Faculdade Integração Zona Oeste – FIZO Alquimy Art Curso de Especialização em Arteterapia Pós-Graduação lato sensu ARTETERAPIA E A MULHER: RESGATE DO POTENCIAL CRIATIVO DE MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E SEXUAL Melina Del’ Arco de Oliveira São Paulo, SP 2010 MELINA DEL’ ARCO DE OLIVEIRA ARTETERAPIA E A MULHER: RESGATE DO POTENCIAL CRIATIVO DE MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E SEXUAL Monografia apresentada à FIZO - Faculdade Integração Zona Oeste, SP e ao Alquimy Art, SP, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Especialista em Arteterapia. Orientador: Prof. Dra. Cristina Dias Allessandrini São Paulo, SP 2010 OLIVEIRA, Melina Del’ Arco Arteterapia e a Mulher: Resgate do Potencial Criativo de Mulheres vítimas de violência doméstica e sexual/ Melina Del’ Arco de Oliveira; orientadora: Prof. Dr. Cristina Dias Alessandrini – Osasco; [s.n.], 2010. 91p. Monografia (Especialização em Arteterapia) – FIZO, Faculdade Integração Zona Oeste. Alquimy Art, SP. 1. Arteterapia 2. Violência 3. Psicologia Analítica Alquimy Art ARTETERAPIA E A MULHER: RESGATE DO POTENCIAL CRIATIVO DE MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E SEXUAL Monografia apresentada pela aluna Melina Del’ Arco de Oliveira ao curso de Especialização em Arteterapia, recebendo a avaliação da Banca Examinadora constituída pelos professores: __________________________________________________________ Profa. Dra. Cristina Especialização. Dias Allessandrini, Orientadora e Coordenadora __________________________________________________________ Profa. Ms. Deolinda F. Fabietti, Coordenadora Local e Supervisora. da Dedico este trabalho Aos meus pais Márcio e Maria José e ao meu irmão Renan e a sua noiva Maristela pela simples e grande presença em minha vida e por fazê-la ter tanto sentido. Ao meu amor Sérgio, grande companheiro nesta caminhada, luz da minha alma. À Deus, grande inspirador e condutor do meu caminho em direção à minha essência. Agradecimentos À minha orientadora Prof. Dra. Cristina Dias Alessandrini por seu zelo, cuidado e incentivo, e sobretudo pela confiança e liberdade em me deixar ser... À Prof. Ms. Deolinda Fabietti por sua atenção, disposição, e pela leitura cuidadosa em relação ao processo de escrita. Ao meu amor Sérgio Luiz Alécio Filho pela dedicação e ajuda para desenvolver este trabalho, me inspirando com leituras e sugestões carregadas de sentidos. À psicóloga junguiana Liliana Abeid por compartilhar um momento tão especial de minha vida e me ajudar a concluir uma vivência tão importante da minha formação profissional. Às amigas da Pós-graduação, por compartilharem suas emoções, suas idéias, seu amor pela Arteterapia e apoio ao longo deste processo. Às mulheres participantes deste estudo que são a razão de ser deste trabalho. À todas a minhas amigas mulheres inspiradoras que tem em meu coração um lugar especial: Ana Emília, Gabriela, Leandra, Milena, Nenis, Poliana, Renatinha e Raylla. Mas o que pode um homem ‘criar’ se por acaso não for um poeta? (...) Se você não tiver absolutamente nada para criar, então talvez crie a si próprio. (Jung, 1971) Resumo OLIVEIRA, M. D. Arteterapia e a Mulher: Resgate do Potencial Criativo de Mulhers vítimas de violência doméstica e sexual. 2010. Monografia (Especialização em Arteterapia) – FIZO, Faculdade Integração Zona Oeste. Alquimy Art, São Paulo. A violência doméstica e sexual contra mulheres é um desafio em debate há anos no âmbito de pesquisa nacional e internacional. Seus números são expressivos e suas consequências devastam física e emocionalmente muitas mulheres. A Arteterapia é um processo em que se utilizam diversos recursos artísticos com finalidade terapêutica permitindo a ampliação da consciência, o aprofundamento em si-mesmo e a reconstrução da autoestima. A arteterapia fundamentada na Psicologia Analítica se farta dos recursos expressivos com o objetivo de permitir a expressão e comunicação de símbolos da energia psíquica. O objetivo deste projeto é permitir que as mulheres vitimizadas possam resgatar seu potencial criativo a partir da ampliação da percepção subjetiva sobre si mesmas e sobre a violência. As participantes deste estudo são vítimas de violência física, psicológica ou sexual perpetrada por parceiro íntimo, provenientes de um Serviço de atendimento a mulheres vitimizadas de um Hospital Geral, em parceria com a Delegacia de Defesa da Mulher. O grupo de arteterapia aconteceu semanalmente, perfazendo 28 encontros. As técnicas expressivas foram aplicadas conforme um modelo de expressão e interação em níveis, o Continuum das Terapias Expressivas. O desenvolvimento da oficina arterapêutica seguiu uma metodologia denominada Oficina Criativa®. A análise de dados desta pesquisa-intervenção de base qualitativa foi feita a partir da análise compreensiva das produções artísticas de uma participante (Estudo de Caso) sob o referencial da Psicologia Analítica e da análise comparativa do Desenho da Figura Humana desta participante. Pode-se perceber que o abuso/violência são geradores de um importante complexo estagnador da energia psíquica da mulher. O resgate do potencial criativo iniciou a partir de dois pólos: função Eros integradora (criativa) e função discriminadora de Logos. Foi proporcionado o início de uma nova relação entre a mulher vitimizada com seu masculino interno. Um feminino antes cativo ao masculino poderia ser liberto a partir dos novos meios de se relacionar engendrados pela função Eros. Ao final do processo percebeu-se maior integração e menor rigidez psíquica, permitindo à mulher maior abertura ao contato. Palavras-chave: Arteterapia; Violência contra mulher; Psicologia Analítica. LISTA DE FIGURAS página Figura 1 – Desenho da Figura Humana I (sexo feminino) produzido por Rose ... 42 Figura 2 – Desenho da Figura Humana II (sexo feminino) produzido por Rose .. 42 Figura 3 – Desenho produzido por Rose ............................................................. 45 Figura 4 – Desenho produzido por Rose ............................................................. 45 Figura 5 – Modelagem produzida por Rose ......................................................... 48 Figura 6 – Modelagem produzida por Rose (sequência 1) .................................. 49 Figura 7 – Modelagem produzida por Rose (sequência 2) .................................. 49 Figura 8 – Modelagem produzida por Rose (sequência 3) .................................. 49 Figura 9 – Cenário construído para vivência expressiva ..................................... 54 Figura 10 – Construção produzida por Rose ....................................................... 58 Figura 11– Desenho da Figura Humana (sexo masculino) produzido por Rose.. 60 Figura 12 – Desenho produzido por Rose ........................................................... 61 Figura 13 – Desenho da Figura Humana (final – sexo feminino) produzido por Rose ..................................................................................................................... 68 LISTA DE ANEXOS página ANEXO A Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.................. 83 ANEXO B Conto O Barba Azul ........................................................ 84 ANEXO C Conto A Moça Tecelã...................................................... 89 SUMÁRIO 1. APRESENTAÇÃO ................................................................................................11 2. INTRODUÇÃO ......................................................................................................14 2.1. O Feminino Devastado: Violência Doméstica e Sexual contra a Mulher ........14 2.2. Concepções Históricas, Interventivas e Teóricas em Arteterapia...................18 2.3. Diálogos sobre o feminino entre Gustav Klimt e a Psicologia Analítica ..........26 3. OBJETIVO ............................................................................................................31 3.1 Objetivos Gerais ..............................................................................................31 3.2 Objetivos específicos .......................................................................................31 4. METODOLOGIA ...................................................................................................32 4.1 Participantes ....................................................................................................32 4.2 Material e Métodos ..........................................................................................32 4.3 Procedimentos da Intervenção Arteterapêutica ...............................................34 4.4. Procedimento de Avaliação do Processo Arteterapêutico ..............................35 4.5. Procedimentos de Análise dos Dados ............................................................35 4.6 Procedimentos Éticos ......................................................................................36 5. RESULTADOS E DISCUSSÃO ............................................................................37 5.1 Dados descritivos sobre o grupo .....................................................................37 5.2. O Processo Arteterapêutico............................................................................38 5.3. Estudo de Caso ..............................................................................................40 5.4. Análise Comparativa do Desenho da Figura Humana ....................................68 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................75 7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .....................................................................79 ANEXOS ...................................................................................................................83 Apresentação 11 1. APRESENTAÇÃO Mirem-se no exemplo Daquelas mulheres de Atenas Vivem pros seus maridos Orgulho e raça de Atenas Quando amadas se perfumam Se banham com leite, se arrumam Suas melenas Quando fustigadas não choram Se ajoelham, pedem imploram Mais duras penas, cadenas ... Quando eles embarcam soldados Elas tecem longos bordados Mil quarentenas E quando eles voltam, sedentos Querem arrancar, violentos Carícias plenas, obscenas ... Quando eles se entopem de vinho Costumam buscar um carinho De outras falenas Mas no fim da noite, aos pedaços Quase sempre voltam pros braços De suas pequenas, Helenas ... Elas não têm gosto ou vontade Nem defeito, nem qualidade Têm medo apenas Não tem sonhos, só tem presságios O seu homem, mares, naufrágios Lindas sirenas, morenas ... As jovens viúvas marcadas E as gestantes abandonadas, não fazem cenas Vestem-se de negro, se encolhem Se conformam e se recolhem As suas novenas Serenas Mirem-se no exemplo Daquelas mulheres de Atenas Secam por seus maridos Orgulho e raça de Atenas Chico Buarque de Holanda (Mulheres de Atenas) Apresentação 12 Compreender o fenômeno da violência doméstica e sexual contra mulheres é um desafio em debate há anos no âmbito de pesquisa nacional e internacional. A violência tem permeado a existência humana desde seus primórdios e hoje, esta complexidade se expressa nas questões psicoemocionais, sócio-culturais e éticopolíticas que envolvem a vitimização da mulher. As “Mulheres de Atenas” vêm inaugurar este trabalho para mostrar que historicamente a violência é vivenciada na intimidade da mulher e ainda hoje muitas mulheres “secam” por seus maridos, vivenciam um sentimento de anulação dentro de sua própria casa. O interesse em pesquisar este tema nasceu a partir de um contraponto. A pesquisadora, enquanto psicóloga e pós-graduanda em arteterapia pôde se aprofundar em um modelo de intervenção terapêutico cuja mediação é a arte. Esta mediação pareceu muito apropriada para trabalhar com um tema bastante difícil de ser abordado: a violência. Assim, tem-se a hipótese de que a arteterapia poderia construir um campo de expressão para a mulher vitimizada que fosse mais acolhedor, sutil e criativo, de modo que ela própria pudesse ampliar a percepção sobre a violência vivida e encontrar recursos para lidar com este sofrimento. A pesquisadora partiu da premissa de que isto pudesse acontecer por meio de um contraponto: reconhecer a violência vivida a partir do que seria o oposto disto: o auto-cuidado, a autovalorização, o afeto e delicadeza proporcionados pela arte. Por meio do trabalho arteterapêutico, pode-se ter uma ampliação da consciência, um aprofundamento em si - mesmo, uma reconstrução da auto-estima e abertura para transformação interna e externa. Desta forma, a mulher pode aprender a lidar melhor com o sofrimento, com os sintomas e pode desenvolver recursos físicos e psíquicos para lidar com o episódio da violência ou com a continuidade da violência. Em alguns casos, inicialmente, a arteterapia vem desvelar para a mulher a própria situação de violência visto que muitas mulheres não conseguem perceber que estão sendo violentadas. Nesse caso, o processo criativo pode proporcionar o fortalecimento subjetivo da pessoa e consequente retomada da autoestima. Estes aspectos são fundamentais para que haja possibilidade de transformação, é como se a partir disso ‘o feminino’ pudesse se apropriar de sua força e afeto, tão suprimidos pela situação de violência. Apresentação 13 Pretende-se com este estudo analisar a viabilidade desta hipótese e avaliar quais seriam as contribuições da arteterapia ao campo de estudo da violência doméstica e sexual contra mulher. Na literatura existem escassos diálogos entre a arteterapia e a mulher vitimizada, entretanto, conforme as Normas Técnicas de Uniformização dos Centros de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (CRAMS), a arteterapia é prevista como parte das atividades de diagnóstico aprofundado e atendimento à mulher e este é um importante passo para integração desta atividade aos serviços de atendimento, independente de serem CRAMS (BRASIL, 2006). Desta forma, o SEAVIDAS, Serviço de Atendimento à Violência Doméstica e Agressão Sexual do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina USP apoiou o desenvolvimento desta pesquisa, permitindo que o estudo se inserisse na implementação de estratégias para a assistência humanizada da mulher vitimizada. Este projeto apresenta, na Introdução, uma revisão detalhada da literatura neste campo de trabalho, subdivida em capítulos. No primeiro capítulo são apresentadas as principais configurações da violência no Brasil, assim como reflexões sobre a violência de gênero, o empoderamento feminino e o silêncio que permeia a vivência da violência. O segundo capítulo apresenta importantes concepções sobre arteterapia: (1) o panorama histórico da sistematização da arteterapia, (2) em que consiste esta modalidade de intervenção terapêutica e (3) as contribuições da Psicologia Analítica ao trabalho arteterapêutico o conceito de processo criativo. O terceiro capítulo apresenta um diálogo entre a psicologia analítica e um importante pintor, Gustav Klimt, a fim de explicitar e delimitar o foco de interesse da intervenção arteterapêutica: a emancipação da mulher. Introdução 14 2. INTRODUÇÃO 2.1. O Feminino Devastado: Violência Doméstica e Sexual contra a Mulher Em relação à problemática da violência doméstica e sexual, seus números são expressivos e suas conseqüências têm devastado física e emocionalmente muitas mulheres. Na região de Ribeirão Preto, um estudo de prevalência realizado com 265 mulheres usuárias de serviço de saúde constatou que 41,5% das mulheres sofreram ao menos uma vez na vida violência psicológica, 26,4% sofreram violência física e 9,8% sofreram violência sexual, sendo que 45,3% referiram ocorrência de qualquer um dos tipos de violência (MARINHEIRO; VIEIRA; SOUZA, 2006). Outra pesquisa representativa da situação de violência no Brasil adverte que a prevalência de mulheres que sofreu agressão física ou sexual por um parceiro íntimo na vida é demasiado alta, sendo que 25,8% das mulheres sofreram violência (na vida) e cerca de 9,6% das mulheres sofreu violência sexual (HEISE ET AL, 1999, SCHRAIBER ET AL, 2002a apud SCHRAIBER; D’ OLIVEIRA, 2002). A magnitude da violência contra mulher além de ser expressa em números, se expressa a partir de importantes conseqüências para a saúde física e mental das mulheres, bem como em múltiplas incapacidades sociais. As repercussões na saúde mental da mulher são principalmente a depressão, ansiedade, uso abusivo de álcool e outras drogas e tentativas de suicídio. Em relação à saúde física, as conseqüências se expressam em fraturas, hematomas, doenças sexualmente transmissíveis, sangramentos, abortos, insônia, desmaios, diarréias, asma, entre outras somatizações (HOLTZ, 1996 apud SCHRAIBER; D’OLIVEIRA, 2002). A violência praticada contra as mulheres, atualmente é estudada sob o signo de Violência de Gênero, na qual a mulher se constitui socialmente enquanto um ser subordinado (HEISE; ELLSERBERG; GOTTEMOELLER, 1999), ou seja, ao longo da história, foram impostos à mulher modelos que mantiveram intacta sua subordinação ao homem, de modo que sua participação como membro da sociedade ficou restrita à esfera privada. Introdução 15 A violência de gênero ocorre principalmente nesta esfera porque aí se acentua a vulnerabilidade da mulher em relação à agressão cometida por parceiros íntimos. As principais agressões são físicas (tapas, empurrões, queimaduras, tentativa de homicídio), sexuais (toques indesejados, assédio sexual, estupro, exibicionismo, voyeurismo) psicológicas (humilhações, privação de liberdade, impedimento ao trabalho ou estudo, ameaças de agressão) e econômicas (roubo, destruição de bens pessoais ou conjugais, recusa a pagar pensão alimentícia) (HEISE; ELLSERBERG; GOTTEMOELLER, 1999). Desta forma, “a desigualdade de poder entre gêneros estaria na gênese de situações de disputa e de ocorrência de violência” (MARINHEIRO; VIEIRA; SOUZA, 2006, p. 605). Alguns autores têm discutido ainda que as situações de violência perpetradas por homens muitas vezes ocorrem a fim de manter sua masculinidade intacta, de modo a garantir a visão patriarcal da masculinidade (WOOD, 2004, SAFFIOTI, 2002, LEON, 2001 APUD CORTEZ; SOUZA, 2008). Esta visão tem se abalado a partir das conquistas femininas, relativas à inserção das mulheres na esfera dita masculina, sob o bojo dos movimentos feministas. Nesse sentido, León (2001) refere-se à ausência de uma estrutura que ofereça à mulher e ao homem o espaço para discussões e reelaborações de suas concepções e relações de gênero e possibilita uma reação dos homens que, excluídos e desinteressados das discussões acerca do empoderamento feminino, tendem a compreender esse processo como "desempoderamento masculino" ou perda da posição de dominação legitimada pelo patriarcado. Dantas-Berger e Giffin (2005) referem-se ao estudo de Bozon (1995) em que nas representações sociais masculinas, a mulher ainda é considerada como um objeto a ser adquirido. A partir deste estudo questionam a lentidão do “tempo do gênero”, sobretudo a do gênero masculino, apontando o descompasso entre os tempos do gênero masculino e feminino e sua possível relação com a potencialização da violência conjugal. León (2001) afirma que os conceitos de gênero e empoderamento têm marcado a produção da teoria feminista. Ela afirma que no campo dos estudos de gênero, o empoderamento feminino é a ferramenta que poderá possibilitar à mulher se apropriar de seus direitos (porque também os conhece bem) e assim conseguir lutar por sua autonomia. Ela afirma que o empoderamento se acenta em duas bases: a coletiva e a individual. No âmbito individual, o empoderamento é Introdução 16 circunscrito no sentido da auto-confiança e autonomia e no âmbito coletivo ele se expressa por meio de ações coletivas dentro de um processo político (direito da mulher à participação política, educação, saúde,etc.) e