IV Reunião Equatorial de Antropologia e XIII Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste. 04 a 07 de agosto de 2013, Fortaleza-CE. Grupo de Trabalho 23: O trabalho em África: Imperativos coloniais, alternativas e resistências locais A construção da ideia de identidade negra nacional: o movimento “Black power” no Brasil Aline Cristina Laier – UFJF ([email protected]) Leonardo Francisco de Azevedo – UFJF ([email protected]) A construção da identidade nacional brasileira: Gilberto Freyre e o mito da democracia racial Antes de qualquer tentativa de constituição de uma ciência social institucionalizada no Brasil, já eram vários os autores que se dedicavam a entender e explicar a realidade brasileira. Com uma conjuntura repleta de modificações recentes – como a constituição de uma República nascente, escravos libertos ocupando o espaço urbano e a agricultura nacional passando a se sustentar por mão de obra europeia – ia se constituindo uma realidade cada vez mais complexa para ser explicada. Neste momento, a questão da raça se tornava central. Enquanto no Império a quantidade de negros livres era infinitamente menor do que os que estavam submetidos a senhores de engenho e outros proprietários escravistas, no período pós-abolição a população negra deixa de ser vista como mera propriedade e passa a fazer parte do cenário urbano brasileiro. Sobretudo porque a população do país, como um todo, diferente de outras realidades, era considerada extremamente mestiça, um caso extremado e singular de miscigenação racial (SCHWARCZ, 1993). Há quem via nessa miscigenação a explicação para o “atraso” e degenerescência do povo brasileiro, sendo necessária uma política radical de branqueamento no país (RODRIGUES, 2008). Tal visão foi muito propagada entre a intelligentsia e as elites políticas brasileiras. Para além disso, discordâncias em torno de questões regionalistas, constitucionais e políticas impediam de se enxergar o país numa perspectiva unitária e integrada. Com a eleição de Getúlio Vargas, em 1930, há o empenho na construção de um projeto de identidade nacional. Na tentativa de superar as divisões territoriais, políticas e raciais que constituíam o Estado brasileiro, Vargas assume o discurso da unidade nacional e de um projeto de país. Neste contexto, Gilberto Freyre surge como o grande intelectual capaz de explicar a identidade nacional e se contrapor às teorias racistas vigentes até então. Em Casa-Grande e Senzala (2003), o autor exalta o processo de miscigenação que marcou a colonização portuguesa no país. Precursor do luso-tropicalismo, afirmava que a colonização portuguesa, diferentemente da promovida por outros países europeus, não gerava a clivagem racial e valorizava a miscigenação entre colonizador e colonizado. Assim, se opondo radicalmente aos Estados totalitários fascistas na Europa e à segregação racial estadunidense, Freyre exalta o hibridismo cultural presente no Brasil, negando uma estrutura social racista no país. Apesar de não cunhar, pela primeira vez, o termo “democracia racial” (GUIMARÃES, s/d; AGUIAR, 2008), suas obras servem como germe para essa ideia que será considerada por muitos como o mito fundador da identidade nacional brasileira. (SOUZA, 2000). A miscigenação do povo brasileiro, longe de ser o explicador do nosso atraso, era a demonstração concreta da nossa singularidade e do nosso “avanço” na convivência racial. Para muitos, entretanto, esse mito não era sinônimo da ausência de preconceito racial no país. Nos anos 50, apesar da ideia de “democracia racial” ainda não ser colocada em questão, Bastide e Fernandes (1955, apud GUIMARÃES, s/d) já afirmavam que a democracia racial devia ser vista mais como ideal do que como realidade. Logo, esta noção não podia ofuscar a consciência de que existia desigualdade de raça no país. Com o golpe militar em 1964, entretanto, a ideia de democracia racial enquanto elemento explicador da realidade brasileira ganha contornos estatais, obscurecendo a existência de racismo no país. Logo, o que servia como ideal torna-se um “mito” a ser combatido. Longe de apontar para um horizonte democrático, o “mito da democracia racial”, propalado pelo lusotropicalismo e incorporado como ideologia oficial do golpe militar, era algo que devia ser combatido, tanto pela intelligentsia como pelo movimento negro no país. (GUIMARÃES, s/d.) Logo, era necessário pensar a identidade nacional em outros termos. A luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos: mobilização cultural e a influência no Brasil A revisão da questão racial enquanto um dos principais polos geradores da desigualdade e do racismo, entretanto, estava presente não apenas no Brasil, mas em diferentes partes do globo. Nos anos 60 e 70 encerra-se o período colonial de países europeus na África, bem como emerge os movimentos pelos direitos civis nos Estados Unidos. Essa nova conjuntura, atrelada a um mundo cada vez mais conectado, sobretudo pelo crescimento e desenvolvimento das telecomunicações, colocou o debate racial no ocidente em outro patamar. Neste sentido, o desenvolvimento das lutas dos negros nos Estados Unidos é fundamental para compreender a mobilização cultural negra no Brasil e o surgimento do “Black is beautiful” por aqui. A trajetória do movimento negro americano trouxe consequências que extrapolaram o contexto nacional. Com a abolição da escravidão em 1863, a população de afrodescendentes - principalmente os que viviam nos estados do sul do país - passou a viver sob forte regime de segregação racial, com restrições em seus direitos políticos e socais, além de estarem submetidos à ameaças constantes por parte de grupos extremistas organizados - como a Klu Klux Klan ou os Cavaleiros do Branco Camélia. (RIBEIRO, 2008). Tal situação perdurou até meados do século XX. Mesmo os Estados Unidos já consolidado como a grande potência mundial, ainda persistia essas segregações raciais de forma estrutural e enraizada. Neste contexto, a mobilização da sociedade civil negra foi fundamental para reverter tal situação e reconfigurar sua identidade sob outros termos, mais justo e igualitário. A princípio, foi