Kant, positivismo e pós-positivismo jurídicos Aspectos introdutórios Indivíduo burguês - subjetividade como interioridade (psicológica e epistemológica) - representações na esfera da consciência – Alberto. Esse é o quadro em que nasce a razão na Modernidade, de Descartes até Kant. Hegel, apogeu da razão burguesa, é um pouco diferente, pois rejeita a noção de representação e de subjetividade até então (daí porque Marx tomará a Fenomenologia como a primeira crítica ideológica, ainda que idealista – Alberto. Minha leitura, como você percebe, é lukácsiana. Eu entendo, com Lukács, que o processo de ascensão da burguesia e afirmação das conquistas da razão contra a superstição e a dominação política, sofre um revés no momento em que a burguesia, em 1848, percebe que não pode continuar seu projeto sem que ela própria pereça como classe. Aspectos introdutórios O ponto culminante desse movimento, portanto, é Hegel. Tanto assim que, a partir de então, renascem os irracionalismos e os relativismos de toda espécie (filosofias "da emoção", "do sentimento", relativismos de todo tipo), pois agora a burguesia tem de jogar fora a razão e lutar contra os herdeiros do racionalismo hegeliano: ou seja, Marx – Alberto Esta última observação será muito importante para os direitos humanos. Há uma forma de ver os direitos humanos proveniente de Kant e outra proveniente de Hegel. Kant e sua apropriação pelos positivismos jurídicos (principalmente pós-positivismo). Hegel e sua apropriação pelas teorias do reconhecimento. Aspectos introdutórios Questões importantes para o tema de hoje: A) O papel assumido pela razão na obra de Kant e nas obras dos primórdios do positivismo e do positivismo jurídico. B) A universalização do indivíduo em Kant, importante dado inclusive para compreensão da figura do sujeito de direito; C) A formulação segundo a qual nenhum homem deve ser considerado como um meio, mas deve ser tratado sempre como um fim em si mesmo. Aspectos introdutórios Para demonstrar a tese acima, é interessante perceber que o caráter dogmático que segue a metafísica formal de Kant também se encontrará presente no positivismo de Augusto Comte e no positivismo jurídico em particular. No entanto, a minha tese é que a teoria kantiana sofre corrupções na sua construção, o que redundará em diminuições das pretensões da filosofia com a razão humana. Portanto, até mesmo a lei moral terá as suas pretensões reduzidas, sendo corrompida a partir de obras de positivista como Comte, por exemplo. Esta diminuição das pretensões da razão, como já disse anteriormente, se faz essencialmente porque há uma mudança estratégica no seu papel para os fins desejados pelo capitalismo. Veja-se o exemplo do trabalho e do mérito. Aspectos introdutórios Acreditamos que há outro elemento, que tem íntima relação com a anterior, que é o advento de teorias como o positivismo de Comte. Em que a razão dogmática serve, no plano teórico, para substituir a razão posta por Kant. O dogmatismo ajuda ainda a simplificar as tarefas do homem universalizado, que conta com uma ajuda para saber qual o caminho a ser percorrido, com menores dificuldades de percurso. A perspectiva da ordem ajuda no processo. Aspectos introdutórios É como se houvesse um empobrecimento das pretensões da razão, que passa a se acomodar com o fato de que alguns grandes pensadores da humanidade já postaram quais seriam os fins pretendidos pela razão, não havendo mais razão que cada homem o fizesse num percurso individual e difícil. Assim, os princípios já teriam sido examinados por grandes pensadores, que já teriam pronunciado as leis gerais – contra as quais não vale a pena insistir. Tal dogmatismo acentua, ainda mais, o papel formal do sujeito, que acaba cedendo àquilo que já se tem como obra definitiva da razão – mais ainda na mão de alguns, que ditam o que é racional e o que é irracional. Kant, razão e o positivismo de Comte Em Comte, por exemplo, a razão humana irá experimentar um grau de dogmatismo jamais visto, e que reduz a sua a extensão