MELHORES POEMAS
JOÃO CABRAL DE MELO NETO
ELEMENTOS POÉTICOS MARCANTES EM ALGUNS POEMAS
Adaptado
de<http://www.antoniomiranda.com.br/ensaios/METAPOESIA.pdf>
Marcas da obra:
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Atmosfera surrealista (ver A André Masson p. 18)
Ideal de rigor formal (ver Frei Caneca p.312)
Poesia metalinguística (ver Tecendo a Manhã p. 274 )
Poesia referencial(ver No cemitério de Mondrian p. 284 )
Poesia imagética. (ver Poema de desintoxicação p. 15 )
Poesia antidiscursiva (ver Antiode p.49)
Poesia antilírica(ver Fábula de Anfion p. 32)
O social sem o panfletário (ver Morte e vida Severina p. 115 )
Secura, dureza, aspereza, vazio (ver Fábula de Anfion p. 32 e Morte e vida
Severina p. 115 )
• Texto conceitual: Faca – Bala – Relógio (ver Uma Faca só Lâmina p. 169)
Atmosfera surrealista : André Masson
• Nasceu em 1896, em Balagny (cidade de mineração), na França. Aos
doze mudou-se com a família para Bruxelas e iniciou seus estudos na
Academia de Belas Artes. Em 1912 foi volta a Paris, dois anos depois
ganhou bolsa para estudar a técnica de afresco na Toscana, Itália.
• Inicialmente, sua obra foi influenciada pelo Cubismo e por Juan Gris.
André Masson
Paysage
Matriarcale,
1941
A André Masson
Imagens de sonhos
Com peixes e cavalos sonâmbulos
pintas a obscura metafísica
do limbo.
Formas primitivas fecham os olhos
escafandros ocultam luzes frias
invisíveis na superfície pálpebras
não batem.
Cavalos e peixes guerreiros
fauna dentro da terra a nossos pés
crianças mortas que nos seguem
dos sonhos.
Friorentos corremos ao sol gelado
de teu país de mina onde guardas
o alimento a química o enxofre
da noite.
Atmosfera surrealista
• As imagens no poema, não são geradas por parâmetros lógicos, mas
através das exigências da imaginação criativa.
• O poeta recusa a frase clara, nítida e significativa que define a poesia
realista e tende para linguagem hermética, para o mistério, para o
fluir encantatório.
• Essa poesia será insistentemente sugerida por ambiente onírico,
traduzida em uma atmosfera rarefeita, carregada de sombra, nuvens
e espaços silenciosos.
• Valendo-se de símiles ditados pela paisagem dos sonhos o poema
afirma suas imagens nos dizendo algo sobre o mundo e sobre si
mesmo.
Atmosfera surrealista
Cubismo: figuras puras
As nuvens são cabelos
Crescendo como rios;
São os gestos brancos
da cantora muda;
Antítese
são estátuas em voo
à beira de um mar;
a fauna e a flora leves
de países de vento;
Comparação
Sinestesia
são o olho pintado
escorrendo imóvel;
e a mulher que se debruça
nas varandas do sono;
Antítese
Metáfora
Metáfora
Metáfora
são a morte (a espera da)
atrás dos olhos fechados;
a medicina, branca!
Nossos dias brancos.
Metáfora
AS NUVENS
• Em “As nuvens”, poema inaugural do livro, observa-se a presença
simultânea de cubismo e surrealismo.
• Aí, o branco da veia onírica enfatiza a inconsistência, o difuso dos
seres e das coisas, enquanto o branco da inclinação para o fazer
consciente incorpora o significado da depuração, do despojamento,
da lucidez.
O engenheiro
A luz, o sol o ar livre
envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
superfícies, tênis, um copo de água.
(Em certas tardes nós subíamos
Metonímia
Ao edifício. A cidade diária,
Como um jornal que todos liam, Comparação
Ganhava um pulmão de cimento e vidro).
Metáfora
O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.
A água, o vento a claridade,
De um lado o rio, no alto as nuvens,
Situavam na natureza o edifício
Crescendo de suas forças simples.
O engenheiro : a composição da imagem
• O sonho, aqui, já não é mais o sonho do poeta dormindo na “noite
furiosa”, mas o sonho fora do sono.
• Por essa estratégia de controle, o poeta-engenheiro transforma
as “coisas claras” que, mesmo se sob o signo da “luz”, do “sol” e do “ar
livre”, ainda são apenas “sonhadas”, no “mundo justo/mundo que nenhum
véu encobre”, do engenheiro.