através da expressão artística, principalmente através da música, que os negros iniciaram um processo de reconfiguração de seus papeis sociais na sociedade americana. O Blues e o Jazz1 marcam o início da trajetória de uma manifestação artística predominantemente negra nos EUA já na década de 1920. Posteriormente, o gospel e soul irão participar no fomento das reivindicações pelo fim da segregação e da discriminação racial. Movimentos como o “Black is beautiful” e o “Black Power” – entrelaçados com o movimento musical soul e gospel – se tornam fundamentais para o entendimento de como os negros operavam numa categoria de ex-escravos e de sub-indivíduos na sociedade americana, abrindo caminhos para um despertar de “consciência”. E é através da transformação destes sentimentos em música, da musica em mobilização social e de mobilização social 1 O blues foi o primeiro gênero musical americano originado majoritariamente dos afrodescendentes, marcando o início da trajetória da black music no século XX. Sua origem é atribuída a uma fusão de cânticos negros aos lamentos dos africanos escravizados nos campos estadunidenses. Iniciou-se no meio rural, e se concretiza no final do século XIX e início do século XIX, quando a maioria dos negros da região Sul migram para os centro urbanos. “O blues e um estado de espírito e a musica que da voz a ele. O blues é o lamento dos oprimidos, o grito de independência, a paixão dos lascivos, a raiva dos frustrados e a gargalhada do fatalista. E a agonia da indecisão, o desespero dos desempregados, à angustia dos destituídos e o humor seco do cínico. O blues é a emoção pessoal do individuo que encontra na musica um veiculo para se expressar. Mas é também uma musica social: o blues pode ser diversão, pode ser musica para dançar e beber, a musica de uma classe dentro de um grupo segregado. (RIBEIRO, R., 2008:71 apud MUGGIATI, 1995 :27) em organização política que o negro americano irá “ressignificar” seu papel; sua identidade como negro e cidadão americano2.Os caminhos percorrido pelo blues dos anos 20 ao movimento soul- influenciado fortemente pela a música gospel - dos anos 60 e 70 se confundem com as transformações do papel do negro na sociedade americana e a sua ascensão à categoria de cidadão e indivíduo, direito antes entendido como restrito a maioria branca. Uma das estratégias de resistência, difundida rapidamente, foi a migração dos grandes centros urbanos situados ao norte do país. O rápido crescimento industrial dessa região na década de 20 do século XX atraia fluxos cada vez maiores de migrantes de diversas regiões e também dos afrodescendentes. O contexto urbano propiciou a essa população negra o convívio com outros horizontes possíveis e o experimento de novas realidades. Cidades como Nova York e Chicago já contavam com uma expressiva população negra. E como aponta Ribeiro, em alguns casos formava-se uma “pequena burguesia – negra - que frequentava os cabarés para ouvir o blues, cantado no contexto do jazz, uma afirmação de sua urbanidade”. (RIBEIRO, 2008,p.75). Nesta nova “fase” do Blues, as questões sociais e raciais que marcavam as primeiras canções foram sendo gradativamente substituídas por temas mais genéricos, como o amor romântico, reflexo da busca de respeitabilidade da classe média negra urbana. (RIBEIRO, 2008). A partir dos anos 40, com os novos blues dançantes do Sul - rhythm and blues - a música negra ganha adeptos entre os adolescentes brancos dos EUA. As gravadoras atentas ao mercado lançam artistas brancos realizando performances negras, como foi o caso de Elvis Presley e Jerry Lee Lewis. (Ribeiro, 2008). Com a incorporação dos estilos musicais oriundos dos guetos e o crescimento do consumo de massa direcionado cada vez mais ao público jovem, assim como o desenvolvimento acelerado dos veículos de comunicação – primeiro o rádio e posteriormente a televisão – amplia-se a difusão dos gêneros musicais e a 2 Almeida, trazendo uma análise de Gilroy, propõe que a contracultura expressiva não seja mais vista como uma sucessão de tropos e gêneros literários, mas antes como um discurso filosófico que recusa a separação, moderna e ocidental, entre ética e estética, cultura e política. Assim, a passagem da escravatura à cidadania terá levado os afrodescendentes a inquirirem sobre as melhores formas de existência social, mas a memória da escravatura – preservada como recurso intelectual na sua cultura política expressiva – levou-os a procurar respostas para essa pergunta.(ALMEIDA,2002 p.43) assimilação destes por camadas crescentes de jovens, que se identificavam com os novos ídolos que surgiam constantemente. (RIBEIRO, 2008) Se a música promovia a aproximação entre negros e brancos o mesmo não acontecia na sociedade em geral. As leis de segregação ainda mantinham o caráter extremamente racista e desigual da sociedade americana. Este paradoxo será um aspecto encorajante para os movimentos negros, pois desmascarava a incoerência e perversidade da segregação racial. A luta pelos direitos civis da população negra começa a ganhar força em meados da década de 50 do século passado concomitantemente às lutas pelas independências das colônias em África. Dentre os atores envolvidos, haviam brancos e afrodescendentes que começavam a se mobilizar frente às injustiças e discriminações sofridas pela população negra, combatendo o “conservadorismo burguês”, alegando o aspecto incoerente frente aos ideais democráticos proclamados nos EUA. No campo da arte da literatura e também nas ciências jurídicas, emerge a contestação da ordem vigente e a valorização do cidadão negro na sociedade americana. (RIBEIRO, 2008) Mobilizações pacíficas conseguiram alguns avanços até 1962, como a dessegregação nas escolas públicas, direito ao voto e permissão de uso de locais públicos. Mas tais conquistas geraram o recrudescimento da população sulista (SELLERS; MAY; McMILLEN, 1990 apud RIBEIRO, 2008), cuja resistência violenta no sul implicou, posteriormente, em outros movimentos de cunho não pacifista3. Neste sentido, um movimento que se restringia em princípio ao campo jurídico tornou-se um movimento de massa na década de 60. Os jovens negros não aceitavam mais a “passividade” das gerações que os antecederam. Promoviam mobilizações em restaurantes, lanchonetes e outros lugares públicos, onde reclamavam por não serem atendidos como os brancos. Caravanas de jovens negros e brancos, intelectuais, artistas, enfim, os atores engajados no movimento pelos direitos civis partiam do norte dos EUA a fim de pressionar as instituições governamentais no Sul. Estes reagiam com violência, usando o aparato policial contra os militantes. (RIBEIRO,2008) 3 “As mobilizações atingiram seu ápice em 1963: de junho a agosto, o Departamento de Justiça documentou mais de 1.412 manifestações distintas; em uma semana de junho, mais de 15 mil americanos foram presos por conta de protestos em 186 cidades. (KARNAL et al., 2007, appud Ribeirop. 