a natureza do empoderar-se não é somente material mas também emocional e psíquica. A noção de poder inscrita no conceito de empoderamento seria “a capacidade de transformar a consciência própria e reinterpretar a realidade em que nos movemos” (LEÓN, 2001, p. 102). Ela refere-se ao poder que serve a solidariedade e aliança e afirma que isto faz parte do processo de superação da desigualdade de gênero. Este processo de reinterpretar a realidade é fundamental para minar o processo de violência porque a mulher vitimizada, diante do sofrimento, traz grande dificuldade em visualizar resoluções para o problema ou para lidar emocionalmente com ele. Até porque “o que torna uma situação traumática é um fator psicológico interno, são as fantasias envolvidas e relacionadas com tal evento” (SILVA; MARTINS, 2008, p. 58). Devido a estas dificuldades, as ações coletivas e o apoio político são também necessários. O Sistema de Saúde deve representar este apoio principalmente no que diz respeito a identificar e tratar a mulher violentada. A procura pelo serviço de saúde decorre desta vitimização e as mulheres se expressam a partir de sintomas vagos, poliqueixas, dores crônicas, dores musculares, pélvicas, abdominais, em baixo ventre, cefaléia, doenças sexualmente transmissíveis, infecção no trato urinário, entre outros (HOLTZ, 1999 apud SCHRAIBER; D’ OLIVEIRA, 2002). A visibilidade/invisibilidade da violência doméstica é um problema crítico, pois apesar da alta magnitude, é um fenômeno não revelado. Mesmo quando questionadas a respeito da violência muitas mulheres não falam. Algumas explicações para este fato são o sentimento de vergonha, humilhação, culpa, temor pela culpa sobre a violência, temor pela segurança pessoal e dos filhos, a mulher subestima seus problemas de saúde, teme perder a guarda dos filhos, protege o agressor devido à dependência econômica/afetiva, entre outros (ELLSBERG, 1998 apud SCHRAIBER; D’ OLIVEIRA, 2002). A sub-informação no âmbito da assistência também pode se relacionar com a dificuldade em relação à nomeação da violência, conforme apresentado por Schraiber e D’Oliveira (2003 p.44): Introdução 17 A dificuldade apresentada pelas mulheres para apresentar o vivido... Não encontrar a forma de revelação ou não dispor da linguagem para tal é dificuldade que repercute, de imediato, na relação interpessoal de caráter assistencial, tal qual a relação usuária-profissional de saúde, em termos comunicacionais. Este problema comunicacional é apresentado enquanto via de mão dupla, as mulheres não falam e os profissionais também não perguntam por não se sentirem habilitados a intervir neste campo (SCHRAIBER; D’OLIVEIRA, 2003). Desta forma, essas autoras se propuseram a desenvolver um estudo que abarcasse as questões de “percepção, definição e nomeação da violência vivida” e encontraram um dado surpreendente que 63,4% das mulheres entrevistadas que sofreram algum tipo de violência não perceberam o vivido como violento, ou seja, “a maioria das mulheres não considera que já viveu violência na vida, mesmo entre as que responderam haver sofrido agressões físicas ou abusos de ordem sexual ou psicológica” (SCHRAIBER; D’OLIVEIRA, 2003, p. 50), mas a situação mais reconhecida como violência foi a vivência do abuso sexual. Apesar disto mesmo sem conseguir nomear como violência o que foi vivido, praticamente todas as mulheres relataram que não gostariam de vivenciar novamente e que há grande sofrimento envolvido nisto. Desta forma, o empoderamento feminino pode começar pela percepção e identificação da violência vivida pela mulher, em termos da sua percepção subjetiva e da identificação por profissionais de saúde. Ampliar a percepção sobre a violência vivida seria um dos processos iniciais para a mulher conseguir apropriar-se da autonomia sobre seus corpos, de sua sexualidade e seu direito de ir e vir e também o repúdio ao abuso físico, à impunidade e às decisões unilaterais masculinas. Trata-se de um empoderamento que vem emancipar a mulher. Espera-se que as contribuições da arteterapia venham enriquecer a concepção do lidar com a violência doméstica e sexual, por meio do enfoque terapêutico e das mediações artísticas. Introdução 18 2.2. Concepções Históricas, Interventivas e Teóricas em Arteterapia O viver artístico não é algo extraordinário restrito a algumas pessoas socialmente reconhecidas como artistas, mas um aspecto intrínseco da humanidade do ser humano. (CIORNAI, 1995) A Arteterapia é um processo em que se utilizam diversos recursos artísticos com uma finalidade terapêutica. Este processo pode acontecer numa dinâmica individual ou grupal e possui a mediação de um profissional capacitado, cuja formação é permeada por conhecimentos sobre o desenvolvimento dinâmico do ser humano, sobre o universo de materiais artísticos e técnicas vivenciais, assim como a interação sistêmica entre o cliente, os materiais e o arteterapeuta. Pain e Jarreau (1996), dentro de uma perspectiva psicanalítica, a denominam como um tratamento psicoterapêutico, no qual se utiliza a expressão artística. Phillipini (2004), fundamentada no referencial da psicologia analítica junguiana, define a arteterapia como: Um processo terapêutico que ocorre através da utilização de modalidades expressivas diversas. As atividades artísticas resultam em produções simbólicas – a partir desta materialidade é possível realizar reflexões e atribuir significados às mensagens advindas das profundezas do inconsciente. E o fim maior é mesmo o resgate da promoção, prevenção e expansão da saúde (PHILLIPINI, 2004, p. 13). Urrutigaray (2006), compartilhando deste mesmo referencial teórico, descreve que o percurso que vai da terapia ocupacional à arteterapia passa pela diferenciação de um fazer no qual a utilização de materiais plásticos tem um efeito na psique e quando as imagens são criadas e representadas à consciência, o paciente começa a estabelecer uma nova relação com suas fantasias e ideações, que encontram então um lugar de expressão. As energias psíquicas são liberadas e aquilo que não tinha nome ou identidade ou local podem se manifestar. Assim, a finalidade deste processo é que as imagens produzidas quando se manifestam de forma ativa podem conectar o sujeito com novas modalidades vivenciais. Introdução 19 Silveira (1992) denomina a arteterapia como um processo a partir do qual se desenvolve uma linguagem de expressão em que a pessoa consegue exprimir suas emoções mais profundas por meio da linguagem e expressão plásticas. Ela acrescenta ainda que a problemática afetiva do paciente, seus sofrimentos e desejos inconscientes podem ser investigados na produção artística. Historicamente, desde o final do século XIX a Psiquiatria realizou aproximações do trabalho terapêutico com o campo da arte por meio dos trabalhos de Mohr (1906), Simon (1876 e 1888), Prinzhorn (1922) (PAIN & JARREAU 1996). De um modo geral a forma estas aproximações pioneiras associavam as expressões artísticas de doentes mentais com suas histórias de vida e patologias, mas também estabeleciam paralelos entre as produções dos doentes mentais e escolas (ANDRADE, 2000). Jung, na década de 1920, inseriu a arte no tratamento de pacientes, considerando que o material artístico, as representações de imagens e sonhos eram uma simbolização do inconsciente pessoal e coletivo (ANDRADE, 2000). Em 1941, Margaret Naumburg foi a pioneira em sistematizar o trabalho da arteterapia nos Estados Unidos, assim como sua irmã Florence Cane. Elas utilizavam, sucessivamente, a arteterapia e a arte-educação como método de psicoterapia e pedagogia. Já na Inglaterra, Adrian Hill implementou este trabalho (VALLADARES, 2003). No Brasil, estas aproximações se iniciaram com Osório César e Nise da Silveira, entre 1925 e 1952 (ANDRADE, 2000). Essa psiquiatra, em 1946 criou a Seção de Terapia Ocupacional no Centro Psiquiátrico Dom Pedro II em Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro e em 1952 criou também o Museu de Imagens do Inconsciente, onde estão reunidos os trabalhos dos pacientes psiquiátricos deste Centro Psiquiátrico. Este acervo reúne as séries de desenhos, pinturas e modelagens que foram datadas e agrupadas e acompanham o fio significativo do processo psicótico dos pacientes autores das obras. (VALLADARES, 2003). A partir da década de 70, a utilização da arte com uma finalidade terapêutica compôs a iniciativa precursora da Reforma Psiquiátrica quanto à reabilitação psicossocial dos pacientes. Este movimento fomentou o combate à cronificação, à exclusão e à violência muitas vezes presente no modelo tradicional psiquiátrico. Segundo Valladares (2004) modelos alternativos de atendimento às pessoas com sofrimento psíquico foram criados, bem como o atendimento interdisciplinar; Introdução 20 “Surgiram então, as Oficinas Terapêuticas, espaços de criação e facilitação da comunicação e das relações interpessoais. Nessa oportunidade, os participantes se tornam agentes ativos no mundo e não meros espectadores passivos e submissos ao tratamento” (VALLADARES, 2004, p.108). Esta autora acrescenta ainda que a arteterapia, em conjunto com outros tratamentos é uma forte aliada ao trabalho terapêutico, por meio da reconstrução, integração, criatividade e liberdade do paciente, familiares e comunidade que pode proporcionar. Atualmente, enquanto técnica sistematizada, a arteterapia é uma modalidade de trabalho que se insere em diversos campos de atuação: instituições educacionais (Escolas, ONGs) e sociais, hospitais, programas comunitários, empresas, instituições de reabilitação; compreende um universo de técnicas de trabalho e pode ser embasada em diversos referenciais teóricos. Existe um grande universo de recursos artísticos e técnicas expressivas utilizados em arteterapia. Cada modalidade expressiva tem suas especificidades e aplicabilidade. As técnicas expressivas devem ser estrategicamente planejadas de acordo com a faixa etária e a demanda, O universo das técnicas contempla: desenho e pintura, gravura colagem, modelagem e escultura, tecelagem, dramatização, contar histórias, música, dança e expressão corporal, relaxamento e visualização criativa, marionetes, máscaras, tabuleiro de areia, entre outros (VALLADARES, 2003; PHILLIPINI, 2004; PAIN; JARREAU 1996). Os referenciais teóricos em arteterapia variam segundo diversos fundamentos teóricos – abordagem junguiana (Psicologia Analítica), psicanalítica, gestáltica, comportamental, fenomenologia-existencial, construtivista, etc. No Brasil, as abordagens mais utilizadas para embasar a prática arteterapêutica são as junguianas e gestálticas. Cada arteterapeuta, imbuído em seu referencial, exerce o ofício considerando suas particularidades e subjetividades. No entanto é importante delimitar aquilo que tange a prática a despeito do universo teórico utilizado. Neste sentido, Pain & Jarreau (1996) explicam que as ações do arteterapeuta se sustentam em três domínios. O domínio das técnicas plásticas, o domínio da psicologia da representação e da ação e o domínio da arte, em sua história e Introdução 21 significação. Portanto, há equivalência na importância em se conhecer a cultura artística tanto quanto a psicológica. Philippini (2004) também enfatiza a necessidade deste equilíbrio entre a fundamentação teórica, a intimidade com a arte e suas manifestações e a prática expressiva ampla. A arteterapia fundamentada no referencial da Psicologia Analítica de Jung se farta dos recursos expressivos com o objetivo de permitir a expressão e comunicação de símbolos da energia psíquica, para que posteriormente sejam ampliados e integrados à consciência. Phillipini afirma que “o caminho será fornecer suportes materiais para que a energia psíquica plasme símbolos em criações diversas” (PHILLIPINI, 2004, p.17). O Símbolo seria a expressão de algo ainda não conhecido, inferido ou definido em palavras; é uma linguagem metafórica do inconsciente que apresenta os enigmas psíquicos. A imagem simbólica é um retrato da situação psíquica que engloba tanto os aspectos conscientes e inconscientes da personalidade pois o símbolo “é um sinal visível de uma realidade invisível” (KAST, 1994, p. 19). O simbolismo nas artes plásticas, por exemplo, revela a imensa propensão do homem para criar símbolos: “o homem transforma inconscientemente objetos ou formas em símbolos (conferindo-lhes assim enorme importância psicológica) e lhes dá expressão tanto na religião quanto nas artes plásticas” (JAFFÉ, 2000, p. 232). Nossos antepassados deixaram uma infinidade de símbolos, interligando a história da religião e da arte. Jung, em sua obra, relata que em diversas culturas, símbolos surgem com temáticas muito semelhantes visto que são representações do inconsciente coletivo (memória acumulada e herdada pelo homem ao longo das gerações e dos séculos). Estas temáticas podem se repetir em mitos, contos de fadas, religiões, tratados alquímicos, ritos de passagem que acontecem em locais geograficamente muito distantes (JUNG, 1976). Arquétipos são padrões originais, uma matriz hereditária que se mantém por muito tempo e que se expressa em imagens de formas muito semelhante dentro dos grupos. Eles podem ser expressos por reações físicas ou mentais. Estas imagens que são recorrentes se expressam por meio de sonhos, idéias, mitos, desenhos, pinturas e nos símbolos produzidos pelo sujeito (JUNG, 1967). Introdução 22 Em arteterapia com base na Psicologia Analítica trabalha-se a amplificação do símbolo presente na produção. Esta é uma das peculiaridades desta abordagem. Segundo Urrutigaray (2006), as imagens produzidas adquirem uma categoria de estruturas simbólicas visto que resultam de uma representação de padrões pessoais ou gerais e apontam para além do objeto, pessoa ou circunstância. A amplificação simbólica objetiva permitir ao paciente ampliar a compreensão e transformação do significado dos símbolos, ampliando assim a percepção sobre si mesmo. A partir da pintura, desenho ou colagem o percurso é buscar a melhor compreensão dos significados emocionais que estão naquele símbolo. Philippini (2004) sugere que a imagem simbólica possa ser representada em outras modalidades expressivas, como transpor, por exemplo, a imagem de uma borboleta desenhada no papel para uma borboleta modelada em 3D a fim de dialogar de modo mais aprofundado com esta imagem. Ela acrescenta que o trabalho pode ser enriquecido através do “rastreamento cultural” do símbolo nas imagens universais e arquetípicas obtidas por meio dos estudos dos símbolos presente nos mitos, contos de fadas, religiões, na literatura, nas artes plásticas, nas canções, na alquimia, etc. Por fim, a observação das sensações corporais que acompanham o percurso criativo das imagens fornece elementos muito pertinentes ao processo do cliente. O processo de amplificação é concluído quando são sentidas sensações corporais prazerosas e insights advindos da contextualização do símbolo com o momento presente da vida do cliente (PHILIPPINI, 2004). Dentro do percurso simbólico do paciente é importante avaliar os estilos pessoais da criação (cores e formas utilizadas, aproveitamento do espaço, distorção ou harmonia, movimento, etc). Com isto busca-se a singularidade do sujeito. Não se pode perder de vista a trajetória de individuação do paciente (PHILIPPINI, 2004). O processo de individuação é um conceito muito importante na abordagem da Psicologia Analítica. Jung chamou de processo de individuação o processo arquetípico pelo qual o Self orienta o ego(eu) a se diferenciar, a integrar os aspectos, a desfazer os complexos. Assim, esse processo seria a busca do ser total, do desenvolvimento de nossas potencialidades inerentes (VON FRANZ, 2000). Neste sentido, Philippini revela: Introdução 23 Os indivíduos, no curso natural de suas vidas, em seus processos de auto-conhecimento e transformação, são orientados por símbolos. Estes emanam do self, centro de saúde, equilíbrio e harmonia, representando para cada um o potencial mais pleno, a totalidade da psique e a essência de cada um. Na vida, o self, através de seus símbolos precisa ser reconhecido, compreendido e respeitado (2004, p. 17). Em arteterapia, o desenrolar do processo de individuação é, sucessivamente perceptível e vivenciado pelas configurações plásticas (nuances e dinâmica das cores, formas, movimento, ocupação do espaço) e pela elaboração de conflitos e conteúdos até então desconhecidos e que passam a ser integrados à consciência por meio da amplificação dos símbolos (PHILLIPINI, 2004). Nesses sentido, Jung desenvolveu o conceito de uma função psíquica essencial ao processo de individuação relacionado à mediação estabelecida entre a consciência e o inconsciente, denominando-a função transcendente. Jung (1971a) explica que a consciência apresenta-se de modo dirigido no sentido de conter afetos e manifestações inconscientes, entretanto quanto mais esta tentativa de controle é estabelecida, mais o inconsciente encontra meios (por vezes inadequados) para expressar-se a favor da energia psíquica que não se pode suprimir. Uma vez que atuam de maneira compensatória um em relação ao outro, a função transcendente poderia mediar a relação mais harmoniosa entre estas duas estâncias permitindo a sua comunicação e síntese, possibilitando ao sujeito a tomada de novas atitudes e percepções (JUNG, 1971a). Em termos práticos, Jung sugere que a função transcendente pode ser ativada em processo que integrem ações conscientes ou inconscientes. Ele sugere exercícios sistemáticos de eliminação da atenção crítica, de modo que se crie um vazio na consciência para que ‘fantasias espontâneas’ possam emergir trazendo conteúdos de tonalidade afetiva latentes. Ele também afirma que algumas pessoas podem apresentar dificuldades quanto à emergência destes conteúdos e a verbalização destes e propõe que este processo seja facilitado por meio de recursos plásticos: Há pessoas, porém que nada vêem ou escutam dentro de si, mas suas mãos são capazes de dar expressão concreta aos conteúdos do inconsciente (p. 16) [...] Muitas vezes impõe-se a necessidade de esclarecer conteúdos obscuros, imprimindo-lhes uma forma visível. Pode-se fazer isto desenhando-os, pintando-os ou modelando-os. Introdução 24 Muitas vezes as mãos sabem resolver enigmas que o intelecto em vão lutou por compreender (JUNG, 1971a, p. 18). Mas ainda que a função transcendente posa facilitar este processo, ele não é garantido e não é possível controlar a presença da função transcendente. Jung (1971b), ao discorrer sobre a relação da psicologia analítica com a obra de arte poética se propõe a falar sobre as bases do processo criador e o denomina-o como um complexo autônomo da psique que é inerente à existência humana. Ele afirma: O anseio criativo vive e cresce dentro do homem como uma árvore no solo do qual extrai seu alimento. Por conseguinte, faríamos bem em considerar o processo criativo como uma essência viva implantada na alma do homem. A psicologia analítica denomina isto complexo autônomo. Este, como parte separada da alma e retirada da hierarquia do consciente, leva vida psíquica independente e, de acordo com seu valor energético e sua força, aparece, ou como simples distúrbio de arbitrários processos do consciente, ou como instância superior que pode tomar a seu serviço o próprio Eu (JUNG, 1971b, 63). Jung nomeou o potencial criativo como “instinto criativo” e Hillman (1984), a respeito de suas considerações, afirma: “como instinto, o criativo é uma necessidade da vida, e a satisfação de suas necessidades, um requisito para vida” (HILLMAN, 1984, p. 39). Referenciando Jung afirma que ao passo que vivenciamos instintos como a fome e a sexualidade, vivenciamos a criatividade como um aspecto inerente ao homem, denominando a “quintessentia da criatividade”. Hillman (1984) ressalta que a própria psicologia junguiana pode ser denominada de