A gestão académica na universidade estatal angolana: entre a regulação burocrática e a emancipação política Eugénio Alves da Silva1 Centro de Investigação em Educação - Universidade do Minho [email protected] Resumo A administração do subsistema do ensino superior em Angola é da responsabilidade do Ministério do Ensino Superior e da Ciência e Tecnologia (MESCT) a quem cabe a definição das políticas sectoriais e a avaliação e controlo da sua execução. Este órgão vem assumindo um poder regulador de natureza centralizadora que colide com a autonomia das universidades, retirando-lhes margem de manobra na definição das suas próprias políticas. Como consequência, estabelece-se uma relação de dependência hierárquica que coloca os reitores das universidades no “fio da navalha”. No quadro desta regulação burocrática, a gestão das universidades públicas pelos reitores resume-se ao exercício de funções executivas e implementativas, isto é, de materialização das políticas superiormente determinadas. Assim, os reitores são forçados a atuar como delegados da tutela pelo que a sua ação, num quadro de autonomia limitada, não alcança a dimensão emancipatória, imprescindível para impulsionar o desenvolvimento institucional tendo em conta os imperativos locais. Deste modo, eles são relegados ao papel de representantes da tutela embora, na qualidade de primus interpares, não deixem de ser, também, representantes da academia, o que impõe um compromisso com esta. Por isso, questiona-se qual o grau de influência dos reitores, nesta ambivalência de papéis, no funcionamento e desenvolvimento das universidades estatais em Angola. A análise do papel do reitor na universidade estatal tomará como referência algumas metáforas de universidade que exprimem configurações resultantes das articulações e desarticulações entre a dimensão burocrática e a dimensão política patentes na dinâmica organizacional universitária. 1 Eugénio Alves da Silva é Professor Auxiliar do Instituto de Educação da Universidade do Minho e investigador do Centro de Investigação em Educação da mesma universidade, em Braga, Portugal. 1 Introdução O regime de tutela recentemente instituído no subsistema do ensino superior em Angola decorrente do novo quadro orgânico representa um claro retrocesso para a autonomia universitária e impõe restrições ao exercício do cargo de reitor que passou a nomeado pelo Ministério do Ensino Superior e da Ciência e Tecnologia (MESCT). Deste modo, a universidade estatal angolana deixa de ser encarada como estrutura autónoma para se constituir como uma extensão do Estado, sujeitando-se ao controlo e avaliação periódica pela tutela. O atual regime jurídico ao qual a universidade se sujeita define o papel do reitor, considerando as dimensões da autonomia, da dependência hierárquica e do controlo, conduzindo a um quadro em que, tendo em conta as regras de nomeação, este passa a atuar como delegado do ministro, mandatado para cumprir as políticas educativas estatais, exercendo, portanto, uma ação executiva. Coloca-se aqui a questão da definição, no atual quadro de funcionamento das universidades estatais, do papel dos reitores e da sua influência no funcionamento e desenvolvimento das universidades. Nesta conjuntura torna-se difícil para qualquer universidade estatal em Angola assumir-se como locus de produção de políticas (Lima, 2001, pp. 63-64) na medida em que deixa de usufruir de uma condição fundamental - a autonomia - com a agravante de o reitor, por ser nomeado pelo governo a quem deve fidelidade, ter de agir quase exclusivamente como delegado deste, embora não deixe de ser, também, um representante dos seus pares. Este facto coloca-o perante uma dualidade de papéis dificilmente conciliáveis - representante da tutela e representante da academia. Assim, pretende-se explorar teoricamente algumas metáforas de universidade que exprimem configurações resultantes das articulações e desarticulações entre a dimensão burocrática e a dimensão política, analisando o papel e o lugar do reitor em cada uma delas, tendo em conta as lógicas concordantes com a respetiva conceção de universidade e os constrangimentos da gestão académica em Angola. 