APROXIMANDO-NOS
DO ROMANCE
PROFESSOR DA TURMA: JAYME BARROS
1. O CORTIÇO e SEUS MORADORES
Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os
olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas.
Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada
sete horas de chumbo. ...
A roupa lavada, que ficara de véspera nos coradouros, umedecia
o ar e punha-lhe um farto acre de sabão ordinário. As pedras
do chão, esbranquiçadas no lugar da lavagem e em alguns
pontos azuladas pelo anil, mostravam uma palidez grisalha e
triste, feita de acumulações de espumas secas.
Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas de sono;
ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas;
pigarreava-se grosso por toda parte; começavam as xícaras a
tilintar; o cheiro quente do café aquecia, suplantando todos os
outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras
palavras, os bons-dias...
Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente;
uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns
após outros, lavavam a cara... As mulheres precisavam
já prender as saias entre as coxas para não as molhar,
via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço,
que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o
alto do casco; os homens, esses não se preocupavam
em não molhar o pêlo, ao contrário metiam a cabeça
bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas
e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da
mão. As portas das latrinas não descansavam, era um
abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem
tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda
amarrando as calças ou as saias; as crianças não se
davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo,
no capinzal dos fundos...
A primeira que se pôs a lavar foi a Leandra, por alcunha a
“Machona”, portuguesa feroz, berradora, pulsos
cabeludos e grossos, anca de animal de campo. Tinha
duas filhas e um filho: a das Dores... que largara o
marido para meter-se com um homem de comércio...
que, retirando-se para a terra, deixara o sócio em seu
lugar. 25 anos. A Nenen, 17 anos, franzina e forte, com
uma proazinha de orgulho de sua virgindade, escapando
como enguia por entre os dedos dos rapazes que a
queriam sem ser para casar. E Agostinho, menino
levado dos diabos, que gritava tanto ou melhor que a
mãe.
.... Ao lado de Leandra, foi colocar-se à sua tina a Augusta
Carne-Mole, brasileira, branca, mulher de Alexandre, um
mulato de 40 anos, soldado de polícia... Augusta era de
uma honestidade proverbial no cortiço, honestidade sem
mérito, porque vinha da indolência de seu
temperamento e não do arbítrio de seu caráter. Junto
dela pôs-se a trabalhar a Leocádia, mulher de um
ferreiro chamado Bruno, com uma fama terrível de
leviana....
Seguia-se a Paula, uma cabocla velha, meio idiota, ... tinha
virtudes para benzer erisipelas e cortar febres por meio
de rezas e feitiçarias.... Era extremamente feia, ...
dentes cortados à navalha, formando pontas, como
dentes de cão... Chamavam-lhe “Bruxa”.
Depois seguiam-se Marciana e mais a sua filha Florinda,
que... tinha quinze anos, a pele de um moreno quente,
beiços sensuais, bonitos dentes, olhos luxuriosos de
macaca. Toda ela estava a pedir homem, mas
sustentava ainda a sua virgindade e não cedia, nem à
mão de Deus Padre, aos rogos de João Romão, que a
desejava apanhar a troco de concessões na medida e
no peso das compras que Florinda fazia diariamente no
armazém. Depois via-se a velha Dona Isabel... todos lhe
dispensavam consideração.. mulher comida de
desgostos. Fora casada com o dono de uma casa de
chapéus, que quebrou e suicidou-se. ...Tinha uma cara
macilenta de velha portuguesa devota, que já foi gorda,
bochechas moles de pelancas rechupadas, que lhe
pendiam dos cantos da boca como saquinhos vazios...
Sua filha era a flor do cortiço. Chamavam-lhe Pombinha,
que tinha o seu noivo, o João da Costa, moço do
comércio, com grande futuro... Dona Isabel não queria
que o casamento se fizesse já. É que Pombinha,
orçando aliás pelos dezoito anos, não tinha ainda pago
à natureza o cruento tributo da puberdade....