244). A reação violenta contra os militantes era coberta pela mídia televisiva e chocava grande parte dos telespectadores que viam pessoas, em manifestações pacíficas, atacadas com cassetetes, bombas de gás lacrimogênio, aparelhos de choque, jatos de águas e cachorros. Tais imagens geraram efeitos entre a população branca, aumentando a adesão às reivindicações requeridas. Com o crescimento exponencial dos atos e dos apoiadores, o governo americano se viu forçado a agir. (RIBEIRO, 2008) A marcha dos 250 mil, liderada por Martin Luther King, foi o auge do movimento. No dia 23 de agosto de 1963, 250 mil pessoas marcharam em direção ao Washington a fim de “forçar” a aprovação de uma nova lei dos direitos civis americanos, que já havia sido aprovada pelo presidente Kenedy, mas coibida pela coalizão que representava os líderes “racistas” do sul do país e os “conservadores” do Norte. O famoso discurso de Luther King, “I have a dream”4, apresenta a síntese da luta pelos direitos civis, lançando mão, de forma coerente, dos valores propagados pelo ideal democrático americano de forma a mostrar e legitimidade do movimento. Uma nova lei de direitos civis é aprovada em 1963, pelo presidente Johnson que substituiu J.F.Kenedy após seu assassinato (1963). A nova lei abolia formalmente a segregação entre negros e brancos, e também buscava atender as demandas da população negra, como o acesso ao ensino universitário e a melhores oportunidades de emprego. Porém, tais políticas não foram alcançadas de forma pacífica, tampouco mudaram de imediato os conflitos raciais na sociedade americana. Havia um clima de frustração diante dos limites e da lentidão das transformações buscadas pelos ativistas dos direitos civis, muito em parte devido às animosidades enraizadas por séculos de opressão. Entre 1963 e 1968 ocorreram 4 “Eu tenho um sonho no qual um dia esta nação se erguera e vivera o verdadeiro principio do seu credo: Nos acreditamos que esta verdade e auto-evidente, de que todos os homens são criados iguais. Quando nos deixarmos o sino da liberdade tocar, quando o deixarmos tocar em qualquer vilarejo ou aldeola, de qualquer estado, de qualquer cidade, nos estaremos prontos para nos erguer neste dia, quando todos os filhos de Deus, brancos ou negros, judeus ou gentios, protestantes ou católicos, estaremos prontos para nos dar as mãos e cantar as palavras de um velho espiritual negro: Por fim livres! Por fim livres! Graças senhor Todo-Poderoso, estamos livres enfim. (SCHLOREDT; BROWN, 1989, p. 49-51).(90) 341 motins em aproximadamente 265 cidades norte-americanas. Tais distúrbios são atribuídos à brutalidade com a qual a polícia reagiu aos protestos, que levaram a óbito cerca de 221 pessoas e deixaram dezenas de milhares presos, na sua maioria negros. A persistência da miséria econômica e da insatisfação com as políticas de cooptação e repressão, juntamente com a influência de correntes políticas esquerditas descortina as limitações da nova legislação formal e fomenta a segunda fase do movimento negro. (KARNAL, 2007 apud RIBEIRO, 2008) Nos anos de 1964 e 1965 surgem movimento negros que não se enquadravam aos ideais pacifistas do movimento anterior liderado por M. L. King. King foi assassinado em 1968, considerado o estopim para que ações de cunho violenta se espalhem pelo território americano. Muitos dos antigos seguidores de King se juntaram aos seguidores de Malcom X e do Partido dos Panteras Negras. Sob a influência de Malcom X(1925 -1965) – menos expressiva do que a de Luther King – forma-se uma nova visão sobre a questão dos direitos civis e na constituição de movimentos de caráter mais radical, regida também sobre a emergência da influência da religião muçulmana5. Nesta nova perspectiva, o “nacionalismo negro” ganhou popularidade, defendendo a valorização das tradições afro-americanas, o apoio a movimentos revolucionários em países subdesenvolvidos e coalizões progressistas multirraciais. (KARNAL, 2007, apud RIBEIRO, 2008,p.92) Concomitantemente ao movimento empreendido por de Malcom X surgem os movimentos Black Power, fruto de uma combinação entre um “nacionalismo cultural” que pregava a valorização das tradições afro-americanas e a militância contra a discriminação racial. No ano de 1968 é criado o Partido dos Panteras Negras, cujos fundadores eram universitários negros da Universidade da Califórnia. Seus militantes apelaram para a “autodefesa armada” contra policiais racistas e também 5 É interessante notarmos que no século XIX a religião islâmica também servirá de pano de fundo para a contestação do domínio europeu e branco sobre as nações africanas, e na “Revoltas dos Males”, escravos muçulmanos que se encontravam em território brasileiro. Sob a prerrogativa de se estar sob o julgo de infiéis, os negros em algumas regiões da África a no nordeste brasileiro, reivindicaram sua autonomia religiosa e cultural, que passava principalmente por sua emancipação política. Tal aspecto demonstra que, sob a influência do islamismo, a hegemonia da cultura branca e cristã passou por diferentes fases históricas de contestação.