1. As imagens organizacionais de universidade O modelo teórico proposto para analisar a gestão na universidade parte de uma matriz onde se cruzam algumas dimensões que caracterizam a dinâmica organizacional e certas orientações que conferem sentido a essa dinâmica. De entre as dimensões temos a consensualidade e a conflitualidade. Estas referem-se à maneira como os atores 2 tomam decisões e aos mecanismos desencadeados para a sua produção. Como orientações, destacam-se as profissionais e as burocráticas, umas fazendo apelo à perícia e colegialidade e outras à conformidade, formalidade e controlo (Weber, 1971). Assim, é possível criar cenários resultantes dos possíveis cruzamentos entre dimensões e orientações. Teremos, portanto, contextos de orientação profissional e outros de orientação burocrática, caracterizados por índices de consensualidade ou de conflitualidade. A menor ou maior conflitualidade indica o grau de articulação entre o burocrático e o político. Cada um dos contextos adquire uma configuração (Silva, 2004, pp. 244-250), a que corresponde uma metáfora que identifica o tipo organizacional de universidade, conforme indicado no quadro I. Quadro I: Metáforas de Universidade considerando o modelo em ação Desarticulação entre modos de regulação ação divergente Processos Orientações PROFISSIONAIS Autonomia Colegialidade Adhocracia Autorregulação Critérios académicos Compromisso com a ciência BUROCRÁTICAS Hierarquização Centralização Controlo estatal Socialização normativa Padronização Compromisso com ordem social Consensualidade Normatividade Objetivos claros e partilhados UNIVERSIDADE CONCLAVE Conflitualidade Ambiguidade Objetivos ambíguos e incertos UNIVERSIDADE COLISEU Modelo burocrático-colegial (burocrático e político em confronto) Universidade: colégio de profissionais Modelo político-participativo (político em rutura com o burocrático) Universidade: arena política 1. Formalidade, centralização e controlo uniformidade; Autonomia dos docentes discricionariedade 2. Domínio do profissional sobre o burocrático; Burocracia bloqueia produção das políticas 3. Modo de regulação colegial negociação de agendas divergentes lógicas democráticas 1. Burocracia mecanismo para mobilizar e integrar atores nas instâncias de decisão 2. Rutura entre o político – impulsionador e o burocrático - força de bloqueio conflito 3. Antagonismo entre regulação burocrática e autonomia profissional incompatibilidade entre perícia académica e controlo burocrático UNIVERSIDADE AGÊNCIA IDEOLÓGICA Modelo burocrático institucional (burocrático no serviço do político) Universidade: extensão local do estado Locus de reprodução normativa 1. Burocracia é instrumental e imprescindível à viabilização das políticas 2. Aparelho burocrático é subsidiário cumpre orientações superiores; viabiliza e legitima políticas 3. Administração universitária verga-se à autoridade hierárquica do Estado domesticação da universidade UNIVERSIDADE TORRE DE MARFIM Modelo burocrático-corporativo (político legitimador do burocrático) Universidade: comunidade de pares Locus colegial 1. Burocracia legitima-se como mecanismo de reforço do poder dos profissionais Orientações burocráticas centralização, hierarquização e padronização 2. Aparelho burocrático contribui para aumentar êxito das decisões colegiais 3. Colegialidade académica contrabalança poder burocrático Articulação entre modos de regulação ação convergente As metáforas expressam modos de regulação que podem ser predominantemente burocráticos ou essencialmente políticos, ao que se adiciona o efeito de lógicas ou racionalidades baseadas no consenso ou no conflito. Trata-se de um quadro baseado no “modelo bifacial” ou no “modo díptico de funcionamento da organização” (Lima, 1992, p. 157) o qual permite explicar as articulações e desarticulações, do seguinte modo: 3 Segundo o eixo vertical, pode-se constatar a variação da ação entre as dimensões organizacionais (profissionais e burocráticas), surgindo na parte inferior, uma articulação mais forte entre essas dimensões cuja ação é de mútuo reforço e, na parte superior, desarticulações entre elas, gerando uma ação oponente entre si. Segundo o eixo horizontal, pode-se perceber a influência dos fatores consensualidade ou conflitualidade na estruturação da ação organizacional. Tendo em conta a conjugação de elementos organizacionais (dimensões versus orientações) nos vários quadrantes, é possível elaborar quatro metáforas e respetivas características a que correspondem distintas configurações de universidade. Assim, as metáforas da “universidade conclave”, da “universidade coliseu”, da “universidade agência ideológica” e da “universidade torre de marfim” (Silva, 2004, pp. 