POSICIONAMENTOS DISCURSIVOS DE UM SUJEITOPROFESSOR DE LÍNGUA ESTRANGEIRA NA EJA
NATÁLIA COSTA LEITE, RENATA NASCIMENTO SALGADO
Faculdade de Letras/Universidade Federal de Minas Gerais
Av. Presidente Antônio Carlos, 6627 – 31270-901 – Belo Horizonte – MG – Brasil
[email protected], [email protected]
Resumo. Constitui tarefa pertinente analisar os dizeres de professores de
língua estrangeira a fim de entender como eles se posicionam na docência
dentro da Educação de Jovens e Adultos. Torna-se imperativo vislumbrar
uma abordagem de cunho interdisciplinar, para possibilitar gestos de interpretação sobre meandros da posição docente em relação às suas práticas
pedagógicas. A análise apontou para dizeres que evidenciam a inscrição de
um professor no Discurso Universitário e sua necessidade em ser amado.
Palavras chave. Educação de Jovens e Adultos. Ensino-Aprendizagem de
línguas. Psicanálise. Discurso.
Abstract. This paper aims at analyzing the foreign language teachers’
sayings in order to comprehend how they take teaching positions at the
Young and Adult Education. It is of great importance to glimpse an
interdisciplinary approach to make gestures of interpretation possible about
the meanders of teaching position in regard to their pedagogical practices.
The analysis has shown that a specific teacher has registered himself at a
University Discourse and has felt the necessity to be loved.
Keywords. Young and Adult Education. Language Teaching and Learning.
Psychoanalysis. Discourse.
1.1 Introdução
A partir de uma inquietação pessoal e certo incômodo, a busca por algo da
ordem do singular, surgiu-nos a ideia de investigar e analisar discursivamente, sujeitosprofessores do Projeto de Educação de Jovens e Adultos (doravante EJA) de instituições
públicas da cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais.
Tendo em vista nosso objeto de pesquisa – o discurso do sujeito (neste artigo, do
professor de EJA), faz-se necessário mobilizar saberes que considerem a dimensão
inconsciente desse sujeito e procurem deslocar a ênfase da noção cognitivista de sujeito,
que, por sua vez, considera o sujeito como mestre de seu saber. Torna-se imperativo
portanto vislumbrar uma abordagem de cunho interdisciplinar, que faça o
entrecruzamento da LA e da teoria da Análise do Discurso (AD) de linha francesa,
atravessadas pela Psicanálise freudolacaniana, para, então, possibilitar gestos de
interpretação sobre meandros da posição docente em relação às práticas pedagógicas.
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Anais do Enelin 2011. Disponível em: www.cienciasdalinguagem.net/enelin
É justamente na linguagem que o subjetivo se manifesta, é onde os objetos e as
experiências se (re)significam continuamente, ainda que de maneira única para cada
sujeito. De acordo com Mariani (2003), o sujeito é concomitantemente sujeito do
inconsciente e da ideologia, pois é, antes de tudo, atravessado pela linguagem. Dessa
maneira, a identidade desses professores é formada por uma multiplicidade de vozes,
que a configura de maneira complexa e heterogênea. A identidade é marcada pela
diferença, sendo, portanto, um processo de subjetivação que nunca é completado
(NEVES, 2006). De acordo com essa visão, esse sujeito (des)constrói imagens e toma
decisões, baseado em sua relação identificatória com o Outro 1 e os outros, assim se
inscrevendo sóciohistoricamente.
A pesquisa viabiliza considerar a ordem do imaginário que emerge nos
processos de ensino/aprendizagem, e que configuram o modo de ser professor, ou seja,
sua identidade profissional (ANDRADE, 2008). Pêcheux (1988) acredita que um
estudo que considere a questão do imaginário linguístico (lugar onde o sujeito se
constitui) permite que o dizer seja considerado em relação à sua exterioridade e
percebido por sua singularidade e irrepetibilidade. Tais concepções podem colaborar
diretamente para a proposta interdisciplinar da LA.
Em função de problematizar os discursos desses professores, algumas questões
nortearam este trabalho. A primeira questiona a maneira pela qual o desejo do sujeito se
inscreve (ou não) em seus dizeres. A segunda questiona sobre a natureza da relação
professor e aluno. A terceira indaga como e o que esses sujeitos- professores dizem de si
e do seu lugar. Esse imaginário sustenta a posição de sujeito-professor enquanto mestre,
em seu dizer?