• Vemos, assim, que no adjetivo “claras”, o sema referente a cor é reduzido à
noção de pureza, despojamento, precisão, fazendo um paralelismo com
“justo”.
• “Justo”, aqui, segundo muitos dos críticos de João Cabral, não remete a
“justiça”, mas a “justeza”, exatidão.
FREI CANECA : Ideal de rigor formal
• O Auto do Frade, de 1984, é uma poesia de fundo histórico falando sobre a
vida e destino de Frei Caneca, condenado à morte em 1825 por estar
envolvido na Confederação do Equador. Um poema para vozes, exemplo do
teatro poético do autor, João Cabral de Melo Neto.
• Nesta obra, o autor passa do social (também em Morte e vida severina) ao
histórico, sem que haja uma negação do primeiro, mas sim a sua
incorporação, não através de uma apreensão de incidentes apenas
narrativos (o que, sem dúvida, compõe também o quadro da narrativa
histórica), mas pela exploração poética das tensões básicas, encarnadas
por Frei Caneca, entre a razão pragmática do político rebelde e as
elucubrações mais abstratas, lógicas, retóricas, filosóficas.
• O poema retoma o último dia do líder carmelita. O povo o vê caminhando
para a morte:
Auto do frade
• Personagens do auto
• Frei Caneca (Joaquim do Amor Divino Rabelo) -dedicou-se à Igreja desde cedo sendo
adorado e aclamado pela população, que o tinha como um homem dedicado, sereno e
prestativo aos olhos de Deus. É considerado uma figura da história real do Brasil, pois
participou de um movimento revolucionário que queria a formação da República. Tal
movimento ocorreu em 1817, denominado Confederação do Equador, foi um dos líderes.
Enfrentou com bravura o imperador e lutou pelo Brasil, e mesmo condenado se mostrou
digno e confiante.
• Pessoas de Recife - espectadores e formadores do cortejo que acompanhou todo o
trajeto de Frei Caneca da cadeia à praça. Não impediram sua execução, apenas faziam
comentários e contavam histórias entre si. Apesar de ouvirem o sermão do frei e de
vivenciar seu sofrimento não ousaram retirá-lo daquela situação de morte.
• Oficiais da Justiça - eram os responsáveis pela condenação do Frei pertenciam a
Comissão Militar do Imperador, se apresentaram duros e insensíveis na condução do
frade.
Auto do frade: Enredo
• O Auto do frade tem como assunto o dia da morte do rebelde frei Caneca que já estava preso há
mais de um ano.
• Estava sendo preparado o cortejo, a população já se acumulava do lado de fora da cadeia. O frei
tentava dormir enquanto aguardava seu enforcamento.
• Como o juiz não havia chegado ao Tribunal de Justiça por causa de uma viagem de três meses, o
corregedor decidiu que o Frei Caneca seria enforcado em praça pública, após percorrer a cidade
com uma corda enrolada no pescoço.
• Assim, Frei Caneca foi retirado da prisão e muito fraco percorreu as ruas de Recife, várias pessoas
o seguiram em pleno meio da rua, em cada esquina mais gente se aproximava. Em todos os
lugares existiam espectadores do acontecimento abrangendo até mesmo o governador e toda a
sociedade em geral.
• Frei Caneca chegou a dizer algumas palavras, mas foi obrigado a calar-se e até os gestos lhe foram
proibidos. Seu comportamento podia representar grande perigo aos oficiais que pregavam ser ele
um homem condenado à morte por trair o Rei e pretender o separatismo com a Confederação do
Equador (1824).
• Lentamente o cortejo vai levando o Frei que andava calado e sereno.
• Ao chegar à Igreja do Terço, Frei Caneca foi colocado no centro de um círculo formando de
policiais, com intuito de ninguém tentar soltá-lo ou se rebelar.
Auto do frade: Enredo
• Nesse evento Frei Caneca foi entregue ao oficial enviado pela Comissão do
imperador que o condenou à morte.
• O Frei solenemente andou no interior de um círculo de policias.
• Ao chegar na Praça do Forte, onde seria executada a sentença de réu, o carrasco
designado para matar o padre, recuou temendo a ação sobre ele de alguma força
superior. Então todos os carrascos se recusaram a enforcar o padre, alegando que
ele foi visto "voando no céu". Mesmo espancados resistiram a enforcá-lo.
