MELHORES POEMAS JOÃO CABRAL DE MELO NETO ELEMENTOS POÉTICOS MARCANTES EM ALGUNS POEMAS Adaptado de<http://www.antoniomiranda.com.br/ensaios/METAPOESIA.pdf> Marcas da obra: • • • • • • • • • Atmosfera surrealista (ver A André Masson p. 18) Ideal de rigor formal (ver Frei Caneca p.312) Poesia metalinguística (ver Tecendo a Manhã p. 274 ) Poesia referencial(ver No cemitério de Mondrian p. 284 ) Poesia imagética. (ver Poema de desintoxicação p. 15 ) Poesia antidiscursiva (ver Antiode p.49) Poesia antilírica(ver Fábula de Anfion p. 32) O social sem o panfletário (ver Morte e vida Severina p. 115 ) Secura, dureza, aspereza, vazio (ver Fábula de Anfion p. 32 e Morte e vida Severina p. 115 ) • Texto conceitual: Faca – Bala – Relógio (ver Uma Faca só Lâmina p. 169) Atmosfera surrealista : André Masson • Nasceu em 1896, em Balagny (cidade de mineração), na França. Aos doze mudou-se com a família para Bruxelas e iniciou seus estudos na Academia de Belas Artes. Em 1912 foi volta a Paris, dois anos depois ganhou bolsa para estudar a técnica de afresco na Toscana, Itália. • Inicialmente, sua obra foi influenciada pelo Cubismo e por Juan Gris. André Masson Paysage Matriarcale, 1941 A André Masson Imagens de sonhos Com peixes e cavalos sonâmbulos pintas a obscura metafísica do limbo. Formas primitivas fecham os olhos escafandros ocultam luzes frias invisíveis na superfície pálpebras não batem. Cavalos e peixes guerreiros fauna dentro da terra a nossos pés crianças mortas que nos seguem dos sonhos. Friorentos corremos ao sol gelado de teu país de mina onde guardas o alimento a química o enxofre da noite. Atmosfera surrealista • As imagens no poema, não são geradas por parâmetros lógicos, mas através das exigências da imaginação criativa. • O poeta recusa a frase clara, nítida e significativa que define a poesia realista e tende para linguagem hermética, para o mistério, para o fluir encantatório. • Essa poesia será insistentemente sugerida por ambiente onírico, traduzida em uma atmosfera rarefeita, carregada de sombra, nuvens e espaços silenciosos. • Valendo-se de símiles ditados pela paisagem dos sonhos o poema afirma suas imagens nos dizendo algo sobre o mundo e sobre si mesmo. Atmosfera surrealista Cubismo: figuras puras As nuvens são cabelos Crescendo como rios; São os gestos brancos da cantora muda; Antítese são estátuas em voo à beira de um mar; a fauna e a flora leves de países de vento; Comparação Sinestesia são o olho pintado escorrendo imóvel; e a mulher que se debruça nas varandas do sono; Antítese Metáfora Metáfora Metáfora são a morte (a espera da) atrás dos olhos fechados; a medicina, branca! Nossos dias brancos. Metáfora AS NUVENS • Em “As nuvens”, poema inaugural do livro, observa-se a presença simultânea de cubismo e surrealismo. • Aí, o branco da veia onírica enfatiza a inconsistência, o difuso dos seres e das coisas, enquanto o branco da inclinação para o fazer consciente incorpora o significado da depuração, do despojamento, da lucidez. O engenheiro A luz, o sol o ar livre envolvem o sonho do engenheiro. O engenheiro sonha coisas claras: superfícies, tênis, um copo de água. (Em certas tardes nós subíamos Metonímia Ao edifício. A cidade diária, Como um jornal que todos liam, Comparação Ganhava um pulmão de cimento e vidro). Metáfora O lápis, o esquadro, o papel; o desenho, o projeto, o número: o engenheiro pensa o mundo justo, mundo que nenhum véu encobre. A água, o vento a claridade, De um lado o rio, no alto as nuvens, Situavam na natureza o edifício Crescendo de suas forças simples. O engenheiro : a composição da imagem • O sonho, aqui, já não é mais o sonho do poeta dormindo na “noite furiosa”, mas o sonho fora do sono. • Por essa estratégia de controle, o poeta-engenheiro transforma as “coisas claras” que, mesmo se sob o signo da “luz”, do “sol” e do “ar livre”, ainda são apenas “sonhadas”, no “mundo justo/mundo que nenhum véu encobre”, do engenheiro. • Vemos, assim, que no adjetivo “claras”, o sema referente a cor é reduzido à noção de pureza, despojamento, precisão, fazendo um paralelismo com “justo”. • “Justo”, aqui, segundo