inicial. Como dito, insisto, se dá por alguns motivos. Primeiro, pelas tensões do próprio desenvolvimento da democracia burguesa. No curso do século XIX, quando surge o positivismo, a revolução burguesa passará do ato revolucionário para a vida das pessoas, revelando as suas insuficiências na concretiza da igualdade, liberdade e fraternidade prometidas. Logo, o empobrecimento das pretensões filosóficas corresponde, no meu sentir, ao fracasso já sentido das promessas da revolução. O pensamento passa a prometer menos do que prometeu ao mundo o pensamento de Kant e de Hegel, por exemplo. Assim, mesmo em se tratando de construções teóricas, estas não podem ficar totalmente infensas ao mundo – sendo que, mesmo operando no plano normativo do dever-ser -, há que existir uma acomodação do que realmente se entender por razão humana. Ou seja, a própria razão prometida pelos filósofos passa a contemplar a sua real dimensão no mundo. Kant, razão e o positivismo de Comte “No estado teológico, o espírito humano, dirigindo essencialmente suas investigações para a natureza íntima dos seres, as causas primeiras e finais de todos os efeitos que o tocam, numa palavra, para os conhecimentos absolutos, apresenta os fenômenos como produzidos pela ação direta e contínua de agentes sobrenaturais mais ou menos numerosos, cuja intervenção arbitrária explica todas as anomalias aparentes do universo. No estado metafísico, que no fundo nada mais é do que simples modificação geral do primeiro, os agentes sobrenaturais são substituídos por forças abstratas, verdadeiras entidades (abstrações personificadas) inerentes ao diversos seres do mundo, e concebidas como capazes de engendrar por elas próprias todos os fenômenos observados, cuja explicação consiste, então, em determinar para cada um uma entidade correspondente. Kant, razão e o positivismo de Comte Enfim, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas, a saber, suas relações invariáveis de sucessão e de similitude. A explicação dos fatos, reduzida então a seus termos reais, se resume de agora em diante na ligação estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais, cujo número o progresso da ciência tende cada vez mais a diminuir” (COMTE, Augusto. Curso de filosofia positiva. Trad. José Arthur Giannotti. 2ª. ed.. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 4.) Kant, razão e o positivismo de Comte ciência pode ser exposta mediante dois caminhos essencialmente distintos: o caminho histórico e o caminho dogmático. Qualquer outro modo de exposição não será mais do que sua combinação. Pelo primeiro procedimento, expomos sucessivamente os conhecimentos na mesma ordem efetiva, segundo a qual o espírito humano os obteve realmente, adotando, tanto quanto possível, as mesmas vias. Pelo segundo, apresenta-se o sistema de ideias tal como poderia ser concebido hoje por um único espírito que, colocado numa perspectiva conveniente e provido de conhecimentos suficientes, ocupar-se-ia de refazer a ciência em seu conjunto” (Idem). “O modo dogmático, supondo, ao contrário, que todos esses trabalhos particulares foram refundidos num sistema geral, a fim de serem apresentados segundo uma ordem lógica mais natural, aplica-se apenas à ciência já suficientemente desenvolvida em alto grau. Mas, na medida em que a ciência progride, a ordem histórica de exposição torna-se cada vez mais impraticável, por causa da longa série de intermediários que obriga o espírito a percorrer, enquanto a ordem dogmática torna-se cada vez mais possível, ao mesmo tempo que necessária, porque novas concepções permitem apresentar as descobertas anteriores de um ponto de vista mais direto’” (Idem). ‘Toda Kant, razão e o positivismo de Comte “A tendência constante do espírito humano, quanto à exposição dos conhecimentos, é, pois, substituir progressivamente a ordem histórica pela ordem dogmática, a única conveniente ao aperfeiçoamento de nossa inteligência” (Idem). Segundo Comte, seria inconcebível cada homem realizar novamente todo o