• O Oficial de Justiça ofereceu perdão dos crimes aos presos, comida farta,
emprego, cama e mesa a quem fosse voluntário para a execução. Contudo
ninguém se disponibilizou, nem mesmos os presos que queriam liberdade.
• Ocorreu então que após algumas horas de espera, decidiu-se formar um pelotão
de doze homens para o fuzilarem, pois nenhum destes ousaria fazê-lo sozinho.
• Assim, Frei Caneca foi morto fuzilado.
Auto do frade: Ideal de rigor formal
A/cor/do /fo/ra/ de /mim /(7)
co/mo há/ tem/pos /não/ fa/zi/a (7)
A/cor/do /cla/ro,/ de/ to/do, (7)
a/cor/do /com /to/da a/ vi/da, (7)
com/ to/dos /cin/co/ sen/ti/dos (7)
e so/bre/tu/do/ co/m a /vis/ta (7)
que/ den/tro /des/ta/ pri/são (7)
pa/ra /mim /não /e/xis/ti/a. (7)
A/cor/do/ fo/ra /de /mim (7)
co/mo/ vi/da a/po/dre/ci/da. (7)
acordar é ter saída.
Acordar é reacordar-se
ao que em nosso redor gira.
Mesmo quando alguém acorda
para um fiapo de vida
como o que tanto aparato
que me cerca me anuncia:
esse bosque de espingardas
mudas, mas Acordar não é de
dentro,
logo assassinas,
Auto do frade: Ideal de rigor formal
- Ei/-lo /que vem /des/cen/do a/ es/ca/da,
de/grau/ a de/grau. /Co/mo/ vem /cal/mo.
- Crê/ no /mun/do,e /quis/ com/ser/tá-lo.
- E a/in/da /crê,/ já /com/de/na/do?
- Sa/be/ que/ não o /con/ser/ta/rá.
- Mas/ que /vi/rão /pa/ra i/mi/tá/-lo.
• Em Auto do Frade, a estrutura textual é diversa: os monólogos são construídos
em redondilhas maiores(7 sílabas), enquanto os demais versos são octossílabos.
A linguagem é criada não para documentar, mas para representar, concisa e
contundentemente, uma situação limite. As rimas são, em sua maioria, toantes.
• Os versos exprimem a força política e revolucionária das palavras de Frei Caneca.
• A morte, assunto constante da obra poética de João Cabral de Melo Neto, é
também tema central em Auto do frade.
TECENDO AS MANHÃS
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
Poesia metalinguística: TECENDO AS MANHÃS
• Não devemos deixar de considerar a abordagem metalinguística deste poema, e
aproximar o canto do galo “tecendo a manhã” com o canto do poeta sendo
tecido, verso a verso, fio a fio no poema.
• Podemos notar na divisão de estrofes dois movimentos bem assinalados, na
primeira estrofe os galos convocam a manhã que se apresenta no verso dez e
domina a segunda estrofe de forma leve (aérea), quando convocada no verso
dezesseis: “que, tecido, se eleva por si: luz balão.”
• Pode-se considerar o eu - lírico transitando por duas dimensões de tempo,
presente e futuro, e duas situações: individual e coletiva.
• Nestas oposições um único canto não será capaz de trazer a luz e anular a
escuridão, torna-se necessário que o galo convoque todos os galos e que eles
possam desta forma invocar a manhã, que pela alocação do artigo definido
transforma-se em amanhã, numa clara projeção de futuro.
Poesia metalinguística: TECENDO AS MANHÃS
• 1) O poema começa com uma paráfrase do provérbio “uma andorinha sozinha não faz verão”.
• 2) “Tecer”, “abrir”, “começar”, “costurar”, “pintar”, “unir”, “fiar” e “entrelaçar”, são os verbos que
dão o sentido de uma "tecimento" coletivo de muitos autores anônimos.
• 3) A metáfora mais saliente parece estar ligada a "tecer". Tecido por todos, ganha forma e
constrói a tenda para todos, (para se abrigar do sol?).
• 4) Na 1ª estrofe a presença de “galo/galos” está presente em todos os versos, exceto nos versos 3,
6, 9 (múltiplos de 3? ), inclusive, produzindo as rimas finais colabora na construção de sentido de
movimento, de construção do tecido, “um grito de galo” que vai passando de um a outro,
tecendo a manhã (amanhã ?).
• 5) Metáfora: “ se cruzem / os fios de sol de seus gritos de galo”; " se erguendo tenda, onde
entrem todos"; "se entretendendo para todos".
