoas que parecem perseguidas por um destino implacável, embora esclareça que, inconscientemente, elas mesmas causam a si esse destino. Mas do que se faz esse “destino”? As patologias mais graves de que falamos, Marucco (1998) propõe que se dão por identificações tanáticas, no campo da intersubjetividade, mais do que pela pulsão de morte advinda do interior da pessoa. Para o autor, no “mais além do princípio do prazer”, de Freud, há mais do que a pulsão de morte 10 do sujeito. Ali encontramos também o princípio do prazer de seus pais, seu narcisismo primário e seus próprios desejos, conformados nesse sujeito como uma estrutura narcisista: Sua Majestade, o Bebê se perpetua como Eu Ideal. Nessa história, não existe o “eu”; existe somente o “tu” mais o “eu”, ou sequer estes, na fusão da identificação primária. Nessa direção, Marucco (1998) sugere uma ampliação para o Sua Majestade, o Bebê de Freud, ao identificar que há também o Sua Majestade, os Pais, que tendem a evitar que o filho reconheça que o bebê narcisista foi só uma ilusão a serviço dos anseios parentais, uma versão falsa. Para esse autor, o bebê teve que ser o único, para negar a incompletude dos pais; logo, quando ele é destronado, também os pais são destronados. Freud (1933a) relata um sonho analisado por Abraham, no qual este relaciona o símbolo da ponte com o órgão masculino e afirma que é graças a esse órgão que somos capazes de vir ao mundo, para fora do líquido amniótico. Uma ponte torna-se a travessia desde o outro mundo (o estado de não nascido, o útero) até este mundo (a vida). Contudo, a mãe de que falamos não admite, ela mesma, essa possibilidade. Sem poder ver-se castrada, desconsidera a presença, a necessidade e a ação de um terceiro. Ela apodera-se de seu fruto e mantém com ele uma relação fechada, impondo que ele lhe reafirme para sempre acerca de sua completude. Esta dinâmica ganha qualidades de um investimento mortífero, na medida em que nega a existência separada da filha, em que sequestra sua individualidade, em que recusa o amor, caso ela não se mantenha fiel. 5 Investimentos Mortíferos, Entre Vida e Morte Ainda que eu sangre com sangue, este ritual eu conheço. Ele faz de mim o pouco que tenho de mim. É uma constituição. Me constituo eu pelos cortes em mim. (BRUM, 2011, p. 16). Há um encontro que já não é fácil entre a pulsão de morte do bebê e o objeto com suas pulsões. Porém, a isso se adiciona a carga tanática dessas pulsões, que potencializam o desligado da pulsão de morte já residente no infante. Logo, o problema parece estar na qualidade desse encontro, de um objeto que deveria ofertar a pulsão sexual que daria contornos ao que é da tendência destrutiva do nascente, e, no lugar disso, o sobrecarrega 11 com suas próprias demandas. Em termos pulsionais, temos o traumático de um amálgama tanático entre pulsão de morte e pulsão sexual, forças que se contrapõem às rupturas do pacto narcísico entre mãe e filha. No investimento de qualidades mortíferas dessa dupla, temos de reconhecer que, também, na mãe, há uma reprodução da qualidade mais destrutiva de seu narcisismo primário, que nunca pôde ser melhor processado, sua própria pulsão de morte in natura, sem o enlaçamento da pulsão sexual que liga e dá uma meta. Aquilo que está inconsciente, para essa mãe, que também um dia foi filha, lhe é desconhecido e, por isso, derramado por sobre sua cria. A mãe teria a função de ingressar com a pulsão sexual, mas o que sucede quando ela entra com sua própria pulsão de morte, desligada da pulsão sexual, a pulsão de morte em seus aspectos mais destrutivos, mais trágicos, não em seus aspectos mais estruturantes? A citação de Freud (1914), no texto “Introdução ao Narcisismo”, possibilita leituras diversas. Ou ela descreve – como estamos mais acostumados a pensar – um investimento narcísico libidinal de desejos, sonhos e expectativas, ou ela fala de um investimento tanático, pois vem carregada de um imperativo categórico (FREUD, 1913), com ordens expressas daquilo que o