muitos dos críticos de João Cabral, não remete a “justiça”, mas a “justeza”, exatidão. FREI CANECA : Ideal de rigor formal • O Auto do Frade, de 1984, é uma poesia de fundo histórico falando sobre a vida e destino de Frei Caneca, condenado à morte em 1825 por estar envolvido na Confederação do Equador. Um poema para vozes, exemplo do teatro poético do autor, João Cabral de Melo Neto. • Nesta obra, o autor passa do social (também em Morte e vida severina) ao histórico, sem que haja uma negação do primeiro, mas sim a sua incorporação, não através de uma apreensão de incidentes apenas narrativos (o que, sem dúvida, compõe também o quadro da narrativa histórica), mas pela exploração poética das tensões básicas, encarnadas por Frei Caneca, entre a razão pragmática do político rebelde e as elucubrações mais abstratas, lógicas, retóricas, filosóficas. • O poema retoma o último dia do líder carmelita. O povo o vê caminhando para a morte: Auto do frade • Personagens do auto • Frei Caneca (Joaquim do Amor Divino Rabelo) -dedicou-se à Igreja desde cedo sendo adorado e aclamado pela população, que o tinha como um homem dedicado, sereno e prestativo aos olhos de Deus. É considerado uma figura da história real do Brasil, pois participou de um movimento revolucionário que queria a formação da República. Tal movimento ocorreu em 1817, denominado Confederação do Equador, foi um dos líderes. Enfrentou com bravura o imperador e lutou pelo Brasil, e mesmo condenado se mostrou digno e confiante. • Pessoas de Recife - espectadores e formadores do cortejo que acompanhou todo o trajeto de Frei Caneca da cadeia à praça. Não impediram sua execução, apenas faziam comentários e contavam histórias entre si. Apesar de ouvirem o sermão do frei e de vivenciar seu sofrimento não ousaram retirá-lo daquela situação de morte. • Oficiais da Justiça - eram os responsáveis pela condenação do Frei pertenciam a Comissão Militar do Imperador, se apresentaram duros e insensíveis na condução do frade. Auto do frade: Enredo • O Auto do frade tem como assunto o dia da morte do rebelde frei Caneca que já estava preso há mais de um ano. • Estava sendo preparado o cortejo, a população já se acumulava do lado de fora da cadeia. O frei tentava dormir enquanto aguardava seu enforcamento. • Como o juiz não havia chegado ao Tribunal de Justiça por causa de uma viagem de três meses, o corregedor decidiu que o Frei Caneca seria enforcado em praça pública, após percorrer a cidade com uma corda enrolada no pescoço. • Assim, Frei Caneca foi retirado da prisão e muito fraco percorreu as ruas de Recife, várias pessoas o seguiram em pleno meio da rua, em cada esquina mais gente se aproximava. Em todos os lugares existiam espectadores do acontecimento abrangendo até mesmo o governador e toda a sociedade em geral. • Frei Caneca chegou a dizer algumas palavras, mas foi obrigado a calar-se e até os gestos lhe foram proibidos. Seu comportamento podia representar grande perigo aos oficiais que pregavam ser ele um homem condenado à morte por trair o Rei e pretender o separatismo com a Confederação do Equador (1824). • Lentamente o cortejo vai levando o Frei que andava calado e sereno. • Ao chegar à Igreja do Terço, Frei Caneca foi colocado no centro de um círculo formando de policiais, com intuito de ninguém tentar soltá-lo ou se rebelar. Auto do frade: Enredo • Nesse evento Frei Caneca foi entregue ao oficial enviado pela Comissão do imperador que o condenou à morte. • O Frei solenemente andou no interior de um círculo de policias. • Ao chegar na Praça do Forte, onde seria executada a sentença de réu, o carrasco designado para matar o padre, recuou temendo a ação sobre ele de alguma força superior. Então todos os carrascos se recusaram a enforcar o padre, alegando que ele foi visto "voando no céu". Mesmo espancados resistiram a enforcá-lo. • O Oficial de Justiça ofereceu perdão dos crimes aos presos, comida farta, emprego, cama e mesa a quem fosse voluntário para a execução. Contudo ninguém se disponibilizou, nem mesmos os presos que queriam liberdade. • Ocorreu então que após