A interpretação pensada dentro da perspectiva discursiva trabalha a relação da
língua (estrutura) com a história e os processos inconscientes. Dessa maneira,
depreende-se a noção da deriva dos sentidos, ou seja, o entendimento que o sentido não
está preso e é (re)significado a todo momento e é justamente através desses deslizes que
se configuram os gestos de interpretação dos enunciados dos sujeitos-professores do
EJA.
1.2 Tessituras teóricas
A proposição do atual artigo resulta da preocupação com questões que na LA,
ao menos como ela tem se constituído classicamente, “muitas vezes são apresentadas
como evidentes” (SERRANI-INFANTE, 1998, p. 232). Partindo desse lugar,
abordaremos noções essenciais para o desenvolvimento do trabalho.
1.2.1 Mal-estar na Civilização
Em sua obra, O Mal-Estar na Civilização, Freud (1930) tece reflexões ásperas e
desconfortáveis, tanto no que diz respeito às hipóteses sobre o superego e sua origem
nas mais antigas relações objetais do indivíduo quanto à exploração e clarificação
ulteriores da natureza do sentimento de culpa. A ciência e religião já não conseguem dar
1
Campo que faz remissão ao simbólico e “sua presença, só pode ser correspondida num grau secundário da alteridade, que já o
situa, a ele mesmo, uma posição de mediação em relação a meu próprio desdobramento de mim comigo mesmo como também com
o semelhante” (LACAN, 1998, p. 529).
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conta do sujeito pós-moderno. É justamente no embate do sujeito com o real que a
psicanálise desenvolve suas contribuições.
O desejo que move o sujeito produz resíduos pela impossibilidade de gozar
plenamente, e apenas obtemos sensações provisórias de completude. Esse resto é o que
impulsiona o sujeito à repetição na busca pelo tamponamento da falta. Para que a pulsão
encontre seu destino, torna-se necessário certas torções primordiais (BIRMAN, 2000,
p.135). Tal mecanismo trabalha pela construção da subjetividade do sujeito; de outra
maneira teríamos a descarga dessa matéria. Há sempre um outro (sujeito ou objeto) para
qual a pulsão será direcionada. A libido faz com que nos unamos; com que o sujeito se
mova em direção à disparidade. O sujeito então estabelece identificações, porque há
algo que lhe falta e que, portanto, o faz incorporar traços do outro em sua psique.
Nessa caçada narcisística2, o sujeito deseja ser desejado pelo desejo do outro
para então capturá-lo. Temos aí que o desejo se ampara na dependência da demanda.
Esse amor, visto como complemento libidinal, favorece sua auto-conservação.
1.2.2 Discursos
Lacan propôs quatro discursos como uma tentativa de se “ler de outro modo
aquilo que vem repercutir na palavra” (SOUZA, 2003). O autor define quatro
configurações que são ocupadas pelos seguintes elementos: S1 (significante mestre); S2
(o saber); $ (o sujeito barrado) e a (o objeto mais de gozar). Esses elementos se revezam
de acordo com a lógica que rege cada um dos discursos.
O discurso do mestre visa a um poder conferido ou prometido pelo saber
(LACAN, [1972-73]1985), produzindo assim um discurso totalitário que não oferece
espaço a questionamentos. O mestre acredita ser a lei, ao invés de basear-se na mesma.
No discurso universitário, foco de nossa investigação, S2 interroga o real
almejando dominar o saber e assim dirigir-se ao outro como um objeto vazio. O
estudante (astudado, conforme Lacan) não produz nada, a ele cabe meramente o
reconhecimento e reprodução das verdades universais e seus grandes mestres. Eis que
nessa perspectiva é possível afirmar que “o universitário não passa de um conservador e
de um transmissor do saber dos grandes autores. O seu é um saber verdadeiro que se
reveste de referências aos mestres” (PEREIRA, 2008, p. 130).
1.3 Desnudando as tramas discursivas
Apresentaremos recortes discursivos de um sujeito-professor, Pedro, advindo do
projeto de Educação de Jovens e Adultos. Para constituir o corpus de análise da
pesquisa, realizamos entrevistas semi-dirigidas orais com esse professor que leciona
língua inglesa em instituição pública de Belo Horizonte. Os recortes discursivos que
embasam a discussão do capítulo analítico do presente artigo resultaram das análises e
focaram nas seguintes perguntas: Como o desejo do sujeito se inscreve (ou não) em seus
dizeres? Qual é a natureza da relação professor aluno? Os sujeitos-professores sabem
dizer de si e do seu lugar?