249-260) são formas de explicar cada configuração, tomando a estrutura em ação. Este modelo visa interpretar as relações entre a dimensão burocrática e a dimensão política da organização como dois sistemas distintos e com modos de atuação específicos. Pelo modus operandi destes sistemas admite-se que podem coexistir pacificamente, agindo de modo convergente, ou entrar em conflito, procurando eliminar-se mutuamente (Silva, 2004, pp. 234-237). Na análise destes dois sistemas privilegiar-se-á o equilíbrio instável entre o burocrático e o político, enquanto sistemas de reforço mútuo. Nesta orientação, um e outro “coligam-se” para viabilizar decisões e políticas, recorrendo a processos para estabelecer uma “ordem institucionalizada”, gerando-se uma lógica de cumplicidade ou de colaboração estratégica. Numa orientação mais divergente surgem arranjos em que predomina a burocracia, que pretende confrontar e anular o sistema político ou, em contrapartida, à tentativa de controlo do político, que se sobrepõe ao burocrático, influenciando os processos decisórios. Neste caso, estamos perante uma lógica de confronto onde os conflitos adquirem lugar central (Bolman & Deal, 1989, p. 109). Estes cenários ajudam a compreender as dinâmicas universitárias, através das metáforas que se seguem. 1.1. A universidade “agência ideológica” ou “missionária” Esta metáfora (Silva, 2004, pp. 251-254) incorpora dois tipos de fatores: um de natureza sociopolítica, que se relaciona com o lugar da universidade no sistema social e enquanto estrutura integrante do aparelho ideológico do Estado. No caso de Angola a universidade foi incumbida de apoiar o projeto revolucionário de construção do 4 socialismo, o que se tornou prioridade no conjunto das suas missões, existindo atualmente o desafio de reorganizar o sector para elevar a eficiência daquela numa sociedade em democratização. Outro, de natureza organizacional, ligado com o modo como a estrutura funciona e dá resposta aos objetivos impostos. Nesta dependência, a organização universitária funciona segundo uma estrutura burocrática, baseada na institucionalização dos normativos, hierarquização da autoridade e controlo, assegurando-se os níveis desejados de consensualidade e partilha de objetivos. No plano das orientações, denota-se a existência de estruturas supraorganizacionais, ligadas à tutela, que a dirigem impondo orientações políticas e objetivos operacionais. O aparelho burocrático universitário é subsidiário de uma estrutura política estatal - o ministério - e tem de funcionar de acordo com orientações superiores. Integrada num sistema centralizado, a gestão universitária tem de se “vergar” à autoridade hierárquica do Estado e reproduzir internamente as orientações recebidas. Daqui deriva a dependência da universidade que se estrutura como “locus de reprodução normativa” (Lima, 1992, p. 72), funcionando o reitor como delegado do ministro, com mandato para executar as políticas oficiais. No plano da ação, as políticas, processos e práticas tendem a ser o reflexo das orientações normativas, executadas por responsáveis nomeados segundo o princípio da lealdade. Portanto, o aparelho burocrático está configurado como um instrumento da política (Beethan, 1988 e Baudouin, 2000), cabendo-lhe a viabilização das orientações e sua legitimação, promovendo-se a conformidade institucional. Isto configura, na aceção de Clegg (1998, p. 45), uma instrumentalização da burocracia em relação à esfera política (Beetham, 1988, p. 80) tornando-a um aliado do sistema político. Nesta configuração, o aparelho burocrático atua no sentido da operacionalização das políticas, o que a torna subsidiária do sistema político, realizando uma função de socialização normativa com a qual se institucionaliza a ordem vigente. Por isso, Nizet & Pichault (2000, pp. 219-221 e 280-283) designam esta estrutura de “missionária” porque se dedica à difusão de valores que inspiram o trabalho a partir de orientações superiores e na qual a coordenação se faz por ajustamento mútuo e por estandardização, gerando-se um comportamento conformista. Segundo os mesmos, este tipo de organização recorre à mobilização ideológica visando comprometer os indivíduos e gerar maior engajamento. Uma estrutura desta natureza existe apenas em contextos de forte condicionamento ideológico. A universidade estatal em Angola continua sendo uma 5 peça importante do projeto do partido no poder, pelo que assume