algumas horas de espera, decidiu-se formar um pelotão de doze homens para o fuzilarem, pois nenhum destes ousaria fazê-lo sozinho. • Assim, Frei Caneca foi morto fuzilado. Auto do frade: Ideal de rigor formal A/cor/do /fo/ra/ de /mim /(7) co/mo há/ tem/pos /não/ fa/zi/a (7) A/cor/do /cla/ro,/ de/ to/do, (7) a/cor/do /com /to/da a/ vi/da, (7) com/ to/dos /cin/co/ sen/ti/dos (7) e so/bre/tu/do/ co/m a /vis/ta (7) que/ den/tro /des/ta/ pri/são (7) pa/ra /mim /não /e/xis/ti/a. (7) A/cor/do/ fo/ra /de /mim (7) co/mo/ vi/da a/po/dre/ci/da. (7) acordar é ter saída. Acordar é reacordar-se ao que em nosso redor gira. Mesmo quando alguém acorda para um fiapo de vida como o que tanto aparato que me cerca me anuncia: esse bosque de espingardas mudas, mas Acordar não é de dentro, logo assassinas, Auto do frade: Ideal de rigor formal - Ei/-lo /que vem /des/cen/do a/ es/ca/da, de/grau/ a de/grau. /Co/mo/ vem /cal/mo. - Crê/ no /mun/do,e /quis/ com/ser/tá-lo. - E a/in/da /crê,/ já /com/de/na/do? - Sa/be/ que/ não o /con/ser/ta/rá. - Mas/ que /vi/rão /pa/ra i/mi/tá/-lo. • Em Auto do Frade, a estrutura textual é diversa: os monólogos são construídos em redondilhas maiores(7 sílabas), enquanto os demais versos são octossílabos. A linguagem é criada não para documentar, mas para representar, concisa e contundentemente, uma situação limite. As rimas são, em sua maioria, toantes. • Os versos exprimem a força política e revolucionária das palavras de Frei Caneca. • A morte, assunto constante da obra poética de João Cabral de Melo Neto, é também tema central em Auto do frade. TECENDO AS MANHÃS Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão. Poesia metalinguística: TECENDO AS MANHÃS • Não devemos deixar de considerar a abordagem metalinguística deste poema, e aproximar o canto do galo “tecendo a manhã” com o canto do poeta sendo tecido, verso a verso, fio a fio no poema. • Podemos notar na divisão de estrofes dois movimentos bem assinalados, na primeira estrofe os galos convocam a manhã que se apresenta no verso dez e domina a segunda estrofe de forma leve (aérea), quando convocada no verso dezesseis: “que, tecido, se eleva por si: luz balão.” • Pode-se considerar o eu - lírico transitando por duas dimensões de tempo, presente e futuro, e duas situações: individual e coletiva. • Nestas oposições um único canto não será capaz de trazer a luz e anular a escuridão, torna-se necessário que o galo convoque todos os galos e que eles possam desta forma invocar a manhã, que pela alocação do artigo definido transforma-se em amanhã, numa clara projeção de futuro. Poesia metalinguística: TECENDO AS MANHÃS • 1) O poema começa com uma paráfrase do provérbio “uma andorinha sozinha não faz verão”. • 2) “Tecer”, “abrir”, “começar”, “costurar”, “pintar”, “unir”, “fiar” e “entrelaçar”, são os verbos que dão o sentido de uma "tecimento" coletivo de muitos autores anônimos. • 3) A metáfora mais saliente parece estar ligada a "tecer". Tecido por todos, ganha forma e constrói a tenda para todos, (para se abrigar do sol?). • 4) Na 1ª estrofe a presença de “galo/galos” está presente em todos os versos, exceto nos versos 3, 6, 9 (múltiplos de 3? ), inclusive, produzindo as rimas finais colabora na construção de sentido de movimento, de construção do tecido, “um grito de galo” que vai passando de um a outro, tecendo a manhã (amanhã ?). • 5) Metáfora: “ se cruzem / os fios de sol de seus gritos de galo”; " se erguendo tenda, onde entrem todos"; "se entretendendo para todos". • 6) Neologismo: “entretendendo”. Tendo entre si/ entreter entendendo? • 7) O poema é composto por 120 palavras, das quais 7 palavras são "galo(s)". Repete a palavra "todos" 4 vezes, "manhã" e "toldo" 2. Poesia metalinguística: TECENDO AS MANHÃS • 8) Aliteração: Há 484 caracteres no poema, dos quais 31 são a letra "t". Somente o verso 14 não possui "t": "(a manhã) que plana livre de armação" [o amanhã sem tramas?]