bebê será ou fará, tendo o compromisso firmado de obedecer aos mandatos maternos, que obturam possibilidades transformadoras. Freud (1933b; 1940) postula que as pulsões de vida buscam combinar cada vez mais substância viva em unidades cada vez maiores, estabelecendo e conservando a união; elas se esforçam no sentido da reunião. A pulsão de morte, pelo contrário, busca dissolver essas conexões. Ela se opõe a essa tendência de ligação e leva o que está vivo de volta a um estado inorgânico, destruindo as coisas. Eros neutraliza as tendências destrutivas que estão simultaneamente presentes. Dessa ação concorrente e antagônica, procedem os fenômenos da vida que chegam ao seu fim com a morte. Pulsão sexual e pulsão de morte estão imbricadas de tal forma que, ao serem depositadas no bebê, vão amordaçar suas possibilidades cambiantes. Teremos um sujeito/bebê sob o jugo de uma força imperativa que irrompe por caminhos que têm como vetor a pulsão sexual. Essa pulsão determina a forma de expressão da tenacidade da autodestrutividade à destrutividade do outro (PAIM FILHO, 2012). 12 Talvez esteja aí o ponto no qual o que seria investimento de libido adquire uma frágil amarração com a pulsão de morte, a ponto de converter-se em uma condenação, imposta pela mãe ao seu bebê. Esta mãe já não pode esconder que o investimento, aparentemente dirigido à filha, visa a assegurar, na verdade, a manutenção de seu próprio estado narcísico de completude, em detrimento da individualidade dessa a quem concebeu. É nesse contexto da relação que observamos o que Freud (1919, p. 354) descreve sobre o unheimlich: “O duplo tornou-se algo terrível, tal como os deuses tornam-se demônios, após o declínio de sua religião”. Então, ampliando o que Freud já referira do duplo como mensageiro da morte, Marucco (1998, p. 96) define que, na medida em que o bebê da relação dual cresce e se separa, “esse Eu Ideal se transformará em embaixador da morte”. 6 Formas de Sequestro: Um Mais Um Não Será Dois Eu não sei fazer metáforas porque não compreendo metáforas. Para mim, tudo é literal. Como meus braços bordados pelas cicatrizes de todas as tentativas de me separar do corpo de minha mãe. Para mim, nunca houve um cordão umbilical que pudesse ser cortado. Só a dor de estar confundida com o corpo da mãe, de ser carne da mãe. (BRUM, 2011, p. 15) Marucco (1998) propõe o conceito de pactos narcísicos para descrever a situação em que o bebê fica junto à mãe, desmentindo a falta de pênis dela e mantendo-a na condição de fálica. Dentre as promessas existentes no pacto, está a desmentida, que oferece, ao bebê irreal, presentes irreais. Dentre as obrigações, o bebê real deve comprometer-se a não crescer e a não questionar o Eu Ideal da mãe. Para ser tudo o que a mãe define que o infante seja, ele não pode desejar, porque o desejo abre espaços, possibilidades, separação. O custo desse pacto, porém, é uma fissura no Eu, uma cisão. O bebê chega ao Édipo capturado pela função mãe fálica. Ele desmente para manter a ideia de completude, mas, mais do que isso, por temor ao ódio da mãe fálica, que o obriga a desmentir. McDougall (2000, p. 41) assim detecta: “A criança que continua a viver no indivíduo tentou, ao longo de toda a sua infância, interpretar as mensagens incoerentes 13 deixadas pelos desejos e temores inconscientes de seus pais”, como se ela não pudesse pensar por si mesma sobre o que quer, o que deseja, o que fará. Poderíamos pensar que a filha cumpre esse papel para manter-se no lugar majestoso de ser o centro da vida da mãe; afinal, não é o que todos desejariam? Leclaire (1977) estima que a denúncia da castração materna e a morte da mãe fálica a forçariam a aceitar que não é a única nem o centro do universo da mãe. Esta seria uma primeira resposta. Porém, devemos avançar para outro nível que nos permita entrar em contato com o que de mais tanático há nessa história. Paim Filho (2012) oferece-nos outra resposta: fica, porque não tem para onde ir. Como na tragédia de Édipo, torna-se um