psicologia criativa uma vez que se fundamenta no instinto criativo e se expressa nos conceitos de Jung a partir das seguintes denominações que se referem a princípios criativos: o “impulso para a totalidade, impulso para a individuação ou para o desenvolvimento da personalidade, impulso espiritual, função transcendente formadora de símbolos ou, em uma palavra, impulso do si mesmo para se realizar” (1984, p. 40). Jung também afirma que uma das grandes tarefas do processo terapêutico é “desenvolver os germes criativos existentes dentro do paciente” (1985a, p. 39) Jung (1997) também aborda o conceito de processo criativo a partir da Função Eros. Esta função constitutivamente é aquele princípio necessário para o estabelecimento de qualquer relação, sobretudo o relacionamento psíquico íntimo, Introdução 25 ou seja, o estabelecimento da comunicação entre as instâncias de nossa própria psique. E assim, conseqüentemente Eros nos impulsiona ao relacionar-se verdadeiramente com o outro e com nós mesmos. Segundo este autor, a função Eros tem a função de transformar verdadeiramente porque integra perfeitamente a inteligência e o afeto (JUNG, 1997). A alusão ao criativo em Hillman (1984) não é centrado no potencial criativo que diz respeito unicamente ao artístico, ele diz de uma das formas de manifestação do criativo que é a criatividade psicológica. Em relação à criatividade psicológica, Jung defende que “a criação é tanto destruição como construção” e Hillman (1984) aprofunda este tema explicitando que o processo criativo é um processo inerente à alma e assim deve abarcar tanto os aspectos do “fazer alma”, quanto os aspectos que destroem a alma, aludindo a conceitos da alquimia como mortificatio, sacrifício, putrefação, fermentação, tortura e desmembramento. Ele afirma: Como a criatividade psicológica ocupará os mesmos polos destrutivo/construtivo que descrevem o instinto em geral, resta-nos a compreensão de que fazer alma comporta a destruição da alma... a delusão terapêutica mais destruidora da alma é a que se recusa a ver o que realmente está ocorrendo. (HILLMAN, 1984, p. 42). Ele afirma que quando o aspecto destrutivo não é integrado ao processo terapêutico ele atua inconscientemente e a destrutividade é interpretada como algo que vem de fora e não encontra acolhimento, desta forma, continua atuando alheia à consciência do paciente. Enquanto criador da psicologia arquetípica, Hillman endossando Neumann (1956 apud HILMAN, 1984) defende que está havendo uma transformação na consciência psicológica humana, uma vez que a atuação mitológica de Édipo e seu enredo, representado pela “escura luta heróica do problema familiar” e sua maldição estão abrindo espaço na psique para a necessidade que a própria psique tem do amor. A relação de amor entre os outros e a relação íntima de amor consigo mesmo é presidida simbolicamente pelo mito de Eros (amor) e Psique (alma). Nesse sentido o que Eros pode oferecer à nossa psique é fundamental: Ao contrário, retornamos ao infantil, não para satisfazer ou transformar as gratificações orais e a perversidade polimorfa, mas para recuperá-la. Consideramos as feridas da infância menos como resultado do trauma nutritivo ou sexual do que como feridas de amor. Introdução 26 Sentimos as feridas como abandono: o mais íntimo da pessoa (a alma) privado de amor, o ser abandonado aos arrebatamentos do desejo, sua transbordante reserva de amor indesejada, sem destinatários adequados ou permitidos. As feridas de amor estancam o crescimento da psique, porque a fraqueza natural e a simplicidade de seu estágio juvenil, se convertem num infantilismo protetor. Essas feridas podem ser redimensionadas pela infantilidade do amor. As primeiras manifestações da psiquização do instinto criativo ocorrem em uma imagem de criança, cujo significado essencial é a autotransformação através de sua própria via naturalis (HILLMAN, 1984, p. 62) Para este autor, O “Eros une o pessoal a algo que está além do pessoal e traz este algo que está além para a experiência pessoal”. Hillman (1984) fala de Eros como aquele aspecto intermediário criador de um espaço psíquico próprio que engendra novos acontecimentos no mundo psíquico. A esta região intermediária ele denominou de metaxy, hoje descrita como reino da realidade psíquica. Desta forma ele representa na psique a criação de uma realidade cheia de possibilidades imaginativas e estética. Mas abarcar o todo significa aqui abarcar também o vazio, o demoníaco, o inibidor sob o aspecto de daimon: “a inibição e indireção pertencem a eros, tanto quanto a destruição à criatividade” (HILLMAN, 1984). Na sequência, a pesquisadora gostaria de apresentar um importante símbolo que antecipou e favoreceu o desenlace da idéia de desenvolver este projeto de pesquisa. Trata-se de um pintor cuja obra, aos poucos foi proporcionando à pesquisadora importantes reflexões acerca da relação entre a mulher, a emancipação da mulher e a arte. 2.3. Diálogos sobre o feminino entre Gustav Klimt e a Psicologia Analítica Gustav Klimt, austríaco (1862-1918), pintor simbolista e secessionista, vanguardista de sua época, tem o feminino como o centro de sua reflexão artística e permeia sua obra com um “mundo de aparência feminina”. Ele traz imensa contribuição para emancipação da mulher e para a redescoberta da força desaparecida do erotismo, por ter trabalhado intensamente na “escavação da vida instintiva da mulher” (FLIELD, 1994). Introdução 27 Pintor simbolista, Klimt enriqueceu sua obra com símbolos bastante antigos, presentes na mitologia grega e romana e na própria Bíblia: Danae, a Sacerdotisa de Apolo, as Três Fúrias, as Ondinas, Palas Athenas, Higia, Górgones, Tifeu, Salomé, etc. Imortalizou mulheres da sua época, enaltecendo sua força, sua beleza e supremacia. É marcante em sua obra, a força e a vivacidade no olhar que muitas mulheres possuem. Klimt desnudou sem pudor a mulher e a proposta do presente estudo é que por meio da arteterapia, a mulher possa se desnudar para si mesma, perceber as situações de violência vivenciadas, assim como revelar o seu íntimo criativo e sua força. Klimt vem emancipar a mulher em termos plásticos e por meio da arteterapia propõe-se esta emancipação em termos subjetivos. Klimt não revelou apenas o universo feminino, ele utilizou-se deste para revelar muitas contradições e aspectos dúbios da experiência humana, tais como vida e morte, prazer e dor, saúde e doença, Eros e Tanathos. Pode-se dizer que ele resgatou importantes imagens arquetípicas ao polarizar estas vivências. Sua obra, por sua vez, dado seu caráter simbólico, reporta mensagens, desejos, medos e a dualidade do inconsciente, outro objeto de interesse comum a este pintor: A palavra falada e a palavra escrita não me são familiares, mesmo para me exprimir em relação ao meu trabalho ou a mim próprio... Se alguém quiser saber algo sobre mim como pintor – que é a única coisa que vale a pena ser considerada – esse alguém que observe atentamente as minhas telas e procure descobrir nelas o que eu sou e o que quero (KLIMT apud NÉRET, 2006, p. 79). Ao contrário da força que a palavra carrega na lógica do pensamento e da razão, Klimt se apresenta pela lógica da imagem e pelo pensamento simbólico, enfatizando que sua produção artística é sua identidade reveladora de seus anseios. Klimt referenda a imagem e atribuía ela o caráter de revelar. Neste sentido a Arteterapia também referenda a imagem, enquanto construção simbólica, e entende que ela pode ser reveladora de aspectos tão íntimos de um indivíduo que a palavra pode não alcançar. Dialogar com esta imagem é algo que pode levar à transformação e transcendência. O crítico Carl Schorke (FLIELD, 1994) denomina Klimt como “o feliz explorador do Eros”. Neste sentido o presente estudo enaltece a figura do pintor Introdução 28 Klimt com o objetivo de estabelecer um paralelo simbólico entre sua obra e uma faceta do trabalho arteterapêutico. Ambos estavam e estão a serviço de interesses semelhantes, embora os alcançando por vias diversas, a saber: o despertar da vida instintiva da mulher, o acordar seu impulso de vida, emancipar seus desejos e anseios e buscar a força escondida atrás de toda mulher. A força escondida atrás de cada mulher diz de uma importante contribuição da Psicologia Analítica que é o conceito de animus, a contraparte masculina presente na vivência íntima e subjetiva de cada mulher. Jung, inicialmente, desenvolveu o conceito de anima a partir de diálogos internos com a própria figura feminina presente em sua psique, identificando assim a contraparte feminina presente na psique de cada homem. Esta contraparte masculina poderia ser representada pela função inferior Logos, aspecto da masculinidade inconsciente que é primitiva e indiferenciada, geralmente na mulher. O Logos oferece à mulher “o conhecimento diferenciado, a clara luz ... Logos é discriminação e desapego” (JUNG & WILHELM, 1984). Já o Eros, contraparte feminina no homem, seria a capacidade de relacionar-se e lidar com os afetos. Estes conceitos são bastante profundos e ainda carregam algumas controvérsias no tocante à correspondência diferenciada em gêneros masculino e feminino (SAMUELS, 1989; MURRAY, 2006), mas o que impera nestes conceitos é que o animus/anima são uma espécie de psicopompo, um mensageiro que vincula o ego às camadas mais profundas do inconsciente, aproximando o indivíduo da grande experiência do si-mesmo, ou seja, eles estabelecem a ponte e o diálogo verdadeiros entre o ego e o self de um modo profundo, mais profundo inclusive do que o contato com a própria sombra (MURRAY, 2006). Animus e anima são arquétipos do inconsciente coletivo e se expressam autonomicamente podendo transmitir conteúdos deste inconsciente à consciência, mas somente os conteúdos inconscientes proveniente deles podem ser integrados à consciência, eles enquanto arquétipos não (JUNG, 1976). Desta forma: Anima e animus provocam imagens que representam um aspecto inato de homens e mulheres – aquele aspecto deles que é, de certa forma, diferente do modo como funcionam conscientemente; um outro estranho, talvez misterioso, porém certamente cheio de possibilidades e potencialidades (SAMUELS, 1989, p. 252). Introdução 29 Estas instâncias também atuam de modo diferente da Persona pois esta implica o ego com a vivência no mundo exterior e o animus/anima conduzem o ego a se adaptar e a escutar verdadeiramente o universo íntimo interior (MURRAY, 2006). Em relação ao animus, inicialmente o contato que se tem com ele é externo, ou seja, a sua constituição se dá a partir do encontro da mulher com figuras masculinas importantes, seja um pai, um professor, um marido, ou a própria Igreja ou Estado, representados em sua objetividade, acontecendo a projeção do animus nestas figuras externas. Isto faz com que nas relações amorosas, por exemplo, haja bastantes diferenças entre a imagem interna construída de um homem e a pessoa “externa” (JUNG, E, 1967). Diante disto Jung, E (1967) fala da retirada da projeção como um aspecto essencial ao processo de amadurecimento psíquico e enfatiza: Através da retirada da projeção, reconhecemos que não temos que lidar com algo que está fora de nós, mas com uma grandeza interior, e nos vemos diante da tarefa de aprender a conhecer a natureza e a atuação dessa grandeza, deste “homem em nós”, para depois podermos novamente diferenciá-lo de nós mesmas. Quando não se faz isso, tornamo-nos iguais ao animus ou somos possuídos por ele (1967, p. 27). Desta forma, além de arquétipo, a anima/animus podem atuar como um complexo, quando acontece a constelação de energia psíquica a partir de acontecimentos carregados de afetos negativos em relação á vivência com o Animus. Jung, E. (1967) refere-se a sintomas como medo, insônia e nervosismo, dores de cabeça e problemas respiratórios, entre outros, como expressos por Koltuv: “sentir-se presa ou possuída, ou encontrar-se numa espiral furiosa, ou sentir-se terrivelmente vitimada, ou deprimida, perder o interesse pela vida, ter dor ou pressão, não conseguir respirar, sentir rigidez, dor ou tensão nas costas, no pescoço, nos ombros e na cabeça” (1990, p. 68). Em complementação a atitude interior mostra que externamente a mulher pode ser dócil, segura ou forte, mas internamente é demasiado crítica, exigente e julgadora consigo mesmas. Entretanto a expressão positiva desta grande instância psíquica, enquanto função Logos (inconsciente e primitiva) é fundamental para que a mulher possa desenvolver a capacidade de discernimento, clareza, objetividade de pensamento e sentido de realização: “há um relacionamento funcional entre a mulher e o animus – Introdução 30 ele a liberta – através da palavra, da força, da façanha do significado. Ele age como um impulso vivificador e ajuda-a a focalizar aquilo que quer e o modo de obter isso” (KOLTUV, 1990, p. 83). Jung, E. (1967) aprofundou os estudos sobre o animus representando-o como a força (dirigida), o ato, o verbo e o sentido, sucessivamente. Este tema pode ser mais bem compreendido por Neumann (2000) visto que este autor tece importantes considerações acerca da psicologia feminina, sobretudo em relação ao desenvolvimento da consciência na mulher. Em função de seu relacionamento “primal” com a mãe, a menina, identificada com seu semelhante mantém-se na denominada conservação do Self, ou seja, o feminino embrionário nasce de um Self semelhante denominado a Grande Mãe, aspecto do inconsciente que é provedor e protetor e cuja relação simbiótica é necessária à constituição egóica porque o ego da criança ainda não é nascido ou constituído nesta fase chamada urobórico materno (NEUMANN, 2000). Esta relação é muito diferente para o menino que se constitui na mesma relação primordial e urobórica, mas que ao ir em busca de seu Self (masculino) precisa diferenciar-se, romper com o uroboro materno, libertando-se da mãe. Este autor afirma que “a descoberta masculina do Self está vinculada, por sua própria natureza, ao desenvolvimento da consciência e à separação dos sistemas da consciência e inconsciente, o ego e a consciência sempre aparecem simbolizados arquetipicamente como masculinos” (NEUMANN, 2002, p. 12). No caso da mulher a dificuldade deste rompimento é maior e ela pode permanecer identificada psiquicamente e assim conservada no SELF. Neste caso, por mais que ela realize seu potencial como mulher, o seu desenvolvimento da consciência é precário e imaturo, uma vez que ela não vivencia o aspecto consciente de sua personalidade que é o masculino. Desta forma, o seu relacionamento com seu Animus, enquanto masculino interno é fundamental para que a mulher vivencie a plenitude em seu desenvolvimento humano. Objetivos 31 3. OBJETIVO 3.1 Objetivos Gerais O objetivo deste projeto foi permitir que as mulheres vítimas de algum tipo de violência doméstica ou sexual pudessem resgatar seu potencial criativo a partir da ampliação da percepção subjetiva sobre si mesmas e sobre a situação de violência vivida. Nesse sentido Ostrower (1988, p. 167) contribui com esta reflexão ao afirmar que “os processos de percepção se interligam com os próprios processos de criação. O ser humano é por natureza um ser criativo. No ato de perceber, ele tenta interpretar e nesse interpretar, já começa a criar”. 3.2 Objetivos específicos Objetivou-se com este trabalho construir um espaço protegido para a mulher se revelar como sujeito criativo, de modo que ela pudesse construir um aprendizado criativo e vivencial para lidar com situações adversas da violência e assim reconstruir sua auto-imagem com a utilização de recursos próprios. Além do objetivo de criar um espaço de intervenção, objetivou-se avaliar a psicodinâmica das mulheres vítimas de violência doméstica e sexual. Metodologia 32 4. METODOLOGIA 4.1 Participantes As participantes deste estudo são mulheres vítimas de violência doméstica (perpetrada por parceiro íntimo) que estão sofrendo ou já sofreram violência física, psicológica ou sexual, apresentando faixa etária entre 22 a 45 anos. As participantes apresentaram procedências diversas devido às diferentes parcerias estabelecidas pelo SEAVIDAS. Eram procedentes do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP, de um Centro de Saúde Escola ligado ao Hospital e da Delegacia de Defesa da Mulher do município de Ribeirão Preto As participantes já frequentavam semanalmente este Centro de Saúde Escola para uma atividade de assistência que a própria pesquisadora realizava como cumprimento de créditos de Estágio em Arteterapia e portanto já haviam sido encaminhadas anteriormente. Em um levantamento prévio junto ao SEAVIDAS sobre o local de realização da pesquisa, estabeleceu-se que este Centro de Saúde Escola, em parceria com a Administração Regional do bairro apoiariam a realização do projeto cedendo espaço físico para realização do mesmo. Desta forma, uma sala ampla foi disponibilizada semanalmente para realização do grupo de mulheres. 4.2 Material e Métodos Os materiais utilizados neste projeto foram de natureza expressiva e projetiva. Em relação às técnicas expressivas, foram utilizados materiais que permitem à participante expressar seus sentimentos, desejos, conflitos, temores e potenciais por meio de materiais plásticos tais como papel sulfite, papel cartão, lápis de cor, tinta, massa de modelar, cola, tecidos, revistas, entre outros. Metodologia 33 As técnicas expressivas foram aplicadas conforme um modelo de expressão e interação com o meio em diferentes níveis, o “Continuum das Terapias Expressivas” (ETC- Expressive Therapy Continuum), formulado por Kagin e Lusebrink (1978 apud LUSEBRINK, 1990). É denominado um continuum porque se considera a formação da imagem e o processamento de informações em quatro níveis. Os três primeiros níveis, numa perspectiva desenvolvimentista abarcam os níveis (LUSEBRINK, 1990): - sensório/motor (K/S): sensação tátil ou outra sensação emergente da interação com o meio artístico, exemplo: pintar com os dedos (nível sensorial) e expressão por meio da ação motora e movimentação corporal, exemplo: rabiscar o papel (nível motor) - perceptual/afetivo (P/A): atribuir forma, definir limites à partir da expressão, criar ordem, exemplo: fazer mosaico (nível perceptual) e expressão de sentimentos, exemplo: trabalhar com tintas fluidas, com música. - cognitivo/simbólico (C/S): formar conceitos, atribuir relações espaciais e verbalização, exemplo: fazer colagem (nível cognitivo) e formação de conceitos novos e intuitivos, exemplo: definir formas a partir de rabiscos (nível simbólico). O quarto nível, denominado Criativo (CR) pode perpassar todos os outros níveis, mas também pode se constituir como um nível particularizado. Este nível pode ser alimentado de diversas maneiras, mas o trabalho com diferentes materiais expressivos proporciona a abertura e a ampliação da percepção dos estímulos ambientais e internos (LUSEBRINK, 1990). Além de técnicas expressivas, foi utilizada uma técnica projetiva neste trabalho. Bellak e Symonds (1950, apud ANZIEU 1988) apresentam uma importante distinção entre técnicas expressivas e técnicas projetivas. Em técnicas expressivas o sujeito se porta livremente em relação a instruções ou materiais propostos. Já nas técnicas projetivas, as respostas são livres, mas o material é definido e normatizado. Em relação ao conceito de projeção, Anzieu afirma: a estruturação inconsciente do material, a liberdade das respostas e do tempo, o fluxo relativo das instruções tornam a situação projetiva em certa medida ‘vazia’, vazio que o sujeito deve preencher, recorrendo menos a suas aptidões e inteligência, e mais aos recursos profundos de sua personalidade. (1988, p. 26) Metodologia 34 Uma técnica projetiva, em especial, foi utilizada no processo arteterapêutico, tendo em vista que a pesquisadora é psicóloga e pode fazer uso de um método de investigação da personalidade que cabe somente à sua categoria profissional. Utilizou-se o Desenho da Figura Humana (DFH), instrumento avaliado e com parecer favorável para utilização pelo Conselho Federal de Psicologia. Este é um método projetivo gráfico que se propõe a avaliar os aspectos da estrutura e dinâmica da personalidade. Uma simples solicitação é feita ao participante: “Desenhe uma pessoa” e desta forma, a pessoa faz o desenho de uma imagem corporal que se torna um veículo de expressão de sua personalidade, ou seja, “a imagem corporal e conceito de si mesmo se equivalem. A imagem corporal é projetada no desenho da figura humana, e consequentemente o conceito de si mesmo” (VAN KOLK, 1984, p. 16). Desta forma, como o conceito de si mesmo pode equivaler à auto-imagem que a pessoa tem de si. 4.3 Procedimentos da Intervenção Arteterapêutica As oficinas arteterapêuticas foram oferecidas semanalmente com 1 hora e meia de duração. O trabalho foi realizado em cerca de 28 encontros, perfazendo nove meses de trabalho. O desenvolvimento da oficina arterapêutica seguiu um modelo proposto por Allessandrini (1996), denominado Oficina Criativa®. Este modelo se aplica majoritariamente no contexto psicopedagógico, entretanto será feita nesta pesquisa uma transposição para o contexto da assistência em saúde. Este modelo de intervenção em arteterapia também utiliza o Continuum de Terapias Expressivas (ETC) de Kagin e Lusebrink (1978 apud LUSEBRINK, 1990) enquanto modelo conceitual de referência para o trabalho arteterapêutico. A Oficina Criativa® consiste em cinco etapas a serem desenvolvidas em cada encontro (ALLESSANDRINI, 1996, p. 41): - Sensibilização: ativação e integração dos canais sensoriais, liberando resistências internas, de modo que as impressões sejam organizadas ao nível de imagens. Metodologia 35 - Expressão Livre: utilização de técnicas e recursos artísticos para expressão de sentimentos e pensamentos, por meio da linguagem não-verbal. - Elaboração da Expressão: retorno à produção artística a fim de retrabalhar formas em seus contornos, linhas e cores. - Transposição da Linguagem: transpor para a linguagem verbal o vivido, com o sentido de “re-significar” a experiência, podendo ser realizado com contribuição de outros participantes do grupo. - Avaliação: percepção crítica sobre a experiência vivida. 