. • 9) Aliteração: Repete o letra "g" 12 vezes espontaneamente, no entanto, a repetição da letra "t" parece intencional. • 10) A palavra "outros" é repetida 6 vezes na 1ª estrofe. A construção do "tecido" depende dos outros. • 11) Metáfora: O galo é retratado como o trabalhador que constrói o futuro, a tenda protetora. • 12) Ele não usa o "canto" do galo, mas o "grito" do galo. Grito evoca alerta, protesto (principalmente da vítima), greves e levantes. • 13) Estaria o poeta sonhando com um futuro construído por todos, livremente, para todos, isento de "armações", intrigas. Um mundo verdadeiramente socialista? Poesia metalinguística: TECENDO AS MANHÃS • Sempre guiado pela lógica, pelo raciocínio, seus poemas evitam análise e exposição do eu e volta-se para o universo dos objetos, das paisagens, dos fatos sociais, jamais apelando para o sentimentalismo. Por isso, o prazer estético que sua poesia pode provocar deriva, sobretudo de uma leitura racional, analítica, não do envolvimento emocional com o texto. Essas características levaram a crítica a ver na obra de João Cabral uma "ruptura com o lirismo" ou a considerar sua expressão poética como "antilírica". Não devemos, entretanto, supor que essa relação do poeta com o mundo concreto, objetivo, produza apenas textos descritivos. Na verdade, suas descrições ora acabam adquirindo valor simbólico, ora acabam denunciando a crítica social que o poeta pretende levar a efeito Outras figuras evidentes: "Um galo sozinho não tece a manhã " : (v.1) - Prosopopeia. " De um que apanhe esse grito que ele " (v.3) – Metáfora - Elipse. " que apanhe o grito que um galo antes "(v.5) – Metáfora – Elipse. " os fios de sol de seus gritos de galo " (v.8) – Eufemismo. (fios de sol= manifestos /protesto) " para que a manhã, desde uma tela tênue, "– Analepse (remeter a ação para o futuro). " se vá tecendo, entre todos os galos ". (v.9 e 10) – Prolepse (remeter a ação para o futuro). " E se encorpando em tela, entre todos, (v.11) " se erguendo tenda, onde entrem todos, " (v.12) " se entretendendo para todos, no toldo " (v.13) – Polissíndeto. "se entretendendo para todos, no toldo "(v.13) – Paronomásia – Neologismo. "(a manhã) que plana livre de armação. " (v.14) - Anáfora. " A manhã, toldo de um tecido tão aéreo "(v.15) - Anáfora – Metáfora. " que, tecido, se eleva por si: luz balão". (v.16) – Metáfora. Poema de desintoxicação: METALINGUAGEM E POESIA IMAGÉTICA Em densas noites com medo de tudo: de um anjo que é cego de um anjo que é mudo. Raízes de árvores Enlaçam-me os sonhos No ar sem aves vagando tristonhos. Eu penso o poema da face sonhada, metade de flor metade apagada. O poema inquieta o papel e a sala. Ante a face sonhada o vazio se cala. Ó face sonhada de um silêncio de lua, na noite da lâmpada pressinto a tua. Ó nascidas manhãs que uma fada vai rindo, sou o vulto longínquo de um homem dormindo. Poema de desintoxicação: METALINGUAGEM E POESIA IMAGÉTICA • METALINGUAGEM: O primeiro da grande série de metapoemas é o POEMA DA DESINTOXICAÇÃO, em que a intimidade ou a convivência do poeta com sua poesia é sempre artesanal, de construção obsessiva com as palavras e as ideias, palavras de uma concretude absoluta. Parece pintar em vez de escrever. • IMAGENS: A intimidade ou a convivência do poeta com sua poesia é sempre artesanal, de construção obsessiva com as palavras e as ideias, palavras de uma concretude absoluta. Parece pintar em vez de escrever. No cemitério de Mondrian: Poesia referencial “(...) para chegar ao pouco em que umas poucas coisas revelam-se, compactas, recortadas e todas, e chegar entre as poucas à coisa coisa e ao miolo dessa coisa, onde fica seu esqueleto ou caroço, que então tem de arear ao mais limpo, ao perfil asséptico e preciso do extremo de polir, ou senão despolir até o teto da estopa ou até o grão grosseiro de matéria de escolha” (...)” Piet Mondrian Quadro II. 1921 Óleo sobre tela Ruptura na concepção estética: rejeição do convencionalismo académico da pintura figurativa e criação de novas linguagens artísticas; autonomia da obra de arte em relação à realidade concreta; libertação do artista no processo de criação; recusa de qualquer noção de subjectividade ou de emotividade. No cemitério de Mondrian: Poesia referencial • No longo e fluído poema NO CENTENÁRIO