ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DO DIÁRIO ECONÓMICO Nº 5851 DE 29 DE JANEIRO DE 2014 E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE
X Conferência
INDÚSTRIA FARMACÊUTICA
João Lobo Antunes, ‘chairman’ da conferência,
presidirá à sessão de abertura pelas 9 horas.
Políticas de saúde e ciência em destaque
na conferência da indústria
Oradores internacionais falaram ao Diário Económico sobre os temas das suas apresentações.
TEXTOS DE IRINA MARCELINO
[email protected]
A Conferência Indústria Farmacêutica, uma
parceria entre o Diário Económico e a MSD
que já vai na décima edição, realiza-se hoje no
Hotel Ritz Four Seasons em Lisboa. Este ano, o
tema principal em debate é “Saúde e Ciência
em Tempo de Crise”.
Os convidados internacionais são Peter Carmel, ex-presidente da American Medical Association (AMA) e Ilona Kickbusch, reputada
especialista em saúde pública que também faz
parte da Plataforma para a Saúde, iniciativa da
Fundação Gulbenkian que tem como objectivo
o levantamento dos problemas do Serviço Nacional de Saúde português, assim como a
apresentação de propostas no sentido da sua
sustentabilidade.
João Lobo Antunes, ‘chairman’ da conferência
desde há vários anos, explica as razões por detrás dos convites. Sobre Peter Carmel, que fará
uma apresentação sobre os cuidados de saúde
A ciência em
saúde no futuro
João Lobo Antunes
considera que a agenda da
investigação em saúde
actual “é cada vez mais
pragmática”. Para o médico
e investigador, as doenças
cérebro-cardio-vasculares, o
cancro, a diabetes, as
doenças infecciosas entre as
quais particularmente a
SIDA e a malária são áreas
prioritárias. A estas doenças
acrescenta-se as que são
causa de morbilidade e
mortalidade na velhice.
“Para mim a saúde dos
idosos é o grande desafio
deste século”.
em tempos de crise, dando uma perspectiva do
que se passa nos Estados Unidos (ver entrevista
na página 6), João Lobo Antunes, que também
comentará esta apresentação, explica que
“pensámos que seria interessante conhecer
mais de perto o que se está a passar nos Estados
Unidos com a reforma do sistema de saúde que
o presidente Obama está a promover”, refere.
IIona Kickbush, que além das funções que desempenha como Directora do Global Health
Programme no Graduate Institute of International and Development Studies em Genebra,
Suíça, é comissária da Plataforma para a Saúde,
uma iniciativa da Fundação Gulbenkian (ver
entrevista na página 7 deste suplemento), falará sobre Saúde em todas as políticas, “uma visão moderna de que como é crucial valorizar a
saúde das populações em todos os sectores da
vida pública”, comenta a propósito João Lobo
Antunes.
Boris Azais, director da Public Policy da farmacêutica MSD para a Europa e o Canadá,
apresentará a visão da indústria sobre os modelos de I&D, o financiamento que exigem e
como a crise os pode afectar. Como é hábito,
estas conferências serão comentadas por personalidades nacionais. É o caso de João Almeida Lopes, presidente da APIFARMA (Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica), que comentará a intervenção de Boris
Azais e José Pereira Miguel, presidente do
Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge,
que fará os comentários à intervenção de Ilona Kickbusch.
A sessão de abertura conta com a presença do
ministro da Saúde, Paulo Macedo. Nesta sessão participam também João Lobo Antunes,
‘chairman’ da conferência, Leonardo Santarelli, director-geral da MSD e António Costa,
director do Diário Económico. ■
Paulo Alexandre Coelho
Saúde e Ciência em Tempo de Crise
II Diário Económico Quarta-feira 29 Janeiro 2014
X C O N F E R Ê N C I A : I N D Ú S T R I A FA R M A C Ê U T I C A S A Ú D E E C I Ê N C I A E M T E M P O D E C R I S E
Corte no preço
dos medicamentos
afecta investigação
Desafios
Empresas estão a parar, a diminuir ou a redireccionar
os seus programas de investigação.
ções em termos da competitividade futura do
sector”. Sobre o investimento em investigação clínica feito por multinacionais, Luís Portela refere que também tem diminuído,“o que
tem implicado um acentuado volume de desemprego (muito qualificado) nesta área”,
assim como a redução de receitas das unidades de saúde nacionais “em ensaios clínicos”.
O presidente do Health Cluster afirma que a
situação actual é “bastante constrangedora”e
que se está a por em causa o grande potencial
de desenvolvimento do sector da saúde. “Este
quadro restritivo está a limitar consideravelmente a capacidade de valorização” de um
conhecimento “que levou muitos anos e importantes recursos a construir”.