o papel de “agência ideológica” do regime com quem, graças a um pacto político, se legitima socialmente. Neste contexto, a gestão universitária torna-se dependente de uma regulação política por parte do Estado, gerando-se a “domesticação” da universidade (Lima, 1998, p. 72). A função da estrutura administrativa é concretizar os objetivos definidos, pelo que tende a desenvolver estratégias de isomorfismo em relação ao regime, reproduzindo estruturas, modos e princípios de atuação vigentes na esfera do governo. Nestes termos, não faz sentido falar de autonomia institucional pois não há espaço de decisão autónoma ao nível dos órgãos internos que atuam como extensões da estrutura central e o reitor mais não é do que um delegado do ministro, por este nomeado. A sua legitimidade decorre do mandato da tutela, levando-o a atuar como transmissor das orientações superiores, com a responsabilidade da sua execução. É, portanto, encarado como chefe hierárquico que tem de salvaguardar os interesses do Estado, sujeitar-se ao controlo deste, prestar contas, não reunindo condições para a produção interna de políticas. 1.2. A universidade “torre de marfim” Esta metáfora (Silva, 2004, pp. 254-256) remete para a representação da universidade como “santuário no qual o erudito segue silenciosamente o seu ofício livresco” (Wolff, 1993, p. 29) o que pressupõe considerar um certo isolamento da universidade. Esta é concebida como “comunidade de intelectuais, informalmente organizada, autogovernada e gerida por normas internas de erudição e não por normas sociais de produtividade ou utilidade” (Wolff, 1993, p. 32). Para Buarque (1994: 72), a imagem da “torre de marfim” tem a ver com o modo como a universidade funciona, fechada sobre si, mediante uma linguagem hermética criada “para dificultar o entendimento, colocar o orador no pedestal, protegê-lo das críticas, dando-lhe o monopólio do conhecimento”, o que a torna uma “ilha de saber”. A universidade revela orientações burocráticas expressas em órgãos diferenciados e hierarquizados nos quais se concentra grande parcela de poder. A colegialidade (Kast & Rosenzweig, 1976), fundada em lógicas profissionais, contrabalança o poder burocrático, gerando-se alguma conflitualidade entre o controlo burocrático e a autonomia profissional. O aparelho burocrático chega a fazer recomendações para aumentar as probabilidades de êxito das decisões profissionais, daqui decorrendo o reconhecimento do seu valor para a construção da política universitária (Peters, 1999, 6 pp. 115-116). Assim, a burocracia legitima-se perante a política como mecanismo de reforço do poder dos profissionais. A estrutura universitária está configurada segundo padrões burocráticos mas a autonomia dos docentes leva-os a agir de duas maneiras: resistem e contrariam estas lógicas se interpretam a intervenção da administração como entraves, reduzindo a iniciativa dos burocratas; reforçam as medidas burocráticas se estas trazem benefícios para a decisão, buscando o apoio dos burocratas. Nesta configuração, os docentes demonstram forte corporativismo, pretendendo desenvolver as suas atividades sem interferências da administração burocrática. A coexistência das duas dimensões (burocrática e colegial) gera um modo de regulação híbrido apoiado em mecanismos burocráticos e em procedimentos de natureza profissional que fazem com que o exercício do poder seja resultado de compromissos prévios, pacificando-se as relações entre académicos e burocratas. A organização procura funcionar na base de consensos, da conciliação de regras e da tomada de decisões em órgãos apropriados, evitando o conflito. Os profissionais não desejam ser incomodados no seu reduto e nem pretendem criar entraves ao processo administrativo. Deste modo, a produção de decisões e políticas fica reservada às instâncias próprias onde se admite a representação dos diferentes corpos da estrutura. Lima (1998, p. 71) caracteriza esta estrutura como “um sistema não participativo ou, quando muito, de participação cooptativa limitada a certas categorias de actores.” Nesta configuração a gestão faz-se apelando a critérios de engajamento fundados nas solidariedades de grupo e nos objetivos de missão. Os profissionais confiam mais nos mecanismos estabelecidos do que nos dispositivos criados pela administração por considerarem que estes não contemplam a especificidade do seu trabalho. O reitor surge como um “funâmbulo” que tenta conciliar os interesses da administração burocrática com os interesses colegiais da comunidade de pares, procurando manter a “harmonia organizacional” para que a sua legitimidade não seja beliscada e a sua gestão possa aproveitar os recursos institucionais providos pelos dois modos de regulação. 