percurso já realizado anteriormente pelos ‘gênios superiores’ da humanidade durante “uma longa série de séculos”. Afinal “é claro que é mais fácil e mais curto aprender do quer inventar”, sendo que seria impossível o desenvolvimento da humanidade “se pretendêssemos sujeitar cada espírito individual a percorrer sucessivamente os mesmos caminhos intermediários que teve de seguir necessariamente o gênio coletivo da espécie humana’. Daí resta clara a razão da dogmática enquanto elemento inerente ao método positivista” (Idem). Kant, razão e o positivismo de Comte A razão, enquanto lei moral a ser perseguida por todos os homens na sua construção, é corrompida em Comte e passa a ser obra de alguns poucos homens, que os demais devem seguir. A razão de uma elite do pensamento, que deve ser seguida por todos os demais. Uma redução das pretensões kantianas, compreensível na necessidade de se manter os ideais de um processo revolucionário que, em poucos anos de existência, começava a esgotar a sua potencialidade. Kant, razão e o positivismo de Comte Não haverá tempo para se explicar aqui, mas a tese é a seguinte: o pensamento burguês mais refinado da construção e consolidação inicial da revolução burguesa já contém em si os próprios elementos para que, a partir dele, seja gerado um pensamento que tenta manter a revolução burguesa decadente e, ao mesmo tempo, elementos para os seus supostos “contrários”. Os autores burgueses, não raras vezes, lutam contra as concepções forjadas por eles como se elas mesmas não fossem herdeiras de pensamentos burgueses de origem, como se elas estivessem sempre em disputa entre si – e não como se fossem uma tentativa desastrosa de salvar o que a corrente anterior não conseguiu na construção teórica: o próprio capitalismo. Kant, razão e o positivismo jurídico de Kelsen Para se entender este caráter dogmático, nada melhor do que recorrermos àquele que lutou pela pureza do direito. Assim como o positivismo em geral, a sua vertente jurídica assenta-se numa explicação do nada, tem a si mesma como começo e fim. O caráter dogmático exsurge de uma perspectiva a-histórica, já que deslocada da totalidade construída a partir da produção. Ninguém melhor do que o próprio autor da teoria pura para explicar os motivos desta tentativa. A figura do Barão de Münchaussem, descrita por Michel Löwy para o positivismo, se lhe aplica perfeitamente também aqui: quando em situação de perigo, o positivismo jurídico se vale de suas próprias forças, sem qualquer auxílio externo, para se retirar da areia movediça, como fez Münchaussem , puxando-se pelo próprio cabelo. Kant, razão e o positivismo jurídico de Kelsen Preocupado com a contaminação a que o direito estava exposto decorrente do contato em especial com a política, Kelsen é categórico já no início do prefácio à primeira edição de sua obra Teoria pura do direito, escrito em maio de 1934: “Há mais de duas décadas que empreendi desenvolver uma teoria jurídica pura, isto é, purificada de toda a ideologia política e de todos os elementos de ciência natural, uma teoria jurídica consciente de sua especificidade (...) Importava explicar, não as suas tendências endereçadas à formação do Direito, mas as suas tendências exclusivamente dirigidas ao conhecimento do Direito, e aproximar tanto quanto possível os seus resultados do ideal de toda a ciência: objetividade e exatidão.” (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000) Kant, razão e o positivismo jurídico de Kelsen Assim, em vista de seu caráter antirrevolucionário (...), o positivismo jurídico vem carregado de uma carga ideológica da burguesia já conservadora. Encontra-se envolto na ideia de que a norma é produto de um processo democrático, que, por ter passado por todo o procedimento da democracia burguesa, não merece questionamentos, devendo ser incondicionalmente aceita. A ideia da pureza do direito, portanto, ao invés de ser neutra, como pretendia Kelsen, é, na sua origem, altamente ideológica, ou mais, esta intimamente ligada à naturalização