errante, sem uma casa para chamar de sua. Talvez ser peregrino tenha sido um caminho para encontrar um possível lugar com certa singularidade. A filha de uma mãe com essa qualidade de investimento sabe que o caminho para longe do corpo da mãe é um caminho sem volta. Sabe a que está condicionada sua separação: ao abandono. Sabe que, se questionar o lugar da mãe fálica, sofrerá duras consequências por sua ousadia. Sem poder delatar a incompletude materna, ela fica presa ao desejo alheio, o investimento narcísico da mãe, tanto pela vida quanto pela morte, pela impossibilidade de abrir e mudar. Uma mãe com essa demanda pode levar a filha a uma incapacidade de distinguir a representação de si mesma da representação dela, mãe, o que leva – afirma McDougall (2000, p. 157) – a uma confusão dos contornos do corpo, o investimento das zonas erógenas e a distinção entre corpo materno e o corpo da criança. São bebês, crianças e mulheres que viveram de forma intensa, até cruel, “[...]a impossibilidade e até a proibição fantasiada de se individualizar, de deixar o corpo-mãe, criando [...] um corpo combinado no lugar do próprio corpo, corpo-monstro que o psiquismo tenta fazer ‘falar’”. Um corpo para dois, é assim que essa autora explica que, em tal universo, não deve existir qualquer identidade individual. Nesse universo da relação mãe+filha, a indistinção entre si mesmo e o outro se esbate. A realização de um desejo de discriminar-se equivaleria à perda da identidade pessoal, à morte psíquica. O anseio pelo retorno ao útero está ancorado neste terror: de perder o sentimento de self corporal e individual. Segundo McDougall (2000, p. 34), com essa fantasia em cena, tudo aquilo que ameaçar destruir a ilusão de indistinção entre o 14 próprio corpo e o corpo materno lançará o bebê “numa busca desesperada para reencontrar o paraíso perdido intrauterino”. Esse movimento para dentro é ainda reforçado pelo significado que separar-se adquiriu, com base na experiência já vivida, no nascimento. Freud (1917) descreve que, no ato de separação do corpo da mãe, houve uma combinação de sensações desprazerosas, impulsos de descarga e sensações corporais, o que se tornou o protótipo do estado de angústia. “A primeira angústia foi, assim, uma angústia tóxica”. Para Paim Filho (2012), talvez tenhamos aí o germe da vida e da morte psíquica. No caso dos investimentos mortíferos, ocorre uma espécie de asfixia, um pulmão para dois. Só há vida possível porque o bebê é parte da mãe, de quem ele ouve a mensagem: “É em mim, tua mãe, que terás, para sempre, contenção para tua pulsão de morte”. Mesmo mais tarde, quando a criança percebe a ausência da mãe ou quando esta o ameaça com a retirada do amor, ela entra em um estado de angústia, semelhante ao então vivido (FREUD, 1933c), de modo que reconhecer-se incapaz de unir-se novamente à mãe gera um sofrimento vivido como insuportável, nos casos de que aqui falamos. Contudo, se concordarmos que – mais do que uma incapacidade da filha – o que define isso é a proibição de desobedecer à mãe, vemos que isso se transforma em uma impossibilidade de se fazer diferente. Quando uma mulher pode elaborar um questionamento do Eu Ideal – no qual sua mãe está presa com a fantasia de completude –, ela faz uma fissura, e isso parece intolerável. Se sair do corpo da mãe, essa filha fica em um vácuo. Então, passa a não conceber a possibilidade de uma existência viável longe dela, pois isso justificaria não poder separar-se e assume como sua esta “dificuldade” de desprender-se, como se fosse uma falta de condições dela, de viver longe. Parece tratar-se, na verdade, de a mãe não poder viver sem a função que a filha cumpre. Quando existe pouco espaço psíquico potencial entre essa dupla, e separação e diferença não são vividas como aquisições psíquicas consecutivas à aceitação da alteridade, que enriquecem e dão sentido à vida pulsional, a criança pode ter dificuldade para “[...] organizar sua própria realidade psíquica, para se proteger das situações que