A7
ID: 58434984
19-03-2015
Tiragem: 34477
Pág: 22
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Diária
Área: 25,70 x 30,97 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 1 de 3
“É insensato dizer que os credores
nunca serão penalizados”
Lee Buchheit, advogado especialista
em reestruturações de dívida soberana,
avisa que quando os juros subirem,
o tema dos perdões de dívida regressa
Entrevista
Sérgio Aníbal texto
Pedro Elias foto
Se há alguém de quem os hedge
funds que investem em obrigações
de países em crise não querem
ouvir falar é de Lee Buchheit. Há
trinta anos que este advogado
norte-americano, da firma Cleary
Gottlieb, representa Estados em
aperto financeiro que querem
reestruturar as suas dívidas. A
sua função, por isso, tem sido a
de maximizar as perdas que os
credores sofrem, em benefício
dos cofres públicos quase vazios
dos seus clientes. Entre outros, já
defendeu os interesses do Estado
russo, mexicano, coreano, filipino,
iraquiano e islandês. Em 2012,
esteve na Grécia a colaborar na
única reestruturação de dívida
feita na zona euro. Num artigo
publicado em 2013 no Financial
Times, um advogado de uma firma
rival dizia sobre Lee Buchheit
que este “é admirado por muitos
e detestado por alguns, há quem
ache mesmo que ele é o diabo
reencarnado”. De visita a Lisboa
na semana passada para participar
na conferência “O futuro da
dívida soberana na Zona Euro”,
organizada pela Católica Global
School of Law, Lee Buchheit explica
porque é que os Estados, por vezes,
têm de reestruturar a sua dívida.
Parece que criou alguns
inimigos ao longo da sua
carreira.
Inevitavelmente. Aquilo que fiz nos
últimos trinta anos, reestruturando
dívida soberana em todo o
Mundo, torna isso inevitável. Uma
reestruturação de dívida é uma
experiência bastante desagradável
para um credor e também é uma
experiência desagradável para
o devedor e para os cidadãos do
país devedor. Implica reduzir os
pagamentos, adiar pagamentos,
reduzir juros. As pessoas vão ficar
descontentes? Sim, de vez em
quando, mas essa é a natureza
deste tipo de situações. Quando o
Estado ou qualquer devedor não
consegue pagar aquilo que deve,
não tem outra escolha que não seja
a de reestruturar. Essa citação não
me surpreende, pelo contrário,
ficaria surpreendido se fosse
diferente.
Deve ter advogados difíceis do
outro lado, a litigar contra si.
Sim, sem dúvida. Os credores
contratam os melhores
conselheiros que podem. Por
isso, é uma tarefa difícil. Mas
quando as coisas são feitas do
modo certo e toda a gente se
porta profissionalmente, não há
quaisquer ataques pessoais A maior
parte das pessoas que trabalha
neste campo respeitam-se umas às
outras.
Porque é que escolheu ficar do
lado dos Estados que querem
reestruturar a dívida e não do
lado dos credores?
Porque é muito mais divertido. O
objectivo de um credor é apenas
o de ser pago o máximo e o mais
rápido possível. É um objectivo
bastante básico. Para o Estado
devedor, não. É preciso levar em
conta os cidadãos, a reputação
com que o país fica após a crise
e as consequências geopolíticas.
É muito mais interessante e
complexo.
E o jogo político que os
Governos também têm de jogar,
não o incomoda?
Não, pelo contrário. Até gosto. E
o que é mais fascinante é como os
países são tão diferentes uns dos
outros na forma como encaram
este tipo de crises. Por exemplo,
lembro-me de na Coreia do Sul, em
1997, foram colocados receptáculos
nas ruas, as pessoas passavam e
deixavam lá os anéis de casamento.
Porquê? Porque sentiam que era
uma vergonha tão grande o país
não conseguir pagar as suas dívidas
que achavam que tinham de dar
as suas próprias jóias para tentar
resolver o problema. E depois há
outros países, onde francamente,
tudo parece um jogo. De anos
a anos entra-se em default e
renegoceia-se. É mais popular que
futebol.
E a zona euro como é que é?