4.4. Procedimento de Avaliação do Processo Arteterapêutico O DFH será proposto neste estudo como uma forma de avaliar a dinâmica da personalidade de uma participante do grupo em dois momentos do estudo: no pré e pós intervenção. Ao início e ao final do processo arteterapêutico será aplicado este instrumento com o propósito de avaliar se houve alguma mudança na concepção da auto-imagem das mulheres, e portanto, para avaliar se houve alguma mudança no conceito de si mesmo 4.5. Procedimentos de Análise dos Dados A análise de dados desta pesquisa-intervenção de base qualitativa foi feita a partir da análise compreensiva da produção artística de uma participante (Estudo de caso) sob o referencial da Psicologia Analítica. Selecionou-se, do grupo original, fragmentos relevantes para apresentar aspectos que corroboram com a base teórica trabalhada nos capítulos anteriores. Em relação à construção da auto-imagem foi feita a análise do DFH da participante do estudo de caso conforme método “livre inspeção do material”. Esta forma de avaliação baseia-se em análise globalística, ou seja, a partir do conjunto todo da produção (desenho, inquéritos e outras associações). Nesta análise são levantadas hipóteses referentes às angústias e conflitos predominantes, à natureza Metodologia 36 dos impulsos, das fantasias inconscientes, das defesas mais utilizadas, entre outros aspectos, com base no referencial de Van Kolk (1996). 4.6 Procedimentos Éticos O SEAVIDAS emitiu parecer favorável à realização desta pesquisa e às participantes foram informados os objetivos desta por meio da apresentação de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) (ANEXO A) formulado a partir de orientações éticas no tocante à pesquisa realizada com seres humanos. O Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, sob o processo nº 6795/2009 também aprovou a realização deste trabalho. Resultados e Discussão 37 5. RESULTADOS E DISCUSSÃO Inicialmente, apresentar-se - à (1) dados relativos à construção e desenvolvimento do processo grupal, bem como breve caracterização das participantes. Em seguida será feita (2) a descrição das técnicas e estruturação das oficinas do processo arteterapêutico, (3) a análise do processo arteterapêutico de uma participante (estudo de caso), abordando concomitantemente os procedimentos técnicos utilizados e os processos psíquicos subjacentes ao trabalho e (4) a análise comparativa do Desenho da Figura Humana no início e ao final da intervenção.. 5.1 Dados descritivos sobre o grupo O grupo iniciou-se com cinco participantes, sendo que uma delas esteve presente no primeiro encontro apenas e uma outra participante abandonou o grupo a partir do VI encontro. Desta forma o grupo caminhou de forma constante com 3 participantes até a metade do processo, visto que uma participante abandonou posteriormente o grupo: - E. , 41 anos, proveniente da Delegacia de Defesa da Mulher. Sofrera violência sexual na infância por um irmão e durante um casamento de 18 anos sofreu violência física e psicologia do marido. Há menos de um ano está separada judicialmente. Há dois anos perdeu uma filha de 18 anos, tem um filho de 16 anos morando com o pai e outro filho deficiente de 23 morando com ela. Ela desenvolveu o Transtorno Bipolar há cerca de 2 anos, apresentando, sobretudo surtos de mania e hoje controla os sintomas por meio do medicamento de Lítio. Ela trabalha como diarista, fazendo faxinas. - S., 22 anos, funcionária proveniente de um Hospital Geral, casada há três anos, tem sofrido violência física e psicológica. Ela casou-se com um homem que apresenta surtos dissociativos recorrentes (hipótese de esquizofrenia), durante os quais quebras móveis e equipamentos da casa e por vezes a agride. O casal tem uma filha de três anos (gravidez antes do casamento) que está sob Resultados e Discussão 38 acompanhamento psicológico no Hospital devido à agressividade do pai. Ela trabalha como auxiliar de faxina neste local. - R., 45 anos, proveniente de um Centro de Saúde Escola. Sofrera abuso sexual na infância, embora o abusador não tivesse sido identificado. Há cerca de 5 anos descobriu que o ex-marido estava abusando sexualmente de seus filhos – uma menina de 4 anos e um garoto de 10 anos (idade atual), o que reforçou a vivência do abuso. Ela casou-se 3 vezes e tem 6 filhos. Ela apresenta fortes traços paranóides. R. Trabalha como cabeleireira. Cumpre destacar o perfil bastante heterogêneo do grupo, em relação às faixas etárias e natureza da violência vivida. Podemos observar relevantes aspectos: - abuso sexual sofrido na infância - violência cronificada e sua relação com desenvolvimento de transtornos psiquiátricos. - violência doméstica intrafamiliar e a violência perpetrada por parceiro íntimo. 5.2. O Processo Arteterapêutico As 28 oficinas desenvolvidas foram elaboradas conforma Sensibilização, Expressão Livre, Transposição de Linguagem e Avaliação. O item Elaboração da Expressão (previsto nesta metodologia) foi incorporado, neste trabalho, ao item Expressão Livre. Cada oficina foi planejada semanalmente, a partir de cada encontro realizado e em função dos seguintes aspectos: - diversidade de recursos expressivos visando proporcionar a expressão de conteúdos subjetivos diversos por meio de canais expressivos variados. - imagens simbólicas produzidas e carregadas de significados. - aspectos psíquicos (emocionais e verbais) emergentes em função de determinado recurso/técnica utilizado. Desta forma, o processo arteterapêutico foi desenvolvido com a utilização de recursos e técnicas expressivas bastante variados tais como desenho, pintura, modelagem, imaginação ativa, criação de história, escrita criativa, leitura de contos, Resultados e Discussão 39 trabalho corporal com música, trabalho com o tato (sensorial) que serão posteriormente analisados conforme o processo arteterapêutico. Os recursos utilizados foram compostos em consonância com o modelo de expressão e interação com o meio em diferentes níveis, o “Continuum das Terapias Expressivas” (ETC- Expressive Therapy Continuum) (1978 apud LUSEBRINK, 1990). Desta forma estes recursos foram utilizados visando acessar os diferentes níveis do contínuo de modo integrado. O Quadro 1.0 apresenta a correspondência entre o nível da construção imagética e os recursos expressivos utilizados no processo arteterapêutico Nível sinestésico Nível sensorial Nível perceptual atividade corporal/cinética, amassar massa de biscuit, rabiscar sensação tátil (tocar diferentes materiais, com texturas diversas) modelar, desenhar (integra nível cognitivo) colorir com lápis de cor, pintar com Nível afetivo tintas, trabalhar com retalhos coloridos. Nível cognitivo Nível simbólico desenhar, realizar a escrita criativa, internalizar comando verbais leitura de contos, imaginação ativa, criação de histórias 1.0 Quadro – A correspondência entre níveis imagéticos e recursos expressivos O Nível Criativo expressa a experiência criativa e por isto perpassa todos os níveis do ETC. De fato os níveis descritos no Quadro 1.0 não se apresentaram de forma estanque pois alguns recursos foram utilizados integrando mais de um nível e serão apresentados ao longo da discussão. A estruturação da Oficina Criativa também baseou-se no ETC. A maioria das atividades de Sensibilização correspondeu a ativação dos níveis sinestésicos/ sensoriais (K/S), entretanto, a leitura de contos (nível simbólico) também atuou como um fator de sensibilização para a expressão. Resultados e Discussão A Expressão 40 Livre aconteceu a partir da estimulação perceptuais/afetivos (P/A), caracterizando a pensamentos meio do modelagem, por desenho, expressão de dos níveis sentimentos pintura. Os e níveis cognitivos/simbólicos (C/S) também foram integrados à Expressão Livre, mas com menor intensidade. A imaginação ativa ilustra este aspecto. A Transposição da linguagem correspondeu a atividades focadas nos níveis cognitivos/simbólicos (C/S), ainda que outros níveis, em menor grau, também foram acessados neste item. A Avaliação, por vezes aconteceu conjuntamente à Transposição da Linguagem, mas de modo geral correspondeu sobremaneira ao acesso a níveis cognitivos. (Em relação às diferentes expressões, cumpre destacar que o processo arteterapêutico se pautou majoritariamente em expressões visuais, expressões que retêm o componente do desenvolvimento do imaginário (1978, p. 4 apud LUSEBRINK, 1990). As expressões auditivas (música) e sinestésicas (atividades corporais) se inseriram no processo dentro das atividades de sensibilização. A partir da descrição do processo arteterapêutico pode-se observar que foi satisfatória a transposição da metodologia Oficinas Criativas (ALESSANDRINI, 1990), utilizada principalmente no contexto da educação, para o trabalho com mulheres vitimizadas, no contexto da saúde. 5.3. Estudo de Caso O processo arteterapêutico será apresentado por meio do Estudo de Caso da participante R. (nome fictício Rose), selecionada pela sua capacidade de se expressar plasticamente, analisar e expor suas percepções sobre o vivido, mas também porque apresentou uma vinculação inicial difícil e resistente, seguida de forte adesão à arteterapia. Rose começou a participar do Grupo a partir da 5ª oficina. Quando chegou pela primeira vez no local de atendimento ela se deu conta de que o trabalho era realizado por meio de um grupo. Resultados e Discussão 41 Ela disse não saber disso e que não poderia falar o que teria pra falar em grupo, se desculpando com a outra participante e dizendo não ser nada com ela. Dado o acolhimento e a explicitação das características do grupo em relação ao sigilo ético, ao número reduzido de participantes, às diversas procedências das mulheres, Rose se acalmou e consentiu em participar. Em seguida disse para fechar a porta porque as pessoas não poderiam ficar ouvindo o que ela tem a dizer. A natureza desta primeira interação entre Rose o grupo foi ilustrado como objetivo de elucidar aspectos importantes do funcionamento psíquico desta participante. Sentimentos persecutórios e medo indicaram grande sofrimento psíquico e dificuldade no estabelecimento de um vínculo de confiança. Entretanto o acolhimento grupal e a própria metodologia da intervenção em Arteterapia foi um aspecto facilitador da adesão da participante ao grupo Ainda que Rose iniciou tardiamente sua participação, o grupo ainda vivenciava o início do processo arteterapêutico, caracterizado por um atividade diagnóstica que permitisse a expressão da auto-imagem das participantes (Desenho da Figura Humana). Consigna: a atividade foi dirigida e pronunciada da seguinte forma: Os materiais estão à sua disposição , vocês poderão desenhar uma mulher da forma como desejaram, colorindo-a ou não. À medida que concluíram o desenho foi sugerido: Vocês poderão criar uma história sobre esta mulher, utilizando lápis e papel. Estou à disposição caso alguém queria me ditar a história para eu transcrevêla. Este método consistiu na utilização do recurso gráfico num primeiro momento, seguido da criação de uma história. Natureza da Técnica: a atividade de desenhar integrou os níveis perceptuais e cognitivos neste caso, uma vez que a solicitação evocou o trabalho de criar uma forma no papel em branco, mas de um elemento (mulher) previamente “conhecido”, o que implicou a formação de conceitos, relações espaciais e mapas mentais. Já a criação da história pressupôs o acesso ao nível simbólico, enquanto capacidade de abstração, imaginação e criação. A criação da história integrada ao desenho pode representar o drama emocional manifesto através dos sentimentos e necessidades expressos, conforme apresentado: Resultados e Discussão Figura 1 42 Figura2 Rose acolheu sem resistências a proposta da técnica, manifestando contentamento. Durante o desenho da mulher na Figura 1 ela relata ter faltado papel para ela continuar e que teve que espremer as pernas. Quando terminou o desenho relata ter se desenhado com uma saia florida porque gosta bastante de dançar, de alegria e também de se pintar e se cuidar. A Figura 2 representa o desenho realizado na oficina seguinte em que a participante pede para fazer outro desenho. E ao terminá-lo mostra-o dizendo que aquela mulher estaria mais próxima do que ela realmente é e diz: parece até um desenho mais de escola, mas hoje eu me vejo assim. Em seguida com a proposta da criação de uma estória sobre a mulher desenhada ela escreve: Às vezes eu observo a J., minha filha brincando e penso do que eu gosto de brincar. Eu não sei quem eu sou, eu sei quem eu me tornei, muito do que sou hoje é criação minha para viver melhor, de um tempo pra cá.... Eu não sei quem eu sou, eu sei quem eu me tornei... Não sei se existe isso, mas o meu desejo é encontrar a minha criança e deixá-la florescer... Sinto que a minha menina teve que amadurecer antes do tempo... Ela pede para ler em voz alta e quando lê: o meu desejo é de encontrar a minha criança e deixá-la florescer e diz que desde os 6 anos sempre cuidou dos Resultados e Discussão 43 outros e que não teve infância, não brincou e que agora ainda quer cuidar de si mesma e reforça isto ao ler com ênfase: durante muito tempo eu cuidava o tempo todo e me sentia muito triste, hoje sei que era porque eu me cuidava pouco, me abandonava. Hoje eu quero ter meus momentos. A Figura 1 em associação com a fala de Rose revela uma mulher despojada, com saia florida, dançante. Mas chama atenção o fato da figura feminina ter sido representada pela feição de uma mulher num corpo de menina, pois a mulher foi representada sem seios ou quadris, aludindo a aspectos imaturos e primitivos em relação ao desenvolvimento do feminino. Cumpre destacar que a própria figura representada não coube na dimensão do papel e os pés ficaram espremidos. Isto pode expressar um feminino cerceado, restringido, e imaturo que clama por maior espaço de expressão. A Figura 2 já apresenta uma dimensão mais primitiva da auto-imagem. O fato da menina ter amadurecido antes da hora parece realmente ter sido representada nesta figura por uma mulher com cabeça de uma pessoa adulta no corpo de uma criança, ou seja, num corpo menos elaborado e mais frágil. Isto sugere importante imaturidade sexual e afetiva, e supervalorização do intelecto, que por sua vez pode estar fortemente relacionado à vivência precoce do abuso sexual. Segundo a fala da participante, em outros processos terapêuticos conseguiu acessar uma memória inconsciente do início do abuso sexual ter acontecido ainda quando bebê. Os registros são mais corporais do que em termos de memória visual. Cumpre destacar que tanto as mulheres desenhadas quanto a história criada se reportavam diretamente à figura de Rose, ou melhor, ela falava diretamente sobre si mesma, o que também sugere certa dificuldade no processo de simbolização tendo em vista a expressão estar maciçamente ancorada na realidade. Em outros termos a proteção simbólica para expressão não foi utilizada: ela falou diretamente sobre si mesma. Em relação ao processo arteterapêutico isto foi importante para atentar ao fato da importância do trabalho com o acesso aos níveis simbólicos. Integrar o Desenho da Figura Humana com a criação de uma história sobre a figura desenhada enriqueceu a avaliação diagnóstica e forneceu as primeiras bases para o desenvolvimento do processo arteterapêutico. Resultados e Discussão 44 Nas oficinas seguintes as atividades houve a intensificação o trabalho com a formação de imagens processadas nos quatro níveis do ETC: Sensório/motor, Perceptual/afetivo, Cognitivo simbólico e Criativo. A oficina posterior foi realizada por meio da seguinte atividade: relaxamento corporal com meio de música e Expressão Livre proposta a partir da realização de rabiscos aleatórios em folha sulfite - Consigna: vocês podem fechar os olhos, deixar a respiração fluir e espaçar as respirações sentindo todo o corpo... podem abrir lentamente os olhos e ficar à vontade para fazer rabiscos com lápis de cor na folha sulfite com as cores que desejarem... agora sintam-se livres para mexer com a massa de modelar explorando bem o contato com a massa... um momento de relaxamento, percebam como se sentem, como está o corpo... retornem aos rabiscos feitos no papel e como um desafio, encontrem possíveis imagens formadas a partir dos rabiscos; à medida em que encontrarem representem a imagem em uma outra folha sulfite. -Natureza da Técnica: esta técnica integrou todos os níveis do ETC, gradualmente passando por todos os níveis da formação de uma imagem. O nível cinestésico foi acessado por meio do intenso trabalho motor ao fazer rabiscos ao proporcionar uma verdadeira descarga caótica, liberadora de tensão e energia (KRAMER, 1971 apud LUSEBRINK, 1990). O aspecto afetivo expressou no contato com as cores puras ao se realizar rabiscos de modo que o sentimento expressa-se integrado à descarga motora e as cores se ligam a conteúdos emocionais. O acesso ao nível sensorial foi proporcionado pela música, pela respiração e pela livre exploração da massa de modelar com o intuito de melhorar a percepção das sensações internas e o abandono do controle consciente para facilitar o acesso ao nível seguinte. O nível perceptual foi expresso pela criação de uma ordem a partir de um meio sem estrutura, em busca da forma (RUBIN, 1978 apud LUSEBRINK, 1990). Por fim o acesso ao nível simbólico nesta técnica é o fechamento deste processo pois a emergência da imagem se concretiza com a formação de conceitos intuitivos. As figuras 3 e 4 podem ilustrar esta técnica. Resultados e Discussão