Guya Accornero «O paradoxo autoritário» Efeitos contraditórios da repressão política nas trajectórias militantes ISCTE-IUL Ordem pública, repressão, criminalização Violência política legitima Definição segundo a filosofia política clássica Monopólio do Estado do poder coercitivo que constitui em todos os regimes políticos um dos dois elementos sobre os quais se apoia a legitimação do Estado, sendo o outro o consenso. «O peso relativo da violência política como fundamento do poder político varia muito entre os diferentes Estados e a forma como os governos recorrem à violência política é também considerada um elemento caracterizador para distinguir os sistemas políticos» (Stoppino, 2004) Violência política no Estado de direito «capacidade de conciliar o respeito das liberdades e dos direitos individuais com a protecção da segurança e da ordem pública» (della Porta e Reiter, 2003). Violência política em regimes autoritários Desmobilização opositores; Arbitrariedade; Difusão do terror. Legislação penal fascista (Ungari, 2002) «Fonte estruturante da sociedade»; «Técnica jurídica pouco técnica e muito ideológica». Ordem pública no fascismo: «Vai muito além de uma ideia material, geralmente entendida como garantia da saúde, da segurança pública e do pacífico desenvolvimento das actividades sociais, estendendo-se até envolver a ordem pública ideal, como instrumento de homogeneização do pluralismo social à luz de valores específicos» (della Porta e Reiter, 2003: 31). Deconstruir os conceitos… Derrida (1994) adopta o conceito de “democracia diferida”, sublinhando como, face ao conflito, as democracias tendem a suspender a aplicação de alguns dos próprios princípios e remetê-los para períodos futuros de paz social USA Patriot Act (2001); Itália Legge Reale (1975); Zizek: a base da luta política não está “na competição interna ao campo do admissível, entre sujeitos políticos que se reconhecem mutuamente como adversários legítimos, mas sim na própria delimitação do campo, ou seja na definição daquela linha que separa o adversário legítimo do inimigo ilegítimo” (Zizek, 2009: 115). Trajectória militante: Frame interpretativo de matriz interaccionista, segundo o qual: «a acção é apreendida de forma processual, resultando da interacção entre uma história individual e um contexto estrutural. A noção ainda insiste no papel dos diferentes actores que interagem em volta da trajectória », Joshua, F., « Les conditions de (re)production de la LCR. L’approche par les trajectoires militantes», in Haegel F. (ed.), Partis politiques et système partisan en France, Paris, Presses de Sciences-Po, 2007, p. 25-67; Próxima é a nocção de carreira que, «aplicada ao activismo político […] permite comprender como, em cada etapa da biografia, as atitudes e os comportamentos são determinados pelas atitudes e os comportamentos passados e condicionam, por sua vez, o campo das possibilidades no fúturo, colocando portanto os periodos do activismo no conjunto do ciclo de vida Fillieule, O., «Carrière Militante», in Fillieule, O., Mathieu, L et Péchu, C. (ed.), Dictionnaire des mouvements sociaux, Paris, Presse de SciencePo, 2009, pp. 85-94 (life course analysis). Base da apresentação ‘La répression politique sous l’Estado Novo au Portugal et ses effets sur l’opposition estudiantine, des années 1960 à la fin du régime’, Cultures & Conflits, 88, 2013 (no prelo); ‘Contentious Politics and Student Dissent in the Twilight of the Portuguese Dictatorship: Analysis of a Protest Cycle’, Democratization, onlinefirst, 2012. Políticas repressivas do Estado Novo e seus efeitos 1965-1974; Militantes PCP e extrema- esquerda; Sobretudo política penitenciária; Trajectória militante de José Luís Saldanha Sanches; Hipótese A repressão autoritária (como no caso do Estado Novo) pode ter como efeito uma reprodução do