O Cortiço, de Aluízio Azevedo Aula II: Enredo Gradativamente, a ascensão social de dois imigrantes portugueses serve de suporte para a descrição da vida do proletariado urbano do Rio de Janeiro do século passado. De um lado, João Romão personifica a falta de escrúpulo e a exploração do homem pelo homem; de outro, o comendador Miranda representa a simulação, forçada pelas conveniências sociais. Entre eles, um agrupamento humano acentuadamente animalizado completa o cenário para a luta sórdida dos dois imigrantes. O enredo do romance estrutura-se com base nas ações dessas duas personagens. No bairro do Botafogo, o português João Romão, impulsionado pelo “delírio de enriquecer”, dá início à sua caça ao tesouro: dos treze aos vinte e cinco anos é empregado de um vendeiro patrício. Quando o patrão volta para sua terra, o jovem torna-se proprietário da venda. A partir daí, o romance dá tintas fortes à falta de escrúpulos e à exploração do homem pelo homem: João Romão resume em si esse modo de ser. Trabalhador incansável, dotado de têmpera forte, suporta as mais duras privações. Logo, amasia-se com Bertoleza, uma crioula trintona, dona da quitanda “mais afreguesada do bairro”. Explora sem remorsos o corpo e o trabalho da negra e, ainda, com as economias da quitandeira, compra o primeiro pedaço de terra. Duplicada a força de trabalho, para ampliar a fortuna, João Romano forja uma carta de alforria para sua amante e a deixa ainda mais seduzida e submissa. Ao mesmo tempo, livra-se da obrigação de pagar os vinte mil réis mensais ao patrão da moça. Sem se dar conta, Bertoleza, julgando-se livre, passa a pertencer a dois senhores. As primeiras três casinhas surgem um ano depois, quando João Romão, num milagre de esperteza e economia, compra as terras situadas ao fundo de sua taverna. Para erguer as casas, rouba à noite o material da pedreira vizinha e de obras em construção nas proximidades. E assim se vai mostrando o trilhar da independência econômica de João Romão. “Hoje quatro braças de terra, amanhã seis, depois mais outras, lá o vendeiro conquistando todo o terreno que se estendia pelos fundos de sua bodega; e, à proporção que o conquistava, reproduziam-se os quartos e o número de moradores.” [...] dentro de um ano e meio, arrematava já todo o espaço compreendido entre as suas casinhas e a pedreira, [...]. Começa a nascer o grande cortiço de São Romão. Nas veias de seu dono corre, cada vez mais, uma “moléstia nervosa”, uma febre de tudo possuir. Bertoleza, sempre fiel e dedicada, ajuda-o a concretizar seus sonhos. Os negócios melhoram, a taverna vai se transformando em quitanda, casa de pasto,bazar, grande armazém. O vendeiro torna-se o único proprietário da venda, de Bertoleza, das terras, da pedreira, do cortiço. Para desespero de Miranda, o comerciante português que habita um grande sobrado bem próximo à venda do patrício, as noventa e cinco casinhas vão tomando todo o espaço disponível. Forçado a morar fora do centro para atenuar os arroubos sexuais de sua mulher, Miranda – representante da burguesia com pretensões aristrocratizantes – é também obrigado a assinar do alto ao pulsar da vida no cortiço, as festas, brigas, as paixões desenfreadas e mestiços, imigrantes europeus, uma gente pobre que se empregava na pedreira, lavadeiras e trabalhadores do comércio Enfim, “naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco” (p.26). E a dança dos instintos se mostra em todos os tons. Em cada casinha há vidas aparentemente diferentes que se enovelam e formam corpo, animalizado, repleto de sangue e nervos. Cenas comuns de mães ensaboando os filhos se misturam com os dramas das adúlteras e seus homens, com as rivalidades por causa de mulheres, com prostituição e homossexualismo, com o canto alegre que acompanha as harmônicas e guitarras. Todos, sem exceção, animalizados na descrição dinâmica que desvela a sucessão dramática. O amor é sempre físico e um clima de sensualidade e movimento rítmico domina o ambiente. Nada parece capaz de frear a loucura de possuir do dono do cortiço. Rico, vive, porém, de modo miserável. E assim continuaria acumulando bens, não fosse o impacto causado por uma notícia publicada no Jornal do Comércio: Miranda, seu rival e vizinho, fora agraciado pelo governo português com o título de Barão de Freixal. E João Romão sente ciúmes: Sim, senhor! aquele taverneiro, na aparência tão humilde e tão miserável; aquele sovina que nunca saíra dos seus tamancos e da sua camisa de riscadinho de Angola; aquele animal que se alimentava pior que os cães; para pôr de parte tudo, tudo, que ganhava ou extorquia; aquele ente atrofiado pela cobiça e que parecia ter abdicado dos seus privilégios e sentimentos