Corte nos preços limita investimentos
O corte no preço dos medicamentos é uma
das razões que tem levado as farmacêuticas a
cortarem nos investimentos em investigação
ou, pelo menos, a serem mais pragmáticas no
tipo de investimento que fazem.
O caso da MSD é disso exemplo. Leonardo
Santarelli, director geral da multinacional em
Portugal, reconhece que a evidência científica vai deixar de ser analisada tendo apenas
como pressupostos apenas a qualidade, eficácia e segurança. “A inovação farmacêutica
tem por base a interacção entre a pesquisa
científica e as necessidades em saúde. Mas
isso não é suficiente, novos medicamentos só
são desenvolvidos se o mercado e o ambiente
jurídico e regulamentar assim o permitirem”,
considera. Para o responsável, questões como
direitos de propriedade intelectual e “acesso
rápido ao mercado” são necessários para a
sustentabilidade da I&D “que se traduz na introdução no mercado de medicamentos inovadores que têm impacto na vida dos doentes”. E conclui: “a investigação e o desenvolvimento de novos medicamentos requerem
um longo esforço, com grande investimento e
risco elevado, por isso a estabilidade das regras de mercado e do acesso à inovação é fundamental para sustentar estas decisões”.
José Manuel Silva, bastonário da Ordem dos
Médicos, considera que “no caso dos cortes
dos preços dos medicamentos, que são positivos para os doentes e também para o Sistema
Nacional de Saúde”, propõe que se “canalize”
parte da poupança para a investigação. ■
Perspectiva
Jasper Juinen/Bloomberg
O tema da investigação científica tem estado
na ordem do dia em todos os jornais, rádios e
televisões nas últimas semanas. Tudo começou com o corte nas bolsas de investigação. O
debate tem provocado um verdadeiro pingue
pongue de acusações entre as partes: quem
recebe e quem atribui bolsas.
Mas o tema não fica por aqui. As questões do
financiamento e da própria investigação em
saúde feita por empresas e universidades são
temas sensíveis que mereceram o comentário
de vários especialistas contactados pelo Diário Económico. Ilona Kickbusch, uma das
oradoras internacionais, referiu este tema
como um dos desafios que a investigação em
saúde enfrenta a nível internacional. “São
necessários diferentes mecanismos de financiamento ao sector privado no sentido de se
encontrarem novas soluções para a saúde”.
Também sobre o financiamento, João Lobo
Antunes destaca a sua articulação com a indústria. “A realidade portuguesa é ainda muito frágil, e eu diria que há, neste capítulo, um
desperdício de talentos”. Isto porque “a investigação que decorre nas universidades e
em instituições de investigação não poderá
absorver todos os doutorados que se formam
e, por outro lado, eles fazem falta nas empresas e serão motor fundamental da inovação”.
Para o ‘chairman’ da conferência Indústria
Farmacêutica, Portugal não se deve limitar “a
ser um mero utilizador da investigação e inovação alheias”, já que existe uma “massa crítica muito importante de investigadores qualificados, e algumas empresas e “start ups”
que emergiram de institutos de investigação,
que começam a ser internacionalmente competitivos”.
No que respeita à investigação feita pelas farmacêuticas, a associação que representa as
empresas deste sector, APIFARMA, diz que os
cortes frequentes no preço dos medicamentos
têm afectado “directamente” e de forma negativa “a sua capacidade de investimento em
investigação em Portugal”, afirmou ao Diário
Económico João Almeida Lopes, presidente.
Luís Portela, presidente do Health Cluster
Portugal, tem a mesma opinião. E acrescenta
que algumas empresas portuguesas terão
mesmo parado ou diminuído “fortemente” os
seus investimentos nesta área. Para o responsável, tal poderá gerar grandes “preocupa-
Ilona Kickbusch,
especialista em saúde
pública, defende que um
dos desafios para a
investigação é investir
numa nova geração de
antibióticos, já que a
resistência
antimicrobriana se tornou
preocupante a nível
global.
António Vaz Carneiro,
director da Director
do Centro de Estudos
de Medicina Baseada na
Evidência da Faculdade
de Medicina não concorda
quando se diz que a
investigação deve estar
ao serviço da
economia.”Há muitas
investigações que só
muito mais tarde se
descobre que têm
aplicabilidade na prática.
A perspectiva utilitária
da investigação é muito
perigosa”.
Ensaios clínicos em
Medidas de austeridade e comissão de ética são
Um estudo sobre ensaios clínicos
em Portugal, apresentado em Junho
e realizado pela PricewaterhouseCoopers a pedido da APIFARMA,
concluiu que por cada euro investido em ensaios clínicos há um retorno total de 1,98 euros para a economia nacional. Mas esse retorno não
está a ser aproveitado.