campo político reprimido não se trata de um simples mecanismo de radicalização; Deslocalização: difusão (por ex. fecho das universidades; ocupação policial; protest policing na rua); Reclusão: intensificação da socialização política (prisão); Clandestinidade, impedimento estudos e carreira: impossível investimento em outras redes, apertamento das redes militantes; Medidas preventivas Desmobilização dos adversários; censura, limitação e controlo da representação sindical, abolição dos direitos políticos (greve, manifestação, reunião, etc.), ameaças, impedimentos de carreira e estudos (por exemplo: expulsão pontual ou permanente das universidades). Antes de se tornar opositores, os militantes deviam ultrapassar um conjunto de restrições e obstáculos virados a desencorajar o seu activismo. Mecanismos repressivos do Estado Novo 1933: PVDE, Policia de Vigilância e Defesa do Estado controlo crime político (OVRA italiana); decreto-lei 23.203 definição dos crimes políticos, dos tribunais destinados ao seu julgamento e das prisões especiais para a execução da sua pena, exílio para os criminais políticos mais perigosos; 1936: Campo de Tarrafal; Legião Portuguesa (guerra civil na Espanha); 1945: PIDE, Polícia Internacional e de Defensa do Estado monstrar uma fachada mais próxima à dos serviços secretos ocidentais (Scotland Yard); Prisões políticas: Aljube (até 1965); Caxias, Peniche, Prisões Privativas da PIDE (Porto e Coimbra); Principais outras forças de protest-policing: PJ (Policia Judiciaria) Ministério da Justiça; PSP (Policia de Segurança Pública) Ministério do Interior; GNR (Guarda Nacional Republicana) Ministério da Defensa e Ministério do Interior; Medidas de Segurança República, Lei de 20 Julho de 1912: internamento de «vadios, mendigos e equiparados» numa «casa correccional de trabalho ou numa colónia agrícola (art. 5º e 14º)»; São explicitamente excluídos os crimes políticos e de liberdade de imprensa (art. 5º, paragrafo 3º). Decreto-Lei 36387, 1947: alteração do art. 175 do Código Penal e extensão aos crimes políticos das medidas de segurança. Estabelece-se para os condenados por crimes contra a segurança do Estado que tivessem tido pena maior ou reincidentes, bem como os acusados de terrorismo, o «regime legal aplicável aos delinquentes de difícil correcção», ou seja, ao regime indefinido de prorrogação da pena por sucessivos períodos. Marcelismo 1969: PIDE DGS (Direcção Geral de Segurança); 1971: Reforma Constituição que introduz maiores garantias para os imputados; 1972: Reforma do Código Penal e do Código de Processo Penal extinção das medidas de segurança, alguns presos políticos são libertados; Efeitos da repressão sobre movimentos sociais e militantes: Desmobilização? Mobilização? Radicalização? A prisão política Mais forte concretização do sistema repressivo não tem o efeito de desmobilizar os militantes, alias, contribui para uma intensificação da socialização política e para uma redefinição das identidades políticas no próprio espaço prisional; Caso de estudo José Luís Saldanha Sanches Entrevistas Maria José Morgado (28 de Julho de 2010, Lisboa, Cidade Judiciária); Saul Nunes (8 de Outubro de 2010, Lisboa, ICS); Jaime Antunes (19 de Outubro 2010, escritório pessoal do próprio); Ruben de Carvalho (26 de Outubro de 2010, Lisboa, ICS); Acácio Lima (8 de Novembro 2010, Porto) I prisão: 29 de Abril – 10 Dezembro 1964, JLSS, 20 anos, estudante de Direito, foi preso enquanto colocava cartazes do PCP para a manifestação do 1 de Maio; Janeiro 1965: vaga de prisões no meio estudantil, JLSS entra na clandestinidade; II prisão: 18 Dezembro 1965 (Caxias; 2 de Novembro 1966, Peniche)-18 Dezembro 1971 (sai com 27 anos); III prisão: 10 de Maio-10 de Julho 1973; IV prisão: 30 de Julho 1973-26 de Abril 1974; V prisão: 7-15 Junho 1974 (como director de Luta