a ameaçam, para se aliviar nos momentos de dor psíquica, em suma, para realizar sozinha as funções maternantes” (MCDOUGALL, 2000, p. 87). Essa experiência pode, então, ser temida como uma perda, como um luto que ameaça a imagem do self, como algo que a esvazia daquilo 15 que lhe parece vital para a sobrevivência. McDougall (2000, p. 36) é contundente: “A mãe mortífera leva à perda irrevogável de si mesmo”. Leclaire (1977, p. 20) destaca que o risco de acreditar-se capaz de ter uma existência própria, desafiando o desejo de sua progenitora, é que questionar “sua representação narcísica primária atinge sua mãe no ponto mais sensível de sua razão inconsciente”. Esse bebê é ameaçado com o ódio. A mãe precisa que ele não questione, que não deixe de cumprir com seus desejos, que desminta a incompletude materna. Por isso, está condenado a repetir o bebê mítico. A mãe ameaçada em sua desmentida exige do filho que ele siga nesse lugar do “bebê tão ansiado do tempo primordial”. Ao nascer e evidenciar a triangulação, o bebê edípico ameaça a mãe fálica, ao denunciar sua castração. O temor ao Édipo faz renascer o Narciso, o bebê mítico, definindo uma “eterna, complexa e constante repetição de mortes e renascimentos” (MARUCCO, 1998, p. 217). 7 Quando Dois Parecem Nenhum, Esta Vida Parece Melhor que a Morte Por mais ameaçadora que a casa seja, eu sei o quanto minha mão pode me ferir. Mão, não. Mãe. Se sabemos o que esperar, até mesmo a dor pode ser confortadora. E eu descubro que o pior caminho é melhor que o desconhecido. (BRUM, 2011, p. 75) Sobre o engano do bebê mítico, tão ansiado, centro da vida da mãe, Leclaire (1977, p. 10) já apontava que “a criança maravilhosa que, um dia, foi tudo para esta mãe é também, e ao mesmo tempo, a criança abandonada, perdida numa total solidão moral, só, diante do terror e da morte”. Então, parece que, de fato, há uma ameaça mais grave por trás dessa captura. McDougall (2000) explica que a imago materna fica cindida em uma representação idealizada, todo-poderosa e inacessível, capaz de banir qualquer sofrimento, de atender a todos os desejos e de oferecer a promessa eterna de felicidade inefável. Por outro lado, é um objeto parcial, uma mãe rejeitadora, até mesmo mortífera, que carrega a ameaça de morte psíquica e física. 16 No pacto firmado com a mãe, a criança pode destruir tudo, inclusive a si mesma, só não pode destruir o pacto. Por isso, não pode ganhar autonomia. Ganha tudo - ser Sua Majestade, o Bebê - menos autonomia. Ameaçada e presa ao cumprimento dos mandatos maternos e impedida de fazer um assassinato simbólico dessa mãe, a filha sente-se impossibilitada de descolar-se. Esse assassinato que seria simbólico é sentido como real; teme matar de fato a mãe! E matandoa, ambas perderiam a vida, uma vez que, da vida de uma, depende a outra. Assim, executar esse crime corresponderia à morte do objeto e à sua própria morte. Então, não há um vir a ser, e não haverá evolução do Eu Ideal para um Ideal do Eu. Um movimento que observamos na clínica vai na linha do masoquismo, que Freud (1933b) define como uma tendência à autodestruição. Ele deriva de uma determinada quantidade da pulsão de morte original que ainda permanece no interior do bebê, em combinação com os impulsos eróticos. Quando o impulso destrutivo não pode ser dirigido para fora, sob a forma de agressividade, ou quando não consegue encontrar satisfação no mundo externo, porque se defronta com obstáculos reais, ele se retrai e aumenta a quantidade de autodestrutividade reinante no interior. Enquanto essa pulsão opera internamente, como pulsão de morte, ela permanece silenciosa; só nos chama a atenção quando é desviada para fora, como impulso destrutivo. Porém, é essencial, à preservação do indivíduo, que esse desvio ocorra. Freud (1933b) ressalta que é necessário destruirmos alguma outra coisa ou pessoa, a fim de não destruirmos a nós mesmos, para nos protegermos contra o impulso de autodestruição. Em 1940, Freud reforça que conter a agressividade