• 6) Neologismo: “entretendendo”. Tendo entre si/ entreter entendendo?
• 7) O poema é composto por 120 palavras, das quais 7 palavras são "galo(s)". Repete a palavra
"todos" 4 vezes, "manhã" e "toldo" 2.
Poesia metalinguística: TECENDO AS MANHÃS
• 8) Aliteração: Há 484 caracteres no poema, dos quais 31 são a letra "t". Somente
o verso 14 não possui "t": "(a manhã) que plana livre de armação" [o amanhã
sem tramas?].
• 9) Aliteração: Repete o letra "g" 12 vezes espontaneamente, no entanto, a
repetição da letra "t" parece intencional.
• 10) A palavra "outros" é repetida 6 vezes na 1ª estrofe. A construção do "tecido"
depende dos outros.
• 11) Metáfora: O galo é retratado como o trabalhador que constrói o futuro, a
tenda protetora.
• 12) Ele não usa o "canto" do galo, mas o "grito" do galo. Grito evoca alerta,
protesto (principalmente da vítima), greves e levantes.
• 13) Estaria o poeta sonhando com um futuro construído por todos, livremente,
para todos, isento de "armações", intrigas. Um mundo verdadeiramente
socialista?
Poesia metalinguística: TECENDO AS MANHÃS
• Sempre guiado pela lógica, pelo raciocínio, seus poemas evitam análise e
exposição do eu e volta-se para o universo dos objetos, das paisagens, dos
fatos sociais, jamais apelando para o sentimentalismo. Por isso, o prazer
estético que sua poesia pode provocar deriva, sobretudo de uma leitura
racional, analítica, não do envolvimento emocional com o texto.
Essas características levaram a crítica a ver na obra de João Cabral uma
"ruptura com o lirismo" ou a considerar sua expressão poética como
"antilírica". Não devemos, entretanto, supor que essa relação do poeta
com o mundo concreto, objetivo, produza apenas textos descritivos. Na
verdade, suas descrições ora acabam adquirindo valor simbólico, ora
acabam denunciando a crítica social que o poeta pretende levar a efeito
Outras figuras evidentes:
"Um galo sozinho não tece a manhã " : (v.1) - Prosopopeia.
" De um que apanhe esse grito que ele " (v.3) – Metáfora - Elipse.
" que apanhe o grito que um galo antes "(v.5) – Metáfora – Elipse.
" os fios de sol de seus gritos de galo " (v.8) – Eufemismo. (fios de sol= manifestos /protesto)
" para que a manhã, desde uma tela tênue, "– Analepse (remeter a ação para o futuro).
" se vá tecendo, entre todos os galos ". (v.9 e 10) – Prolepse (remeter a ação para o futuro).
" E se encorpando em tela, entre todos, (v.11)
" se erguendo tenda, onde entrem todos, " (v.12)
" se entretendendo para todos, no toldo " (v.13) – Polissíndeto.
"se entretendendo para todos, no toldo "(v.13) – Paronomásia – Neologismo.
"(a manhã) que plana livre de armação. " (v.14) - Anáfora.
" A manhã, toldo de um tecido tão aéreo "(v.15) - Anáfora – Metáfora.
" que, tecido, se eleva por si: luz balão". (v.16) – Metáfora.
Poema de desintoxicação: METALINGUAGEM
E POESIA IMAGÉTICA
Em densas noites
com medo de tudo:
de um anjo que é cego
de um anjo que é mudo.
Raízes de árvores
Enlaçam-me os sonhos
No ar sem aves
vagando tristonhos.
Eu penso o poema
da face sonhada,
metade de flor
metade apagada.
O poema inquieta
o papel e a sala.
Ante a face sonhada
o vazio se cala.
Ó face sonhada
de um silêncio de lua,
na noite da lâmpada
pressinto a tua.
Ó nascidas manhãs
que uma fada vai rindo,
sou o vulto longínquo
de um homem dormindo.
Poema de desintoxicação: METALINGUAGEM
E POESIA IMAGÉTICA
• METALINGUAGEM: O primeiro da grande série de metapoemas é o
POEMA DA DESINTOXICAÇÃO, em que a intimidade ou a convivência
do poeta com sua poesia é sempre artesanal, de construção
obsessiva com as palavras e as ideias, palavras de uma concretude
absoluta. Parece pintar em vez de escrever.
• IMAGENS: A intimidade ou a convivência do poeta com sua poesia é
sempre artesanal, de construção obsessiva com as palavras e as
ideias, palavras de uma concretude absoluta. Parece pintar em vez de
escrever.