2
“O termo “narcisismo” designa, em referência à mitologia grega, o amor a si próprio” MIJOLLA, 2005,
p. 1222.
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É mister evidenciar o lugar onde o sujeito-professor de língua estrangeira se
insere e as implicações dessa inserção para sua constituição subjetiva. O contato com
uma língua estrangeira possibilita um espaço de encontro-confronto (CORACINI, 2003)
com o Outro e que assim constitui um domínio de alteridade. Ainda que o sujeito
ofereça resistência a esse encontro com a outra língua, a mesma ainda o constitui, assim
como na Fita de Moebius, onde o exterior se imbrica com o espaço interno. Linguagem
e constituição subjetiva são irrevogavelmente articuladas.
Tendo em vista tais proposições, observamos em Pedro o desejo de ser amado,
expresso pela vontade e satisfação em ser aceito e querido pelos seus alunos quando
interrogado sobre o olhar deles sobre suas aulas:
Recorte 1- Pesquisadora: Como os seus alunos percebem seu trabalho com a língua
estrangeira?
Pedro: Ah, eu creio que eles gostam porque inclusive eles ficam interessados. Eu acho
que eles gostam. Inclusive muitos comentam “amo o que você faz” então eu acho que
eles eu tenho respaldo ali né acho que nessa fala nesse amo o que você faz eu acho que
parece que você ama muito isso né, você gosta de dar aula.
Pesquisadora: Eles te dizem isso? Você ama o que você faz.
Pedro: Alguns alunos dizem. Então eu acho que por aí dá pra ver que eu me empenho
ao máximo que eles gostam.
Pedro coloca esse amor como algo que viria a tamponar sua falta. Sua referência
de sucesso profissional é afetiva, pois ele mobiliza itens lexicais (amo, gosta,
interessados) que remetem a esse campo semântico. Seu desejo de ser aceito
corresponde ao ideal de homogeneização do sujeito através da busca pelo estado
anterior, a pulsão de morte. O discurso do professor demonstra o funcionamento do
mecanismo de equalização presente na sociedade quando apaga as marcas singulares
presentes nos sujeitos dentro de um plano narcisístico. Tais discursos se aglutinam e se
fecham em si mesmos, dificultando ao máximo o convívio com a alteridade. Esse
processo de homogeneização traz conforto para Pedro por proporcionar sensação de
pertencimento, assim como a religião, que de acordo com Freud, “trata-se de um
sentimento que ele gostaria de designar como uma sensação de „eternidade‟, um
sentimento de algo ilimitado, sem fronteiras – „oceânico‟, por assim dizer” (FREUD,
1930/1996, p. 73).
Ainda nesse mesmo recorte, partindo do pressuposto narcisístico que toma o
princípio do prazer como algo central, temos que o significante amor, para esse sujeitoprofessor, simboliza o elo entre a língua estrangeira, ele próprio e seus alunos. Podemos
vislumbrar na fala de Pedro a percepção de um vínculo afetivo com certos alunos
endereçado a ele e à língua como interlace do desejo.
Em outro recorte discursivo, Pedro é indagado sobre a influência da constituição
histórica do projeto EJA e ao invés de refletir sobre sua própria prática ele se silencia:
Recorte 2- Pesquisadora: E você acredita que essa história influencia de alguma
maneira a sua prática?
Pedro: Influencia. Porque inclusive me leva o questionamento década de setenta
milagre econômico alguns fatores sócio-econômicos e cultu e soci e históricos mesmo
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né fatores históricos. Eu creio que influencia sim porque década de setenta? E até hoje
né eu vejo que a EJA ainda arrasta um pouco muita coisa ainda na linha de projetos e
não de políticas públicas né eu acho essas iniciativas interessantíssimas de projeto mas
porque não políticas públicas porque independente de um governo né porque senão vira
política de um governo né quatro anos ele sai muda e porque não uma política né?