é, em geral, nocivo e conduz à mortificação. Mas, e quando destruir o objeto é equivalente – no psiquismo – a destruir a si mesma? Se se trata de uma questão de vida ou morte, parece não haver opção. Nesse tipo de relação, um paradoxo se impõe: para não morrer, a filha abre mão da própria vida; no entanto, se permanece como o duplo da mãe, fadada a seguir um apêndice dela, essa filha está condenada à morte, tentando fugir dela. É a mesma via aparentemente sem saída que Leclaire (1977, p. 11) formula: “Renunciar a ela seria morrer, não encontrar mais razão para viver; mas fingir conservá-la seria condenar-se a não viver”. 17 8 Tramas e Dramas Alienantes E por um instante está no fundo da piscina, berrando no silêncio, enquanto a água lhe enche os pulmões e a leva para um lugar sem sofrimento. E a mãe puxando-a pelos cabelos à superfície, porque nunca a deixará partir. (BRUM, 2011, p. 13) O que fazer frente a essas mães cujos mandatos ouvidos e não ouvidos na fase mais precoce da infância se fazem ouvir por aquilo que aprisionam, por aquilo que submetem, por aquilo que matam? Como pode uma filha escapar de uma dinâmica em que a renúncia à própria vida parece trazer como prêmio toda a mãe? O que pode fazer, frente a um compromisso mudo firmado com alguém de cuja existência ela acredita depender para sua sobrevivência psíquica? Como libertar-se – como Marucco (1998, p. 216) escreve – deste “engañoencierro?”. O que resta frente a uma oferta de amor condicionada à manutenção de um pacto narcísico? Uma orfandade vivida como insuportável por essas mulheres que, ainda que adultas, sentem que não sobreviveriam? Bastaria um outro tipo de vínculo que não se oferece para completar, já que, na realidade, não há vínculo que complete? Como optariam pela vida, se essa oferta equivale, para elas, à morte? À morte do vínculo com a mãe, que – ainda que de morte – é um vínculo? À morte da certeza de terem uma mãe? Uma certeza delirante, mas que sustenta, que dá base, que dá amparo e segurança, mesmo que à custa da vida? Como pode haver-se essa filha com uma mãe que esteve louca, deprimida, desinvestida, desafetada, psicótica, uma mãe em pânico, uma mãe em luto? Quão longe ela pode chegar de quem a concebeu, que se desespera com o crescimento da filha e que a ameaça desde seu lugar e quanto a seu amor? Quando a oferta de amor está vinculada à condição de sofrer, de penar, de pagar o amor da mãe com o próprio sangue, com as próprias lágrimas, com a própria vida? Com que condições ela pode independizar-se, desidentificar-se, crescer e renunciar a um amor mortífero? Sobre isso, McDougall (2000, p. 40) também se indaga: “Como a criança chega a compreender que sua mente é uma caverna cheia de tesouros dos quais ela é a única 18 proprietária, usufruindo com todo o direito dos pensamentos, dos sentimentos, dos segredos íntimos que esta guarda?”. Há brechas e frestas, lugares por onde sair, mas é como se essa criança, mesmo adulta, sequestrada, não soubesse como passar, por isso, sente-se prisioneira. Para isso, muito caminho haverá de ser percorrido. Felizmente, existe também, desde o bebê, uma necessidade importante de separação, pela força disruptiva de sua pulsão de morte, reconhecida como uma força diferenciadora. Assim, com a mesma energia com que busca recriar a unidade corporal e mental com o seio-universo, esse bebê lutará, com todos os meios de que dispõe, para diferenciar seu corpo e seu Eu nascente do corpo e do Eu de sua mãe, para poder ser ele mesmo, desfazendo-se dessas identificações, e “para ter acesso à plena posse de si mesmo” (MCDOUGALL, 2000, p. 36). Se, no primeiro momento de vida, a mãe salvou o bebê da pulsão de morte que poderia tê-lo inundado desde dentro, agora será a mesma pulsão de morte que o tirará dos braços apertados dessa mãe, quando ela não puder deixá-lo partir. No entanto, será uma pulsão de morte não mais em seu estado bruto, desligado, solto e caótico, mas uma pulsão de morte instrumentalizada pela pulsão sexual. 