No cemitério de Mondrian: Poesia referencial
“(...)
para chegar ao pouco
em que umas poucas coisas
revelam-se, compactas,
recortadas e todas,
e chegar entre as poucas
à coisa coisa e ao miolo
dessa coisa, onde fica
seu esqueleto ou caroço,
que então tem de arear
ao mais limpo, ao perfil
asséptico e preciso
do extremo de polir,
ou senão despolir
até o teto da estopa
ou até o grão grosseiro
de matéria de escolha”
(...)”
Piet Mondrian
Quadro II. 1921
Óleo sobre tela
Ruptura na concepção estética:
rejeição do convencionalismo académico
da pintura figurativa e criação de novas
linguagens artísticas;
autonomia da obra de arte em relação à
realidade concreta;
libertação do artista no processo de
criação;
recusa de qualquer noção de
subjectividade ou de emotividade.
No cemitério de Mondrian: Poesia referencial
• No longo e fluído poema NO CENTENÁRIO DE MONDRIAN, de ágeis versos
– quase sempre heptassílabos (sete sílabas)– J.C. define de maneira mais
clara a matéria de sua poesia, que é a mesma da pintura: cor, forma som...
• A temática de J.C. – como assinalada acima – é recursiva, volta sempre aos
seus recursos de estilo, aos seus temas obsessivos – o canavial, o cemitério,
a carnatura. Um dentre esses temas, sem dúvida, é Mondrian um pintor da
depuração da imagem, reduzida a seus elementos mínimos, de pura forma
e pura cor. Ele chega a poucas coisas, ao miolo da coisa, à coisa-coisa,
compacta, revelada, plasmada na tela, no poema...
• Um figurativo geométrico, como J. C., materializa a linguagem e usa
referências dessa plasticidade: Mondrian, Miguel Hernádez, Picasso...
Antiode: Poesia antidiscursiva
• JC procura com esse traço combater à duas pressões:
• À primeira é o afastamento de uma poesia de imitação diluidora, mais
chegada às abstrações de uma lírica da subjetividade do que ao
concreto da realidade. Ele consegue isso privilegiando a sabedoria
técnica do verso e o retorno programático a formas tradicionais do
poema.
• À segunda ordem de pressões, foi combater a produção de poemas
excessivamente folclóricos, tendendo ao exotismo regional e, às
vezes, chegando mesmo à imitação grotesca de falares
grosseiramente dialetalizados. JC cria poemas como Morte e vida
Severina que são a um só tempo regionais e universais.
Antiode: Poesia antidiscursiva
• A poesia de João Cabral será uma busca incessante de articulação
entre um “lirismo racional” e a exploração do universal pelo regional.
• Como exemplo de “lirismo racional”, o leitor encontra a melhor
resposta no poema "Antiode", uma espécie de declaração de
princípios antipoéticos, incluído no livro Psicologia da Composição.
• "Antiode" buscava realizar uma limpeza nos despojos líricos
tradicionais, precisamente ali onde mais se escondem os ardis da
inconsciência poética, isto é, na unilateralidade entre poesia e
imagem de um “eu que se revela”. JC programa o que será exposto,
fala do mundo em vez de falar de si.
Num sentido limpeza, ainda que pareça irônico o uso da palavra na substituição
que o poeta faz de flor por fezes, que permite, a partir do choque, nas últimas
estrofes do poema, a superação da imagem pela linguagem:
A
D
Poesia, te escrevia:
flor! conhecendo
que és fezes. Fezes
como qualquer,
Poesia, não será esse
o sentido em que
ainda te escrevo:
flor! (Te escrevo:
gerando cogumelos
(raros, frágeis cogumelos) no úmido
calor de nossa boca.
(...)
flor! Não uma
flor, nem aquela
flor-virtude - em
disfarçados urinóis.)
Flor é a palavra
flor, verso inscrito
no verso, como as
manhãs no tempo. (...)
A FÁBULA DE ANFION: Poesia antilírica
• A mitologia diz que o desejo de Anfion era construir um muro para a cidade de
Tebas e isso fora feito ao som da sua lira para que pudesse protegê-la, e que, também,
ficara feliz por tal realização.
• Já no poema de João Cabral, a ação desse personagem assume outras particularidades.