“Se os nossos clientes estivessem
em Portugal, em vez de estarem nos
Estados Unidos, Europa e Japão, a
nossa empresa não sobreviveria”,
diz Peter Villax, responsável pela
Inovação da Hovione, que fabrica
anualmente produtos para 50 ensaios clínicos de fase I, II e III. Para o
responsável, o principal entrave à
investigação clínica em Portugal é a
intervenção da Comissão de Ética
para a Investigação Clínica (CEIC).
E explica: “com o objectivo louvável de proteger a saúde e segurança
dos pacientes, a CEIC tem preferido
errar tanto do lado da prudência
que hoje praticamente não há ensaios clínicos em Portugal”. “É necessário um equilíbrio entre a vontade de proteger os pacientes e a
necessidade de descobrir, testar e
desenvolver novos tratamentos
inovadores”, defende.
José Manuel Silva, bastonário da
Ordem dos Médicos, disse a propósito do tema dos ensaios que “houve
uma fase em que o país dificultou
ensaios clínicos, atrasando decisões
e levando os ensaios para fora do
Quarta-feira 29 Janeiro 2014 Diário Económico III
2 P E R G U N TA S A LEONOR PARREIRA
SECRETÁRIA DE ESTADO DA CIÊNCIA
Um sector de
grande potencial
Portugal exporta mais produtos e
conhecimento de Saúde do que vinho.
As empresas e outras entidades portuguesas continuam a fazer investigação na área da saúde?
As Ciências Biomédicas e da Saúde representam uma aposta importante do ponto de vista nacional. Sabemos hoje que Portugal já
exporta mais produtos e conhecimento na área da saúde do que vinho ou cortiça. É um sector de “264 empresas
grande potencial, tanto do ponto têm actividades
de vista de conhecimento gerado de I&D na área
(as Ciências da Vida e Saúde são a das Ciências
área com maior crescimento em Biomédicas e
publicações científicas nos últi- Saúde, investindo
mos anos) como em recursos hu- 10% do total
manos muito qualificados e com- do investimento
petitivos. Em particular, os in- empresarial em
vestigadores em ciências biomé- I&D em Portugal”.
dicas básicas foram, até à data, os
que obtiveram o maior número de projetos do European
Research Council para Portugal.
Os dados do IPCTN 2011 indicam que do total de empresas com I&D em Portugal, aproximadamente 11% (264
empresas) têm actividades de I&D na área das Ciências
Biomédicas e Saúde, investindo aproximadamente 10%
do total de investimento empresarial em I&D em Portugal. Não há um desinvestimento em I&D empresarial
neste sector (aumento de 25% entre 2009 e 2011), no
entanto, a despesa nacional em I&D em percentagem
do PIB tem vindo a diminuir, com particular ênfase nas
empresas, o que poderá afectar este sector.
dificuldades
os principais entraves aos ensaios feitos em Portugal.
país”. Mas recorda que “há uma
proposta de lei que quer facilitar
sem facilitismos a realização, por
exemplo, de ensaios clínicos”.
João Almeida Lopes, presidente da
APIFARMA, considera que as repercussões negativas que as medidas de austeridade têm tido no funcionamento dos hospitais “tornam
ainda mais difícil a sua capacidade
de concretizar este tipo de investigação, com prejuízo para o acesso
dos doentes portugueses a novos
medicamentos, para os profissionais e para as próprias instituições
de saúde nacionais”.
Em 2012, recorda, o investimento
realizado pelas empresas farmacêuticas em ensaios clínicos em
Portugal foi de 36 milhões de euros,
“que contribuíram adicionalmente
para uma poupança da despesa pública em medicamentos e meios
complementares de diagnóstico no
valor de 3,5 milhões de euros”, refere João Almeida Lopes. “O número de ensaios clínicos submetidos
em Portugal caiu 26% entre 2006 e
2012 e a taxa de ensaios clínicos por
milhão de habitantes encontra-se
entre as mais baixas da Europa Ocidental”, afirma, defendendo que
para inverter a situação seria essencial uma “revisão da actual legislação, de forma a reduzir os tempos
entre a submissão do pedido de ensaio clínico e o início do recrutamento dos doentes, um factor ex-
tremamente limitativo da actividade em Portugal”.
O estudo da PwC identifica a necessidade de criar estruturas dedicadas
a esta actividade nos centros de investigação, uma maior cooperação
entre os vários agentes envolvidos e
a criação de modelos de incentivos
adequados que promovam o envolvimento de investigadores e de outros profissionais na realização de
ensaios clínicos. “A concretização
destas medidas determina um impacto potencial do valor do crescimento dos ensaios clínicos em cerca
de 71 milhões de euros, o que significa que, em 2015, a actividade poderia vir a representar 143 milhões de
euros”, conclui Almeida Lopes. ■
Que políticas tem o Governo nesta área?