1.3. A universidade “conclave” Esta imagem de universidade (Silva, 2004, pp. 256-258) é congruente com a de uma estrutura concebida por e para profissionais que nela exercem o ofício ao abrigo das ingerências de outros atores. Assim, o conclave é a assembleia em que se tomam as 7 decisões fulcrais nas quais apenas alguns membros da comunidade participam. Por analogia, a organização universitária seria a instância de participação de algumas categorias de profissionais (ou seus representantes) para deliberarem e decidirem, recorrendo ao seu poder pericial, constituindo uma espécie de “reduto tecnocrático”. A organização constitui uma estrutura balcanizada: de um lado, os órgãos da administração, com as suas lógicas e critérios fundados no modo burocrático de regulação, cuja função essencial é manter a ordem e a estabilidade através da padronização e do controlo. Do outro, uma estrutura profissional integrada pelos docentes, dotados de perícia profissional que lhes confere poderes para resistir aos critérios burocráticos e impor as lógicas académicas. Estas estruturas competem entre si pelo privilégio de estabelecer os mecanismos de regulação. A consensualidade vigora como condição de entendimento e de interação entre os atores que partilham valores comuns e em função dos quais constroem o sentido de comunidade. A formalidade e normatividade burocráticas permitem inculcar valores e consensualizar objetivos cuja determinação está a cargo das hierarquias superiores. Isto pressupõe a existência de níveis de autoridade exercida por meio de mecanismos legais. Nesta organização cultiva-se uma racionalidade técnica apriorística assente nos princípios da autoridade hierárquica e do respeito aos objetivos fixados, entendidos uniformemente. Os mecanismos da centralização e do controlo ajudam a produzir os níveis de consenso que garantem a uniformidade e a unidade dos critérios pelos quais se pauta a autonomia institucional dos órgãos. A autonomia decorre da perícia profissional dos docentes que lhes confere discricionariedade e competência para decidir. Valoriza-se o poder profissional legitimado pela competência com a qual contrabalançam a influência da administração burocrática. Os dois poderes entram em tensão porque, de um lado, prevalecem normas e valores de índole burocrática e, do outro, sobressaem critérios e modos de atuação profissionais que legitimam as decisões de natureza científica mais congruentes com a índole cognocrática da universidade. Nesta organização reforça-se a ação dos órgãos académicos de decisão e participação o que exprime o predomínio do profissional sobre o burocrático que aparece como estrutura auxiliar e de suporte aos processos de decisão e implementação. Uma vez que estes órgãos se ocupam essencialmente das questões da docência e da 8 investigação, os seus membros procuram estabelecer uma racionalidade técnicocientífica que confere o sentido de comunidade. Se, de um lado, o sentido corporativo dos docentes os leva a desenvolver lógicas para salvaguardar os seus interesses, preservando o seu poder e legitimando a sua ação enquanto “corpo” capaz de se mobilizar para lutar por mais autonomia, do outro, encontramos uma estrutura burocrática ciosa do controlo e que desencadeia mecanismos para restringir a produção das políticas, tornando-se um entrave ao jogo político (Terrén, 1999). O recurso à lei e ao orçamento indicia como a burocracia pode limitar a ação dos académicos impondo critérios de gestão externos ao campo do conhecimento ou promovendo um controlo burocrático das políticas. As lógicas dos atores integram-se e harmonizam-se como corolário de um modo de regulação colegial fundado no consenso e pressupondo a negociação de agendas divergentes. Este fator possibilita a expressão de lógicas democráticas que fundamentam a tomada de decisões em órgãos colegiais. Os docentes e os órgãos são forçados a desenvolver uma cultura democrática mesmo quando a rigidez burocrática tenta impor as regras da autoridade hierárquica ou da conformidade legal. O reitor, cuja legitimidade decorre da capacidade de mobilizar quer as lógicas colegiais quer as burocráticas, surge como um árbitro, tentando conciliar os interesses, aproveitando a força pericial dos pares e o conforto das normas burocráticas para legitimar decisões. O seu compromisso é assumido em relação à produção autónoma de políticas segundo as necessidades de desenvolvimento da instituição pelo que, por vezes, tem de se confrontar com as lógicas burocráticas e com o poder da tutela. 