• “Fábula de Anfion” expressa as concepções cabralinas acerca do fazer poético. Para o
Engenheiro da palavra, o poema não precisa de excessos e, por isso, a sua poesia do
“menos” tem sempre o aspecto de “subtração” (SECCHIN, 1999, p.52). Depurar a sua
poesia é o que lhe denota o aspecto do “menos” e “aguça o combate contra o excesso”
(SECCHIN, 1999, p.52).
• No primeiro segmento do poema, “O deserto”, Anfion chega a este e com ele se une,
formando um único ser:
“No deserto, entre a/ paisagem de seu/ vocabulário, Anfion”.
Fábula de Anfion: Poesia antilírica/ Secura,
dureza, aspereza, vazio
1. O Deserto
*
(Ali, é um tempo claro
como a fonte
e na fábula.
Ali, nada sobrou da noite
Como ervas
Entre pedras
Ali, é uma terra branca
E ávida
Como a cal
Ali, não há como pôr vossa tristeza
Como a um livro
Na estante).
A FÁBULA DE ANFION: Poesia antilírica
• Em síntese, este pernambucano nos apresenta Anfion que de
acordo com a mitologia grega era dotado de talento a música e
recebera de Apolo uma lira. Ao som desta lira, construiu a muralha
de Tebas. Edificando pedra sobre pedra sem qualquer esforço.
• Assim, os motivos temáticos são associados por João Cabral:
pedra/palavra; substituindo a lira por uma flauta rústica e
interpretando o mito com a liberdade de criação. Nesta ‘Fábula’
percebemos que Anfion persegue o deserto, e este deserto é uma
terra sedenta. Se a personagem grega busca o árido, então procura
a sede. Transformando-se em amador da coisa amada.
• O deserto é a disciplina de Anfion, é a ordem severa de uma fome.
A FÁBULA DE ANFION: Poesia antilírica
• O deserto e Anfion se registram e se representam pela analogia de um no outro, pois o deserto
traz “no bojo/ as gordas estações” e Anfion “respira/ o deserto”.
• Anfion se confunde/une ao deserto no prisma de linguagem, mas também de corpo/sentidos:
“como se preciso círculo/ estivesse riscando/ na areia, gesto puro/ de resíduos, respira/ o deserto,
Anfion”.
• Além de deserto e Anfion se confundirem, no sentido de revelarem um único ser, a característica
do “menos” vem a aparecer logo na primeira unidade do primeiro segmento, como expressa
estes versos: “ao ar mineral isento/ mesmo da alada/ vegetação, no deserto/ que fogem as
nuvens” .
• A segunda unidade do primeiro segmento elenca o deserto na perspectiva do tempo e do espaço.
E nessa perspectiva, somente a claridade, a brancura se destacam, pois “nada sobrou da noite”.
Além disso, não há lugar para “tristeza”, mas para luminosidade do tempo em um espaço radioso
em que há o silêncio “puro do nada”.
• Além disso, as metáforas dos elementos orgânicos (aspecto de subtração) e elementos
inorgânicos (aspecto de lirismo e de pureza poética) conotam tais características (SECCHIN, 1999)
A FÁBULA DE ANFION: Poesia antilírica
• As duas últimas unidades do poema trazem a fala de um eu, Anfion, negação do espaço
desencadeado pela flauta e o diálogo que ocorre perante o não e a pedra serão a
expressão daquela fala, como bem se vê em tais versos: “Esta cidade, Tebas,/ não a
quisera assim/ de tijolos plantada” .
• Além disso, na quarta estrofe, o que se percebe é o lamento de Anfion perante a obra:
“Desejei longamente/ liso muro, e branco/ puro sol em si/ como qualquer laranja;/ leve
laje sonhei (...)”.
• Ademais, as últimas estrofes do poema expressam a revolta de Anfion perante o
instrumento musical, que é elencada a partir de indagações feitas por ele nas primeiras
estrofes: “uma flauta: como/ dominá-la, cavalo/ solto, que é louco?/ como antecipar/ a
árvore de som/ de tal semente?” .
• A última estrofe do poema confirma a negação de Cabra/Anfion daquilo que
criou/construiu: o poema/muralhas de Tebas: “A flauta, eu a joguei/ aos peixes surdo -/
mudos do mar”. Ao se livrar do instrumento construtor, Anfion renuncia a Tebas e a
região a qual lhe originou: o deserto. Com isso, a poética cabralina se revela pela
negação de qualquer excesso inspirador.