Este sector, dependente fortemente de I&D, e beneficia
da proximidade entre empresas e centros de I&D. Nesse
sentido, o Governo lançou os programas doutorais em
ambiente empresarial, já na sua segunda edição, financiados pela FCT. Esperamos candidaturas altamente
competitivas por parte dos ‘stakeholders’ empresariais
e científicos deste sector. Esperamos também estimular
a investigação e a inserção de doutorados nas empresas
através de incentivos fiscais, já instituídos na recente
alteração ao Código Fiscal do Investimento.
Adicionalmente, as parcerias com Harvard Medical
School e o MIT, financiadas pela FCT em mais de 10 milhões de euros anuais, estão vocacionadas para internacionalizar a nossa investigação biomédica e fomentar a
transferência de tecnologia para a clínica.
O Governo, neste caso o Ministério da Saúde, está também a desenvolver políticas no sentido de recuperar a
competitividade perdida em termos de investigação
clínica. Nesse sentido foi produzida nova legislação de
modo a agilizar os processos administrativos sem pôr
em causa a segurança dos doentes. A legislação está
neste momento em fase de discussão no Parlamento. ■
IV Diário Económico Quarta-feira 29 Janeiro 2014
X C O N F E R Ê N C I A : I N D Ú S T R I A FA R M A C Ê U T I C A S A Ú D E E C I Ê N C I A E M T E M P O D E C R I S E
OPINIÃO
Ciência e saúde
em tempos de crise
As dificuldades financeiras no sector público
da saúde não podem ser justificação para que se
abandone a ideia de que o conhecimento é a melhor
forma de ultrapassar obstáculos. Existem razões de
fundo para que continuemos a apostar na
competitividade nacional em termos de investigação
clínica e translacional.
Continuamos a ter um sector privado, muito dele
fundacional, a apostar em grande investigação, que
atrai investigadores cotados e jovens. Temos suficiente
excelência clínica, razoavelmente dispersa em Portugal,
meios humanos e capacidade organizativa capaz de
aliciar empresas para investigarem em Portugal.
O sector privado, embora ainda, geralmente, desligado
da formação de técnicos, começa a ter dimensão
suficiente para se interessar pela prestação de serviços
de investigação biomédica. Precisamos de fomentar e
gerar qualidade que só se atinge quando há programas
de investigação embebidos no sistema.
Por tudo isto, desde o início das nossas funções no
Ministério da Saúde, como já acontecia com Governos
anteriores, resolvemos dar importância à investigação
no SNS. De uma forma coerente, promovemos a
construção de uma Lei de Investigação para a Saúde
que está a ser votada na especialidade. Esta Lei, sendo
abrangente, tenta responder aos desígnios de
investigadores e de outras partes interessadas no
processo, doentes em especial. Será um diploma que
deverá estar alinhado com o Regulamento aprovado no
final do ano passado em Bruxelas.
Alterámos as formas de avaliação dos concursos nas
carreiras médicas, com a intenção de valorizar a
atividade de investigação, de forma mais marcada nos
requisitos para a obtenção do Grau de Consultor,
momento determinante da progressão profissional dos
médicos.
Vamos libertar um milhão de euros, anualmente, ainda
este ano, para financiar investigação clínica
independente, diria complementar, daquela
desenvolvida por empresas farmacêuticas ou de
dispositivos médicos.
Julgamos necessário criar, juntamente com a área da
educação e ciência, um mecanismo de orientação
comum para a investigação biomédica, a exemplo do
que acontece noutros países, que deverá ser um ponto
de encontro para melhor utilização de fundos
comunitários, de mecenato ou de outros mecanismos
de financiamento que possam existir.
Todavia, o Estado não se substitui à vontade de quem o
faz, as pessoas. É delas que mais precisamos e o
nosso esforço colectivo tem de ser no sentido de gerar
conhecimento, a maior riqueza que se pode ter, que
contribua para a melhoria da saúde em Portugal e no
Mundo. No Mundo, sim, porque é esse o nosso destino
e a ciência nunca é só de quem a produz. ■
FERNANDO LEAL
DA COSTA
Secretário de Estado
adjunto do Ministro
da Saúde
Continuamos a ter
um sector privado,
muito dele fundacional,
a apostar em grande
investigação, que atrai
investigadores cotados e
jovens. Temos suficiente
excelência clínica,
razoavelmente dispersa
em Portugal, meios
humanos e capacidade
organizativa capaz
de aliciar empresas
para investigarem
em Portugal.
Fabrizio Bensch / Reuters
As razões de fundo para que se continue a apostar
na competitividade nacional na investigação clínica.
Governo anuncia que vai “libertar” um milhão de euros
anualmente para financiar investigação clínica
independente da que é desenvolvida por empresas
farmacêuticas ou de dispositivos médicos.