Em 2010, recusou-se uma
reestruturação na Grécia, mas
que acabou por ser feita em
2012.
Houve uma enorme resistência
na Grécia, na Primavera de 2010,
a reestruturar a dívida. Por três
razões. Primeiro havia medo de
contágio, de que se reestruturasse
a dívida grega e os investidores
em Portugal, Itália, Espanha
começassem a questionar-se se não
podia acontecer também nesses
países e retirassem o capital. Claro
que agora sabemos que o contágio
acabou por acontecer, mesmo sem
reestruturação. O segundo motivo
foi que a maior parte dos títulos
de dívida gregos eram detidos por
bancos do Norte da Europa. Por
isso, reestruturar as obrigações
gregas provocaria um drama
nos bancos alemães, franceses e
holandeses. Os Estados poderiam
ter de intervir para recapitalizar
esses bancos. Era mais aceitável do
ponto de vista político emprestar
o dinheiro à Grécia para que ela
pudesse pagar as suas dívidas
aos bancos do que seria ter de
recapitalizá-los. O terceiro motivo —
“Há coisas más
que acontecem
na vida. Haverá
alturas em que um
Estado não pode
efectivamente
pagar aquilo
que deve”
e esta era a visão do BCE — era que
a união monetária europeia ainda
estava numa fase inicial e se se
deixasse um dos Estados membros
fazer uma reestruturação poderse-ia manchar de forma indelével
o próprio euro, ao ponto de as
pessoas deixarem de querer ter
euros.
O que é que mudou em 2012?
O problema é que, no Verão de
2011, já era absolutamente claro
que a dívida grega era insustentável
e que uma reestruturação de dívida
era inevitável. E a consequência
da recusa anterior em reestruturar
foi que entretanto se pegou no
dinheiro dos contribuintes e
emprestou-se a estes países para
pagar por inteiro e a tempo aos
detentores dos títulos de dívida.
A dívida não se evaporou, ela
simplesmente migrou das mãos
dos detentores de obrigações para
os ombros dos contribuintes. E
foi quando isso ficou claro para
a opinião pública, que se passou
em 2012 de uma política em que
uma reestruturação era recusada
para uma política em que uma
reestruturação era ordenada, com
um corte nominal da dívida de pelo
menos 50%. No final foi 53,5%.
E acredita que a Grécia vai
continuar a ser caso único?
O que foi dito na altura era que a
Grécia era “única e excepcional”.
Eu acredito que sim e que vai
continuar a ser, até ao ponto em
que surja um outro caso “único e
excepcional”.
ID: 58434984
19-03-2015
Tiragem: 34477
Pág: 23
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Diária
Área: 16,50 x 30,68 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 2 de 3
“A dívida não
se evaporou, ela
simplesmente
migrou das mãos
dos credores para
os contribuintes”
Entretanto na Grécia, uma
nova reestruturação no sector
privado já não resolve nada.
Em Maio de 2010, havia 300 mil
milhões de euros de dívida grega
nas mãos do sector privado.
Agora têm 30 mil milhões. Ou
seja, 90% dessa dívida ou foi
paga ou reestruturada. O stock
de dívida total não ficou mais
pequeno, antes pelo contrário. O
que aconteceu é que os credores
agora estão no sector oficial, é o
FMI, são os parceiros europeus.
São eles que agora têm de discutir
uma reestruturação. Isto é, uma
reestruturação talvez caótica com o
sector privado foi evitada em 2010
à custa de uma discussão política
talvez ainda mais caótica em 2015
sobre a reestruturação, que é o que
temos agora.
A Grécia parece estar com
problemas de tesouraria. Qual
seria o impacto de um default
acidental na dívida grega
durante as próximas semanas?
Depende de quão acidental seria,
mas pode ser grave. Espero que
cheguem a um acordo e as tranches
dos empréstimos do FMI e UE
possam chegar à Grécia e consigam
evitar esse cenário.
Acha provável que um país
como Portugal, com a dívida
que tem, possa ter de vir a
efectuar uma reestruturação de
dívida no futuro?
O risco está em que todos os países
desenvolvidos, incluindo Portugal,
têm agora uma dívida acumulada
que é muito maior do que era há
cinco ou seis anos atrás. A dívida
pública média na zona euro em
2007 estava próxima de 60% do
PIB. Agora é de 93%. Como é que se
consegue suportar isto nesta fase?