1.4. A universidade “coliseu” A abordagem da universidade à luz desta metáfora (Silva, 2004, pp. 258-260) remete à representação do coliseum romano da antiguidade onde se realizavam combates. A imagem do coliseu destaca o confronto que caracteriza os processos de debate político. A universidade “coliseu” é uma expressão da possibilidade de se transformar numa organização de produção autónoma de políticas ou, como afirmou Lima (1998, p. 72) “na forma de governação democrática e participativa (participação no processo de decisão) representando a universidade como uma ‘arena política’ constituída por atores, projectos e interesses diversos e eventualmente antagónicos, com liberdade de expressão, democraticamente dirimidos por processos de participação e de 9 escolha democrática, em órgãos de governo participados, assemelhando-se a […] uma comunidade governada em termos democráticos.” Esta conceção releva elementos essenciais que configuram a universidade como um locus de produção de políticas, dotado de autonomia, capaz de definir as suas linhas de rumo a partir de processos participativos e conflituais. Fundado no modelo políticoparticipativo, a organização universitária assemelha-se a uma estrutura complexa de órgãos e relações, debilmente articulados (Weick, 1976, pp. 4-6; Balderston, 1995, p. 102), que se confrontam na tomada de decisão. As fontes de conflito residem no antagonismo entre a regulação burocrática e a autonomia dos órgãos e atores, na incompatibilidade entre a perícia académica e o controlo burocrático e na disputa de poder entre os burocratas e os profissionais. Esta imagem de universidade evoca a conflitualidade resultante da multiplicidade de interesses e lógicas que se confrontam pois disso depende a capacidade de influência sobre as políticas. Outra característica é a existência de ambiguidades respeitantes aos objetivos (Weick, 1995, p. 91-92; Baldridge et al., 1978, p. 20-21) o que conduz a que estes sejam interpretados de diferentes maneiras, criando oportunidades para a elevação dos níveis de consenso face à presença de múltiplas racionalidades. Os departamentos são centros de atividades profissionais onde interagem indivíduos com elevada perícia profissional e que controlam as condições do exercício da sua atividade. Assim, a atividade departamental constitui o centro da vida académica e o ponto de confluência das decisões e políticas académicas e a autonomia académica constitui uma condição importante para a produção de políticas, contribuindo para reduzir o poder burocrático da administração. Neste tipo de configuração, o conflito é vital para a dinâmica organizacional (Bush, 1986; Baldridge, 1971, p. 203), ativando e mobilizando estruturas e atores para a participação nos processos de decisão. Aqui, a dimensão política entra em choque com o aparato burocrático, procurando abrir espaços de participação e de expressão de interesses e lógicas que divergem dos padrões burocráticos. Processa-se uma rutura entre o político, considerado força impulsionadora, e o burocrático, encarado como força de bloqueio, pelo que as decisões estratégicas resultam de processos negociais traduzidos em compromissos que definem a ordem institucional. Os atores universitários, dotados de interesses, participam no exercício do poder através de estratégias com as quais alimentam o jogo político. Este exprime-se como um 10 conjunto de “jogos de poder” (Mintzberg, 1995, pp. 344-348; Bolman & Deal, 1989, p. 120; Friedberg, 1995, p. 231) onde se disputam recursos e capacidade de influência nas decisões, em relação às quais os profissionais querem ter uma intervenção decisiva. Esta atividade política faz surgir coligações de interesses que alimentam expectativas quanto ao grau de influência que podem exercer no processo decisório. A governação universitária, fundada na participação dos membros da comunidade académica, é o exemplo de como a democracia pode contribuir para legitimar os processos decisórios e os próprios atores universitários que, enquanto estrategas (Silva, 2004, p. 