de homem; aquele desgraçado, que nunca jamais amara senão o dinheiro, invejava agora o Miranda, invejava-o deveras, com dobrada amargura do que sofrera o marido de Dona Estela, quando, por sua vez, o invejara a ele [...] De repente, tudo passa a aborrecer o vendeiro: sua própria inabilidade social, a negra com quem se amasiara, e mais furioso fica quando recebe um convite para tomar uma chávena de chá na casa do novo Barão. Sente por todos os poros nesse momento a sua incapacidade para os maneirismos sociais. Resolve, então, transformar-se. Corta a barba, manda fazer roupas novas, faz-se sócio de um clube de dança, reforma seu quarto, principia a comer com guardanapo e a beber vinho especial, a freqüentar o teatro São Pedro e até a ler romances franceses. Bertoleza, no entanto, “[...] é que continuava na cepa torta, sempre a mesma crioula suja, sempre atrapalhada de serviço, sem domingo nem dia santo; essa, em nada, em nada absolutamente, participava das novas regalias do amigo; pelo contrário, à medida que ele galgava posição social, a desgraçada fazia-se mais e mais escrava rasteira [...] Em breve, o ex-vendeiro une-se a Botelho, velho parasita que habitava a casa de Miranda, e entabulam negociações comerciais para que João Romão possa se casar com Zulmira, a “brasileirinha fina e aristocrática”, filha do barão e futuro visconde. Marcado o casamento, o vendeiro enfrenta grande problema: precisa livrar-se de Bertoleza. Seus pensamentos traduzem a angústia mesclada à raiva: Diabo! E não poder arredar logo da vida aquele ponto negro; apaga-lo rapidamente, como quem tira da pele uma nódoa de lama! Que raiva ter de reunir aos vôos mais fulgurosos da sua ambição a idéia mesquinha e ridícula daquela inconfessável concubinagem! E não podia deixar de pensar no demônio da negra, porque a maldita ali estava perto, a ronda-lo ameaçadora e sombria; ali estava como documento vivo das suas misérias, já passadas mas ainda palpitantes. Bertoleza devia ser esmagada, devia ser suprimida, porque era tudo de mal que havia na vida dele! Seria um crime conserva-la ao seu lado! [...] Bertoleza tudo percebe e, calada, suporta passar da condição de amante à de escrava e ser tratada como um animal velho e inútil. Vive em sobressalto, com medo de ser assassinada. João Romão, entretanto, tem outros planos para ela. Com a ajuda de Botelho, decide entrega-la ao antigo e verdadeiro senhor da pobre escrava. Certo dia, o filho mais velho do patrão aparece para buscá-la. Indignada, Bertoleza se suicida na frente de todos. No mesmo instante, uma comissão de abolicionistas visita João Romão para trazerlhe o diploma de sócio benemérito. O final trágico expõe de forma bastante contundente e revoltada o Brasil do século XIX: valendo-se dos resquícios da estrutura colonial, ricos portugueses demonstravam que os brasileiros estavam longe de conquistar a independência já proclamada e que o abolicionismo tão propagado assentava-se em estrutura ilusória e frágil. E um desgosto negro e profundo assoberbou-lhe o coração, um desejo forte de querer saltar e um medo invencível de cair e quebrar as pernas. Afinal, a dolorosa desconfiança de si mesmo e a terrível convicção da sua impotência para pretender outra coisa que não fosse ajuntar dinheiro, e mais dinheiro, e mais ainda, sem saber para que e com que fim, acabaram azedando-lhe de todo a alma e tingindo de fel a sua ambição e despolindo o seu ouro. E via-se já na brilhante posição que o esperava: uma vez de dentro, associava-se logo com o sogro e iria pouco a pouco, como quem não quer a coisa, o empurrando para o lado, até empolgar-lhe o lugar e fazer de si um verdadeiro chefe da colônia portuguesa no Brasil; depois, quando o barco estivesse navegando ao lagro a todo o pano – tome lá alguns pares de contos de réis e passe-me para cá o título de Visconde! - Você quer saber? afirmava ela, eu bem percebo quanto aquele traste do senhor meu marido me detesta, mas isso tanto me dá como a primeira camisa que vesti! Desgraçadamente para nós, mulheres de sociedade, não podemos viver sem esposo, quando somos casadas; de forma que tenho de aturar o que me caiu em sorte, quer goste dele quer não goste! Juro-lhe, porém, que, se consinto que o Miranda se chegue às vezes para mim, é porque entendo que paga mais à pena ceder do que puxar discussão com uma besta daquela ordem! - É um bom partido, é! Excelente menina...tem um gênio de pomba...uma educação de princesa: até o francês sabe! Toca piano como você tem ouvido...canta o seu bocado...aprendeu desenho...muito boa mão de agulha!...e... Abaixou a voz e segredou grosso no ouvido do interlocutor: - Ali, tudo aquilo é sólido!... Prédios e ações do banco!...