Popular, que criticava, pela esquerda, o MFA); Total: 7 anos e meio em detenção, entre os 20 e os 30 anos; II detenção: a “conversão” maoísta 1966: prisão de membros da FAP (Frente de Acção Popular), primeira organização maoísta portuguesa, primeiras acções de luta armada; Contactos sobretudo com dois militantes FAP: Saul Nunes e Acácio Lima; Saldanha Sanches começa a manifestar sinais de « evolução política » em 1966 (Saul Nunes, Acácio Lima); A redefinição das identidades políticas no espaço da prisão «no dia da morte do presidente vietnamita Ho Chi Min, em 2 de Setembro de 1969, os presos pró-chineses do 3º piso do Pavilhão B de Peniche fizeram uma manifestação de luto, ficando um minuto em pé antes de se sentarem para almoçar» (Saul Nunes, Lisboa); «os presos ligados ao PCP celebravam a data da implantação da República, 5 de Outubro, e a data da Restauração, 1.º de Dezembro; os presos não ligados ao PCP celebravam a data da Revolução Chinesa, a 1 de Outubro; mas os presos das duas tendências políticas celebravam tanto o Dia do Trabalhador, 1.º de Maio, como o dia da Revolução Russa, 17 de Outubro (7 de Novembro segundo o novo calendário). As celebrações consistiam em vestir fato completo e usar gravata vermelha». (Acacio Lima); Em Peniche tinha-se chegado a uma situação de completa reclusão em separação […] por iniciativa dos próprios presos porque havia grandes incompatibilidades de atitude e de condução das lutas prisionais […] após uma situação de quase pancada física entre presos de vários grupos políticos, que levou à separação por andares» (Entrevista radiofonica a Fernando Rosas et José Luís Saldanha Sanches, programa “Em tempo de mudança, a História do Século XX, 25 avril 1997). Depois do 25 de Abril Continuação do activismo anti-sistémico no MRPP (primeiros meses); Prisão; Desmobilização (final do PREC, Novembro 1975); Desenvolvimento de projectos familiares: casamentos, paternidade; Desenvolvimento de projectos profissionais: licenciatura, mestrado, início da carreira; Conclusões: os custos da mobilização Tornar-se militante em contextos autoritários implica custos muito maiores que em contextos democráticos; A repressão faz parte destes custos; Repressão directa: violência, censura, prisão, etc. Repressão indirecta: impedimento dos estudos, da carreira, etc. E os custos da desmobilização «o custo psíquico ou material da defecção, e portanto a sua probabilidade, são reconduzíveis a vários factores, entro os quais podemos mencionar a extensão dos sacrifícios suportados para entrar no grupo […] a socialização mais ou menos forte dentro do grupo, que se traduz sobretudo no reforço da ligação emocional, que por sua vez varia em função de renúncia às relações sociais exteriores ao grupo » (« Some Elements of an Interactionist Approach to Political Disengagement », Social Movements Studies, 2010, 9, 1, p.2). O paradoxo autoritário Um regime autoritário pode ter o efeito de absolutizar o militantismo político e de tornar a desmobilização quase impossível. Podemos ver este mecanismo em acção em diferentes formas. 1. 2. 3. Do ponto de vista identitário: o custo psíquico enfrentado para assumir a identidade de opositor político (que numa ditadura, segundo Maraval, equivale a ser « desviado ») se reflecte no custo muito alto que comporta renunciar a esta identidade; Do ponto de vista material, ao cortar a quase totalidade das possibilidades de saída do militantismo (outras redes, educação, profissão, família) o regime torna a desmobilização muito difícil por causa de impossibilidade de uma eventual reconversão; Por fim, em ligação com o ponto anterior, a queda do regime abre as oportunidades de participação legal, permite aos militantes de deixar a clandestinidade e em muitos casos até de deixar o próprio activismo, em favor de novas actividades.