( SILVA, 1994; ALENCASTRO, 2011) se aliaram a progressistas brancos contra a guerra do Vietnã, a exploração e a opressão social de todo o tipo. ( RIBEIRO 2008) Dentre os movimentos “black power” surgidos, o “Black Panther Party of Self Defense” foi o que mais se destacou e influenciou, principalmente nas questões voltadas para o orgulho negro, jovens nos Estados Unidos, chegando até o Brasil. O black power é um dos elementos constituintes (mais importantes) do ideário do movimento soul( RIBEIRO, 2008, p.93) A Música e a religião influenciaram significativamente os movimentos que antecederam a luta armada, sendo estes elementos os grandes inspiradores do movimento pela valorização e ressignificação da identidade negra no contexto americano. E os gêneros musicais que surgiam mostravam essas transformações. O soul surge da combinação do rhythm and blues - música considerada profana - com o gospel - música protestante negra eletrificada descendente dos “spirituals”. O novo gênero musical objetivava resgatar para os negros um “ritmo autenticamente negro”, apesar do notório papel de “ponte entre as raças” que a música negro-americana desempenhou nas décadas de 60 e 70 do século passado. (RIBEIRO, 2008) O movimento soul irá demarcar “limites com a América Branca” ao incorporar no vocabulário dos adeptos uma linguagem específica, onde chamam uns aos outros de “brothers” e “sisters”; reunindo-se em uma espécie de comunidade solidária e fraternal. James Brow, por exemplo (considerado o godfather of soul) pregava em público o lema “I’m black and I’m proud!” (sou negro e orgulho-me disso) (RIBEIRO, 2008,p.97). A Black Music ganha amplo espaço na mídia, inclusive entre os brancos. A biografia de cantores consagrados pela soul music – Como Ray Charles, Areta Franklin, James Brown entre outros – revela que foi forjada neste contexto - um processo de identificação da comunidade negra com eles, pois suas canções revelavam também as condições de milhares de negros no mundo todo. A partir do final dos anos 60 as transformações sociais e políticas buscadas pelos movimentos negros nos EUA começam a se concretizar. O combate a pobreza que associada a discriminação racial levara os negros a revolta, e ao fervor religioso - desencadeado pelo gospel que os nutriram de esperança -, se uniram as manifestações culturais dos anos 60, tornando-se sinônimo de reação e da busca pela igualdade entre os homens e pela manifestação do orgulho racial. O fim da segregação racial formal nos EUA coloca em relevo a alteração dos limites encontrados pelos negros daquele país, expandindo, através de diversas mobilizações, suas possibilidades de deslocamento, espacial e cultural, e aumentando também a penetração dos movimentos culturais desenvolvidos por eles entre a população branca, reconstruídas sobre as matrizes africanas. O protagonismo dos movimentos negros nos EUA, em concomitância com as lutas pela emancipação política de países africanos, como Angola, Guiné Bissau, Cabo Verde e Moçambique, constituíram um momento histórico em que a discussão da cidadania negra ganhou visibilidade mundial, influenciando os debates nas diferentes partes do globo. No Brasil, tais movimentações influenciaram significativamente a reconfiguração dos movimentos negros no país. O “Black is beautiful”, enquanto movimento, tanto nos Estados Unidos como no Brasil, se expandiu por diversas esferas da vida social e cultural. Sendo assim, não apenas a música, mas também a estética, literatura, dentre outros elementos que, interligados, difundiam uma identidade negra contra hegemônica. Para o objetivo do presente trabalho, focar-se-á sobretudo na influência deste movimento na música e movimento negro no Brasil até meados da década de 70 – período em que se consolida estes grupos organizados no país. Nas últimas décadas, outros movimentos culturais e estilos musicais surgiram no país com a mesma intenção de denúncia e construção de outra identidade negra, tal como o rap, hip hop, funk, dentre outros, o que não será abordado aqui. A segregação racial no Brasil: desmistificação e a influência do “black is beautiful” no movimento negro brasileiro A participação dos negros na esfera pública brasileira sempre foi restrita. A inserção deste grupo populacional na sociedade brasileira, dada as suas condições históricas e sua libertação da condição de escravos, a princípio sem quaisquer políticas de favorecimento a sua cidadania e no seio de uma sociedade secularmente racista, levaram a uma segregação não formal, sobretudo nos contextos urbanos. Mas houve resistências no desenrolar de tal processo: diversos grupos foram organizados com vistas a constituírem um movimento negro no país, desde a Frente Negra Brasileira ainda nos anos 20/30 - colocada na ilegalidade em 1937 por Getúlio Vargas -; o Movimento Negro Unificado, organizado em 1978; e também na emergência do Movimento de Mulheres Negras , que no ano de 1995, ganharam visibilidade ao interferir nos fóruns nacionais e internacionais que preparavam a Conferência de Beijin 95, no objetivo de incluir a questão racial na pauta das discussões feministas. Frentes de resistências também foram criadas através de associações comunitárias negras, do candomblé e outras religiões afro, das escolas de samba, da imprensa negra, e por último, na participação em movimentos [estudantis] e partidos políticos. (SILVA,O., 2004) Descontinuidades marcaram estes movimentos assim como as reivindicações de suas demandas, fato que se deve principalmente às diferentes fases políticas do país. Apesar dos avanços na participação política da população negra, a questão racial não atingiu até os anos noventa uma pauta importante nas políticas brasileiras. E a despeito das adversidades que a luta anti-racista foi historicamente submetida no Brasil, a “cultura negra” viria a traçar uma política não institucional de resistência. Cerca de 80 milhões de brasileiros (45% da população brasileira) é composta por negros e afrodescendentes. Contudo, a distribuição desta população entre as classes existentes no país apresenta um panorama perverso: 70% dos negros estão entre os 10% dos indivíduos mais pobres do Brasil. Entre os 1% mais ricos somente 8% são negros, levando-nos a pensar que tamanha desigualdade possui implicações essenciais para se pensar a questão racial brasileira. (ALBERTI & PEREIRA, 2005) A expressiva desigualdade socioeconômica, edificada historicamente no país, comporta uma desigualdade racial que reverbera também nos tipos de movimentos negros empreendidos no Brasil, tornando-os específicos. Embora estes movimentos tenham recebido influências das lutas pela libertação dos países africanos, notadamente as ex-colônias portuguesas, e pelas mobilizações pelos direitos civis nos EUA, as demandas dos movimentos brasileiros se esbarram no grande desafio – especialmente a partir da década de 70 – de enfrentar o “mito da democracia racial”, cujos ideais pregavam que as relações raciais no Brasil seriam harmoniosas e que o tipo de miscigenação ocorrido no país teria contribuído para a civilização no mundo. Outro fato pertinente para a presente análise é o de que as constituições brasileiras que foram elaboradas depois de abolida a escravidão não incluíram diferenciação de seus cidadãos por raça ou cor, ao contrário do que acontecia nos EUA e na África do Sul por exemplo. Neste contexto, não havia aparatos jurídicos a serem superados: “Como lutar contra o racismo se o racismo ‘não existia’? – esse era um dos principais problemas que se apresentavam aos militantes do movimento negro na década de 1970.” (ALBERTI & PEREIRA, 2005, p.2) Neste sentido, outras estratégias e formas de atuação tiveram de ser forjadas por estes movimentos no cenário político contemporâneo. Um dos episódios que marcaram a emergência do movimento negro brasileiro deste período foi um ato público contra o racismo. No dia 7 de julho de 1978, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, centenas de pessoas protestaram contra a morte de um operário negro em uma delegacia da metrópole e também contra a expulsão de quatro atletas negros de um clube paulista. Um dos resultados deste ato foi a formação, ainda em 1978, do Movimento Negro Unificado (MNU), “entidade que existe até hoje e cuja formação parece ter sido responsável pela difusão da noção de ‘movimento negro’ como designação genérica para diversas entidades e ações a partir daquele momento.”( ALBERTI & PEREIRA, 2005, p.2 ) Ainda segundo estes pesquisadores, a organização de um ato público na capital paulista em pleno governo Ernesto Geisel fez com que diferentes grupos e movimentos se organizassem e construíssem agendas coletivas de ação.6 A constituição do movimento negro no Brasil se fez com vistas a desmistificar a tal “democracia racial” no país, mostrando que a formação racial brasileira ocorreu através da marginalização econômica da população negra e de sua consequente desigualdade social. Neste período, as movimentações ocorridas nos EUA geravam 6 “Jornais como Árvore das Palavras, Sinba e outros e entidades como o grupo de teatro Evolução, no interior de São Paulo, o grupo Palmares, no Rio Grande do Sul, o Centro de Estudos de Arte Negra (Cecan), em São Paulo, o bloco afro IlêAyê, em Salvador, a Sociedade de Intercâmbio Brasil-África (Sinba) e o Instituto de pesquisas das Culturas Negras (IPCN), no Rio, o Centro de Estudos Brasil-África (Ceba), em São Gonçalo, no Rio, e o Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Faculdade Cândido Mendes, também no Rio, entre outras, surgiram todas na década de 70, antes de 1978.”(ALBERTO & PEREIRA, 2005.p3) fortes influências nos grupos brasileiros. As influências da soul music e do Black is beautiful norte-americano chegaram ao país entrelaçados pela mobilização política em torno dos direitos civis dos negros que elas representavam. A música, sendo o grande meio de mobilizar e organizar politicamente a população negra norteamericana, também teve influência no movimento negro brasileiro, pois através da disseminação destes elementos culturais a partir dos meios de comunicação de massa, os grupos organizados ganharam mais fôlego em suas lutas. A “fundação” dos movimentos negros contemporâneos também se deu operando inicialmente no âmbito pessoal, em que o racismo era cotidianamente vivenciado, para em seguida tornar-se uma mobilização que busca sensibilizar outros negros e brancos para a formação do pensamento crítico e para a tomada de uma postura de enfrentamento ao racismo no contexto brasileiro. Com relação às experiências de âmbito pessoal destacamse, de um lado, a consciência da negritude (reconhecer-se e valorizar-se como negro) e, de outro, a consciência da discriminação em uma sociedade na qual a inferiorização do negro se dá de forma muitas vezes velada e sutil. É interessante verificar que, nos anos 70, muitas vezes a consciência da negritude em âmbito pessoal se mescla com uma tomada de posição política, levando a atitudes que, nos dias de hoje, possivelmente já não têm o mesmo peso. (ALBERTI & PEREIRA, 2005, p.4) 7 7 O seguinte relato, colhido por estes mesmos pesquisadores, ilustra bem essa situação: “(...) foi no final dos anos 1960, que já estava o movimento black Rio: na Zona Norte, eles já estão todos com aqueles cabelos enormes, passavam perto de mim e cumprimentavam...Pronto, aí eu comecei a ver que eu estava relacionada de fato com uma comunidade. E achando aquilo muito bonito. Mas eu disse: “Mas no Maranhão...” Porque eu ia para o Rio e passava uns três meses, porque professora tinha uns três meses. Chamava a atenção e eu era agredida. Me davam vaia na rua: “Êh mulher, de onde saiu isso?” “É Toni Tornado?” Eu preciso saber o ano em que Toni Tornado apareceu no festival com o cabelo black power, porque eles me chamavam de Toni Tornado: “Toni Tornado, vai alisar esse cabelo!” E eu era tímida.Aí eles vinham chegando para a porta e para janela,quando eu tinha que passar na porta do colégio, já estava aquela aglomeração só para me ver e dar vaia: “Êh diabo, vai alisar esse cabelo!” “O que é isso, é o cão?” E eu tinha que enfrentar isso, não sei quantos dias durante a semana, mas nunca mudei de rua. Eu poderia ir pela outra rua para não passar na porta do colégio. Eu dizia: “Não. É o meu cabelo. Eu não vou deixar que esses moleques me abatam.” gente e nem olha.” Eu digo: “Desde o tempo em que me vaiavam na rua que eu aprendi a ir olhando só para frente.” Eu andava olhando para frente. Camelô, que