A resposta é: taxas de juro a zero.
Os bancos centrais têm mantido
uma política de taxas de juro quase
nulas durante os últimos seis anos,
por isso o encargo corrente com
essa dívida não é tão oneroso.
Imagine o que aconteceria se os
países tivessem de suportar o
encargo desta dívida se as taxas
de juro se aproximarem da média
histórica que é mais próxima de
5%. Isso retiraria fundos de outras
funções do Estado, sejam as
pensões, a educação ou a saúde, de
uma forma que causaria problemas
a nível social. As taxas de juro zero
não vão durar para sempre.
E aí, o debate sobre a
reestruturação de dívida voltará
em força como tema?
É provável. Eu vejo que toda
a gente espera que não, mas é
provável.
Qual é que acha que deve ser a
atitude de um país em relação
a uma reestruturação? Encarála como uma vergonha que se
deve evitar a todo o custo ou
vê-la como um processo que se
pode repetir diversas vezes? Ou
alguma coisa no meio?
Um país quando pede dinheiro
emprestado, deve fazê-lo com a
expectativa completa de que terá
de o devolver. Não se consegue ter
um sistema financeiro funcional a
não ser que um investidor tenha
um compromisso forte de que
vai ter de volta o dinheiro que
emprestou. Dito isto, há coisas
más que acontecem na vida. Aos
indivíduos, às empresas e aos
Estados. Haverá alturas em que um
Estado não pode efectivamente
pagar aquilo que deve, a não ser
que transfira recursos de outras
funções de uma maneira que
quebra o pacto social existente.
E todos, sejam os credores sejam
os Estados, devem perceber isso.
Confrontados com esse tipo de
situação, os Estados não têm outra
opção que não seja pedir um alívio
aos seus credores.
E um país não deve sair
penalizado por políticas erradas
do passado?
Um país nessa situação vai ter
sempre de aplicar austeridade
aos seus cidadãos. Por isso,
eles darão o seu contributo.
Mas algumas vezes isso precisa
de ser acompanhado por uma
contribuição dos credores.
Quando o FMI chega um país, o
que faz quando aplica a receita da
austeridade é colocar o encargo
nos ombros de uma das partes.
Às vezes é preciso que a outra
parte também contribua. É tão
insensato dizer que os credores
nunca vão ser tocados, como
seria dizer que os credores vão
sempre correr todos os riscos e
nunca haverá um ajustamento
orçamental. Há duas partes
interessadas e ambas não podem
fugir à responsabilidade de
resolver este tipo de problemas.
Depois do que aconteceu com
a derrota da Argentina nos
tribunais norte-americanos, os
países estão menos seguros face
aos credores no caso de uma
reestruturação de dívida?
O que a Argentina mostrou é
o risco que constituem com
os credores que se recusam a
aceitar uma reestruturação.
Não há nenhum código de
falências dos Estados que possa
forçar um credor a aceitar uma
reestruturação e tem sido feito
um grande esforço desde 2002
para tentar encontrar formas de
garantir que uma supermaioria
dos credores, através de uma
decisão maioritária mas não
unânime, possa forçar todos os
credores a uma decisão. Porque
se nem todos os credores ficam
forçados a aceitar a reestruturação
isso constitui, não só um risco
para o Estado, como também para
os outros credores. Assistiu-se a
isso na Argentina no último ano.
Os credores que não aceitaram
a reestruturação conseguiram
nos tribunais uma decisão que
impede a Argentina de pagar aos
seus outros credores. Eu penso
que os mercados perceberam
que um poder demasiado grande
dos credores que não aceitam
a reestruturação constitui uma
ameaça para todo o mercado.
ID: 58434984
19-03-2015
Tiragem: 34477
Pág: 1
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Diária
Área: 5,24 x 6,87 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 3 de 3
“É insensato dizer
que credores nunca
serão penalizados”
Lee Buchheit é advogado e
trabalha para Estados que
reestruturam dívida p22/23
Download

“É insensato dizer que os credores nunca serão penalizados”