DE MONDRIAN, de ágeis versos – quase sempre heptassílabos (sete sílabas)– J.C. define de maneira mais clara a matéria de sua poesia, que é a mesma da pintura: cor, forma som... • A temática de J.C. – como assinalada acima – é recursiva, volta sempre aos seus recursos de estilo, aos seus temas obsessivos – o canavial, o cemitério, a carnatura. Um dentre esses temas, sem dúvida, é Mondrian um pintor da depuração da imagem, reduzida a seus elementos mínimos, de pura forma e pura cor. Ele chega a poucas coisas, ao miolo da coisa, à coisa-coisa, compacta, revelada, plasmada na tela, no poema... • Um figurativo geométrico, como J. C., materializa a linguagem e usa referências dessa plasticidade: Mondrian, Miguel Hernádez, Picasso... Antiode: Poesia antidiscursiva • JC procura com esse traço combater à duas pressões: • À primeira é o afastamento de uma poesia de imitação diluidora, mais chegada às abstrações de uma lírica da subjetividade do que ao concreto da realidade. Ele consegue isso privilegiando a sabedoria técnica do verso e o retorno programático a formas tradicionais do poema. • À segunda ordem de pressões, foi combater a produção de poemas excessivamente folclóricos, tendendo ao exotismo regional e, às vezes, chegando mesmo à imitação grotesca de falares grosseiramente dialetalizados. JC cria poemas como Morte e vida Severina que são a um só tempo regionais e universais. Antiode: Poesia antidiscursiva • A poesia de João Cabral será uma busca incessante de articulação entre um “lirismo racional” e a exploração do universal pelo regional. • Como exemplo de “lirismo racional”, o leitor encontra a melhor resposta no poema "Antiode", uma espécie de declaração de princípios antipoéticos, incluído no livro Psicologia da Composição. • "Antiode" buscava realizar uma limpeza nos despojos líricos tradicionais, precisamente ali onde mais se escondem os ardis da inconsciência poética, isto é, na unilateralidade entre poesia e imagem de um “eu que se revela”. JC programa o que será exposto, fala do mundo em vez de falar de si. Num sentido limpeza, ainda que pareça irônico o uso da palavra na substituição que o poeta faz de flor por fezes, que permite, a partir do choque, nas últimas estrofes do poema, a superação da imagem pela linguagem: A D Poesia, te escrevia: flor! conhecendo que és fezes. Fezes como qualquer, Poesia, não será esse o sentido em que ainda te escrevo: flor! (Te escrevo: gerando cogumelos (raros, frágeis cogumelos) no úmido calor de nossa boca. (...) flor! Não uma flor, nem aquela flor-virtude - em disfarçados urinóis.) Flor é a palavra flor, verso inscrito no verso, como as manhãs no tempo. (...) A FÁBULA DE ANFION: Poesia antilírica • A mitologia diz que o desejo de Anfion era construir um muro para a cidade de Tebas e isso fora feito ao som da sua lira para que pudesse protegê-la, e que, também, ficara feliz por tal realização. • Já no poema de João Cabral, a ação desse personagem assume outras particularidades. • “Fábula de Anfion” expressa as concepções cabralinas acerca do fazer poético. Para o Engenheiro da palavra, o poema não precisa de excessos e, por isso, a sua poesia do “menos” tem sempre o aspecto de “subtração” (SECCHIN, 1999, p.52). Depurar a sua poesia é o que lhe denota o aspecto do “menos” e “aguça o combate contra o excesso” (SECCHIN, 1999, p.52). • No primeiro segmento do poema, “O deserto”, Anfion chega a este e com ele se une, formando um único ser: “No deserto, entre a/ paisagem de seu/ vocabulário, Anfion”. Fábula de Anfion: Poesia antilírica/ Secura, dureza, aspereza, vazio 1. O Deserto * (Ali, é um tempo claro como a fonte e na fábula. Ali, nada sobrou da noite Como ervas Entre pedras Ali, é uma terra branca E ávida Como a cal Ali, não há como pôr vossa tristeza Como a um livro Na estante). A FÁBULA DE ANFION: Poesia antilírica • Em síntese, este pernambucano nos apresenta Anfion que de acordo com a mitologia grega era dotado de talento a música e recebera de Apolo uma lira. Ao som desta lira, construiu a muralha de Tebas. Edificando pedra sobre pedra sem qualquer esforço. • Assim, os