9 A Potência da Pulsão de Morte no Resgate de uma Existência Será que a morte da mãe é a vida da filha? Será que a vida da mãe é a morte da filha? Naquele tempo eu já sabia que não havia espaço para nós duas na mesma vida, no mesmo corpo. (BRUM, 2011, p. 134) O desejo narcísico é o não às diferenças, portanto, representa o desejo de completude da pulsão sexual: “O esforço de Eros para reunir o orgânico em unidades cada vez maiores, provavelmente, substitui a ‘pulsão de aperfeiçoamento’” (FREUD, 1920, p. 210). Todavia, quando pensamos em fazer, denunciar e promover a diferenciação, temos que evocar a força disruptiva da pulsão de morte. A pulsão sexual é bem-vinda até o ponto que liga o que estava solto e desligado; mas, depois de um ponto, ela também pode ser mortífera. Logo, vemos que a destrutividade não é privilégio da pulsão de morte; ela é, mais, uma formação de compromisso entre a 19 pulsão sexual e a pulsão de morte. Quando a pulsão sexual liga, ela acalma a pulsão de morte. Porém, com isso, corremos o risco de matar a pulsão de morte em sua força desestabilizadora dessa calma, que também é mortífera, pois – calmo – nada acontece. Como em um pacto de sangue, o sexual liga, mantém, amortece, inativa, neutraliza a força da pulsão de morte. Em paralelo a isso, nesse jogo tramado entre uma e outra, a pulsão de morte rompe com o pacto, liberando a pulsão sexual para ser investida em novas inscrições que, até então, estavam impedidas de vir à luz. Paim Filho e Frizzo (2008, p. 52) reafirmam que “a pulsão de morte se expressa como vontade de destruição, rompendo ligações, liberando energias que podem buscar novos caminhos”. Enfatizam, assim, a potência criadora da pulsão de morte. Nesse jogo, o criativo está no processo de desligar, deixando a energia livre, de modo a vitalizar o processo primário. Romper com esse pacto seria potencializar os caminhos diferenciadores da pulsão de morte enlaçados pela meta determinada pela pulsão sexual. É a pulsão sexual que dará um destino melhor ou pior nessa força de desligamento da pulsão de morte. Marucco (1998) defende que é somente ao destruir o desejo alienante que poderá existir alguém dono de suas próprias pulsões, com desejo próprio. O amor objetal do Édipo terá lugar quando – via pulsão de morte – o narcisismo primário, aquele Eu Ideal cujo suporte é a identificação primária, ceder espaço a ele. Da mesma forma, Leclaire (1977, p. 56) sublinha a importância da pulsão de morte para destruir o que ele chama de “representação narcisista primária”. Ele afirma: Trata-se de reconhecer a força primordial, constante e absolutamente necessária da pulsão de morte; pois é ela que, no interior e através da figura do tirano a matar, do representante narcísico primário a destruir, determina o lugar dos representantes inconscientes, terra-natal e de exílio, paraíso perdido a reencontrar; é ela quem garante, em suma, a presença-ausência do Outro, sem o qual não existe um ‘eu’ que fala e deseja. (LECLAIRE, 1977, p. 56) Sobre essa força de morte que consiste em matar a criança maravilhosa (ou aterrorizante) que, de geração em geração, testemunha os sonhos e desejos dos pais, Leclaire (1977, p. 10) aponta que “só há vida a esse preço, pela morte da imagem primeira, estranha, na qual se inscreve o nascimento de cada um. Morte irrealizável, mas necessária, pois não há vida possível, vida de desejo, de criação, se cessarmos de matar ‘a criança maravilhosa’ que renasce sempre”. Será na medida em que puder ser morto que esse infans 20 – que não fala nem falará nunca, caso não se separe – poderá começar a falar, a desejar e a nascer verdadeiramente como pessoa: Existe para cada um, sempre, uma criança a matar, um luto a cumprir e a refazer continuamente, de uma representação de plenitude, de gozo imóvel, uma luz que se ofusca para que ela possa brilhar e extinguir-se sobre o fundo da noite. Quem não cumpre e refaz continuamente, este luto da criança maravilhosa que poderia ter sido permanece no limbo e na claridade leitosa de