241), são uma peça-chave importante para a qualidade das políticas. Apesar da fragmentação estrutural, devida à autonomia e ao estado de “conflito endémico”, o cenário da arena política (Millett, 1978; Baldridge, 1971; Bush, 1986; Clegg, 1990) parece compaginar-se melhor com o de “uma organização cívica onde se busca a cidadania organizacional” (Lima, 1998, p. 72; Estêvão, 2002, p. 89) na base da afirmação de projetos institucionais próprios que mobilizem a capacidade negocial dos vários intervenientes. Neste âmbito, a burocracia é o mecanismo através do qual os atores são mobilizados e integrados nas instâncias de decisão legitimando os processos e os resultados e assegurando a pluralidade necessária ao diálogo democrático. Na opinião de Beetham (1988, pp. 166-167), “a administração burocrática não é antidemocrática por inerência. As suas capacidades organizacionais só passam a sê-lo quando protegidas pelo secretismo. [...] (Assim) uma burocracia que opere dentro de uma ordem democrática é particularmente rica.” Isto faz dela um adequado sistema de gestão no sentido de acomodar os vários interesses. Nestes termos, o reitor é o líder e primus interpares, com uma legitimidade decorrente do mandato para o qual foi escolhido pelos pares, assumindo um compromisso com o projeto sufragado, cujo sucesso dependerá, também, da sua capacidade de mobilizar o aparato burocrático. Este será cooptado para viabilizar as decisões da esfera política que acabam obtendo cobertura legal pois esta é uma condição para a legitimação do poder. O reitor é o político e o académico que vela pelo interesse institucional, esperando-se que, na opinião de Romêo (1995, pp. 35-36), concentre a sua atenção no estabelecimento da agenda da instituição e na visão do projeto da universidade com o qual se deve comprometer. A ação do reitor direciona-se para dentro, no sentido de salvaguardar os interesses da academia, expressos através de projetos próprios, ao contrário do que acontece 11 quando a dinâmica organizacional se baseia numa lógica de dependência burocrática onde, o que conta é o modo como o reitor responde aos interesses da tutela. O papel do reitor em cada uma destas configurações fica retratado no Quadro II. Quadro II - O papel do reitor na gestão universitária Desarticulação entre modos de regulação ação divergente Processos Consensualidade Normatividade Objectivos claros e compartilhados UNIVERSIDADE CONCLAVE Orientações PROFISSIONAIS Autonomia Colegialidade Adhocracia Autorregulação Critérios académicos Compromisso com a ciência Reitor: árbitro e moderador Apelo a lógicas burocráticas e políticas Reitor: primus inter pares Político e académico autónomo Conciliador de interesses, aproveitando perícia dos pares e normas burocráticas Legitimidade capacidade de acionar lógicas colegiais e burocráticas Compromisso produção autónoma de políticas em confronto com lógicas burocráticas Capacidade de mobilizar ou neutralizar o aparato burocrático estratega Legitimidade mandato para o qual foi escolhido pelos pares Compromisso projeto sufragado e estabelecimento da agenda e do projeto educativo da universidade UNIVERSIDADE AGÊNCIA IDEOLÓGICA UNIVERSIDADE TORRE DE MARFIM Reitor: delegado do ministério Executor das políticas da tutela Reitor: “funâmbulo” negociador Conciliador de interesses Transmissor das orientações superiores Chefe hierárquico burocrata preservar interesses do Estado Legitimidade mandato da tutela Compromisso apelo às normas burocráticas para gerar conformidade com as orientações superiores Mobiliza lógicas burocráticas e interesses colegiais dos pares Legitimidade articular burocracia e colegialidade: harmonia organizacional" Compromisso aproveitar recursos providos por ambos os modos de regulação para viabilizar as políticas BUROCRÁTICAS Hierarquização Centralização Controlo estatal Socialização normativa Padronização Compromisso com a ordem social Conflitualidade Ambiguidade Objectivos ambíguos e incertos UNIVERSIDADE COLISEU Articulação entre modos de regulação ação convergente Considerações finais O regime de tutela no ensino superior em Angola tem implicações na gestão universitária e na atividade dos reitores, cuja ação tem sido influenciada pelas exigências e normativos do MESCT. Trata-se, no contexto de uma administração burocrática centralizada, de uma “gestão por controlo remoto”, que vem coartar a autonomia das universidades públicas, convertendo-as em extensões do