da democracia burguesa. Rende homenagens a esta democracia, embora queira escondê-lo - afinal deseja fazer crer que qualquer norma, produzida por qualquer regime político, possa ser preservada em sua pureza. Kant, razão e o positivismo jurídico de Kelsen Há que, segundo Kelsen, se expurgar a ideologia do direito, retirar o seu caráter político, e isto não é ideológico?!? Isto seria simples exercício de objetividade!!! Um dever-ser descomprometido a partir de um ser artificial. Enfim, a total ruptura com qualquer perspectiva histórica. Em suma, aqui reaparece o caráter dogmático já existente nas proposições de Comte, antes referidas: ‘a tendência constante do espírito humano, quanto à exposição dos conhecimentos, é, pois, substituir progressivamente a ordem histórica pela ordem dogmática, a única conveniente ao aperfeiçoamento de nossa inteligência’. O direito como produto, descolado da história, do aperfeiçoamento de nossa inteligência, não havendo sentido realizar novamente o percurso de todos que concretizaram uma mais daquelas perfeitas obras que a humanidade poderia ter imaginado: a de que o direito é a forma mais bem acabada de solução dos conflitos e de pacificação social, já que existe e sempre existiu na história da humanidade! Kant, razão e o positivismo jurídico de Kelsen A democracia burguesa como aquele dever-ser inexoravelmente alcançável pela via do direito. A naturalização desta modalidade de democracia como produto do fim da história, obtido pela concretização do direito em sua mais completa tradução: imaculado, revestido do manto da pureza. Uma democracia como a burguesa demanda um direito puro – em que todos possam ser identificados como livres, iguais e proprietários, de forma indistinta, para vender a sua força de trabalho livres de qualquer pressão ideológicas. Ou seja, para que o fetiche do sujeito de direito assuma o seu caráter mais completo é indispensável uma teoria à sua altura, ou seja, a teoria pura do direito.Neste instante nunca é demais relembrar o percurso feito pelo positivismo de Comte, que, concebendo um estágio superior da humanidade com o advento da razão retoma, a partir dela, a uma perspectiva duplamente dogmática: o conteúdo metafísico que inclui o culto à razão. No plano das formas, direito e religião separados, de forma distinta do que se dava no modo de produção feudal (em que apareciam fundidos). No seu aspecto material (conteúdo), não obstante, o direito assume uma veste metafísica, quase religiosa, assemelhando-se à inversão promovida na trilha percorrida pelo positivismo comtiano (da teologia para a razão, originariamente proposta, para o retorno ao misticismo teológico)”. Kant, razão e escolas pós-positivistas jurídicas Feitas estas digressões iniciais sobre o positivismo jurídico em geral e sua relação com o dogmatismo da razão, a sua relação com a metafísica formal, resta-nos investigar a relação da matriz kantiana com as escolas pós-positivistas do direito. Não raro encontramos um autor de direitos humanos que usa a já surrada frase da “Metafísica dos costumes” segundo a qual o homem não deve ser percebido nunca como um meio, constituindo sempre um fim em si mesmo. Na aula anterior, explicamos o significado desta expressão. Agora vejamos se, à luz das mais modernas teorias, do pós-positivismo jurídico ela se sustenta. Inicialmente, deve-se constatar que as teorias que concretização o póspositivismo jurídico são diversas. No entanto, colhe registrar que as mais destacadas passam por uma análise do ordenamento jurídico com um redobrado interesse pelos princípios. Além disto, centram-se na possibilidade de princípios diversos entrem em conflito, observada situação concreta. Kant, razão e escolas pós-positivistas jurídicas Em artigo no qual analisamos a questão dogmática, fizemos questão de constar o seguinte: “Não nos ateremos aqui ao fato de que supostamente existam representantes de várias escolas pós-positivistas - até mesmo porque partimos, guardadas as especificidades, da mesma constatação