uma espera sem sombra e sem esperança. Mas aquele que acredita ter, uma vez por todas, ajustado as contas com a imagem do tirano afasta-se da fonte de sua genialidade, e julga-se um espírito forte frente ao reino do gozo (LECLAIRE, 1977, p. 11). Em consonância com essas ideias, Parat (2011) enfatiza que é no reconhecimento das diferenças, na impossibilidade de realizar os desejos onipotentes e nas limitações de um poder de vida e de morte, que emerge a possibilidade de fazer o luto do objeto primário impedido pelos lutos não feitos deste. Assim é permitida a parada da transmissão mortífera, a saída das relações incestuosas entre mãe-filha, profundamente destrutivas. “A entrada de um terceiro permite a retomada da triangulação achatada no unidimensional e a morte simbólica do vampiro aspirando às psiques maternas para que elas possam, por sua vez, dar vida psíquica e corpos libidinizados à criança livre da repetição do mesmo” (p. 143). A pulsão de morte capitalizada pode desfazer o pacto narcísico e fazer valer sua força disruptiva construtivamente. Podendo usá-la de forma mais criativa, ela perde força e pode cumprir com os fins da pulsão sexual. Na falta trágica da presença do terceiro, como agente de corte, de ruptura desse pacto incestuoso, caberá ao processo analítico criar um setting capaz de viabilizar a construção de uma vida psíquica com autonomia. Para isso, haveremos de buscar recursos para instrumentalizar a força de abertura do traumático e concomitantemente fazer ligações. 10 Uma ou Duas Respostas Para Seguirmos Vivos Perguntas, tenho muitas. Por sorte, porque perguntas abrem; abrem a possibilidade de pensar, de buscar, questionar, questionar-se, por mais que angustiem. Já vimos como certezas, seguranças, estabilidade e completude são alienantes. São calmantes, mas alienantes. 21 Escrever sobre esse tema não foi calmante; foi uma experiência, por si só, pesada. De todos os temas que eu poderia ter escolhido para este trabalho, não haveria de ser um mais fácil. Um tema que eu dominasse mais e conceitos que eu compreendesse melhor teriam me proporcionado uma escrita mais fluida, um processo mais leve. Contudo, isso não se pareceria com o que vivemos na clínica. Na Psicanálise, nos propomos a explorar as mais terroríficas porções da vida de alguém, entrando em contato – mais, vivendo – com nossos analisandos o que houver para ser vivido, inclusive a morte, esse estado de estar quase enterrado vivo dentro de si mesmo, ou dentro dessa mãe tão presente, ainda que tão ausente. Propomo-nos, na clínica, a visitar, com quem nos busca, os cemitérios, as cavernas, os túmulos, as tumbas, as prisões, lá onde habitam seus mortos, seus monstros, seus medos, mas também sua vida. “Uma/Duas”, de Eliane Brum, foi pano de fundo deste texto, mas os trechos recortados do livro, que serviram de epígrafe para o trabalho, poderiam ser a fala de muitas das analisandas que chegam até nossos consultórios em busca de saber de si. Um movimento elas já foram capazes de fazer, para fora do colo da mãe: vieram buscar análise. Em algum lugar dentro de si, por algum motivo, depois de algum ponto, suspeitaram existir um terceiro, um outro espaço, em que podem, então, começar uma outra história, a sua história. E o que podem encontrar lá, conosco, em nossa sala de análise, aí já são uma ou duas perguntas para seguirmos pensando e, pensando, seguirmos vivos. REFERÊNCIAS BRUM, Eliane. Uma/Duas. São Paulo: Leya, 2011. FREUD, Sigmund (1895). Projeto para uma psicologia científica – Parte I. In: GABBI JR., Osmyr. Notas a projeto de uma psicologia: as origens utilitaristas da psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2003. p. 173-218. FREUD, Sigmund (1913). Totem e tabu. In: _____.Totem e tabu, contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 441 p. (Obras completas, 11). 22 FREUD, Sigmund (1914). Introdução ao narcisismo. In: _____. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). 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