Estado o que abre espaço a uma intervenção excessivamente reguladora e controladora da tutela, justificada pela necessidade de estabelecer uma certa ordem na gestão do sistema. Assim, a gestão universitária, influenciada pelas lógicas centralizadoras reforçadas pelos princípios do Estado regulador e avaliador, obriga os reitores a agir no sentido de executar as determinações ministeriais e seguir as instruções superiores, o que gera uma cultura de obediência. Esta “gestão à pressão”, sujeita às lógicas da uniformidade e do controlo, restringe a margem de autonomia dos reitores e a sua capacidade de influência sobre a dinâmica universitária deixando a instituição refém do 12 Estado. Deste modo, é colocada em causa a ideia de autonomia universitária a qual requer outro tipo de gestão, de natureza emancipatória e liberta das peias tutelares, permitindo à universidade estatal, assumida como locus de produção de políticas, salvaguardar os seus próprios interesses e projetos. Neste sentido, os reitores seriam encarados como representantes dos interesses académicos, decidindo em contexto de colegialidade e assumindo as necessidades e interesses da universidade como critérios para uma ação contextualizada em prol do desenvolvimento da instituição, o que os obrigaria a demarcar-se da tutela, instituindose uma “gestão do interesse doméstico”. Isto corresponde à conceção da universidade como “arena política” (Baldridge, 1971; Bush, 1986) onde os atores dispõem de suficiente autonomia para decidir em função de interesses, objetivos e projetos que comprometem a universidade face à comunidade que serve. Aos reitores cabe assumir o compromisso com o desenvolvimento da instituição numa base colegial e implantar um estilo de gestão baseado na participação dos docentes, considerados profissionais dotados de perícia e autonomia. Esta atitude será um passo importante para o resgate da autonomia de que as universidades estatais necessitam para a reafirmação da gestão democrática. Até lá, os reitores viverão no “fio da navalha”, tendo de atuar ora como representantes do ministério, de quem são delegados, ora como representantes dos pares da academia de que são membros de pleno direito. Neste caso, seriam os guardiães dos interesses da comunidade académica, agindo numa lógica de afirmação dos interesses da universidade segundo o seu projeto de desenvolvimento, assumido na base da responsabilidade perante a tutela. A assunção do reitor como primus interpares remete-nos para a repolitização da gestão universitária, o que permite contrariar a tendência para a governamentalização da universidade (Silva, 2004, p. 408) e contribuir para a institucionalização de uma gestão emancipadora, fundada na ética de serviço público e baseada num plano estratégico de desenvolvimento construído segundo os princípios da autonomia e baseado nos interesses intrínsecos da universidade. Por outro lado, o restabelecimento do equilíbrio entre o poder político da tutela e o poder académico (Simão, Santos & Costa, 2002, p. 71) que sustenta a dinâmica organizacional é uma condição vital para revalorizar a função dos reitores e restaurar a autonomia universitária pois é esta a dimensão que define a essência de uma universidade. Assim, por mais centralizadora que seja a administração, haverá sempre espaço para a afirmação do projeto académico de cada 13 universidade de que o reitor é o seu principal responsável. Este deixará de ser apenas o representante da tutela na universidade para se assumir como líder que define, orienta e atua segundo um programa estratégico que concretiza a missão da universidade. Referências Bibliográficas Balderston, F. E. (1995). Managing Today’s University. Strategies for Viability, Change and Excellence. San Francisco: Jossey-Bass. Baudouin, J. (2000). Introdução à Sociologia Política. Lisboa: Estampa. Baldridge, J. V. (1971). Power and Conflict in the University. New York: John Wiley & Sons. Baldridge, J. V., Curtis, D. V., Ecker, G., & Riley, G. L. (Eds.) (1978). Policy Making and Effective Leadership. San Francisco & London: Jossey-Bass. Beetham, D. (1988). A Burocracia. Lisboa: Estampa. Bolman, L. G & Deal, T. E. (1989). Modern Approaches to Understanding and Managing Organizations. San Francisco: Jossey-Bass Publishers. Buarque, C. (1994). A Aventura da Universidade. São Paulo: Universidade Estadual Paulista. Bush, T. (1986). 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