A saúde dos portugueses
O desequilíbrio entre a análise do “financeiro” e a do
Portugal hoje nada tem a ver com aquele
que vivemos cinco décadas atrás, muito
especialmente na saúde. Mas as actuais
circunstâncias do país – uma evidente
desconexão e desequilíbrio entre a
análise do “financeiro” e a do “bem-estar”
– requerem uma atenção renovada à
saúde dos portugueses.
Em 1970 nasciam 180 mil portugueses
por ano. Uma percentagem ainda
considerável nascia emcasa (63%),
frequentemente em habitações de baixa
qualidade. Em cada mil nascimentos,
cerca de 60 não sobreviviam até ao
primeiro aniversário.
Quarenta anos depois a situação alterou-se radicalmente.
Nascem cada vez menos portugueses:
em 2013, menos de metade do que em
1970! Mas os que nascem fazem-no
agora em serviços de saúde e só cerca
de três em mil não sobrevivem ao ano de
idade. Esta é uma das melhores das
taxas de mortalidade infantil do mundo!
Este feito pode atribuir-se ao
desenvolvimento socioeconómico do país
e ao Serviço Nacional de Saúde. Mas há
muitos outros progressos a destacar:
elevadas taxas de vacinação, iniciativas
pioneiras nos centros de saúde, no
planeamento familiar, nos cuidados de
saúde às pessoas diabéticas e serviços
hospitalares cada vez mais evoluídos
tecnicamente .
No entanto, os efeitos positivos do
CONSTANTINO
SAKELLARIDES
Professor, especialista
em Saúde Pública
Sabemos
que os gestores
da austeridade
excessiva têm
óbvias dificuldades
em reconhecer
a extensão
dos efeitos sociais.
crescimento económico e do
desenvolvimento do SNS têm sido
contrariados por três ordens de factores.
Um primeiro está nas acentuadas
desigualdades socioeconómicas que se
repercutem na saúde – como exemplo, o
risco de pobreza infantil em 2010 já tinha
alcançado os 23%. Sabe-se hoje que a
pobreza infantil é um dos principais
factores do “stress crónico”. Este pode
afectar definitivamente a capacidade de
aprendizagem do indivíduo. É
transmissão vertical das desigualdades
sociais!
O segundo destes factores tem a ver
com comportamentos – alimentação
pouco saudável, sedentarismo,
tabagismo, número excessivo de
acidentes, toxicodependências, excessos
Quarta-feira 29 Janeiro 2014 Diário Económico V
Como vai a indústria
farmacêutica adaptar-se
ao futuro
Do ponto de vista financeiro, os sistemas de saúde
estão numa encruzilhada.
“bem-estar” requer uma atenção renovada à saúde.
no consumo de álcool e a infecção pelo
VIH, são manifestações daquilo que se
poderia designar como menos respeito
por nós próprios e pelos outros.
O terceiro destes factores está associado
às atitude e percepções dos portugueses
face à saúde e à doença: somente cerca
de 66% dos portugueses se autoavaliam
como estando de boa saúde em
contraste com 75% dos espanhóis e 89%
dos irlandeses – para os maiores de 65
anos a distância para os espanhóis
acentua-se (de 13,8 para 40,5%). As
nossas percepções são piores do que o
que os dados objectivos descrevem.
A esperança de vida dos portugueses
aos 65 anos tem aumentado nos últimos
anos: a das portuguesas (21.8 anos) já é
superior à das irlandesas (20.7). No
entanto a este aumento de anos de vida
não tem correspondido uma melhoria da
qualidade de vida nestas idades mais
avançadas: As irlandesas aos 65 anos
têm uma esperança de vida saudável de
10.5 anos (as suecas 14.6), e as
portuguesas só 5.4 anos! Este simples
facto tem grandes repercussões no bem-estar das famílias portuguesas – cerca
de 90% dos cuidadores familiares em
Portugal fazem-no todos os dias,
enquanto nos países do Norte da
Europa, com “cuidados continuados”
desenvolvidos, cerca de 50% dos
cuidadores familiares fazem-no só
semanalmente.
Sabemos que uma crise económica e
social como aquela que Portugal hoje
atravessa afecta de várias formas a
saúde e os serviços de saúde do país,
principalmente os mais indefesos ansiedade, depressão, perda de
autoestima, mais comportamentos de
risco, maior vulnerabilidade às infecções,
dificuldades no acesso e na qualidade
dos cuidados de saúde e maior
insatisfação dos profissionais de saúde
são alguns dos efeitos esperados.
Sabemos também que os gestores da
austeridade excessiva, que hoje
experimentamos, têm óbvias dificuldades
em reconhecer a extensão dos efeitos
sociais e na saúde dessa austeridade.