A FÁBULA DE ANFION: Poesia antilírica
• É no “deserto” que Anfion encontra “a lição do vazio”, ou seja, há o aspecto do
“menos”, e, com isso, na terceira unidade do texto o que se perceberá é a
utilização de imagem/elemento que proporcionará a mudança do deserto.
Transformação essa que vai de encontro ao pensamento de Cabral/Anfion acerca
do fazer poético/muralhas: “Ao sol do deserto e/ no silêncio atingido/ como a
uma amêndoa,/ sua flauta seca:/ sem a terra doce/ de água e de sono;/ sem os
grãos do amor/ trazidos na brisa,/ sua flauta seca”
• A flauta seca indica o estéril, o vazio como pressupostos de um sol que “não
intumesce a vida/ como a um pão” nem “choca os velhos/ ovos do mistério”.
• A esterilidade da flauta, a sua secura, faz Anfion pensar ter encontrado o silêncio
tão desejado, o silêncio “mudo cimento” como indicam as últimas estrofes do
primeiro segmento: “sua mudez está assegurada/ se a flauta seca:/ será de mudo
cimento,/ não será de um búzio/ a concha que é o resto/ de dia de seu dia (...)” .
Paisagem do Capibaribe: Poesia
referencial e O social sem o panfletário
• Em A Poesia do
Capibaribe (Cão sem Plumas1950), faz da imagem um
jogo de planos, cujos jogos e
planos aprofundam uma
lucidez na poesia em que seu
verso encarregará a fala de
ser o suporte da realidade
social e concreta. O autor
nela se entrega, com a maior
exatidão interpretativa, a
uma verdadeira e atenta
humildade diante da cena.
Paisagem do Capibaribe
O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão
ora um outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.
Paisagem do Capibaribe: Poesia referencial
e O social sem o panfletário
• As antíteses do Capibaribe aludem as situações concretas de limitação
irracional do homem.
• O protesto/ descrição e revela a radicalidade da dialética do homem é
redefinida em seu convívio com o rio.
• A critica social não é meramente deduzida, como um único significado
positivo do ser homem, é seu conteúdo negativo, isto é, a sua obra de
destruição, pretensão da criatura em apresenta-se como ser.
• O trabalho do Capibaribe e a sua união com outros rios em preparar a
luta, podem ser vistos como uma tradução dos esforços solidários; e
também como progresso da ascese (reflexão espiritual) do deserto o qual
reflete na contínua destilação através da qual os cursos d’água, nos
mangues, enfrentam o mar e lhe impõem como desafio o fruto das ilhas.
• Na poesia e posteriormente na imagem o rio-cão é, imediatamente,
investido de status da trilogia imagística: restos, bala, copos enterrados.
Paisagem do Capibaribe: Poesia referencial
e O social sem o panfletário
• Há em João Cabral uma recusa do lirismo sobre
acontecimentos políticos ou comentários, recusa também
a seus poemas sociais todo caráter de circunstância.
• Se nada ocorre a crítica social na poesia e na imagem,
não tem como dar a vez às forças do conflito; há uma
denúncia de situações através de figuras, porém existem
controvérsias.
• Há uma estratégia de mostrar o desequilíbrio, não
celebrar os que combatem ou, mesmo ainda, apostrofar
os seus beneficiários.
João Cabral de Melo Neto consegue ainda seguir os
estilos dos cantadores populares nordestinos. O
Rio narra as suas próprias experiências históricas e
sociais em tom de prosa popular.
O Rio
ao partir companhia
desta gente dos alagados
que lhe posso deixar,
que conselhos, que recados?
—somente a relação
do nosso comum retirar
só esta relação
tecida em grosso tear./.../
Morte e vida Severina: O social sem o
panfletário
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria.
Como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem falo
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da Serra da Costela,
limites da Paraíba.
O meu nome é Severino,
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos
já finados,Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Morte e vida Severina: O social sem o
panfletário / Secura, dureza, aspereza, vazio
• Morte e Vida Severina, o texto mais popular de João Cabral de Melo
Neto, é um auto de natal do folclore pernambucano e, também, da
tradição ibérica. Foi escrito entre 1954-55.
• Naquela ocasião, Maria Clara Machado, que dirigia o teatro Tablado,
no Rio, pedira que João Cabral escrevesse algo sobre retirantes. O
poeta escreveu, então, um grupo de poemas dramáticos, para "serem
lidos em voz alta" e os dedicou a Rubem Braga e Fernando Sabino,
"que tiveram a ideia deste repertório".