Figura 3 45 Figura 4 Sobre a figura 3 inicialmente Rose fez os rabiscos bastante intensos e comentou que estava colocando muita força uma vez que acabou a ponta do lápis. Ela iniciou os rabiscos com a cor vermelha e em seguida fez rabiscos com a cor azul, por fim, ao fundo fez uma paisagem com cores menos intensas, utilizando também menos força no traçado. Sobre sua produção ela fez a seguinte associação: vejo um campo com algumas flores e bolas laranja de alegria, mas o vermelho e o azul não deixavam ver direito. Queria extravasar uma raiva que parece nunca acabar dentro de mim. A manipulação da massa de modelar alterou perceptivelmente a tonalidade emocional de Rose, que se mostrou mais desperta, ativa, intensa e sentindo prazer. Ela disse que gostaria de ter uma massinha em sua casa e que há tempos sentia o desejo de apertar, mexer com uma massa ou argila. Em seguida com a sugestão de retornar ao desenho em busca de uma imagem, transpondo-a, Rose fez o desenho da figura 4 e ao terminar disse: agora sim eu consegui desenhar o campo de flores e a alegria está aparecendo bastante, assim como os corações... Quando fico com raiva eu estrago a paisagem e a alegria não aparece. Os corações representam o amor e é um símbolo que eu gosto muito. Ela utilizou as cores para falar dos ânimos, do afeto, ou seja, para falar de um forte sentimento de raiva, representado com o traçado vermelho intenso e continuado com o traçado azul intenso (cor fria que parece ter amenizado este afeto). O contraponto ofertado por ela foi uma paisagem com bolas laranjas que associou à alegria e corações vermelhos, associados ao amor. É interessante notar que a mistura das cores vermelho e azul resultam em violeta e a cor complementar Resultados e Discussão 46 do violeta é o laranja, cor utilizada para expressar a alegria que se contrapunha à raiva (azul+vermelho). De certa forma Rose parece empreender grandes esforços inconscientes sobre como metabolizar a intensidade da raiva que por vezes a toma. De certa forma esta atividade mostrou uma busca espontânea dentro de si de como lidar com este sentimento. A vivência da raiva (contida ou não) realmente parece ser intensa em mulheres vítimas de violência doméstica e sexual. A busca de recursos curativos e metabolizadores pareceu ser um caminho possível de ser trabalhado no processo grupal. Nas oficinas seguintes, a proposta da Imaginação Ativa poderia seria um recurso facilitador deste processo. Soma-se a isso o fato de todas as participantes do grupo na atividade anterior, quando buscaram encontrar formas nos rabiscos representaram imagens referentes a algum tipo de paisagem. Isto chamou a atenção e pode-se dizer que aconteceu uma importante ressonância. Iniciar a Imaginação ativa no contexto de uma paisagem, pareceu ser bastante adequado neste momento. McNeilly (1983) teceu importantes reflexões sobre a abordagem não diretiva da Arteterapia e a Ressonância em grupos de arte. O fato de não se oferecer ao cliente um tema pré-elaborado permite que esta abordagem acolha a “universalidade no grupo e a sua vida simbólica” (1983, p. 8) (tradução nossa).1 Segundo este autor a Ressonância é evidenciada quando o aspecto não diretivo proporciona maior liberdade para o grupo fazer associações e assim são construídas verdadeiras imagens coletivas. - Consigna: A imaginação Ativa iniciou-se com uma sensibilização caracterizada pela sugestão: fechem os olhos, verifiquem se estão sentadas em uma posição confortável, diminuam o tempo da respiração... agora comecem a imaginar que você está na sua paisagem.... olhe ao redor... como é esta paisagem, como está a temperatura, qual é o cheiro... caminhe pela paisagem.... você encontrará uma gruta e então decidirá se deseja ou não entrar nesta gruta... como se sente?... então uma mulher virá ao seu encontro... ela é uma maga... como ela é, como está vestida, como é recebida por ela?.... Esta mulher lhe dará um presente.... você recebe o presente, o que sente?.. então começa a abrir o presente, o que 1 McNEILLY, “the universality in the group and its symbolic life” (1983, p. 8). Resultados e Discussão 47 vê?... como é este presente? ... .... .... então você se despede da maga e segue seu caminho, caminhando de volta.... - Natureza da Técnica: o relaxamento e a interiorização iniciais evocam o nível sensorial e em seguida o trabalho é conduzido por meio do acesso ao nível simbólico. Um dos aspectos mais relevantes para se ter utilizado este recurso neste momento do processo porque, segundo Weaver (1996, p. 19), “na imaginação ativa acontece uma resposta direta do inconsciente à participação consciente do ego”. A participação do ego neste recurso sugere que as escolhas das imagens por meio da imaginação ativa são feitas parcialmente de forma inconsciente, de modo que os dinamismos conscientes e inconscientes caminham juntos (WEAVER, 1996). Além disso o acesso ao nível simbólico aqui acontece por meio da personificação das figuras do inconsciente. Assim, elas se tornam vivas e numinosas, conforme Weaver (1996). Nichols (1980) afirma que a Imaginação Ativa se configura como método de dramatizar a nossa conexão com uma figura interior. Após a sugestão de retornar lentamente à sala e abrir os olhos vagarosamente, após alguns minutos de silêncio Rose disse: não consegui entrar na gruta, não gosto de lugares fechados, acho que é porque o meu abuso aconteceu à noite. Rose disse não ter conseguido “mergulhar muito”, disse ter visto tudo no mental e não entrou na gruta por que se sentia sufocada e realmente diz se sentir sufocada em lugares fechado. Ela associa isto ao fato de seu abuso ter acontecido de noite e porque também não consegue dormir na casa de estranhos se não há tranca na porta do quarto. Estas associações aludem ao medo e ao temor da perseguição e da invasão vividos psiquicamente. Ao estar diante da gruta ela estava se confrontando com problemas centrais e nesse sentido Weaver (1991) afirma que “numa Imaginação Ativa com participação autêntica, com o tempo irá encaminhar-se para uma situação que parece insolúvel. Ela é efetivamente testada e confronta-se com um problema que a afeta tanto quanto dificuldades provenientes da vida externa” (WEAVER, 1991, p. 41). É interessante notar que a despeito do relato, Rose encontrou a maga e disse: mesmo assim eu encontrei a maga e ela era parecida comigo, também tinha Resultados e Discussão 48 os cabelos curtos. Ela me deu um pacote que tinha um xale muito bonito, eu adorei o xale e já saí com ele. Vou sair daqui hoje e comprar um xale. Analisando a pertinência simbólica do presente recebido da maga por todas as participantes, a proposta seguinte seria dar corpo a estas imagens, transpondoas do imaginário para a realidade palpável e assim ampliando as associações possíveis sobre a imagem. - Consigna: diante de vocês estão massas coloridas, novamente sintam-se à vontade para experimentá-la livremente, vocês podem amassar, fazer bolinhas, rolinhos, misturar cores... gostaria que vocês pudessem representar com a massa de modelar o presente que receberam da maga. - Natureza da Técnica: A vivência da modelagem iniciou-se com s sensibilização por meio da ativação dos níveis sinestésico e sensoriais com a estimulação tátil ao amassar a massa, mas trabalhou também o acesso ao nível perceptivo ao enfatizar o trabalho de dar uma forma à massa. A Modelagem pareceu ser um recurso bastante adequado para este finalidade, visto que diante deste recurso tem-se um objeto tridimensional, palpável que atua como testemunho da vivência e das mensagens do inconsciente (BOZZA, 2000). Isto pode oferecer um espaço de novas associações, novos insigths ou percepções. Conforme a imagem a seguir, Rose modelou o xale recebido e teceu associações pertinentes ao seu processo: Figura 5 Rose inicia rapidamente a modelagem do xale. Ela relata que o xale representava algo de que ela gostava muito pois tinha a sensação de se sentir Resultados e Discussão 49 abraçada, sentia afeto e dizia gostar de sentir aquilo macio em seu braço, como se fosse um abraço; algo que ela poderia por e tirar que não ficaria nua. Ela diz: “xale enquanto um abraço que abraça, protege e acolhe”. Além de representar esta capacidade de se acolher afetuosamente, simbolicamente, o xale parece fazer alusão também à importância da continência, sobretudo à continência psíquica. Neste caso, a psique expressou uma necessidade visto que muitos relatos de Rose são feitos com muita intensidade e com frequência ela se diz ser tomada por sentimentos que não cabem dentro delas ou situações que ela sente que vai transbordar. A etapa seguinte do processo foi modelar a própria Maga, modelar a figura da mulher que veio ao encontro de cada uma. - Consigna: vamos nos colocar em pé soltar o corpo conforme o ritmo da música, cada uma respeitando o seu corpo... podem diminuir os movimentos e fechar os olhos... deixe vir agora a imagem da maga, relembrem aquele encontro... olhem para aquela mulher... abram os olhos... agora vocês estão diante da massa de biscuit, tentem representar aquela maga na massa de biscuit da forma como desejarem - Natureza da Técnica: novamente houve acesso ao nível sensorial e simbólico a fim de fazer o resgate da imagem produzida anteriormente. A massa de biscuit foi o recurso utilizado nesta atividade devido à sua consistência, sua maleabilidade e a possibilidade de ser colorida posteriormente. Figura 6 Figura 7 Figura 8 Resultados e Discussão 50 Esta etapa do processo foi lenta e se deu por meio de várias oficinas. Rose trabalhou com muito zelo em sua peça. A pesquisadora ofereceu contribuições técnicas para a confecção da peça sem interferir na espontaneidade das participantes. Rose optou por não desenhar o rosto e disse que a maga tinha cabelos curtos. Inicialmente fez a mulher com os braços fechados, como se estivesse abraçando-se, conforme relato. Ao final da confecção teve um insight de que na verdade aquela mulher estava coberta com um xale, produziu a forma do xale e sentiu-se repleta com este insight. Após a modelagem foi sugerida a pintura da peça com a tinta acrílica e diante da imagem pronta Rose disse que aquela mulher era como se fosse um Eu dela mais divino, mais superior, e que estivesse com ela: cada vez mais eu sinto que ela sou eu, está dentro de mim. Isto elucida o fato dela ter confeccionado a maga com o xale; é como se ela tivesse confeccionado a si mesma ao representar uma mulher que viesse com um xale. Diante da imagem Rose se espanta e diz como que pode! Isso foi uma criação minha, veio de mim mesma... Eu fiz 5 anos de análise e nunca consegui me ver dessa forma. Refletindo sobre isso ela diz que hoje sabe que ela também tem a sua sabedoria, que ela pode ser respeitada pelo que ela é e diz que isso está dentro dela. Sorri e diz que realmente aquela mulher, hoje ela via como uma parte dela que é maior, mais divina mesmo, mas que está dentro dela. Então se pergunta: Deus também está dentro da gente desta forma? Toda essa representação parece dizer de algo no interior de Rose que lhe oferecesse uma conexão com aspectos divinos e “superiores”. Nos termos da psicologia junguiana esta conexão é feita com o nosso self, aquele aspecto da psique que é o nosso centro organizador e que contém a nossa essência, nossas potencialidade e que representa a totalidade perfeita da psique, daí associar-se a aspectos divinos. Cumpre destacar que na história pessoal de Rose ela teve um percurso religioso de quase 30 anos dentro da doutrina espírita, desenvolvendo sua mediunidade e servindo a um centro espírita. Ela diz que há 5 anos quando descobriu que seus filhos eram abusados pelo ex-marido, ouviu de muitas pessoas que ela deveria passar por aquilo como se fosse seu karma. Rose se enfurece ao dizer que não acredita nisto que não aceita justificativas para apaziguar a dor que Resultados e Discussão 51 sentia e assim abandona esta religião, vivenciando mais intimamente a espiritualidade. Esta pergunta a respeito de Deus fala desta busca interna do sagrado e sobre o estabelecimento de uma ponte que permite este encontro. Deste modo, a amplificação desta vivência pôde ser feita por meio de uma grande imagem mítica: a Temperança. Figura mitológica denominada ora como mulher, ora como Anjo, ela é associada a deusa Iris, a Diana e a Aquário. A Deusa Iris foi o personagem mitológico mais recorrente nestes achados. A Deusa Íris é conhecida como a Deusa do arco-íris, filha do Titã Taumas e de Eléctra, filha do Titã Oceano. Ela era mensageira de Zeus e de sua esposa Hera, assim, Íris deixava o Olimpo apenas para transmitir os ordenamentos divinos à raça humana, por quem ela era considerada como uma conselheira e guia. Viajava com a velocidade do vento, podia ir de um canto do mundo ao outro, ao fundo do mar ou às profundezas do mundo subterrâneo. Embora fosse irmã das Hárpias, terríveis monstros alados, Iris era representada como uma linda virgem com asas e mantos de cores brilhantes e um aro de luz em sua cabeça, deixando no céu o arco-íris como seu rastro. Resultados e Discussão 52 Denominada como Deusa/Anjo da Temperança, simbolicamente está associada a uma imagem que trabalha com fluxos, conexões e pontes, como o próprio arco-íris, estabelecendo ligações entre o consciente e o inconsciente, entre o feminino, o masculino, o espírito e a carne; daí associar-se também a um processo alquímico (NICHOLS, 1980). Nas imagens vê-se uma mulher com duas jarras de cores opostas, mas a ênfase está em jorrar este líquido de uma jarra a outra, simbolizando um fluxo de energia que é liberado. Nichols (1980, p. 252) diz que na Temperança, “a própria libido passa por uma transformação”. Esta transformação parece estar associada ao “ritual de vertedura [que] religa o herói ao mundo sagrado que ele vislumbrava” (NICHOLS, 1980, p 252). Pode-se compreender que esta figura interna protege a conexão de diferentes instancias psíquicas e permite ao ego consciente estabelecer conexões com aspectos mais profundos e mais sagrados do próprio Self. Esta dialética é vital dentro de uma vivência porque alude ao processo criativo, como um processo que cria fluxos e transformações da energia psíquica. Nesse sentido Rose estabeleceu com sua maga uma relação bastante criativa e íntima que pode ser bastante ilustrado nestas palavras de Nichols (180 p. 251): “o Anjo da Temperança pode personificar essa espécie de conhecimento interior que suplantará cada vez mais a “crença” e a “opinião” (NICHOLS, 1980). Ao falar em conhecimento interior pode-se fazer uma transposição para o termo “sabedoria interior” enfatizado nesta experiência arteterapêutica quanto ela se espanta diante de sua própria criação: “veio de mim mesma”. Cabe estabelecer um parênteses sobre esta discussão referente à metodologia da arteterapia em geral. Percebe-se que no processo arteterapêutico a sabedoria que se pronuncia é interna: o suposto-saber projetado no terapeuta é recolhido e está dentro do paciente, configurando um Processo Criativo genuíno que também é percebido por ele. A constatação de que o saber vem do si mesmo e não do outro, se mostra um aspecto bastante terapêutico. Na psicoterapia convencional, por exemplo, o saber ou a sabedoria estão inicialmente e maciçamente projetadas e são esperados que venham do terapeuta. Uma grande parte do processo terapêutico está em desconstruir este suposto-saber projetado no terapeuta. Com a Arteterapia este processo é acelerado porque os materiais expressivos fornecem uma materialidade a qual o paciente se apropria e identifica com seu saber. Kagin e Lusebrink afirmam que, Resultados e Discussão 53 a imagem externa criada, seja ela visual ou verbal, pode não representar a riqueza multidimensional e fluidez do imaginário interno. Na maioria dos casos, entretanto, a imagem será mais verdadeira à contrapartida interna do indivíduo se for expressa visualmente, do que se o for verbalmente. Com as expressões verbais o terapeuta tem que gerar imagens internas como resposta às descrições do cliente, afetando a percepção do imaginário através de suas próprias idiossincrasias (1990, p. 32). Cumpre destacar que o trabalho com a expressão visual inclui também a expressão verbal e esta última contribui muito para a ampliação das imagens internas. Neste caso, a “materialidade visual” da expressão parece auxiliar bastante na apropriação e na elaboração do conteúdo pelo sujeito. Isto também justifica a opção em trabalhar majoritariamente com expressões visuais neste processo arteterapêutico. Retornando ao processo, em seguida, foi proposta junto ao grupo uma vivência-ritual que pudesse proporcionar a integração das experiências vivenciadas no grupo até então, sobre tudo a respeito da conexão com aquela figura interior. - Consigna: a maga está convidando você para que possa escrever uma carta a ela, contando a ela suas intenções, desejos e o que mais quiser lhe contar. A carta não será lida por ninguém... (concluída esta etapa)... vocês podem acomodar-se diante das suas imagens presentes neste cenário e escolher uma vela da cor que desejarem. Acenda-a diante da maga e pense que está entregando a ela estas intenções. Escreve nos papeis em branco as palavras que a representam pra você, que características esta mulher tem?... agora é o momento de queimar estas cartas, entregando as nossas intenções. - Natureza da Técnica: esta técnica integrou o acesso aos níveis simbólicos (evocado pela relação a ser estabelecida com a maga e escrita das palavras que a representassem) ao nível cognitivo, representado pela verbalização das intenções pessoais. A escolha da cor da vela deixou que as participantes acessassem aspectos afetivos, bem como. O objetivo principal desta proposta foi oferecer continência à riqueza das imagens produzidas e também demarcar o encerramento de uma etapa do processo arteterapêutico. Para tanto, um pequeno cenário com a maga e o presente recebido foi confeccionado em forma circular, conforme a figura 9, a seguir: Resultados e Discussão 54 Figura 9 Rose se emocionou bastante ao escrever esta carta, chorou em várias ocasiões, mas depois se acalmou e expressou satisfação por escolher a cor de uma vela. Concentrou-se e escreveu as palavras que representavam a maga. No momento da queima, ela não quis queimá-la e pediu que fosse guardada pela pesquisadora e que a mesma a lesse, dizendo que o que escreveu foi muito forte. Foi feito o seguinte recorte de suas palavras: Devolva o grande amor que tenho por mim mesma e que por muito pouco eu abandono... o abuso é uma constante em minha vida, eu o reconheço, tenho muito ódio, mas as vezes não consigo evitar.. Em relação às palavras, Rose escreveu: Sabedoria, discernimento, reencontro comigo mesma, força, coragem, esperança. Durante a queima das cartas foi muito interessante perceber uma nova ressonância grupal. Espontaneamente as participantes falaram claramente sobre situações e a sensação de se sentirem assaltadas, roubadas, de terem sido ingênuas, etc. A própria Rose relatou isto quando se reportou à constância do abuso em sua vida e que já não seria o abuso sexual, mas o que sobrou dele: o abuso se sentir invadida (psiquicamente) por medos e por sentimentos de estar em constante risco. Analisando esta vivência-ritual posteriormente foi possível perceber que, até este momento do processo, o objetivo principal foi o fortalecimento destas mulheres, Resultados e Discussão 55 foi permitir-lhes que tivessem outras percepções sobre si-mesmas, assim como seus potenciais criativos e curativos. Mas a própria ressonância grupal trouxe um emergente que não se calaria – os aspectos destrutivos e devastadores da psique destas mulheres. Ou seja, é como se o processo realizado até então tivesse fortalecido estas mulheres para entrarem em contato com aspectos mais profundos da psique. A fim de acolher esta demanda do inconsciente