A partir das demandas sociais, o sujeito percebe então que não consegue atender
ao Outro e ao seu desejo ao mesmo tempo e então prefere se isentar de seu lugar
enquanto posição socialmente pré-estabelecida. Apontar o furo no fazer do outro tem o
efeito de uma tática simples e eficaz para justificar uma falha da qual ele não tem
consciência que é do todo o ser falante (parlêtre). Esse discurso pode funcionar também
como forma de o sujeito-professor destituir-se do lugar de mestre, não se implicar nessa
causa. A via para transformar a queixa em algo produtivo é assumir esse lugar de
autoridade, o lugar da referência, não se posicionando no lugar da lei, mas ser aquele
que “por meio de si, de sua palavra e memória, lembra que ela está aí a nos humanizar.
Isso não é tirania, mas, antes, escolha. E se há escolha, há possibilidade da novidade, da
diferença e da palavra (...)” (PEREIRA, 2009: 50).
No próximo recorte, podemos verificar que Pedro, ao falar de seus passos em
sala de aula, do conhecimento teórico divulgado e absorvido durante a vida acadêmica e
outros aspectos específicos de abordagens pedagógicas de ensino e aprendizagem de
língua estrangeira, evidencia o discurso universitário que o marca:
Recorte 3- Pesquisadora: E o que eles dizem que aprendem?
Pedro: Eles/Eu vejo, eles, ah bem na verdade não sei se eles dizem que aprendem mas
eu sinto no respaldo que eu tenho do que eu tento ensinar pra eles né do que eu tento
conduzir/ a forma como eles devem assimilar uma língua/ quando eles por exemplo
conseguem repetir os dias da semana um exemplo bobinho mas cê vê que tão
aprendendo né tentam pelo menos/ os números né pequenas frases, palavras soltas,
então cê vê esse empenho deles.
Recorte 4- Pesquisadora: Que também tem relação com a sexta. Como você verifica o
que eles de fato aprendem?
Pedro: Tá, mas aí a verificação entra aí na questão diagno, er, primeiramente de
diagnóstico. Eu gosto de fazer um diagnóstico da turma e posteriormente entra a
avaliação. Cada conteúdo ministrado/ eu procuro avaliar o que foi feito e ver inclusive
como que eles tão lidando né com o que foi transmitido pra eles.
A imagem que Pedro constrói sobre si de que o saber científico produz o que ele
precisa, põe em evidência a sua posição de sujeito alicerçado de conhecimentos
inquestionáveis e intocáveis. Esse sujeito exerce o papel de paranóico (PEREIRA,
2008), já que delira junto à massa de universitários, similarmente à religião para outros
sujeitos. É possível afirmar que seus alunos se tornam sujeitos sem luz; ou seja, ao se
pautar na literatura teórica, o professor não possibilita que seus alunos falem sobre si e
seus saberes, que devem ser também valorizados. Por fim, argumenta-se que esse
sujeito goza fazendo uso do seu gozo, da sua verdade (essa “irmã do gozo” (LACAN,
1992)). Além de seu próprio gozo, Pedro busca “transmitir” esse amor à verdade aos
seus alunos; “o amor à verdade é o amor a essa fragilidade cujo véu nós levantamos, é o
amor ao que a verdade esconde, e que se chama castração” (LACAN, 1992, p. 54).
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Considerações finais
O linguista aplicado está envolto em/por subjetividade, mas objetiva a solução
de problemas (como aprendizagem, a metodologia de sala de aula e a relação professoraluno), ao invés do estímulo a problematização e relativização de questões. Através
dessa proposta de trabalho é possível a construção de uma postura que busque colocar
em relevo a subjetividade e acolher as incertezas assim como formular e estimular
pesquisas que repensem a posição docente do sujeito. Tais pesquisas que primam pela
assertividade devem escutar o pesquisado e oferecê-lo a chance da falta, da dúvida
evitando a construção de regimes de verdade e propiciando (quem sabe) novos
deslocamentos.
Esse trabalho teve como objetivo focalizar e analisar aspectos singulares na
constituição de um professor de Projeto de Educação de Jovens e Adultos. Observamos
com as análises apresentadas que esse sujeito-professor reforça a posição de destituição
do lugar de mestre, o lugar do mal-estar. Tais análises apontaram para dizeres que
evidenciam a inscrição do professor no discurso universitário, a necessidade em ser
amado.
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Anais do Enelin 2011. Disponível em: www.cienciasdalinguagem.net/enelin
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