Precisamos, hoje ainda mais do que no
passado, de sistema de saúde, com os
seus componentes públicos, sociais e
privados, inspirados num SNS
modernizado, com uma identidade mais
forte e menor fragmentação. Este deverá
ser capaz de recentrar o sistema de
saúde numa resposta efectiva a afecções
de evolução prolongada - temos altas
prevalências de situações tão díspares
como as afecções mentais, a obesidade
infantil e a diabetes. Mas será necessário
fazê-lo menos na tradição de “fazer
saúde nas pessoas”, e mais no espírito
de promover comunidades mais
saudáveis, menos desiguais, mais
responsáveis, confiantes e
empreendedoras. ■
Esta é uma era de excepção para a inovação na
descoberta de novas moléculas e uma oportunidade
para inventar fármacos nunca foi tão promissora como
hoje. Os progressos médicos e científicos têm garantido
um fluxo de informação constante sobre a biologia
humana, que permite às empresas de ‘research’ apostar
em programas de investigação ambiciosos.
Do ponto de vista financeiro, porém, os nossos
sistemas de saúde estão numa encruzilhada. Durante
décadas, os custos com a Saúde cresceram mais
depressa do que a economia e agora enfrentamos uma
epidemia de doenças crónicas em resultado do
envelhecimento da população, que exige uma gestão
para a qual os sistemas de saúde não estão
preparados. Tudo isto acontece num momento de fraco
crescimento e de desafios orçamentais difíceis em toda
a Europa que, no caso da saúde, visaram as
farmacêuticas numa primeira fase, mau grado o
pequeno papel que desempenham na despesa (15%
em média nos países da OCDE).
O que tem, então, feito a indústria farmacêutica para
lidar com este ambiente complexo e conflituoso?
Primeiro, afastou-se do modelo de investigação
tradicional, voltado para dentro. Hoje, a investigação é
essencialmente colaborativa e envolve numerosas
parcerias, que têm conduzido a novas terapias. Os
governos assumiram um papel mais pró-activo no
desenvolvimento de novos medicamentos, acelerando
os trâmites reguladores e o enquadramento legal de
acordos e parcerias na indústria para garantir maior
visibilidade aos inovadores.
Segundo, e perante o facto de as autoridades exigirem
cada vez mais decisões de reembolso, as
farmacêuticas começaram a implementar estratégias
como a especialização em terapias chave que salvam
vidas (ex. cancro), a diversificação da carteira (produtos
de consumo para cuidados pessoais, equipamentos,
etc.), ou a inclusão de serviços de gestão da doença
para se posicionarem como “fornecedores de soluções”.
Terceiro, o crescimento da saúde em linha/eSaúde vai
mudar a forma como os medicamentos são criados,
aprovados e pagos: os registos electrónicos irão
produzir conhecimento de elevada qualidade que
poderão ser usados para conceber tratamentos
individualizados, acelerar e melhorar o processo de
aprovação por parte do regulador.
Hoje, como sempre, temos uma grande necessidade de
fármacos. Mas só poderemos garantir cuidados de
saúde de elevada qualidade e desbloquear o
crescimento económico através da colaboração e das
parcerias, devido aos enormes desafios científicos,
técnicos e financeiros que enfrentamos. ■
BORIS AZAIS
Director da área de Políticas
públicas para a Europa
e Canadá da MSD
Durante décadas,
os custos com a saúde
cresceram mais depressa
que a economia.
Em consequência,
enfrenta-se uma epidemia
de doenças crónicas
que exige uma gestão
que os sistemas de saúde
não estão preparados
para fazer.
>> Agenda
Boris Azais é orador
convidado na X
Conferência da Indústria
Farmacêutica. Falará a
partir das 10h30 e terá
como comentador João
Almeida Lopes,
presidente da APIFARMA.
10H30
VI Diário Económico Quarta-feira 29 Janeiro 2014
X C O N F E R Ê N C I A : I N D Ú S T R I A FA R M A C Ê U T I C A S A Ú D E E C I Ê N C I A E M T E M P O D E C R I S E
E N T R E V I S TA PETER CARMEL, EX-PRESIDENTE DA AMERICAN MEDICAL ASSOCIATION (AMA)
“Congresso americano
cortou na ciência sem
pensar nas consequências”
Em dez anos desde 2008 a despesa devia ser cortada em 1,3 biliões de dólares.
Como é que a crise económica e financeira
nos EUA e na Europa tem afectado a ciência e
a saúde?
O Congresso norte-americano reagiu à crise
financeira de 2008 cortando na despesa com a
ciência e a saúde sem pensar nas consequências. Este “sequestro” de fundos tinha por
meta reduzir a despesa do governo em 1,3 biliões de dólares no espaço de uma década. Em
resultado disso, os fornecedores de serviços
de saúde nos EUA vão sofrer um corte anual
de 2% nos seus pagamentos. A redução na
ciência é ainda mais drástica.