de David Harvey. Quando Harvey analisa o pós-modernismo, constata que, na realidade, a partir da lógica de acumulação do capital, não há uma ruptura ou solução da continuidade na passagem do que se entende por modernidade para a pós-modernidade. Diríamos que, assim como não há qualquer ruptura significativa entre o modernismo e o pós-modernismo, não há qualquer descolamento, na perspectiva da dogmática, a ser destacado entre o que se entende por positivismo jurídico e pós-positivismo. Estamos diante de fenômenos provenientes da mesma matriz, embora o último seja apresentado com roupagem supostamente mais progressista, na essência, é tão conservador quanto o primeiro. Assim, em ambos os casos, sob o aspecto da forma, se encontra marcante a lógica do sujeito de direito, com todos os seus traços característicos – sujeito igual e livre para vender a sua única mercadoria, a força de trabalho”. A despeito da observação anterior, faremos questão aqui de analisar as duas vertentes mais conhecidas do pós-positivismo antes destacada, exatamente para a percebermos a partir de suas dificuldades de serem totalmente adaptadas ao pensamento kantiano, com algumas variações, neste caso específico, que merecem destaque como se verá. Kant, razão e escolas pós-positivistas jurídicas De um lado, há uma teoria que se centra no sopesamento ou ponderação dos conflitos em disputa, com destaque para o instante da elaboração da lei. O seu maior exponencial é Robert Alexy. De outro, há uma teoria, que, nos últimos anos, perdeu significativo espaço, em especial no Brasil. Nesta, se identificaria o núcleo do direito fundamental em disputa e ele seria preservado, jamais poderia ser atentado, não havendo que se falar em conflito de princípios. Como estas duas teorias, disputaram, por muito tempo, a primazia no plano do pós-positivismo jurídico, iremos nos ater a elas. Já de início, algumas questões remetem a algumas perguntas, que precisam ser respondidas: Kant, razão e escolas pós-positivistas jurídicas Tudo isto parte de um exercício que tem raízes kantianas? Coisas como lei moral, autonomia, heteronomia, imperativo categórico, enfim toda esta diversidade de pressupostos que fundam a metafísica formal estariam presentes? A noção de que a lei como fruto do consenso geral, apta, portanto, a resguarda a liberdade a partir da sua própria limitação estaria presente? Seria possível falar-se em que, na solução de um conflito de princípios, estaria preservada a ideia de que o homem é um fim em si mesmo, não podendo, em hipótese alguma, aparecer com um meio para se alcançar um fim? O mesmo poderia se dar na teoria do núcleo do direito fundamental? Kant, razão e escolas pós-positivistas jurídicas Percebe-se que não há como se conceber, aqui também, que o pós-positivismo nada mais é do que um dos resíduos tóxicos produzidos a partir de uma corrupção, necessária para a adequação às sutis mudanças na sempre mesma relação de produção capitalista e sua noção de sujeito de direito, da promessa kantiana. Assim, embora partindo supostamente de pretensões kantianas, com promessas de que concretizará a sua máxima de que “o homem não é meio, mas fim em si mesmo”, as teorias pós-positivistas trazem em si todas as tensões típicas do pensamento burguês – acentuadas pelo fato de que, cada vez mais, a qualquer ser humano fica evidenciado que a lógica do capital possui sérios limites. Kant, razão e escolas pós-positivistas jurídicas Portanto, ao promover a ponderação para a solução do conflito de princípios, enreda-se numa trama negocial, que demonstra não somente a sua fragilidade como a de teorias como a do consenso geral rousseauniano. Vejam: se um princípio, ainda que no caso concreto, tiver que fazer vergar o outro, onde se encontra a razão perseguida por Kant? O homem não tem nada mais de seguro a perseguir, não há uma lei moral a ser realizada? Não há leis universais a serem enunciadas por cada homem, já que elas podem ser negociadas a qualquer tempo, observadas situações concretas? Ela