motivos temáticos são associados por João Cabral: pedra/palavra; substituindo a lira por uma flauta rústica e interpretando o mito com a liberdade de criação. Nesta ‘Fábula’ percebemos que Anfion persegue o deserto, e este deserto é uma terra sedenta. Se a personagem grega busca o árido, então procura a sede. Transformando-se em amador da coisa amada. • O deserto é a disciplina de Anfion, é a ordem severa de uma fome. A FÁBULA DE ANFION: Poesia antilírica • O deserto e Anfion se registram e se representam pela analogia de um no outro, pois o deserto traz “no bojo/ as gordas estações” e Anfion “respira/ o deserto”. • Anfion se confunde/une ao deserto no prisma de linguagem, mas também de corpo/sentidos: “como se preciso círculo/ estivesse riscando/ na areia, gesto puro/ de resíduos, respira/ o deserto, Anfion”. • Além de deserto e Anfion se confundirem, no sentido de revelarem um único ser, a característica do “menos” vem a aparecer logo na primeira unidade do primeiro segmento, como expressa estes versos: “ao ar mineral isento/ mesmo da alada/ vegetação, no deserto/ que fogem as nuvens” . • A segunda unidade do primeiro segmento elenca o deserto na perspectiva do tempo e do espaço. E nessa perspectiva, somente a claridade, a brancura se destacam, pois “nada sobrou da noite”. Além disso, não há lugar para “tristeza”, mas para luminosidade do tempo em um espaço radioso em que há o silêncio “puro do nada”. • Além disso, as metáforas dos elementos orgânicos (aspecto de subtração) e elementos inorgânicos (aspecto de lirismo e de pureza poética) conotam tais características (SECCHIN, 1999) A FÁBULA DE ANFION: Poesia antilírica • As duas últimas unidades do poema trazem a fala de um eu, Anfion, negação do espaço desencadeado pela flauta e o diálogo que ocorre perante o não e a pedra serão a expressão daquela fala, como bem se vê em tais versos: “Esta cidade, Tebas,/ não a quisera assim/ de tijolos plantada” . • Além disso, na quarta estrofe, o que se percebe é o lamento de Anfion perante a obra: “Desejei longamente/ liso muro, e branco/ puro sol em si/ como qualquer laranja;/ leve laje sonhei (...)”. • Ademais, as últimas estrofes do poema expressam a revolta de Anfion perante o instrumento musical, que é elencada a partir de indagações feitas por ele nas primeiras estrofes: “uma flauta: como/ dominá-la, cavalo/ solto, que é louco?/ como antecipar/ a árvore de som/ de tal semente?” . • A última estrofe do poema confirma a negação de Cabra/Anfion daquilo que criou/construiu: o poema/muralhas de Tebas: “A flauta, eu a joguei/ aos peixes surdo -/ mudos do mar”. Ao se livrar do instrumento construtor, Anfion renuncia a Tebas e a região a qual lhe originou: o deserto. Com isso, a poética cabralina se revela pela negação de qualquer excesso inspirador. A FÁBULA DE ANFION: Poesia antilírica • É no “deserto” que Anfion encontra “a lição do vazio”, ou seja, há o aspecto do “menos”, e, com isso, na terceira unidade do texto o que se perceberá é a utilização de imagem/elemento que proporcionará a mudança do deserto. Transformação essa que vai de encontro ao pensamento de Cabral/Anfion acerca do fazer poético/muralhas: “Ao sol do deserto e/ no silêncio atingido/ como a uma amêndoa,/ sua flauta seca:/ sem a terra doce/ de água e de sono;/ sem os grãos do amor/ trazidos na brisa,/ sua flauta seca” • A flauta seca indica o estéril, o vazio como pressupostos de um sol que “não intumesce a vida/ como a um pão” nem “choca os velhos/ ovos do mistério”. • A esterilidade da flauta, a sua secura, faz Anfion pensar ter encontrado o silêncio tão desejado, o silêncio “mudo cimento” como indicam as últimas estrofes do primeiro segmento: “sua mudez está assegurada/ se a flauta seca:/ será de mudo cimento,/ não será de um búzio/ a concha que é o resto/ de dia de seu dia (...)” . Paisagem do Capibaribe: Poesia referencial e O social sem o panfletário • Em A Poesia do Capibaribe (Cão sem Plumas1950), faz da imagem um jogo de planos, cujos jogos e planos aprofundam uma lucidez na poesia em que seu verso encarregará a fala de ser o suporte da realidade social e