chamavam nesse tempo de marreteiro, esses vendedores da rua, todo mundo se achava no direito de me vaiar: “É hippie?!” Mas aí eu entro na universidade, as pessoas dão força, eu vou participar de um grupo de teatro, que é o Laborarte. Aí eu vou ter mais força é dessas pessoas: “Que legal.Está igual à Ângela Davis.” Essas pessoas que tinham acesso à informação já viam a minha aparência vinculada com o movimento negro americano. É bem verdade, eu disse: “Eu estava fazendo, por enquanto, o ‘meu movimento’”. Era isolado. Mas aí eu já começava a pensar: “Eu tenho que fazer alguma coisa. Isso é mais sério do que pensam.” (ALBERTI & PEREIRA, 2005; p.5) Com vistas a corroborar com estas mobilizações, os líderes destes movimentos buscavam informações do que se passava na África – nos movimentos pelas independências e contra o apharteid sul-africano – e do que se passava nos EUA – no movimento pelos direitos civis. Além disso, se muniam de reflexões intelectuais em torno deste tema, como “Os condenados da Terra”, de Frantz Fanon; poemas do angolano Agostinho Neto; escritos de Martin Luther King e Angela Davis, entre outros. “De um lado, portanto, essas publicações incidiam sobre a formação de uma consciência individual e, de outro, eram instrumento de disseminação dessa mesma consciência, que o militante procurava fazer emergir entre seus pares, principalmente negros como ele.” (ALBERTI & PEREIRA, 2005; p.7) Os desdobramentos destas influências se davam em diferentes formas de atuação por aqui: debates, panfletos, audiovisuais, produção de jornais, teatros, dança, leitura de revistas e livros, penteados afro, entre outros; todos tinham o intuito de marcar uma identidade negra valorizada, em consonância a uma mudança de atitude que afirmava como nos movimentos negro americanos : Black is beautiful. A discussão política surgia também neste contexto, a maioria orientada sobretudo pelas reflexões de “esquerda” feitas no período. A guerra pela independência de Angola, assim como o conflito interno que se seguiu gerava solidariedade em relação às reivindicações esquerdistas que também ocorriam no Brasil. Era o momento em que também se discutia a questão da Anistia da ditadura brasileira, uma época de abertura democrática no final dos anos 70. Tais articulações estavam disseminadas em universidades, grupos organizados, Igreja Católica, dentre outros espaços. Grupos de teatro8 e bailes soul se tornam referências na resistência negra no país, adotando como principal característica a valorização do negro, de suas características naturais, e consequentemente da valorização de sua auto-estima. ( ALBERTI & PEREIRA, 2005). Neste contexto as velhas teorias de raça e solidariedade racial encontraram um vetor não só político, mas musical que abarcava todo o Atlântico negro em suas 8 Existe toda uma história pouco conhecida de luta contra o racismo no Brasil, com experiências bastante próximas como a do Teatro Experimental do Negro, de Abdias do Nascimento, na década de 1940 e 1950, ou ainda as mais distantes, como a Frente Negra Brasileira, da década de 1930. (Alberti & Pereira, 2005;... manifestações de orgulho e restauração das heranças da África através de recursos polifônicos. (NACKED, 2012). O surgimento da música soul no cenário da produção artística americana e principalmente da música negra, e posteriormente abarcando vários lugares do planeta denota um momento que marca o despertar de uma consciência de diáspora dos negros nas Américas, acarretando num aprofundamento dos laços de solidariedade, “um momento essencialista, panafricanista, radical e constitutivo das políticas negras que,em alguns aspectos, perduram até hoje.”(NACKED, 2012:p.3) No Brasil, o auge do movimento soul ocorre em meados dos anos 70, Influenciados politicamente pela volta de Abdias do Nascimento dos Estados Unidos e de artistas que trouxeram vivências e sonoridades americanas para os palcos e os discos nacionais. Esses jovens negros brasileiros empreenderam um esforço de apropriação das questões políticas e sociais dos negros norteamericanos e em diálogo com uma África imaginada, como nos sugere Appiah- e, diante do fracasso do projeto integrador dos anos sessenta, se organizaram em festas semelhantes aos sound systems jamaicanos: os bailes Black. “Regados à música americana e às suas versões e interpretações nacionais, essas festas conectavam as narrativas brasileira e americana através da apropriação do discurso dos negros do norte.” (NACKED, 2012:4) Músicos como Tony Tornado, um dos expoentes da música negra brasileira, viveu de perto a efervescência política dos movimentos pelos direitos civis americanos.9 Outro nome importante da esfera soul brasileira, Wilson Simonal, foi filho de empregada doméstica e viveu grande parte de sua infância em meio as crianças brancas filhas dos patrões de sua mãe. Consta que neste período já aprendia a língua inglesa, principalmente ouvindo as músicas de cantores 9 Toni Tornado, em 1965, foi arriscar a sorte como imigrante clandestino nos Estados Unidos. Lá, além de conhecer o racismo e o menosprezo dos brancos, conviveu com contestações políticas e sociais de negros engajados na luta por direitos civis. Fez contato com o revolucionário Panteras Negras e ouviu de perto as propostas do Black Power, movimento que reivindicava para os afro-americanos o controle de instituições políticas e econômicas. Toni também teve a chance de conhecer um dos maiores líderes da luta pelos direitos civis americanos, Stokely Carmichael, no período em que viveu no Harlem, bairro negro de Nova York, trabalhando, entre outras coisas, como traficante de drogas. (NACKED, 2012) americanos. 10 A influência da cultura afro-americana é marcante na trajetória destes artistas como de outros como Gerson King Kombo e Tim Maia, principalmente a partir de 1977. É neste ano que o Rio de Janeiro vive o auge da “soul music, do funk e do orgulho negro11.”