sofre uma flexibilização, pelo fato de que o tal mundo “pós-moderno” exige esta flexibilização, segundo conveniências da situação concreta. A história passa a se resumir a situações concretas de tensão, com as suas soluções imediatistas? Poderia se dizer que o princípio afastado – decorrente da razão – se encontra ainda lá, mas apenas cedeu a vez no caso concreto. Ora, a contingência determinando a lei moral, a partir de uma heteronomia, não é certamente o que Kant desejou, como vimos, ao eleger os imperativos categóricos. Não há inclinações, ou interesses que devam fazer ceder a lei moral, sob pena de autorizarmos o uso do homem pelo homem como um meio. Kant, razão e escolas pós-positivistas jurídicas Prefere-se a razoabilidade à razão? A razoabilidade passa a ser uma razão instrumentalizada, com pretensões bem mais modestas que a razão kantiana? Se razão foi instrumentalizada, como fazer com o homem como fim em si mesmo? Num conflito entre direitos sociais e direitos individuais, por exemplo, poder-se-ia propugnar pela derrota da dignidade humana, ainda que pareça que ela teria assumido uma dimensão coletiva (deixo de dar o medicamento em um ato normativo, desprestigiando um ser humano, pois pretendo maximizar as possibilidades da política pública para todos os demais). Kant, razão e escolas pós-positivistas jurídicas O fracasso do projeto da razão está descortinado e o que pretensamente tem raiz kantiana não passa de uma caricatura, uma sombra da teoria de Kant. Mas por que motivo isto se dá? A resposta nos parece mais simples do que se imagina. O mundo das representações apresentados por Kant, com o deslocamento do objeto para o sujeito, tende a distanciar a relação entre ambos, concebendo possibilidades de um mundo cada vez mais aparente, cada vez menos essente. Ou melhor cada vez menos decorrente da relação objeto em si e objeto para si, propugnada por Hegel e posta em outra perspectiva por Marx. Mas e se a solução não fosse adotar a teoria de Alexy, mas a da outra corrente que defende que não há conflito entre direitos fundamentais, devendo-se, nesta aparente contradição entre ambos, preservar-se o núcleo do direito fundamental? Kant, razão e escolas pós-positivistas jurídicas Esta teoria não consegue vencer no mundo das contradições do capital – já que engessaria os direitos fundamentais e seus fundamentos, não possibilitando que eles participassem, já como mercadorias, do processo de trocas. A negociação travada entre princípios nada mais é do que a troca promovida entre “dignidades”, embora se diga que a dignidade não é ponderada nunca, mas utilizada como parâmetro para se dosar a ponderação. Diz-se que o princípio a ser preservado é o que mais se aproxima deste elemento de dosagem (a dignidade, o que, na aparência, tentar preserva a noção de dignidade posta por Kant, mas não o consegue, na medida em que o homem aparecerá, em algum momento, como meio e não fim em si mesmo). Neste momento, é indispensável que se tenha em mente dois conceitos kantianos: reino dos fins e dignidade. Kant, razão e escolas pós-positivistas jurídicas Destes conceitos, percebe-se que o que se encontra presente na ponderação a atribuição, no reino dos fins, de um preço na perspectiva de troca de equivalentes (a troca de equivalentes do capitalismo, constata por Marx, aparece já aqui, embora a partir de uma ideia de valores distinta do valor trabalho marxiano). Não há, na ponderação, a noção de dignidade pretendida por Kant, mas de preço no reino dos fins. O homem aparece como um meio, que tem um preço – o que conspira contra o ideal do reino dos fins, em que a dignidade não poderia jamais aparecer como um modulador de interpretação, mas é sempre um fim a ser alcançado em qualquer hipótese. A razão prática ditando os desígnios da razão pura. A experiência superando o “a priori”, no exercício da ponderação, e corroendo com o exercício metafísico, com o seu ideal, de que cada homem estará apto, no reino dos fins, a enunciar a lei moral em que nenhum homem será