Fechava a fila das lavadeiras, o Albino, um sujeito
afeminado... Era lavadeiro e vivia sempre entre as
mulheres... que o tratavam como uma pessoa do
mesmo sexo... faziam-no até confidente dos seus
amores e das suas infidelidades. ( ibidem p. 28 a 32 )
ANÁLISE DE O CORTIÇO,
DE ALUÍSIO DE AZEVEDO
EDIÇÃO CONSULTADA: O CORTIÇO.
MARTINS, SP, 1967
PARTE II
5. NARRADOR EM TERCEIRA PESSOA, ONISCIENTE.
6. ANÁLISE DO ENREDO E DOS PERSONAGENS
6.1.
TRAMA CENTRAL:
JOÃO ROMÃO x
O CORTIÇO
x
MIRANDA
O SOBRADO
Ponto de Partida
A vizinhança João Romão e aquilo que viria a ser o
cortiço x Miranda e seu novo sobrado.
Definição dos elementos da trama central
O narrador, nos três capítulos, apresenta os elementos
básicos que irão constituir a trama central da narrativa;
Assim:
CAPÍTULO – I
– foco central: João Romão e Bertoleza
Contraponto: Miranda e Estela
A história e as características de João Romão:
Bertoleza
O CONTRAPONTO
Miranda compra o prédio vizinho a Romão:
TENSÃO PESSOAL DE MIRANDA
Miranda
“Prezava, acima de tudo, a sua posição social e tremia só
com a idéia de ver-se novamente pobre”. Conflitos de
Miranda: posição social, atração sexual por Estela, a quem
devia odiar pelas infidelidades.
Estela, “senhora pretensiosa e com fumaça de nobreza”
(p.25) “mulherzinha levada da breca”, que adultera desde
“antes de terminar o segundo ano de matrimônio” ( p. 26 )
Primeiro conflito Romão x Miranda
Miranda quer comprar parte do terreno de Romão.
Projeto de Romão: construir a estalagem. “Destinada a
matar toda aquela miuçalha”.
A Construção do muro
Primeira tensão: vitória de Romão: Miranda constrói o
muro. “Muro – símbolo da diferença, limite.”
CAPÍTULO – II
Foco central: “Miranda e seu sobrado”.
Contraponto: João Romão e a estalagem
Personagens do sobrado: Miranda – Estela
Zulmira
Henrique
Botelho
IDÉIAS DE BOTELHO
“Isso é uma imprudência.. Numa casa, em que há tantos
quartos, é preciso vir meterem-se neste canto de quintal. A
senhora está moça, está na força dos anos; seu marido
não a satisfaz, é justo que o substitua por outro! Ah! Isto
é o mundo e, se é torto, não fomos nós que o fizemos
torto!”.
O narrador insinua agrados homossexuais de Botelho a
Henrique, que se afasta do velho “com um gesto de
repugnância e desprezo”.
Compõe ainda a casa de Miranda; o moleque Valentim,
filho de uma escrava que foi de Dona Estela, a mulata
Isaura, a negrinha virgem Leonor.
VERDADE DAS RELAÇÕES MIRANDA – ESTELA
DEFINIÇÃO DA TRAMA SOCIAL: OS CONFLITOS
SOCIAIS DE MIRANDA: ANTE O SUCESSO
ECONÔMICO DE ROMÃO. MIRANDA QUESTIONA O SEU
PRÓPRIO MODO DE VIDA.
A “escandalosa fortuna” de Romão incomoda a Miranda,
( Romão fizera fortuna, “sem precisar roer nenhum
chifre”
Incomodava-o “grosseiro rumor que vinha da estalagem
numa exalação forte de animais cansados”
A SAÍDA PARA OS CONFLITOS: a idéia do baronato
“Foi da supuração fétida destas idéias que se formou no
coração vazio de Miranda um novo ideal – o título” o
baronato.