concreta. O autor nela se entrega, com a maior exatidão interpretativa, a uma verdadeira e atenta humildade diante da cena. Paisagem do Capibaribe O rio ora lembrava a língua mansa de um cão, ora o ventre triste de um cão ora um outro rio de aquoso pano sujo dos olhos de um cão. Paisagem do Capibaribe: Poesia referencial e O social sem o panfletário • As antíteses do Capibaribe aludem as situações concretas de limitação irracional do homem. • O protesto/ descrição e revela a radicalidade da dialética do homem é redefinida em seu convívio com o rio. • A critica social não é meramente deduzida, como um único significado positivo do ser homem, é seu conteúdo negativo, isto é, a sua obra de destruição, pretensão da criatura em apresenta-se como ser. • O trabalho do Capibaribe e a sua união com outros rios em preparar a luta, podem ser vistos como uma tradução dos esforços solidários; e também como progresso da ascese (reflexão espiritual) do deserto o qual reflete na contínua destilação através da qual os cursos d’água, nos mangues, enfrentam o mar e lhe impõem como desafio o fruto das ilhas. • Na poesia e posteriormente na imagem o rio-cão é, imediatamente, investido de status da trilogia imagística: restos, bala, copos enterrados. Paisagem do Capibaribe: Poesia referencial e O social sem o panfletário • Há em João Cabral uma recusa do lirismo sobre acontecimentos políticos ou comentários, recusa também a seus poemas sociais todo caráter de circunstância. • Se nada ocorre a crítica social na poesia e na imagem, não tem como dar a vez às forças do conflito; há uma denúncia de situações através de figuras, porém existem controvérsias. • Há uma estratégia de mostrar o desequilíbrio, não celebrar os que combatem ou, mesmo ainda, apostrofar os seus beneficiários. João Cabral de Melo Neto consegue ainda seguir os estilos dos cantadores populares nordestinos. O Rio narra as suas próprias experiências históricas e sociais em tom de prosa popular. O Rio ao partir companhia desta gente dos alagados que lhe posso deixar, que conselhos, que recados? —somente a relação do nosso comum retirar só esta relação tecida em grosso tear./.../ Morte e vida Severina: O social sem o panfletário Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria. Como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias. Mas isso ainda diz pouco: há muitos na freguesia, por causa de um coronel que se chamou Zacarias e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria. Como então dizer quem falo ora a Vossas Senhorias? Vejamos: é o Severino da Maria do Zacarias, lá da Serra da Costela, limites da Paraíba. O meu nome é Severino, Mas isso ainda diz pouco: se ao menos mais cinco havia com nome de Severino filhos de tantas Marias mulheres de outros tantos já finados,Zacarias, vivendo na mesma serra magra e ossuda em que eu vivia. Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida). Morte e vida Severina: O social sem o panfletário / Secura, dureza, aspereza, vazio • Morte e Vida Severina, o texto mais popular de João Cabral de Melo Neto, é um auto de natal do folclore pernambucano e, também, da tradição ibérica. Foi escrito entre 1954-55. • Naquela ocasião, Maria Clara Machado, que dirigia o teatro Tablado, no Rio, pedira que João Cabral escrevesse algo sobre retirantes. O poeta escreveu, então, um grupo de poemas dramáticos, para "serem lidos em voz alta" e os dedicou a Rubem Braga e Fernando Sabino, "que tiveram a ideia deste repertório". Morte e vida Severina: O social sem o panfletário • É por esse motivo que, no poema, João Cabral usa preferencialmente o verso heptassilábico, a chamada "medida velha", ou redondilha maior, verso sonoroso e facilmente obtido. • Morte e Vida Severina estruturalmente está dividida em 18 partes; no entanto, outra divisão muito nítida pode ser feita quanto à temática: da parte 1 a 9, compreende-se o périplo(relato de viagem) de Severino até o Recife, seguindo sempre o rio Capibaribe, ou o "fio da vida" que ele se dispõe a seguir, mesmo quando o rio lhe falta e dele só encontra a leve marca no chão crestado pelo sol. • Da parte 