utilizado como meio, sendo sempre um fim em si – ou seja, que todo homem tem dignidade, e não preço. Kant, razão e escolas pós-positivistas jurídicas QUANTO AO REINTO DOS FINS - “O conceito segundo o qual todo ser racional deve considerar-se como legislador universal para todas as máximas da sua vontade para, deste ponto de vista, se julgar a si mesmo e às suas acções, leva a um outro conceito muito fecundo que lhe anda aderente e que é o de um reino dos fins” (“Fundamentação da metafísica dos costumes”, p. 79). “Seres racionais estão pois todos submetidos a esta lei que manda que cada um deles jamais se trate a si mesmo ou aos outros simplesmente como meios, mas sempre simultaneamente como fins em si. Daqui resulta porém uma ligação sistemática de seres racionais por meio de leis objectivas comuns, i.e. um reino que, exactamente porque estas leis têm em vista a relação entre seres uns com os outros como fins e meios, se pode chamar um reino dos fins (que na verdade é apenas um ideal)” (Idem, p. 80) Como cada um deve legislar, enunciando a lei moral, “o dever não pertence ao chefe do reino dos fins, mas sim a cada membro e a todos em igual medida” (p. 80). QUANTO À DIGNIDADE: “No reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então te ela dignidade” (p. 81) Kant, razão e escolas pós-positivistas jurídicas Por fim, a outra teoria. Embora a teoria do núcleo do direito fundamental se apresente como mais honesta com o pensamento kantiano, não há como a tal teoria vencer no capitalismo. O exemplo mais patente desta assertiva foi a derrota do princípio do não-retrocesso social patrocinado por autores como J.J. Gomes Canotilho – autor que sequer o defende mais, como se percebe do prefácio à segunda edição de sua tese de doutorado em que fala do filho enjeitado. Aliás, este princípio mostra o nível de idealismo e das dificuldades de que a idealização, com a subtração da história, cria dificuldades para o próprio materialismo. Fica lançada a ideia, mas não pretendo esgotá-la (ficando para uma próxima oportunidade enfrentá-la de forma mais intensa). Kant, razão e escolas pós-positivistas jurídicas Veja-se, ainda, que, para qualquer teoria pós- positivista, há um problema maior decorrente da porção do direito que se dá na experiência: a forma como o direito passou a ser obra mais constante de um juiz ativista, que não assenta as raízes de sua dicção na vontade geral ditada pela escolha democrática. Embora o dado de experiência não possa ser tido de forma isolado, no caso do direito, ele é percebido por Kant (que, a meu ver, não enfrenta o problema com a profundidade que mereceria, para fins de que esta obra da razão, o direito, que é grande parte proveniente da razão prática pudesse ser conciliado com a razão pura). Kant, razão e escolas pós-positivistas jurídicas Desta forma, ainda aqui, quando se fala em pós-positivismo, há um problema anterior. A nossa liberdade, em Kant, é restringida pela vontade dos outros, a partir de um ato de escolha legislativa que encerra a vontade geral. No caso do juiz, quando faz a ponderação (ainda que se possa discutir os limites desta possibilidade na teoria de Alexy, ela se dá no plano dos fatos, com o aumento do ativismo judicial no mundo inteiro), a lei moral fica sensivelmente fragilizada e submetida, ainda mais, a subjetivismos na sua própria consolidação. Não à toa que autores como Dworkin se esforçam para preservar a integridade dos princípios, nestes casos, por ideias como a do “romance escrito por várias mãos” (o direito como uma obra coletiva, inclusive com a participação do trabalho de Hércules promovido pelos juízes neste processo). Kant, razão e escolas pós-positivistas jurídicas Enfim, todos tentando salvar algo que se encontra à deriva: O direito enquanto produto da razão humana (mesmo que, com o positivismo jurídico, estejamos já lidando com uma razão com pretensões mais modestas, também à deriva, na medida em que busca sobreviver ao irracionalismo patrocinado pela lógica de acumulação do capital).