VIABILIDADE DA LUTA PELO TÍTULO
Para conseguir o título, contava com a vaidade de Estela.
DESENVOLVIMENTO DA TRAMA ROMÃO x MIRANDA
Evolução de Romão:
Visconde
Proprietário da avenida
Proprietário da estalagem
Proprietário do cortiço
Proprietário do terreno
vendeiro
falseia a alforria de Bertoleza
rouba materiai
rouba Domingos e Libório
cumplicidade implícita na morte de Bertoleza
AGRAVAMENTO DA TENSÃO DE ROMÃO
O título de Miranda faz Romão questionar seu modo de viver
Saídas: mudanças de hábitos, de roupas, transformação do
cortiço, casamento com Zulmira, título de visconde.
Comparar Cap. II com o cap. X
“Fui uma grandíssima besta
Uma grande besta...”
A partir do cap. XIII, o narrador nos dá notícias das mudanças de João Romão
Botelho começa a trabalhar para que Romão se case com Zulmira. Miranda já o
tratava de forma diferente, convidando-o, até, para jantar.
TENSÃO PESSOAL
Romão mudava, mas “tinha de estirar-se ali, ao lado
daquela preta fedorenta a cozinha e bodum de peixe!” (p.
183). E lhe surge a idéia da morte de Bertoleza.
Cabeça de Gato. “O cortiço aristocratizava-se”.
CLÍMAX E DESFECHO
CAPÍTULO – XXIII
Chega o filho mais velho do antigo senhor de Bertoleza. Ao mandar
prender Bertoleza, esta, “com ímpeto de anta bravia,” rasga o ventre de
lado a lado. Romão foge até o canto mais escuro, tapando o rosto com as
mãos. Nesse momento, uma comissão de abolicionistas vem entregar a
Romão o diploma de sócio benemérito da causa abolicionista.
O CORTIÇO x SOBRADO DE MIRANDA
Ponto de partida: Apresentação dos elementos da trama
No capítulo III, o narrador nos apresenta o outro elemento central
da trama: o cortiço e seus moradores
A linguagem identifica homem, animal, inseto (visão monista).
Linguagem escandalizadora.
PERSONAGENS DO CORTIÇO
Leandra
Albino
Augusta Carne-Mole
Rita Baiana
Léonie
Leocádia
Paula
Marciana
Dona Isabel e Pombinha
Domingos e Manuel
Jerônimo
Jerônimo – Piedade
e a filha Marianita
( Senhorinha )
Firmo
Libório
Conjunto 1 – Cortiço – coletivismo
tribal
( cortiço= abelhas )
Conjunto 2 – Casa de Miranda
Conjunto complexo
Vertical, trocas
Conjunto simples, constituição primária
Natureza, instinto, horizontal, violência.
Sensualismo – sensíveis a impressões
sensoriais
No conjunto complexo há um regime de trocas necessárias
à sua própria sobrevivência: Estela / Miranda. Botelho,
Hentique, Zulmira
João Romão
Personifica a falta de
escrúpulos e a exploração
do homem pelo homem
X
Miranda
Representa a simulação,
forçada pelas convenções
sociais.
O São Romão x o “Cabeça-de-Gato
TRAMAS SECUNDÁRIAS
a) Jerônimo – Piedade- Rita Baiana – Firmo.
b) Leocádia – Bruno – Henrique.
c) Léonie, Pombinha, Senhorinha.
d) O JUDEU – o velho Libório.
e) Marciana – Florinda.
FUNÇÃO DA MULHER:
Mulher-objeto
Mulher sujeito-objeto
 Mulher sujeito que regula os regimes de troca, capaz de
Impor condições e manobrar o macho em beneficio próprio.
ESPAÇO
O espaço físico retratado é o microcosmo de uma sociedade
em formação: o cortiço x sobrado. Os dois locais ressaltam
o engalfinhar constante de forças econômicas e sociais.