foi proposto nas oficinas sequenciais o trabalho com contos de fada - Consigna: Gostaria que vocês se acomodassem da maneira mais confortável possível para que eu possa lhes contar uma interessante história chamada o Barba Azul, alguém conhece?... “O Barba Azul” (ANEXO B) de Charles Perrault é um conto de fadas que sumariamente fala de um homem de barba azul que é uma figura sedutora e misteriosa e de uma garota ingênua, mas curiosa que se apaixona por este homem, a despeito da alerta de suas irmãs mais velhas. Depois de casados, em uma de suas viagens, ele a confia um molho de chaves dizendo que uma chave jamais poderia ser usada para abrir um cômodo específico da casa. Mas esta jovem junto de suas irmãs encontra o quarto proibido e descobrem que lá estavam todas as exmulheres de Barba-Azul mortas por ele, por terem-no “desobedecido” e aberto aquela porta. Entretanto a chave-fada não para de sangrar e isto a denuncia para o Barba-Azul. Ele diz enfurecido que ela deverá morrer e ela suplica alguns minutos para rezar e pedir boa morte. Entretanto quer ganhar tempo até que seus irmãos cheguem para salvá-la. Após minutos de agonia os irmãos chegam e matam o Barba-Azul, salvando-a. - Natureza da Técnica: o trabalho com contos ativa o processamento de imagens ao nível simbólico ao se apresentarem por meio de metáforas. Von Franz (1990) afirma que os contos expressam da forma mais pura e simples os processos psíquicos do inconsciente coletivo e cada conto de fada é composto por um conteúdo psicológico essencial, como por exemplo, a experiência com a sombra, com o animus, a anima, etc. e assim se associam a processos universais e psíquicos. Resultados e Discussão 56 Na perspectiva junguiana os contos perpetuaram-se no tempo por desempenharem uma função psíquica muito importante relacionada ao processo de individuação, no qual o herói é o agente do processo. Todo conto de fadas traz a saga de um herói, seus desafios e suas superações. O herói é o restaurador de uma situação sadia, ele representa o modelo do ego que está trabalhando a serviço do self (VON FRANZ, 1990) Desta forma, um conto ou uma história apresentam o conflito por meio de um recurso que fala aos níveis mais profundos e primitivos da psique, daí a utilização deste recurso no processo. A metáfora simbólica proveniente deste conto poderia gerar reflexões interessantes ao grupo e assim o foi. Segundo Estés (1992) o Barba Azul é uma figura interna que representa um “predador natural da psique” de cada um e assim esta autora desenvolveu a interpretação deste conto em função do assassinato simbólico da criatividade feminina. Em função desta temática, um outro conto chamado A Moça Tecelã, num outro momento do processo, mas com a mesma finalidade, também foi utilizado para acolher a demanda dos aspectos destrutivos da psique, conforme ANEXO C. Este tema pareceu adequado ao trabalho com mulheres vítimas de violência doméstica e sexual porque há algo de inato neste predador, ou seja, o agressorpredador não é somente externo; parece haver uma força atuando internamente que encontra o predador externo e vice-versa também; mas o encontro com o predador real potencializa o predador interno. Neste sentido Estés (1992, p. 70) afirma que “embora possa ser o parceiro físico da mulher quem a prejudique e arrase sua vida, o predador inato dentro da sua própria psique concorda com isso”. Durante a leitura do conto, Rose levara seu xale e abraçou-se com ele, pois sentiu medo ao longo. As associações em relação ao Barba Azul foram muitas, uma outra participante disse que a solução teria sido a jovem não ter aberto a porta proibida, tudo estaria resolvido, mas Rose afirma que se não fosse assim ela jamais saberia quem era aquele homem. Desta forma surgiram temas como a traição, a ingenuidade, a realidade, o medo, a submissão, etc. Rose relata que hoje, em relação a muitos homens, foi muito inocente, não enxergando quem eles realmente eram e disse ter encontrado muitos Barba Azul pela vida. Resultados e Discussão 57 Conforme Jung este aspecto predador e assassino da psique é associado com uma força psíquica que se autonomizou em função de um desvio da libido no funcionamento psíquico da psique feminina. Tem-se a atuação de um animus tirano, invasivo e violento. Assim muitas projeções são direcionadas ao externo isentando o ego de assumir a parcela daquele homem tirano que está dentro de si. No primeiro contato com o conto o Barba Azul ficou claro como as participantes falaram das figuras que encontraram ao longo da vida projetando seus conteúdos. De acordo com Jung, E. (1967), a primeira etapa para o amadurecimento psíquico seria a “retirada da projeção” e “ato da diferenciação”, ou seja, “através da retirada da projeção, reconhecemos que não temos que lidar com algo que está fora de nós, mas com uma grandeza interior, e nos vemos diante da tarefa de aprender a conhecer a natureza e a atuação desta grandeza, deste ‘homem em nós’, para depois podermos diferenciá-lo de nós mesmas” (JUNG, E., 1967, p. 26). Desta forma, nos encontros seguintes foi sendo desenvolvido um trabalho com cada personagem do conto e a sua correspondência interna, sobretudo em relação à heroína do conto e o Barba Azul. Que metáforas simbólicas estes personagens gostariam de contar sobre nós mesmas? Aos poucos as participantes foram compreendendo que aspectos seus estavam simbolizados pelos personagens. - Descrição da Técnica: diante do conto do Barba Azul, gostaria que vocês pudessem representar da forma como desejarem a irmã mais nova, aquela que se casou com o Barba Azul. Se quiserem, posso reler trechos do conto. (Foram oferecidos materiais como lápis, papel, massa de modelar, manta acrílica, retalhos e fitas). - Natureza da Técnica: esta técnica trabalhou integradamente o acesso aos níveis perceptual e simbólico. Visto que diante de uma variedade de materiais as participantes deveriam estruturar uma composição que representasse aspectos daquela personagem. A maneira como aquela personagem poderia ser caracterizada acessou o nível simbólico. Ao final as associações e complementos verbais ativaram processos cognitivos. Resultados e Discussão 58 Figura 10 A partir da Figura 10 Rose expressou a irmã mais nova pegando uma pedaço de manta acrílica e o envolvendo em um tecido; amarrou o pano em volta da bolinha de manta acrílica e disse que era a irmã mais nova, mas não quis fazer os olhos, boca e nariz. A partir da imagem expressou-se verbalmente e teve importantes percepções sobre si mesma. Isto foi disparado também por um episódio concreto de sua vida. Uma vez que seus filhos foram abusados sexualmente há 5 anos ela entrou com um processo para afastamento judicial e proibição de visita permanente em relação às crianças e nesta ocasião ela foi chamada ao Fórum para entrevistas e avaliação psicossocial, conforme o processo judicial. Ela diz que na entrevista, por duas horas, teve que falar de toda sua infância, dos abusos e maus tratos que sofreu, o quanto sua família foi destrutiva com ela e não permitia que ela fosse alegre, viva, como tem sido hoje. Fala das mulheres de sua família e do quanto elas ‘secaram’ por seus maridos por não suportarem viver sozinhas Ela diz que a partir do conto e do grupo pode perceber muitas coisas, principalmente sobre os seus relacionamentos. Achava que tinha que suportar o sofrimento que havia em sua vida. Relata ter casado grávida com 16 anos e vivera 8 anos de modo muito sofrido pois devido à gravidez e por uma questão de culpa e orgulho achava que não poderia largar do ex-marido pela decepção à família e reprovação social. Assim, percebe que em seus outros dois casamentos também a Resultados e Discussão 59 situação de sofrimento se prolongou além do necessário. Rose traz a dor de sentir um predador tão forte de dentro de si mesma. Os aspectos da heroína parecem atuar na história de vida de Rose a partir da dificuldade em abrir aquela porta proibida e com isso negar muitos aspectos do sofrimento vivenciado em seus relacionamentos e se mantendo casada com o temor de abrir aquela porta que a leva à consciência. Num dado momento do processo, ela relata o término de seu relacionamento com o namorado e diz que hoje sua tolerância está menor, terminou após um ano de relacionamento em função principalmente de ter descoberto que ele realizava golpes pela internet. Ela diz que sabe o companheiro que quer hoje. Não quer um homem ao qual ela precise cuidar e diz: “Eu achava que precisava agradar e cuidar dos outros pra que eles gostassem de mim, mas hoje eu não preciso disso”. Disse que quer um homem mais maduro e mais independente pra que possam olhar a vida juntos e não apenas ter que cuidar dele. Acrescenta que fez seu aniversário de 45 anos com uma valsa, bolo, amigos e familiares e que foi uma experiência renovadora, como se ela estivesse debutando novamente... renascendo. Faz uma analogia aos seus 15 anos, quando dançou valsa e se sentiu plena naquela festa: “eu estava curtindo comigo mesma”, mas no ano seguinte engravidou, casou-se e sua vida foi muito sofrida. Ela sentiu que ao comemorar os 45 anos estava retomando certa alegria e um grande prazer em estar em sua própria companhia. Retornando à questão do Animus, a figura 13 foi produzida em uma das atividades realizadas a partir do conto o Barba-Azul, na qual foi sugerido que as participantes pudessem representar um homem. Depois de realizar o desenho Rose caracterizou este homem com as seguintes características: verdadeiro, amigo, companheiro, romântico, autêntico, idade entre 45-55 anos, espírito jovem, versátil, 78-88 quilos, 1,66-1,78 cm cabelos grisalhos, mãos bonitas, mais alegre, que me entenda. Resultados e Discussão 60 Figura 11 Inicialmente chama a atenção nesta imagem em que o homem foi representado como um jovem, enquanto a próprio masculino interno. Esta imagem parece confirmar a imaturidade do Animus e a precariedade da função discriminadora de logos, uma vez que os olhos hipnotizantes chamam bastante a atenção e associam a algum tipo de distúrbio na captação e discriminação de estímulos da realidade (aspecto discutido posteriormente). Pode-se dizer que o aspecto masculino interno tem atuado no sentindo do controle impulsional e racionalização excessiva uma vez que esta imagem, por apresentar traços angulares de praticamente 45º graus, alude a uma masculinidade agressiva e crítica no tocante à vida instintiva e emocional (van KOLK, 1984). O tamanho grande do pescoço refere um controle intenso e repressivo e também diz de disposições esquizóides e dificuldades em integrar pensamentos a sentimentos e impulsos vitais. A linha do queixo vem reforçar a separação entre o controle lógico e os impulsos. Os ombros aludem a atitudes hostis bastante defensivas ao contato. Diante destas constatações por meio da imagem, na etapa seguinte do processo foi sugerido o trabalho com o Barba Azul: Resultados e Discussão 61 - Descrição da Técnica: Retornando novamente ao conto o nosso desafio agora é representar o personagem do Barba Azul. Os materiais estão à disposição de vocês e estou aqui para o que precisarem. - Natureza da Técnica: Idem à anteriormente descrita. As participantes acolheram esta sugestão e Rose, optou desta vez por expressar-se com lápis de cor e papel sulfite, conforme a Figura 12. Figura 12 É Interessante notar Rose começou a se expressar escrevendo acerca de como ela acreditava que o aspecto Barba Azul atuava em si mesma e depois fez a representação gráfica com lápis de cor. Ela escreveu inicialmente: Ta uma confusão, pensamentos vazios, dor como aperto, parece que eu não sou capaz... espaço novo a ser criado. Mais diante do novo eu entro em pânico... pensei que poderia falar e depois me expressar e é como se eu estivesse perdida Resultados e Discussão 62 sem saber como agir, então orei. Quando eu me perco ou me roubo, nada é claro, é muito confuso. Quando terminou o desenho, optou por falar primeiro sobre ele e refere-se inicialmente à imagem central que era maior e feita com a cor preta. Ela disse ter feito o desenho em preto para simbolizar que sua cabeça vai apertando... apertando quando sente confusão, medo, tensão, etc.. Ela nomeia a imagem de ruim. Diante destas situações relata que começa a rezar bastante e isso é representado com o círculo menor em tons de lilás, e é nomeado como bom. De certa forma, percebe-se uma representação de um aspecto masculino agressivo e de um feminino mais agradável, melhor para ela.. De certa forma, isto também posse ser associado ao fato de que Rose oscilava bastante emocionalmente, ora sentindo-se plena, ora sentindo-se esgotada emocionalmente e esta confusão emocional a perturbava bastante. Parece clara a atuação de um complexo psíquico importante. Em relação aos sintomas físicos e/ou psíquicos que assolam muitas mulheres, sobretudo as mulheres vítimas de violência, podemos associar a sintomas de ataque, dores de cabeça, tensão na região peitoral, conforme relatado anteriormente por Koltuv (1990) em casos em que o Animus atua como um complexo negativo. Cumpre destacar que em várias atividades corporais realizadas na sensibilização Rose relatou sentir tensão nos ombros, pressão na cabeça e aperto no peito. Retornando à figura, a imagem central com contorno em preto é representada com flechas pretas que exercem uma força centrípeta sugerindo intensa pressão, como se uma grande energia se constelasse no centro da esfera e dali não tivesse para onde escoar. Esta imagem parece aludir à atuação psíquica de um complexo autônomo e importante. Segundo Jung (apud KAST, 1997, p. 49) “os complexos são grandezas psíquicas que escaparam ao controle da consciência. Separado dela, levam uma existência à parte na esfera obscura da psique, de onde podem, a qualquer hora, impedir ou favorecer atividades conscientes”. Kast (1997) relata o caso de uma paciente que fora abusada por seu pai, desenvolvendo assim um complexo paterno. Em seus achados ela afirma que além da projeção do complexo e sua reiteração nas relações com diferentes pessoas, ela diz do estado em que a psique se identifica com o complexo e passa a atuar como o Resultados e Discussão 63 abusador. Sua paciente era a vítima e ao mesmo tempo atuava como o pai agressor. Mas ainda que a personalidade funcione identificada a este complexo, Kast diz de um grande vazio: “elas [as pessoas] não vivem sua identidade, mas uma identidade derivada do complexo.” (KAST, 1992, p. 55) e neste caso, os olhos da psique interpretam tudo de acordo com o complexo. Utilizou-se o termo olho, porque no caso de Rose os seus fortes traços persecutórios e paranóides associam-se à captação das imagens a partir dos olhos do complexo. Desta forma, O recorte destas figuras foi feito para enfatizar e ilustrar graficamente como a psique expressa o que lhe é imperativo. Figura 1 (Recorte) Figura 2 (Recorte) Figura 11 (Recorte) Estes desenhos foram feitos em três ocasiões diferentes, mas o que impera nestes três recortes são os olhos. São olhos que nos hipnotizassem. Esta é a expressão da força deste complexo e por conseguinte do impacto que ele gera interna e externamente para Rose. Pode-se perceber que são olhos muito semelhantes aos olhos de um felino noturno (associado à capacidade da visão noturna). Pode-se pensar na amplitude do medo gerado para criar esta representação gráfica dos olhos, bem como a associação com um animus agressor e sombrio. Os olhos são órgãos essenciais para o contato com o mundo. Segundo van Kolk, (1984, p. 30), as pessoas que representam graficamente os olhos grandes “parecem absorver o mundo visualmente... podem também significar a desconfiança do paranóico e o seu poder hipnótico”. Os traços paranóides revelam sentimentos de desconfiança, hipersensibilidade, sentimento de perseguição, preocupação com a opinião alheia, etc. Resultados e Discussão 64 Na vida de Rose, a vivência infantil do abuso vem relatada com um grande conteúdo de raiva da mãe por ela não ter percebido que ela era abusada ou de não ter acreditado quando Rose revelava as suspeitas de abuso que havia sofrido na infância, acusando-a de ser “louca”. Ela critica a mãe dizendo que ela nunca foi ensinada a se ver como uma mulher, pois nunca ninguém a mandou tomar banho, ou pentear o cabelo ou colocar um vestido para se arrumar, melhor dizendo, é como se esta mãe não tivesse “olhado, enxergado” verdadeiramente a filha. Pode-se perceber que Rose vivencia também um complexo materno negativo. Rose revela que apesar de ser cabeleireira somente começou a pintar as unhas de vermelho, há dois anos, porque antes não se importava com vaidade. Pode-se dizer que Rose “trabalhava” para o feminino dos outros, negligenciando o seu próprio. Este aspecto pode associar-se à captação distorcida dos estímulos da realidade. Em relação ao seu desenvolvimento psíquico pode-se pensar que a distorção da realidade resulta da imagem distorcida que tem de seu próprio feminino originada do olhar da mãe e seu feminino também precário, assim como a vivência de um animus negativo, agressor e pouco desenvolvido. A isso se soma a vivência infantil do abuso, a desproteção materna diante disto e a reatualização desta vivência a partir do abuso de seus filhos, o que constelou muita energia em torno do abuso, e muito afeto foi impresso nestes eventos que se converteram em um importante complexo. Discutindo a cerca da identificação com o complexo pode-se fazer uma outra leitura da imagem circular com flechas centrípetas a partir do mito da Vagina Dentata. Esta associação pode ser feita não somente pela semelhança entre as figuras 7 (recorte) e 8, mas ao que ela alude. Figura 12 (Recorte) Resultados e Discussão 65 A Vagina Dentata é uma expressão em latim que remete a uma vagina com dentes. A vagina dentata aparece nos mitos de várias culturas. Neumann (1974) relata que um desses mitos no qual um peixe habita a vagina da Mãe Terrível; o herói é o homem que deve vencer a Mãe Terrível, quebrar os dentes da sua vagina, e então a tornar numa mulher.A vagina dentata na psique masculina pode associarse ao temor da castração frente à relação sexual e na psique feminina pode associar-se a uma espécie de proteção contra o estupro. No caso de Rose, a Vagina Dentata pode simbolizar a própria identificação com o agressor no sentido de autodefesa; para se proteger Rose pode atacar psiquicamente. É perceptível nesse processo que uma defesa utilizada inicialmente como um sentido de proteção é tão intensificada e enrijecida que se transforma um uma neurose geradora de muito sofrimento e ataque. Isto pode estar relacionado com a vivência conturbada em seus três casamentos, de modo que o relacionamento amoroso em sua vida foi grande fonte de sofrimento. Relata claramente como tem percebido ter muita dificuldade de enxergar a realidade como ela é. Rose que o ex-namorado a procura com frequência e mexe muito com ela uma vez que o envolvimento sexual é muito forte. Entretanto para não sentir o abandono, acaba cedendo ao encontro e em seguida se frustra consigo mesma por não se sentir plena. Nos últimos encontros ela relata que ele foi ao seu encontro, mas havia retornado das férias na praia com sua namorada e ainda assim a procurava. Ela teve que se controlar muito para não ceder ao seu convite de uma noite de amor. Diz que queria ir até o fundo da sua dor e olhar pra ela. Ela disse que sentiu uma dor muito grande, que sentiu a dor do abandono possuindo-a inteiramente, mas tentou conversar com essa dor, rezou bastante para ter iluminação e clareza e em meio a certo torpor teve vagas memórias de que a pessoa que a abusava ia visitá-la quando ela estava sozinha, e então, ao passo em que era abusada não se sentia abandonada, estava com alguém ainda que o abuso acontecia. Ela diz que a dor maior não era a do abuso, era do abandono, quando a pessoa ia embora. Ela disse que