Morte e vida Severina: O social sem o
panfletário
• É por esse motivo que, no poema, João Cabral usa preferencialmente o
verso heptassilábico, a chamada "medida velha", ou redondilha maior,
verso sonoroso e facilmente obtido.
• Morte e Vida Severina estruturalmente está dividida em 18 partes; no
entanto, outra divisão muito nítida pode ser feita quanto à temática: da
parte 1 a 9, compreende-se o périplo(relato de viagem) de Severino até o
Recife, seguindo sempre o rio Capibaribe, ou o "fio da vida" que ele se
dispõe a seguir, mesmo quando o rio lhe falta e dele só encontra a leve
marca no chão crestado pelo sol.
• Da parte 10 a 18, o retirante está no Recife ou em seus arredores e
sofridamente sabe que para ele não há nenhuma saída, a não ser aquela
que presenciou no percurso: a morte.
Morte e vida Severina: O social sem o
panfletário
• Sua linha narrativa segue dois movimentos que aparecem no título: "morte" e "vida". No primeiro, temos
o trajeto de Severino para Recife, em face da opressão econômico-social, Severino tem a força coletiva de
uma personagem típica: representa o retirante nordestino.
• No segundo movimento, o da "vida", o autor não coloca a euforia da ressurreição da vida dos autos
tradicionais, ao contrário, o otimismo que aí ocorre é de confiança no homem, em sua capacidade de
resolver os problemas sociais.
• O auto de natal Morte e Vida Severina possui estrutura dramática: é uma peça de teatro.
• Severino, personagem, se transforma em adjetivo, referindo-se à vida severina, à condição severa, à
miséria.
• O retirante vem do sertão para o litoral, seguindo a trilha do rio Capibaribe. Quando atinge o Recife,
depois de encontrar muitas mortes pelo caminho, desengana-se com o sonho da cidade grande e do mar.
• Resolve então "saltar fora da ponte e da vida", atirando-se no Capibaribe. Enquanto se prepara para
morrer e conversa com seu José e uma mulher anuncia que o filho deste "saltou para dentro da vida"
(nasceu).
• Severino assiste ao auto de natal (encenação comemorativa do nascimento). Seu José, mestre
carpina(carpinteiro), tenta demover Severino da resolução de "saltar fora da ponte e da vida".
Uma Faca só Lâmina: Texto conceitual
• Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;
• assim como uma bala
do chumbo mais pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado;
• qual bala que tivesse um
vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo
• igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,
• relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;
• assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;
• qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto
• de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.
Uma Faca só Lâmina: Texto conceitual
• O poema se compõe de dez seções ou partes, sendo que a primeira
não recebe nenhuma designação e as demais levam por título letras
de A até I. A seção I tem extensão um pouco maior que as demais,
sendo mesmo subdividida em duas por intermédio de um *
(asterisco).
• As estrofes são quadras de seis sílabas em média, com uma rima
toante entre os versos segundo e quarto de cada quadra.
Chama-nos logo a atenção a figura da símile, da constante tentativa
de comparação, onde o primeiro termo parece oculto, encoberto,
ausente: "Assim como uma bala/ (...)/igual a um relógio/(...)/assim
como uma faca"(estrofes I-VI).
Uma Faca só Lâmina: Texto conceitual
• Os três elementos: bala, relógio e faca são o segundo termo da comparação, e
entre eles logo instaura-se uma hierarquia:
"Por isso é que o melhor
dos símbolos usados
é a lâmina cruel
(melhor se de Pasmado):“
• Os elementos faca, bala, relógio vão se alternando numa tentativa constante de
definição de alguma coisa que não sabemos bem o que é, uma vez que o poeta
esconde de nós essa coisa que persegue a partir do conceito dos três elementos:
a faca, a bala e o relógio.
• O poema parece mesmo uma meditação apreensiva e tensa sobre a relação do
homem com a realidade através da linguagem. Essa insistência na definição, essa
meditação já se fazem sentir no subtítulo do poema: "serventia das ideias fixas".
Uma Faca só Lâmina: Texto conceitual
• Uma faca que seja só lâmina, se bem utilizada, e há muitos riscos de corte
ao segurar tal engenho, é um instrumento para cirurgias na tensa relação
entre linguagem e realidade.
"De volta dessa faca,
amiga ou inimiga,
que mais condensa o homem
quanto mais o mastiga;
(...)
e daí à lembrança
que vestiu tais imagens
e é muito mais intensa
do que pode a linguagem,"
(Seção I, est.XI e XIV)
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