Pode especificar?
O National Institute of Health – a entidade
que mais apoia a investigação biomédica nos
EUA – foi obrigado a fazer um corte de 25%
nas bolsas de investigação em curso, renovações incluídas, para poder financiar parcialmente os novos cientistas que se candidatem
a uma primeira bolsa. Sem esta medida drástica, os EUA perderiam a massa crítica dos
novos investigadores, e isso teria um impacto
ainda mais negativo na área de ‘research’.
Não encontrei dados relativos a mudanças em
Portugal, mas disponho de informação esclarecedora no que toca a Espanha, onde a despesa com a saúde pública foi de 7% do PIB (a
média é de 7,6% na Europa). Espanha reduziu
essa despesa em 13,2% em 2012 e em 16,2%
em 2013, o que excluiu uma parte significativa
da população da rede de cuidados primários e
preventivos. Nos EUA, tivemos uma experiência com um surto de tuberculose na cidade de Nova Iorque na década de 1990. Os custos para controlar esse surto ascenderam a 1,2
mil milhões de dólares. Se tivesse havido uma
política preventiva, os custos deveriam rondar 10% desse valor.
A investigação científica na área da saúde é
suficiente nos tempos que correm?
Não, mas cabe a cada país definir as suas prioridades em termos de despesa. Os países que
se encontram numa situação dramática devido à crise financeira devem, pelo menos, assegurar serviços de saúde primários e preventivos.
“
Preocupa-me que
os governos
façam escolhas
desinformadas
que possam ter
um impacto
profundamente
negativo na área
da saúde e da
ciência da saúde.
Fazer cortes sem
pensar nas
consequências
parece ser uma
prática cada vez
mais generalizada.
>> Agenda
Peter Carmel começará a
sua intervenção de hoje
na conferência às 9h30.
O tema será “Cuidados
de Saúde em tempo de
crise: a perspectiva dos
EUA face a um problema
global”. Joao Lobo
Antunes comentará.
09H30
O presidente Barak Obama tentou criar nos
Estados Unidos da América uma “espécie” de
sistema público de saúde, mas não conseguiu. Porquê?
Se ao falar num sistema público de saúde se
refere a um único sistema pago, quero deixar
claro que esse conceito é impopular nos EUA
e, muito provavelmente, impossível de implementar. O compromisso que Obama conseguiu negociar foi no sentido de subsidiar as
pessoas com poucos rendimentos para que
possam comprar seguros de saúde no mercado privado. Quem não tem meios para o
fazer vai receber cuidados de saúde através
do Medicare (idosos) ou do Medicaid (pessoas abaixo do limiar da pobreza). O “Obamacare”, como é conhecido nos Estados
Unidos, começou mal devido a problemas no
site, mas depois disso passou a funcionar
bem. O objectivo do programa é oferecer
melhores cuidados de saúde a custos mais
baixos. Resta saber se é eficiente. Os dados
mostram que a despesa com a saúde tem
vindo a diminuir nos EUA e atingiu entretanto a taxa de crescimento mais baixa nos
últimos 50 anos.
Para si, qual é o sistema de saúde ideal?
Aquele que dá a atenção devida à doença de
cada paciente, que integra os cuidados necessários em cada fase da doença e dispõe de sistemas inovadores para que clínicos e hospitais
sejam pagos de maneira a incentivar a manutenção de pacientes saudáveis.
Que aspectos o preocupam mais na saúde
global?
Preocupa-me que os governos façam escolhas desinformadas que possam ter um impacto profundamente negativo na área da
saúde e da ciência da saúde. Fazer cortes sem
pensar nas consequências parece ser uma
prática cada vez mais generalizada. ■
David Gray / Reuters
Neurocirurgião pediátrico e ex-presidente da
American Medical Association, Peter Carmel
é um dos oradores convidados para dissertar
sobre a ciência e a saúde em tempos de crise
na conferência sobre Indústria Farmacêutica
que hoje decorre no Ritz Four Seasons em Lisboa. Trazendo a experiência norte-americana
Peter Carmel refere que muitas vezes o que se
gasta para controlar um surto de uma doença
podia ser poupado se houvesse políticas preventivas.
O World Economic Forum concluiu que o impacto
de doenças como as cardiovasculares, as doenças
respiratórias crónicas, o cancro, a diabetes
e os problemas de saúde mental podem custar
47 biliões de dólares nos próximos 20 anos.