chegar a essas conclusões foi muito importante para ela. Estas compreensões parecem estar associadas à apropriação da função logos e nesse sentido, o mais importante deste processo foi Rose se apropriar de um discernimento, poder enxergar uma situação sem estar inteiramente possuída Resultados e Discussão 66 por ela. Tem-se o início da construção de uma imagem positiva de animus, não unilateral negativa e agressora na maior parte do tempo. Rose não teve um pai presente, seus pais ficaram casados pouco tempo e ele era bastante agressivo com a mãe. Ela disse ter se cansado de procurar nos maridos um pai, inicialmente um pai para seus filhos, mas pensou o quanto ela não procurava desesperadamente um pouco de seu pai ausente em todos eles. Ela disse a respeito do ex-namorado: é a última vez que eu procuro o meu pai em um homem. Houve então uma importante repetição da ausência e do abuso em sua vida, mas a aprtir desta fala observa-se o um processo de diferenciação, ainda que primitivo. Retornando às oficinas, outras técnicas expressivas foram utilizadas ao longo do processo, mas optou-se por selecionar o que foi aqui apresentado a fim de ilustrar os aspectos da intervenção arteterapêutica. Enfatizou-se os trabalhos com a imagem arquetípica da Maga e do Barba-Azul, bem como a grande utilização dos níveis simbólicos no processo da formação da imagem. Por fim, com o objetivo de ilustrar e revelar a dinâmica psíquica da paciente da no processo arteterapêutico, selecionou-se três sonhos, relatados de forma espontânea e conforme iniciativa da própria de Rose. Estes sonhos aconteceram da metade para o final do processo e foram acolhidos com bastante importância, pois “Jung chamava o sonho de produto natural e altamente objetivo da psique... (uma) auto-representação do processo vital psíquica” (WHITMONT, 1995). Em seu primeiro sonho ela relata que encontra o ex-namorado e que ele queria voltar com ela oferecendo-lhe um saquinho de vagens verdes. Atrás dele havia um grande caminhão de lixo. Apesar de gostar muito de vagens, ela disse que não adiantava ele esconder seu caminhão de lixo e não aceitou reatar o relacionamento. Este sonho expressa a saída da ingenuidade a partir do contato com um logos diferenciado e também expressa o início da percepção de aspectos sombrios (ainda que em um nível bastante primário). O homem a convida para um encontro, uma relação, oferecendo-lhe aspectos: “agradáveis”/femininos (vagem) e “desagradáveis”/animus negativo (lixo), mas ela se recusa a este encontro. Estamos diante de um masculino que oferta uma vivência integradora que não é aceita. O encontro não acontece, não há a síntese. Resultados e Discussão 67 No segundo sonho, a paciente relata que estava com o ex-namorado na parte superior da casa que no sonho já estava construída com cômodos (sendo que atualmente este é apenas um projeto) e Robson chega dizendo: eu quero voltar, me deixa ser pai da sua filha e ela diz: então a gente tem que começar a limpar a casa. No piso térreo da casa olhavam para o tanque, o qual havia uma porta embaixo (e no sonho essa era bem grande) e a parte superior do tanque estava repleta de cervejas. Muita água escoava do tanque sobre o piso. Então Robson perguntou em relação ao tanque: você não vai abrir esta porta? E Ela disse ter medo de ratos e baratas por isso não abriria. Por fim, as cervejas todas em cima do tanque explodiram. Neste sonho, o masculino se apresenta dizendo da vontade de ser pai de sua filha e para tanto, para ter um pai e um marido e vivenciar relações diferenciadas e únicas é ‘preciso começar a limpar a casa’, ela ainda não consegue se abrir confiantemente a uma relação enquanto vivenciar o medo da sombra. Assim, uma negociação é estabelecida: temos que começar a limpar a casa e ele propõe iniciar por uma porta, a qual é recusada. A recusa de entrar em contato com os aspectos mais repugnantes e sombrios novamente paralisam esta mulher e acontece uma explosão, o álcool aqui pode estar associado com a libido que pode produzir energia e prazer, mas no sonho produz pressão e incontinência e entorpecimento. A vivência psíquica do entorpecimento associa-se à dificuldades discriminatórias em relação à realidade enxergada. Esta libido não encontra um canal de expressão e explode dentro da psique, conteúdos atuam possuindo o próprio ego. Isto remete às sensações relatadas pela paciente de quando sua cabeça vai explodir e quando sente muita pressão na cabeça, além de uma sensação de torpor No terceiro sonho ela relata estar dormindo e sendo suavemente acariciada por um homem (desconhecido) que se levanta e começa a sair. Rose pergunta: você já vai embora e ele responde: só vou buscar o gás. Ela volta a dormir e é novamente acariciada por este homem quando ele retorna. Por fim, no último sonho, o contato com o masculino é estabelecido e a mulher sente prazer e relaxamento, enquanto ele está encarregado pelo manejo do gás, ela pode relaxar, descansar. Observa-se o princípio de uma relação mais saudável com o animus positivo, mas também é preciso de gás, energia para esta relação continuar Resultados e Discussão 68 O gás poderia ser representado por sua energia e vitalidade, o próprio combustível que alimenta criativamente a psique. Pode-se dizer que simbolicamente o resgate de um masculino saudável e íntegro pode atuar como ponte para mulher vivenciar a sua feminilidade enquanto aspecto de seu próprio relacionamento interno. Estes sonhos parecem falar de um processo psíquico em relação ao diálogo interno com o próprio aspecto masculino da psique feminina. A vivência de integração e síntese plena ainda não aconteceu, mas os elementos iniciais deste processo estão atuando. 5.4. Análise Comparativa do Desenho da Figura Humana Figura 1 Figura 13 Resultados e Discussão 69 História - Figura 1 Às vezes eu observo a J. minha filha brincando e penso do que eu gosto de brincar. Eu não sei quem eu sou, eu sei quem eu me tornei, muito do que eu sou hoje é criação minha para viver melhor, de um tempo para cá eu vou nas lojas olho as roupas e fico tentando escolher algo que eu goste muito. Comprei um sapato, mas ele me aperta os dedos é bonito, mas barulhento. Às vezes estou fazendo comida e me percebo tensa, como se estivesse com medo. Não sei se existe isso mais o meu desejo é de encontrar a minha criança e deixá-la florescer como eu vejo a J. se desenvolvendo. Eu sei que eu gosto de música, o meu corpo acompanha o som, adoro dançar. Detesto pressão e vivo sobre pressão. Adoro dormir - durmo pouco – tenho muitas obrigações. Adoro ficar atoa e só trabalho. Eu me fiz uma mulher forte, guerreira, mais muitas vezes me percebo muito só, com muita vontade de afeto, sinto que a minha menina amadureceu antes do tempo, fez escolhas que me levaram a muita dor. Agora estou tendo a chance de reconstruir. Quero ir na Escola! Sei que gosto de Estudar, adoro salas de aula, tenho muito desejo de aprender. Domingo pulei corda com as crianças, foi ótimo, lembrei como eu gostava disso. Fico muito irritada por ter pouco tempo para mim, durante muito tempo eu cuidava o tempo todo e me sentia muito triste. Hoje eu sei que era porque eu me cuidava pouco. me abandonava. Hoje eu quero ter os mus momentos! Por hoje é só! História – Figura 13 Quem sou? Menina-mulher mulher- menina. Sou simplesmente eu Adoro essa busca, vejo as vezes muito de minha mãe – muito de meu pai muito de M.(filha). Mas quem realmente sou estou buscando descobri que adoro Resultados e Discussão 70 sandálias que o pé ficam soltos, adoro banhos longos, boas gargalhadas, trabalhar sem pressão, filosofar, sonhar, ficar deitada com os olhos fechados e meditar, ouvir a voz da J. (filha). Ver os olhos da I. (neta), ouvir Zélia Ducan e Chico Buarque, gostaria de vê-los cantando junto. Ouvir palestra sobre gente. Adoro ouvir também os passarinhos de manha e a tarde, adoro cheiro de chuva e cheiro de homem que faz a barba Dar gargalhadas sobre mim mesma. Ver pessoas descobrirem a vida, descobrirem o bem estar, olhos brilhando. Dar um abraço. Gosto de comer + - de fazer. Detesto injustiça Sou muito crítica magôo as vezes a mim mesma e aos outros. Peço perdão, perdôo as vezes. Enfim busco o Amor – já me amo muito e quero amar mais ainda Amo meus filhos cada um do seu jeito Quero ter + dinheiro para fazer + o que gosto. Quero entender o homem Quero sempre estar com Deus Conforme as imagens, é bastante representativa a migração de um corpo infantil e compartimentalizado para um corpo mais torneado e contínuo mediante a comparação gráfica das duas imagens. Na 1ª imagem houve a representação de uma mulher, com face de mulher, mas em corpo de menina, percebendo-se os esforços defensivos com relação à intelectualização e racionalização e um desenvolvimento menos elaborado no tocante à modulação dos instintos, impulsos e afetos, representados pelo corpo infantil. Isto pode estar associado à própria história criada por Rose na qual diz que queria encontrar a sua criança e deixá-la florescer e que a sua criança teve que amadurecer antes do tempo para que ela se fizesse uma mulher forte e guerreira diante de tudo que precisou enfrentar. Esta é uma mulher que está à procura de si mesmo e daquilo que tem realmente a ver com ela, ainda que suas obrigações sejam muito desconectadas com a sua essência. Rose apresenta então seus aspectos imaturos e menos desenvolvidos nesta imagem e podemos associar que ela foi obrigada a crescer, Resultados e Discussão 71 mas não no seu ritmo natural e assim psiquicamente precisou supervalorizar alguns aspectos (como o intelecto, por exemplo) e negligenciar outross (como a vivência plena de sua sexualidade). Na 2ª imagem, a mulher abandona o corpo infantil e é representada graficamente de uma forma mais integrada. Nesta imagem não há presença de quebras como na 1ª imagem em que a linha do rosto corta o pescoço e uma linha na cintura separa a parte média e inferior do corpo. As linhas mais arredondadas e suaves podem indicar maior flexibilidade consigo, menor rigidez psíquica e maior feminilidade. Quando a rigidez diminui há mais espaço para o relaxamento e assim novos espaços psíquicos de criatividade e integração são engendrados. Desta forma, na história, esta mulher é uma mulher-menina, menina-mulher, mas já responde à pergunta “Quem sou?”. Ela descobre quais são os sapatos que realmente lhe servem, como analogia aos aspectos que realmente tem a ver com ela e assim, relaxa e pode criar uma nova composição musical com Zélia Duncan e Chico Buarque Nesta 2ª imagem, percebe-se também o afinamento no rosto, representado por uma elaboração maior da face que deixou de ser delineada por um círculo. A omissão da linha que separa rosto e pescoço, simbolicamente, pode representar a maior comunicação entre os instintos e o controle e uma vivência mais integrada entre psique e soma. Analisando a região dos olhos, percebe-se um apaziguamento no olhar ainda que os cílios se mostrem bastante grandes e os olhos se apresentem conforme o olhar felino, entretanto, a característica inicial de um olhar hipnótico e intenso se amenizou Conforme a exuberância de cílios, bem como seu tamanho bastante grande, a paciente diz que os fez grandes porque gosta de colocar cílios postiços nas clientes. Ela diz que acha muito bonito cílios grande e que inclusive, a maquiagem como um todo pode revelar a mulher e a sua beleza. Pensando no sentido fisiológico dos cílios, ele é uma estrutura que protege a visão, protege os olhos da entrada de objetos estranhos, poeira, etc. A partir dos olhos enquanto o “ponto principal de concentração para o sentimento do próprio eu e a vulnerabilidade do mesmo” (Van Kolk, 1984), pode-se pensar na exuberância dos cílios como uma tentativa de proteger Rose de sua vulnerabilidade diante o mundo e que parte de sua agressividade também podem ser uma forma de proteção aos seus Resultados e Discussão 72 aspectos mais frágeis, ainda que a defesa enrrikecida se apresenta de forma neurótica, pois no desenho, os cílios também podem se assemelhar a espinhos, a algo pontiagudo que também pode ferir. Ainda em relação à face na 1ª imagem, a mulher é representada quase que com uma peruca, pois os cabelos parecem ter sido colocados na mulher e há transparência do contorno da cabeça. O cabelo alude a uma importante esfera da sexualidade, sobretudo em relação às necessidades sexuais mais primitivas (Van Kolk, 1984), assim como a vitalidade e a força (representados no mito bíblico de Sansão). Na 2ª imagem, os cabelos parecem pertencer realmente àquela mulher e são representados com cores intensas (laranja e amarelo); assim, pode-se dizer que houve um processo de apropriação desta energia sexual, enquanto investimento da libido que é feito em si mesma. Pode-se exemplificar este processo com intensificação da participante com a dança entre outras modalidades de expressão e prazer. Por outro lado esta energia intensa também ainda pode se expressar como impulsividade nas ações e nas relações. A cor do vestido da imagem inicial foi representada em azul e na imagem final este foi representado em laranja. O laranja é uma cor mais carregada de afeto e energia. A fluidez do vestido, representada por maior movimento descendente sugere mais leveza e pode referir-se a um processo de escoamento da energia psíquica que está mais disponível e pode circular mais. Já na representação inicial, as flores grandes e coloridas podem ser associadas a uma concentração de energia psíquica, representadas como complexos carregados de afeto e denunciadores de conflitos importantes. Tem-se aí pontos concentradores de energia (flores) que estão mais afastados e se concentram na região inferior do corpo, sobretudo na região genital, sugerindo questões relacionadas à própria sexualidade. Na 2ª imagem parece ter havido uma diluição e maior integração destes pontos de conflito de modo que uma nova organização se estabeleceu: 10 flores estreladas são representadas de forma mais diluída e ordenada e que também migraram para região cardíaca, o que se associa à tentativa de modulação dos afetos e organização dos sentimentos. As flores estreladas foram representadas conforme a seqüência, 3, 4, 2, 1. Simbolicamente, o número 10 é associado à soma dos 10 primeiros números: 1 + 2 +3 + 4 e conforme Chevalier & Gheerbrant 1982(p. 334), o número 10 “tem um Resultados e Discussão 73 sentido de totalidade, de conclusão, termo, remate. O sentido de volta à unidade, depois do desenvolvimento do ciclo dos nove primeiros números. A dezena era para os pitagóricos, o mais sagrado dos números, o símbolo da criação universal”. Pode-se dizer que alguns processos se encerraram, mas novos processos carentes de desenvolvimento se abriram. Assim, à medida que algumas defesas foram diminuindo novas configurações foram sendo criadas e outras defesas foram assumidas. Além disso, as estrelas foram representadas pela constância das cores Rosa e Azul (simbolicamente associadas ao feminino e masculino), enquanto anteriormente essa representação foi feita por 4 flores de três cores diferentes que se apresentavam em zigue-zague. As mãos representadas ganharam uma nova dimensão. Enquanto órgãos de contato, as mãos sugerem um movimento em direção ao ambiente e os ajustamentos em relação a eles, enfatizando a própria adaptação social (Van Kolk, 1984). As mãos representadas inicialmente sugerem dedos mais curtos e assimétricos aludindo a um senso de inadequação e uma menor receptividade ao outro, ao contato do outro. A nova dimensão representada sugere uma abertura e receptividade maiores em relação ao outro; mas a exacerbação da representação pode ser a intenção agressiva do contato, como que uma ânsia (um pouco agressiva) em estabelecer relações. Pode-se perceber, principalmente na 1ª imagem, a partir da representação das mãos não somente a dificuldade em estabelecer contato e modular os afetos em relação ao outro, mas também em relação a si mesma. Já a omissão dos pés na 2ª imagem pode ser associada aos aspectos sombrios, no sentido dos aspectos que “ficaram em baixo da terra”, que foram negados e não representados, como uma tentativa de extirpar o que não é bom ou o que é difícil de lidar. Pode-se perceber nesta análise comparativa que alguns aspectos foram melhor elaborados e outros (pontos de conflitos) ficaram mais evidenciados. Mas de uma forma sumária, pode-se dizer que houve uma mudança na forma como Rose tem se percebido de modo que o desenvolvimento da feminilidade e o início da atuação da função Eros diminuiram a rigidez psíquica e trouxe maior abertura ao contato, um contato que ainda é temido (e protegido), mas fortemente desejado. Resultados e Discussão 74 Emocionalmente sua percepção se apresenta maior organizada e houve maior apropriação de aspectos libidinais. Desta forma, o processo arteterapêutico proporcionou a transcendência enquanto função que gera a possibilidade de diálogo entre as diversas instâncias da psique num movimento progressivo. Entretanto percebe-se que este processo se iniciou, mais ainda está em aberto sugerindo importantes aspectos a serem trabalhados. Considerações Finais 75 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo deste trabalho foi possível perceber a atuação do processo criativo e por que o nível criativo realmente perpassa todos os níveis do processamento e formação de imagens. Os processos parecem ocorrer de forma concomitante: um processo criativo deflagrado em uma criação plástica reverbera e ativa ao mesmo tempo aquela região intermediária em que a criatividade psicológica acontece quando um sentido ou um propósito são atribuídos a expressão plástica ainda que não necessariamente a função transcendente de síntese e integração aconteça Mas cria-se, a priori, um campo para a expressão do inconsciente e em seguida há o movimento rumo à consciência, integradora deste processo. Conclui-se que a utilização de recursos expressivos num setting terapêutico é um caminho facilitador da atuação de Eros (aspecto criativo) porque inicialmente a região intermediária é criada entre o psiquismo e a materialidade da expressão, e ao mesmo tempo essa região fornece intermédio para a própria comunicação entre as diferentes instancias psíquicas, podendo alcançar ou não a transcendência. Desta forma, a arteterapia se mostrou como um recurso bastante acolhedor e curativo em vários aspectos porque: - a mulher pode se perceber como sujeito criativo, percebendo-se capaz de criar algo com suas próprias mãos; - a delicadeza e sutileza foram criados ao abordar a violência enquanto um tema ríspido e ameaçador; - a arte apresentou-se como uma representação do universo feminino, uma vez que os materiais expressivos se apresentavam de maneira receptiva e passiva aguardando um impulso criativo que desse forma e estabelecesse uma conexão entre o sujeito e o objeto, de modo que a produção contivesse a síntese de conteúdos da participante e dos materiais utilizados; - a expressão se deu para além do verbal permitindo que outros aspectos da psique feminina fossem acolhidos. A expressão verbal que geralmente vinha imbuída de dor e sofrimento foi complementada com outras expressões de contentamento, surpresa e descoberta de novas possibilidades; Considerações Finais 76 - a expressão artística permitiu o estabelecimento da ponte entre conteúdos da consciência e do inconsciente, carregados de afeto, mas também de potencialidades. De modo que a expressão de símbolos da psique configura um processo de expressão com maior profundidade; - defesas enrijecidas da psique que se apresentavam de maneira neurítca puderam assumir novas configurações - evidenciou-se que neste trabalho, a sabedoria que se pronuncia é interna: o suposto-saber projetado no terapeuta é recolhido e está dentro do paciente, configurando um processo criativo genuíno. Em técnicas psicoterapêuticas tradicionais, sobretudo