(NACKED, 2012, p.4) Segundo Nacked (2012), a apresentação de Toni Tornado no palco do Festival Internacional da Canção, - inspirada nas performances sensuais de James Brown – pode ser considerada como a representação de um perigo iminente para os padrões sociais brasileiros: a possibilidade de que um negro pudesse “desestabilizar o conservadorismo da família branca. Postura que foi considerada um desafio a ditadura militar, ao fazer alusões em seu gestual e repertório ao radicalismo do Panteras Negros americanos.”(2012:6) Segundo a autora, o ápice da “transgressão” para com a estrutura política e social brasileira, “foi em 1971, quando apresentou, junto com a cantora Elis Regina, a música “Black is beautiful”12, dos irmãos do Valle. Inspirada nas lutas sociais dos negros norte-americanos, a soul music conquistou o Brasil nos anos 1970. Toni Tornado levantou esta bandeira.”( NACKED,2012:9) Os relatos apontam que durante a performance Tornado cerrou os punhos, fazendo o gesto que caracteriza os Black Panthers, o que ocasionou sua prisão ainda no palco, do qual saiu algemado. Não bastasse a polêmica performance, a 10 Apesar de Simonal não ter a negritude como uma temática de suas canções, na música “Tributo A Martin Luther King”, que lançou no aniversário do seu programa semanal “Show em Simonal” em 1967, ele faz referência direta à luta do “povo negro”: Sim, sou um negro de cor/Meu irmão de minha cor/O que te peço é luta sim/Luta mais!/Que a luta está no fim.../[...] /Cada negro que for/Mais um negro virá/Para lutar/Com sangue ou não/Com uma canção/Também se luta irmão/Ouvir minha voz/Oh Yes!/Lutar por nós.../Luta negra demais/(Luta negra demais!)/É lutar pela paz/(É Lutar pela paz!)/Luta negra demais/Para sermos iguais. (NACKED, 2012) 11 Entre 1970 e 1973, bailes com estes estilos musicais como tema movimentaram o cenário cultural do país. Originalmente concebidos como eventos para as periferias, os bailes chegavam a colocar 10 mil pessoas em pleno Canecão. Eram anos de grande mobilização suburbana em torno da estética negra, com o surgimento de diversos nomes do movimento black nacional, como Toni Tornado, Gerson King Combo, Tim Maia, Tony Frankie, grupo Senzala (embrião da branda Black Rio), Cassiano, Hildon e equipes de som como a Paulista, Chic Show e a carioca Soul Grand Prix . (NACKED, 2012; ALVES& PELEGRINI, 2008) 12 Hoje cedo, na rua Do Ouvidor/Quantos brancos horríveis eu vi/Eu quero um homem de cor/Um deus negro do Congo ou daqui/Que se integre no meu sangue europeu/Black is beautiful, black is beautiful/Black beauty so peaceful/I wanna a black I wanna a beautiful/Hoje a noite amante negro eu vou/ Vou enfeitar o meu corpo no seu/Eu quero este homem de cor/Um deus negro do congo ou daqui/Que se integre no meu sangue europeu/Black is beautiful, black is beautiful/Black beauty so peaceful/ I wanna a black I wanna a beautiful. (NACKED, 2012) musica sugere a superioridade do homem negro em relação ao branco e retrata o desejo de uma branca de ‘integrar seu sangue europeu ao de um negro, invertendo a lógica tradicional das relações sexuais no Brasil que normativamente se dariam entre a mulher negra e um homem branco – relações estas que causaram um ressentimento muito grande na sociedade brasileira(NACKED, 2012:6) O Renascença Clube, um clube social da zona Norte do Rio de Janeiro em meados dos anos 1970 abarcou uma relevante parte da cena “black” do estado. Sua fundação nos anos de 1950 possuía uma característica elitista e uma atmosfera familiar para famílias negras da pequena classe média alta carioca. Foi famoso pelos concursos de misses mulatas nas décadas de 60 e 70 e também pelas rodas de samba. Mas o projeto de soul no clube teve um desenvolvimento paralelo das rodas de samba, e também em sua oposição, já que “o samba, enquanto símbolo da brasilidade - como nos lembra Peter Fry - rimava como processo integrador e desenhava um espaço majoritariamente do homem branco em busca da mulher negra, cenário aonde o homem negro era secundarizado.”( NACKED, 2012,p.10) . Considerações finais: Apresentadas as informações acima, percebe-se que os jovens engajados ao movimento soul, influenciados pelo Black Power, buscavam, através da formulação de “conceitos fechados de raça” fomentar uma solidariedade e uma união política entre eles, sob a influência do movimento negro e seus moldes nas instituições educacionais, sociais, religiosas e políticas forjadas nos Estados Unidos. Se baseado no movimento Black Power, as instituições negras brasileiras não lograram o mesmo êxito que os movimentos empreendidos nos EUA, mas serviram ao menos para revitalizar a discussão acerca das demandas dos afrodescendentes, ao afirmarem sua negritude e concomitante a isto questionarem e combaterem o racismo da sociedade brasileira, que ganharia novos contornos nas décadas seguintes. E como afirma Nacked, “ao apegar-se às noções americanas de raça, a one-drop rule, se comprometiam com a destruição do mito das três raças e também com o golpe final à democracia racial.”( 2012:11) O momento histórico que rearticulava as ideias acerca de raça e de ser negro nos EUA, Jamaica e nas lutas pela independência das colônias portuguesas em África levava a rejeição da plasticidade brasileira. Era necessário um radicalismo capaz de romper com os paradigmas do racismo brasileiro, implicando num esforço de apropriação do que se chamou da cultura Black Power norte-americana. E ainda: O espaço do soul music no Brasil se define como um espaço em que a identidade negra rejeita a tropicalidade, a mestiçagem, as diversas tonalidades da cor do Brasil. Não aceita uma negritude mediada pela brasilidade – e nem poderia. Assim, a plasticidade, o sincretismo de músicos como Gil e Jorge Ben13 é naturalmente secundarizada, pois não contemplava o universo preto-e-branco do soul no Brasil – embora ele e Gil tenham flertado, dialogado com a África e a soul music com os discos Gil Jorge Ogum Xangô, gravado pelos dois artistas em de 1975, África Brasil (JorgeBen), de 1975, e Refavela (Gilberto Gil), de1977.