O espaço físico é urbano, pois o proletariado e a classe
média ganharam campo e a mão-de-obra – principalmente
de italianos e portugueses era muito necessária.
TEMPO
“Situa-se alguns anos antes da publicação do romance
(1890).” O tempo do realista-naturalista é mesmo o agora.
O enredo é linear: segue os passos do vendeiro João
Romão desde a juventude pobre até a maturidade
abastada e inescrupulosa. O tempo do romance é
cronológico..
LINGUAGEM
“A língua de Aluísio Azevedo em sua plurivalência de
nacionalidades mostra como o Francês, o Italiano, o
Português de Portugal, o falar do cortiço se mesclam,
constituindo conjuntos que integralizam a língua brasileira
num sentido mais amplo. Sua língua é mestiça como seus
personagens e se espalha pelo simples e pelo complexo.”
Embora tenha, em vários momentos, ousado infringir as
normas prescritas pela gramática normativa, no nível do
narrador, a linguagem é sempre cuidada e presa aos
cânones tradicionais.
Ela acompanha o grau de instrução das personagens.
Linguagem coloquial brasileira: (alguns exemplos)
Ao apresentar-nos Estela, o narrador diz que ela era uma
“mulherzinha levada da breca” ( p.26), “com fumaça de
nobreza.” ( p. 25 )
Miranda, ao pensar nas infidelidades de Estela, percebe
que Romão progredira, sem precisar roer nenhum chifre”.
(p. 35)
Estela se refere a Miranda como “aquele traste do senhor
meu marido” , “uma besta daquela ordem!” ( p. 42 )
Ao descrever os movimentos do cortiço, o narrador nos diz
que os homens “esfregavam com força as ventas e as
barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão.”,
que “as portas das latrinas não descansavam.”( p. 47)
Léonie é “cocote de trinta mil-réis para cima” ( p. 50 )
Observe os comentários que os moradores do cortiço fazem
sobre Rita Baiana:
– E não é que o demo da mulata está cada vez mais
sacudida?...
– Então, coisa-ruim! por onde andaste atirando esses
quartos?
– Desta vez a coisa foi de esticar, hein?! [...] (p. 75)
E a fala de Rita:
– Ora, nem me fales, coração! Sabe? Pagode de roça! Que
hei de fazer? é a minha cachaça velha!... (p. 75)
 Com quem te esfregavas tu, sua vaca?! Bradou ele a
botar os bofes pela boca.
 Vá à pata que o pôs! Exclamou ela, com a cara que era
um tomate. Já lhe disse que não quero saber de você pra
nada, seu bêbado!
 “Sai daí, safado! Toca lá no que quer que seja, que te
arranco a pele do rabo!”.
“Eu quero saber quem lhe encheu o bandulho! E ela há
de dizer quem foi ou quebro-lhe os ossos. (p. 121 )
E, após saber que Florinda fugira, diz Rita a Marciana:
“Fugiu-lhe, é bem feito! Que diabo! Ela é de carne, não é
de ferro! Agora chore na cama, que é lugar quente.”
Rita “estava inspirada! Divina!”
 Pula cá pra fora, perua choca, se és capaz.
 Toma pro teu tabaco! Toma, galinha podre! Toma pra não
te meteres comigo! Toma!Toma! Baiacu da praia!
“Qualquer pé-rapado”
“Quem me comeu a carne tem de roer-me os ossos.”
(p. 253)
Linguagem coloquial portuguesa. Diz Jerônimo:
 Ó filha! “Por que não experimentas tu fazer uns pitéus
à moda de cá.”. ... Pede a Rita que to ensino. Os
camarões souberam-me tão bem”. ( p. 115 )
Um diálogo rápido, conciso, sugestivo e uma precisão
descritiva extremamente aguda são os traços marcantes
da personalidade literária de Aluísio
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