Quarta-feira 29 Janeiro 2014 Diário Económico VII
E N T R E V I S TA ILONA KICKBUSCH, ESPECIALISTA EM SAÚDE PÚBLICA
“A saúde não pode ser
desenvolvida apenas através
de políticas de saúde”
As políticas de saúde devem ser transversais a todas as políticas públicas.
dem custar 47 biliões de dólares nos próximos
20 anos. Fumar custa aos países europeus pelo
menos 100 mil milhões de euros. Portugal,
por exemplo, é um dos países europeus com
maior obesidade infantil. E isto terá um impacto económico a longo prazo.
Mentora da teoria Health in All Policies
(HiAP), Ilona Kickbusch faz também parte da
plataforma que a Fundação Gulbenkian desenvolveu para analisar o sistema português de
saúde e apresentar soluções. Nesse contexto,
refere que Portugal tem falta de enfermeiros,
excesso de aparelhos de TAC e um aumento
da obesidade.
“
Acredita na saúde em todas as políticas. Isso significa por exemplo que, num governo, todos os
ministérios devem ter programas relacionados
com a área da saúde?
A saúde pode depender de um bom rendimento, de uma casa, de um ambiente envolvente saudável, de boa alimentação, etc. Isto
significa que a saúde não pode ser desenvolvida apenas através de políticas do sector da
saúde – que muitas vezes está concentrado
em gerir o sistema de cuidados de saúde.
Como resposta a isso, o Health in All Policies
(HiAP) tem vindo a desenvolver formas de
aproximação às políticas públicas de forma
transversal, propondo que os vários sectores
tenham em conta as implicações positivas e
negativas para a saúde das decisões tomadas e
que procurem sinergias com o objectivo de
promover a saúde das populações, assim
como a equidade na saúde.
Que tipo de temas relacionados com saúde seriam fundamentais para um programa da área
da Economia na Europa, por exemplo?
Investir nas crianças e nos jovens deve ser
prioritário. Programas relacionados com o
desenvolvimento infantil desde a mais tenra
idade devem ser apoiados e estabelecidos,
caso contrário toda uma geração será perdida.
Por outro lado, o acesso ao trabalho e à educação é absolutamente crítico para os jovens.
Sabemos que o baixo nível de educação, baixos rendimentos e especialmente o desemprego têm um impacto negativo na saúde física e mental. E que terão consequências ao
longo de toda a vida.
De que forma pode uma política de saúde incompleta prejudicar a economia de um país?
O World Economic Forum concluiu que o impacto de doenças como as cardiovasculares,
as doenças respiratórias crónicas, o cancro, a
diabetes e os problemas de saúde mental po-
Em Portugal,
há falta
de profissionais
de enfermagem,
aumento
da obesidade
e uma elevada
percentagem de
aparelhos de TAC.
Há utilização
desnecessária
de tecnologia
e insuficiente
prevenção.
>> Agenda
Ilona Kickbusch falará
sobre A Saúde em todas
as políticas a partir do
meio dia. Os comentários
à sua intervenção estão a
cargo de José Pereira
Miguel, presidente do
Instituto Nacional de
Saúde Ricardo Jorge.
12H00
Como é que tem sido a sua experiência com a
Fundação Gulbenkian na análise das políticas
públicas em Portugal?
Tem sido recompensador. Há um grande
comprometimento no sentido de encontrar
soluções sustentáveis no longo prazo.
Que problemas lhe pareceram mais graves
quando teve contacto com o Sistema Nacional
de Saúde português?
Eu já tinha tido contacto com o Sistema Nacional de Saúde português através do meu
trabalho na Organização Mundial de Saúde e
com a Escola Nacional de Saúde Pública. Portugal enfrenta desafios semelhantes aos de
outros sistemas de saúde: políticas de promoção e prevenção insuficientes, a necessidade
de aproximar o governo e a sociedade a este
tema e a adaptação do sistema de saúde a problemas como doenças crónicas. Alguns problemas especificamente portugueses já foram
referidos pela OCDE: por exemplo, a falta de
profissionais de enfermagem, o aumento da
obesidade ou a elevada percentagem de aparelhos de TAC. Há utilização desnecessária de
tecnologia e insuficiente prevenção.
Em sua opinião, qual é o factor mais positivo do
sistema de saúde português?
Todos os residentes em Portugal têm acesso a
cuidados de saúde e há um forte compromisso
com o acesso universal aos cuidados. Têm havido muitas medidas para melhorar a performance do sistema e Portugal tem profissionais
altamente qualificados e excelentes capacidades de investigação. Várias políticas estão desenhadas mas precisam de ser implementadas. Portugal tem uma esperança de vida elevada, mas tem desigualdades significativas em
termos de saúde. Aloca uma percentagem do
PIB relativamente elevada à saúde, cerca de
10,2%, mas devido ao programa de austeridade, os serviços de saúde têm sido objecto de
cortes e os co-pagamentos têm aumentado,
por exemplo, nos serviços de emergência. ■
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