( NACKED, 2012;p.10) Reflexões sobre as identidades negras em ressignificação na África ou nas excolônias como Brasil e EUA serão pano de fundo também das análises sobre o póscolonialismo14, pois abarca aos complexos de relações transnacionais engendradas entre ex-colonias e ex-metrópoles. A utilidade do termo se aplica a oportunidade de uma análise que perpassa a continuidade histórica e de uma mútua constituição das representações sociais entre colonizadores e colonizados; considerando uma continuidade colonialismo/pós-colonialismo. Análise discursiva que não pode desconsiderar a economia política, pois esta nos serve para dar entendimento ao aspecto material dos processos sociais de significação. E ainda: O conceito pós-colonial será útil se, e apenas se, nos ajudar a descrever e caracterizar a mudança nas relações globais que marca a transição desigual da era dos impérios pra o período pós-independências. Por um lado, é universal, na medida em que sociedades colonizadas e colonizadoras foram ambas 13 A tropicalidade e a brasilidade que Jorge Ben gostava que o representasse, através dos símbolos nacionais que escolheu colocar na capa do disco “Jorge Ben”, de 1969, não entra em conflito com a africanidade evidente em suas músicas, no gestual de seu corpo. Sua obra demonstra a naturalidade com a qual, para alguns artistas brasileiros – na verdade a sua maioria, a exceção da geração do movimento Black – considerava a negritude um aspecto da brasilidade, em que isso configurasse um conflito majoritário. Muito embora sua obra tenha feito sucesso da era dos bailes Black, a plasticidade que envolvia a sua aura estava em evidente conflito com o essencialismo racial que fundava o projeto soul no país. (NACKED, 2012) 14 Almeida afirma, que um dos efeitos críticos do pensamento pós-colonial foi o questionamento dos padrões de conhecimento e identidades sociais, levados a cabo pelo colonialismo e pelo domínio ocidental. Não que os legados colonialistas tenham permanecido inquestionados até então, mas que seu domínio era devido às “narrativas-mestras” que tinha a Europa como centro. Sendo assim, o principal papel da crítica pós-colonial seria o de desfazer o equívoco eurocentrismo, considerando porém que a emergência da pós-colonialidade só pode ser refletida após ter sido trabalhada pelo colonialismo. “ O espaço ocupado por esta enunciação de discursos de dominação não se localiza nem dentro nem fora da história da dominação europeia, mas antes numa relação tangencial com ela.”(ALMEIDA, 2002:24) afetadas pelo processo. Por outro lado, o termo “pós-colonial” não pode servir de descritor disto ou daquilo, de um “antes” ou um “depois”. Deverá sim reler a colonização como parte de um processo que é essencialmente transnacional, produzindo assim uma escrita descentrada, diasporica e global sobre as anteriores grandes narrativas imperiais centradas em nações. (ALMEIDA, 2002:29) O caso dos movimentos Black Power estarem diretamente associados ao advento de um gênero musical, o soul, mostra a força das manifestações artísticas para ressignificação das identidades sociais, atribuídas a grupos específicos. Como veículo de uma manifestação de resistência, configurava também uma identidade, que transforma os sentidos de apropriação dos espaços. Analisar a influências do Black Power americano entre os negros brasileiros nasceu da inquietação pungente de grande parte dos pesquisadores que buscam enveredar por análises que perpassam o conceito de raça, e a sua perversa conotação: o racismo. Ao buscar o entendimento das facetas da migração estudantil africana para o Brasil – como as identidades são (re)afirmadas e(re)significadas no contexto brasileiro, a partir das relações aqui empreendidas e também das redes sociais forjadas – ao buscar entender o “outro” fui de encontro – como algo que faz parte das reflexões antropológicas – às questões referentes as identidades construídas no seio do racismo da sociedade brasileira. Surge então o esforço de refletir de que forma ser negro na sociedade brasileira nos dias atuais perpassa por uma gama de transformações cultural, política e social que não envolve apenas os afrodescendentes brasileiros, me deparei assim com a suposição de uma “identidade racial” entre os negros. Diversas políticas veem sendo empreendidas com o intuito de “resolver” – ou amenizar – o grave problema da desigualdade social que assume uma característica claramente racial, já que os negros compõem a maior parte das classes desfavorecidas. Temos por exemplo a inclusão do racismo na categoria de crime e as cotas raciais em universidades públicas – também uma influência norteamericana. Antecede a elas todo um movimento de reelaboração positiva da identidade dos negros brasileiros, fomentado pelas mobilizações e reivindicações de negros de outras partes do mundo. Desconstruir o “mito da democracia racial” só foi possível pela conscientização de que em outros lugares do mundo os negros também encontravam-se à margem das sociedades ou colonizados, ou seja, ainda não haviam alçado a categoria de cidadão e sujeito como os brancos. Sendo assim, busca-se uma identificação com estes outros negros – americanos, africanos, europeus – que tinham muito a dizer sobre o que poderia significar ser negro num mundo inegavelmente racista. Esta identificação passa pela exaltação da origem comum africana e pela valorização da beleza e dos atributos culturais exclusivamente negros. A chegada do movimento “Black Power” ao Brasil se faz num contexto ditatorial, na qual a censura operava de modo a obstruir todas e quaisquer mobilizações, contestações e reivindicações populares. Os conflitos daí surgidos desmascararam e continuam a desmascarar o pressuposto freyreano de convivência pacífica entre raças. Se os confrontos diretos dos anos 70 em diante foram poucos – ou tiveram pouca visibilidade – eles reafirmam que os efeitos do racismo velado são estruturais na sociedade brasileira. Merecem, portanto, contínua e atenta reflexão mesmo nos dias atuais, quando políticas inclusivas desmascaram o mito da democracia racial pelo simples fato de serem necessárias. Referências Bibliográficas: ABC – Agência Brasileira de cooperação – Ministério das Relações Exteriores Disponível em: http://www.brasil.gov.br/sobre/educacao/educacao-paraestrangeiros/programa-pec-g . Acesso em: 24 dez. 2012. 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