10 a 18, o retirante está no Recife ou em seus arredores e sofridamente sabe que para ele não há nenhuma saída, a não ser aquela que presenciou no percurso: a morte. Morte e vida Severina: O social sem o panfletário • Sua linha narrativa segue dois movimentos que aparecem no título: "morte" e "vida". No primeiro, temos o trajeto de Severino para Recife, em face da opressão econômico-social, Severino tem a força coletiva de uma personagem típica: representa o retirante nordestino. • No segundo movimento, o da "vida", o autor não coloca a euforia da ressurreição da vida dos autos tradicionais, ao contrário, o otimismo que aí ocorre é de confiança no homem, em sua capacidade de resolver os problemas sociais. • O auto de natal Morte e Vida Severina possui estrutura dramática: é uma peça de teatro. • Severino, personagem, se transforma em adjetivo, referindo-se à vida severina, à condição severa, à miséria. • O retirante vem do sertão para o litoral, seguindo a trilha do rio Capibaribe. Quando atinge o Recife, depois de encontrar muitas mortes pelo caminho, desengana-se com o sonho da cidade grande e do mar. • Resolve então "saltar fora da ponte e da vida", atirando-se no Capibaribe. Enquanto se prepara para morrer e conversa com seu José e uma mulher anuncia que o filho deste "saltou para dentro da vida" (nasceu). • Severino assiste ao auto de natal (encenação comemorativa do nascimento). Seu José, mestre carpina(carpinteiro), tenta demover Severino da resolução de "saltar fora da ponte e da vida". Uma Faca só Lâmina: Texto conceitual • Assim como uma bala enterrada no corpo, fazendo mais espesso um dos lados do morto; • assim como uma bala do chumbo mais pesado, no músculo de um homem pesando-o mais de um lado; • qual bala que tivesse um vivo mecanismo, bala que possuísse um coração ativo • igual ao de um relógio submerso em algum corpo, ao de um relógio vivo e também revoltoso, • relógio que tivesse o gume de uma faca e toda a impiedade de lâmina azulada; • assim como uma faca que sem bolso ou bainha se transformasse em parte de vossa anatomia; • qual uma faca íntima ou faca de uso interno, habitando num corpo como o próprio esqueleto • de um homem que o tivesse, e sempre, doloroso de homem que se ferisse contra seus próprios ossos. Uma Faca só Lâmina: Texto conceitual • O poema se compõe de dez seções ou partes, sendo que a primeira não recebe nenhuma designação e as demais levam por título letras de A até I. A seção I tem extensão um pouco maior que as demais, sendo mesmo subdividida em duas por intermédio de um * (asterisco). • As estrofes são quadras de seis sílabas em média, com uma rima toante entre os versos segundo e quarto de cada quadra. Chama-nos logo a atenção a figura da símile, da constante tentativa de comparação, onde o primeiro termo parece oculto, encoberto, ausente: "Assim como uma bala/ (...)/igual a um relógio/(...)/assim como uma faca"(estrofes I-VI). Uma Faca só Lâmina: Texto conceitual • Os três elementos: bala, relógio e faca são o segundo termo da comparação, e entre eles logo instaura-se uma hierarquia: "Por isso é que o melhor dos símbolos usados é a lâmina cruel (melhor se de Pasmado):“ • Os elementos faca, bala, relógio vão se alternando numa tentativa constante de definição de alguma coisa que não sabemos bem o que é, uma vez que o poeta esconde de nós essa coisa que persegue a partir do conceito dos três elementos: a faca, a bala e o relógio. • O poema parece mesmo uma meditação apreensiva e tensa sobre a relação do homem com a realidade através da linguagem. Essa insistência na definição, essa meditação já se fazem sentir no subtítulo do poema: "serventia das ideias fixas". Uma Faca só Lâmina: Texto conceitual • Uma faca que seja só lâmina, se bem utilizada, e há muitos riscos de corte ao segurar tal engenho, é um instrumento para cirurgias na tensa relação entre linguagem e realidade. "De volta dessa faca, amiga ou inimiga, que mais condensa o homem quanto mais o mastiga; (...) e daí à lembrança que vestiu tais imagens e é muito mais intensa do que pode a linguagem," (Seção I, est.XI e XIV)