no âmbito do atendimento individual, o paciente que o terapeuta possui muito mais conhecimento sobre ele, do que ele próprio e atua de maneira mais passiva até que a desconstrução da projeção do suposto-saber fornece lugar à internalização da função ‘terapeuta’ e o paciente consegue se apropriar melhor sobre seu próprio processo, confiando mais em suas percepções e crenças. Este caminho, na arteterapia, é encurtado justamente porque a produção intermédia este processo, testemunha e evidência novos conteúdos e percepções, aludindo à grande sabedoria interna que cada um possui. Outro aspecto facilitador da retirada do saber do terapeuta é o fato do trabalho ser constituído em grupo. As intervenções das próprias participantes foram intervenções verdadeiramente empáticas de quem sabe acolher a dor do outro porque reconhece claramente aquela dor. O fato das mulheres estarem vivenciando etapas diversas em relação ao processo de violência foi um aspecto interessante porque as falas das participantes alertavam a comportamentos e atitudes importantes a serem tomadas em relação ao reconhecimento da violência. Além disso, o fato do grupo ser constituídos por mulheres e ser coordenado por uma mulher pareceu interessante por criar um espaço da “voz do feminino”, no qual as mulheres compartilharam questões, dores, reflexões, expressões e insights. O processo arteterapêutico, ao passo que atuou como importante metodologia de intervenção terapêutica, acolhendo a mulher de uma forma integrada, também se revelou como um importante substrato para diagnóstico, conforme expresso acima. Cumpre destacar que no tocante ao trabalho arteterapêutico, ainda que não seja esperado do arteterapêuta a interpretação Considerações Finais 77 desenhos ou imagens para o cliente, deve-se estar atento aos aspectos da psicodinâmica da personalidade e, sobretudo, àquilo que se apresenta de maneira constante ou marcante em qualquer expressão, oferecendo outros espaços de escuta do que é imperativo. Enquanto diagnóstico, foi possível corroborar a literatura no tocante ao impacto e devastamento da psique feminina da mulher vitimizada. Como no caso apresentado, por exemplo, a paranóia de ser assombrada pelo predador que se generaliza para situações cotidianas da vida é também representada pela dificuldade em estabelecer relações de confiança após o término da situação de violência. Traços como a agressividade, controle rígido dos impulsos e rigidez do pensamento foram evidenciados na psicodinâmica do feminino devastado e de um masculino negativo e pouco desenvolvido Tem-se a própria interferência no sentido de si-mesmo, configurando baixaestima e dificuldades em confiar em si, além da recorrência de sentimentos de solidão e no caso apresentado de muito abandono. Além de sentimentos emocionais, os sintomas físicos apresentados pelas mulheres parecem corroborar com a atuação de um Animus negativo que a esgota e é fonte geradora de tensões e rigidez muscular, cefaléias e dores no peito (dificuldades respiratórias). Cumpre destacar que isto foi observado tanto nas mulheres que vivenciam a violência no momento presente e assim o perpetrador é uma figura presente, quanto naquelas que não vivem mais situações de vitimazação, mas carregam internamente este homem possuído de afetos negativos. Mediante o masculino abusador/violentador a função Eros e o impulso criativo expressam um diálogo rígido e empobrecido. Um dos aspectos mais devastadores parece ser o apagamento do ‘ser mulher’ e o seu cerceamento, um sentimento e um desejo escondido de não ser mulher para não ter que vivenciar a condição de uma submissão e nulidade. O oposto disso é apresentado na obra do pintor Klimt, na qual estamos diante de um feminino repleto de Eros, mulheres repletas de prazer não somente no tocante ao prazer orgástico, mas no prazer em serem mulheres e vivenciarem a integridade do feminino em sua multiplicidade. Desta forma a vivência do abuso/violência é geradora de um importante complexo que permite que a violência seja reiterada estagnando a energia psíquica da mulher a impedindo de vivenciar relações de confiança, troca e amor. Considerações Finais Além disso, 78 a imaturidade no desenvolvimento da consciência, o ‘subdesenvolvimento’ da função Eros e Logos na mulher em função do contato primordial com um feminino distorcido (a mãe) e a vivência com um animus-predador corrobora com a dificuldade em perceber a própria violência vivida. A capacidade de discernimento, percepção, análise realística, coragem e força bastante abaladas foram conteúdos imprescindíveis no trabalho arteterapêutico. Desta forma, o processo arteterapêutico não englobou apenas os potenciais criativos-construtivos da psique feminina, mas ofereceu continência aos aspectos destrutivos desta mesma psique. No processo arteterapêutico seria imprescindível a continência a esses aspectos destrutivos para que seus desdobramentos pudessem desencadear o nascimento de uma nova consciência psicológica. O resgate do potencial criativo falava do resgate de algo que foi prematuramente vivenciado ou que nem sequer foi vivenciado e que diz respeito função Eros integradora (amorosa e criativa) e à função discriminadora de Logos. Pode-se dizer dos esforços para a criação de uma nova relação entre a mulher vitimizada e seu masculino interno. Um feminino antes cativo ao masculino, poderia ser liberto a partir dos novos meios de se relacionar engendrados pela função Eros . Por fim, é importante dizer: ainda que se extinga a situação de violência física, psíquica ou sexual, os esforços devem ser empreendidos em termos do acompanhamento psíquicos destas mulheres, sobretudo em função degradação de sua saúde mental. A arteterapia neste âmbito pode ser considerada uma importante tecnologia em saúde para lidar com esta problemática enquanto recurso de tratamento, mas também de prevenção de contínuos ou novos abusos. Os esforços rumo à profissionalização do arteterapeuta devem ser reconhecidos e endossados pelos órgãos gestores das políticas públicas voltadas aos programas de atenção à mulher em situação de violência. Referências Bibliográficas 79 7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALLESSANDRINI, Cristina Dias. Oficina criativa e psicopedagogia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996. ANZIEU, Didier. Os métodos projetivos. Rio de janeiro: Campus, 1988. BRASIL, Presidência da República, Secretaria Especial de Política para as Mulheres. Norma Técnica de Uniformização – Centros de Referência de Atendimento á Mulher em Situação de Violência. Brasília, 2006. CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário dos Símbolos. 23ª Edição Rio de janeiro: José Olympio, 1982. CIORNAI, Selma. Arte-terapia: o resgate da criatividade na vida. In CARVALHO M. M. M. J. A Arte Cura? São Paulo, Psy II, p. 59-63, 1995. CORTEZ, M. B.; SOUZA, L. 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O trabalho com processo criativo pode proporcionar o fortalecimento da mulher e conseqüente retomada da auto-estima para que ela possa lidar melhor consigo mesma e com a violência enfrentada. Para tanto, acontecerá um Grupo semanal de Arteterapia. A Arteterapia é um processo em que se utilizam diversos recursos artísticos (desenho, pintura, colagem, etc.) com uma finalidade terapêutica. O grupo acontecerá uma vez por semana por uma hora e meia de duração, durante no mínimo 4 meses. Durante os encontros, as atividades poderão ser fotografadas, tomando-se o cuidado de fotografar apenas o trabalho artístico. As atividades desenvolvidas em todos os encontros serão registradas posteriormente pela pesquisadora. As informações serão utilizadas apenas com a finalidade da pesquisa proposta, podendo subsidiar outras pesquisas, estando as pesquisadoras autorizadas a utilizarem o material deste estudo para fins de publicação e divulgação científica, assegurando a não identificação nominal da pessoa envolvida. Está assegurado de que não há riscos, e caso seja necessário, você poderá ser encaminhada ao SEAVIDAS (Serviço de Atendimento à Violência Doméstica e Agressão Sexual do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina - USP) para atendimento psicológico e assistencial. Você poderá recusar ou retirar seu consentimento, deixando de participar deste estudo se considerar necessário, antes ou em qualquer fase da pesquisa, sem prejuízo ao atendimento que lhe é oferecido pelo serviço ao qual procede. Haverá plena garantia de esclarecimentos antes e durante o curso da pesquisa e não haverá quaisquer despesas ou gastos decorrentes da participação deste estudo. Eu, _____________________________________________________________, portadora do RG n° __________________________, aceito participar voluntariamente desta pesquisa, sendo que todas as minhas dúvidas em relação ao trabalho foram esclarecidas e as pesquisadoras se disponibilizaram a fornecer quaisquer esclarecimentos no decorrer da pesquisa. Ribeirão Preto, _______ de ___________________ de 2009 Assinatura da Participante: ____________________________ Assinatura das Pesquisadoras: ________________________ Melina Del’ Arco de Oliveira RG: 33.337.422-8 Fone: (16) 3602-2699 ______________________ Cristina Dias Alessandrini RG: 5.896.244-X Anexos 84 ANEXO B Conto O Barba-Azul Charles Perrault Era uma vez um homem que tinha belas casas na cidade e no campo, baixela de ouro e prata, móveis trabalhados e carruagens douradas; mas, por desventura, esse homem tinha a barba azul: isto o fazia tão feio e tão terrível que não havia mulher nem moça que não fugisse ao vê-lo. Uma de suas vizinhas, dama de alta linhagem, tinha duas filhas absolutamente belas. Ele pediu-lhe uma delas em casamento, deixando a escolha à vontade materna. Nenhuma das duas o queria, e cada uma o passava à outra, pois nenhuma podia decidir-se a aceitar um homem de barba azul. Aborrecia-as também a circunstância de ele já ter desposado várias mulheres sem que ninguém soubesse o que era feito delas. Para travar relações com as moças, Barba-Azul levou-as, juntamente com a mãe e as três ou quatro melhores amigas, e algumas jovens da vizinhança, a uma das suas casas de campo, onde passaram nada menos de oito dias. E eram só passeios, caçadas e pescarias, danças e festins e merendas: ninguém dormia, levavam a noite a pregar peças uns aos outros; afinal, tudo correu às mil maravilhas, e a mais nova das meninas começou a achar que o dono da casa não tinha a barba tão azul, e que era homem muito digno. E, logo que tornaram à vidade, realizou-se o casamento. Ao cabo de um mês, Barba-Azul disse à mulher que tinha de fazer uma viagem à província, de seis semanas, no mínimo, para um negócio de importância; que lhe pedia se divertisse à vontade durante a ausência dele – mandasse buscar suas boas amigas, levasse-as ao campo, se quisesse, comesse do bom e do melhor. - Aqui estão – disse-lhe – as chaves dos dois grandes guarda-móveis; aqui as da baixela de ouro e de prata que só se usa nos grandes dias; aqui as dos meus cofres, onde está o meu ouro e a minha prata, as dos cofres de minhas jóias e aqui a chave de todas as dependências da casa. Esta chavezinha é a chave do gabinete que fica no extremo da grande galeria do porão: pode abrir tudo, pode ir aonde quiser, mas neste pequeno gabinete eu lhe proíbo de entrar, e o proíbo de tal Anexos 85 maneira que, se acontecer abri-lo, não há nada que você não possa esperar da minha cólera. Ela prometeu cumprir à risca tudo quanto acabava de ser ordenado: e ele, depois de beijá-la, toma sua carruagem e parte. As vizinhas e as boas amigas não esperaram, para ir à residência da jovem esposa, que as mandassem buscar, tão sôfregas estavam de ver-lhe todas as riquezas da casa, não havendo ousado ir lá enquanto o marido se achava por causa de sua barba azul, que lhes fazia medo. E ei-las, sem perda de tempo, a percorrer os quartos, gabinetes, vestiários, cada um mais belo que os outros. Subiram depois aos guarda-móveis, onde não se cansavam de admirar o número e a beleza das tapeçarias, dos leitos, dos sofás, dos guarda-roupas, dos veladores, das mesas e dos espelhos, nos quais a gente se via da cabeça aos pés, e cujos ornatos, uns de vidro, outros de prata, ou de prata dourada, eram os mais belos e magníficos que já se poderiam ter visto. Não cessavam de exagerar e invejar a felicidade da amiga, a quem, no entanto, não alegravam todas essas riquezas, ansiosa que estava de abrir o gabinete do porão. Sentiu-se tão premida pela curiosidade que, sem refletir que era uma indelicadeza deixas sozinhas as visitas, desceu até lá por uma escadinha oculta, e com tamanha precipitação que por duas ou três vezes pensou em quebrar o pescoço. Chegando à porta do gabinete, aí se deteve algum tempo, lembrando-se da proibição que o marido lhe fizera e considerando que lhe poderia acontecer uma desgraça por haver sido desobediente; mas a tentação era tão forte que ela não a pôde vencer: tomou da chavezinha e abriu, trêmula, a porta do gabinete. A princípio não viu coisa alguma, porque as janelas se achavam fechadas; momentos depois começou a notar que o soalho estava todo coberto de sangue coalhado, no qual se espelhavam os corpos de várias mulheres mortas, presas ao longo das paredes (eram todas mulheres que Barba-Azul desposara e que havia estrangulado). Cuidou morrer de susto, e a chave do gabinete que acabava de retirar da fechadura, caiu-lhe da mão. Após haver recobrado um pouco o ânimo, apanhou a chave, fechou a porta e subiu ao quarto para refazer-se; não o conseguia, porém, devido à sua grande perturbação. Tendo notado que a chave do gabinete estava manchada de sangue, limpoua duas ou três vezes, mas o sangue não desaparecia; lavou-a, esfregou-a com sabão e pedra-pomes; debalde: o sangue ficava sempre, pois a chave era fada, e Anexos 86 não havia meio de limpá-la inteiramente: quando se tirava o sangue de um lado, ele voltava do outro. Barba-Azul regressou de sua viagem logo nessa noite, e disse haver recebido, no caminho, notícias de que o negócio que o levara a partir acabara de realizar-se com vantagem para ele. A mulher fez quanto pôde para se mostrar encantada com esse breve retorno. No dia seguinte ele pediu-lhe as chaves, e ela as entregou, porém a mão tremia tanto que Barba-Azul adivinhou sem esforço todo o ocorrido. - Por que é – perguntou-lhe – que a chave do gabinete não está junto com as outras? - Devo tê-las deixado lá em cima, sobre a minha mesa. - Quero a chave aqui, já! Depois de várias delongas, a mulher teve que levá-la. Barba-Azul examinoua e disse: - Por que há sangue nesta chave? - Não sei nada disso – respondeu a pobre criatura, mais pálida que a morte. - Você não sabe nada – continuou ele – mas eu sei muito bem; você quis entrar no meu gabinete! Está certo, senhora, lá entrará e irá ter o seu lugar ao lado das que lá encontrou. Ela se atirou aos pés do marido, chorando e pedindo-lhe perdão, com todos os sinais de um arrependimento sincero de não haver sido obediente. Bela e aflita como estava, seria capaz de enternecer um rochedo; mas Barba-Azul tinha o coração mais duro que um rochedo: - Tem de morrer, senhora, e imediatamente. - Visto que tenho que morrer – respondeu ela, fitando-o com os olhos banhados de lágrimas – dê-me um pouco de tempo para rezar a Deus. - Dou-lhe meio quarto de hora – replicou Barba-Azul – e nem um momento a mais. Quando ela se viu sozinha, chamou a irmã e disse-lhe: - Minha irmã, sobe ao alto da torre, eu te suplico, para ver se meus irmãos não vêm; eles me prometeram que me viriam ver hoje, e, se os vires, faze-lhes sinal para que se apressem. A irmã subiu ao alto da torre, e a pobre aflita gritava-lhe de vez em quando: - Ana, minha irmã, não vês ninguém? Anexos 87 E a irmã respondia: - Não vejo nada a não ser o Sol que brilha e a erva que verdeja. Entrementes, Barba-Azul, com um grande cutelo na mão, gritava para a esposa com toda a força: - Desce depressa, ou eu subirei aí. - Mais um momento, por favor -, respondia-lhe a mulher. E logo, baixinho: - Ana, minha irmã, não vês ninguém? E a irmã Ana respondia: - Não vejo nada a não ser o Sol que brilha e a erva que verdeja. - Desce depressa – bradava Barba-Azul -, ou eu subirei aí. - Já vou – respondeu a mulher. E depois: - Ana, minha irmã, não vês ninguém? - Só vejo – respondeu a irmã Ana – uma grossa poeira que vem desta banda. - São meus irmãos? - Infelizmente não, minha irmã; é um rebanho de carneiros. - Não queres descer? – bradava Barba Azul. - Mais um momento – respondia a mulher. E depois: - Ana, minha irmã, não vês ninguém? - Vejo – respondeu ela – dois cavaleiros que vêm deste lado, mas ainda estão muito longe... Louvado seja Deus! – exclamou um instante depois. – São meus irmãos; estou lhes fazendo sinal, tanto quanto me é possível, para que se apressem. Barba Azul pôs-se a gritar tão alto que a casa estremeceu. A pobre mulher desceu e atirou-se-lhe aos pés, desgrenhada e em prantos. - Isto não adianta nada – disse Barba Azul. – Tens de morrer. Em seguida, segurando-a com uma das mãos pelos cabelos e erguendo-a com a outra o cutelo no ar, ia cortar-lhe a cabeça. A pobre mulher, voltando-se para ele, rogou-lhe que lhe concedesse um breve momento para se recolher. - Não, não – disse ele -, e encomenda bem tua alma a Deus. E erguendo o braço... Neste momento bateram à porta com tanta força que Barba Azul se deteve instantaneamente. Abriram e logo se viu entrar dois cavaleiros que, sacando da espada, correram direto a Barba Azul. Ele reconheceu que eram os irmãos da esposa, um deles dragão e o outro mosqueteiro, e fugiu sem demora para salvar-se; mas os dois irmãos o perseguiram Anexos 88 tão de perto que o alcançaram antes que ele pudesse atingir a escada externa. Atravessaram-no a fio de espada, e o deixaram morto. A pobre dama estava quase tão morta quanto o marido, nem lhe restavam forças para beijar os irmãos. Verificou-se que Barba-Azul não tinha herdeiros, razão por que sua mulher se tornou dona de todos os seus bens. Empregou parte deles no casamento de sua irmã Ana com um jovem fidalgo, que a amava desde muito tempo; outra parte na compra do posto de capitão para seus dois irmãos, e o resto no casamento dela própria com um homem muito distinto, que lhe fez esquecer o mau tempo que ela passara com Barba Azul. Anexos 89 ANEXO C Conto A Moça Tecelã Marina Colasanti Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear. Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava. Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela. Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza. Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias. Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranqüila. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer. Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado. Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponto dos sapatos, quando bateram à porta. Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida. Anexos 90 Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade. E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar. — Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer. Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente. — Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata. Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira. Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre. — É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos! Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer. E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo. Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear. Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela. Anexos 91 A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu. Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte. *disponibilizado em: http://www.releituras.com/i_ana_mcolasanti.asp