CONCILIO VATICANO II ECLESIOLOGIA Dom Pedro Carlos Cipolini INTRODUÇÃO Celebramos este ano o cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II. Este foi um dos temas tratados na 50ª Assembléia da CNBB. O concílio Vaticano II, vigésimo terceiro da história da Igreja Católica, foi solenemente inaugurado na manhã de 11 de outubro de 1962, depois de três anos de tempestuosa gestação. Irá completar, portanto, cinquenta anos e temos muito o que celebrar, pois o Vaticano II foi o concílio que atualizou a Igreja Católica a ponto de se poder dizer que: para a Igreja o novo milênio começou com ele. Sob os olhares das câmaras de TV, mais de 2.500 bispos, desfilaram lentamente no majestoso cenário da basílica de S.Pedro acompanhados pelo som dos sinos das igrejas de Roma. Ninguém omitiu o fato de que em meio às brancas mitras dos bispos, e à púrpura dos cardeais, encontrava-se o grupo heterogêneo dos observadores das Igrejas dissidentes de Roma: ortodoxos, anglicanos, metodistas, luteranos. O desejo de união entre os cristãos, embora fosse ainda um ideal distante, conquistava os corações. O ecumenismo era um apelo renovado e contagiante. O papa João XXIII, no discurso de abertura, não se limitou como se esperava a dizer frases convencionais de saudação. Esconjurou o pessimismo e, em nome da fé na redenção operada por Jesus Cristo, explicou com firmeza o que o concílio deveria fazer para a humanidade, traçando uma direção programática. O concílio não era um fim, era um meio. O fim era a adequação da Igreja ao mundo que a circundava. Adequação no sentido de dialogar para fazer-se compreender e poder transmitir o perene depósito da fé. Com tranqüilidade o papa apontava os novos caminhos, para os quais a providência de Deus queria conduzir a Igreja. De acordo com os desejos do papa, os bispos se comprometeram a ser positivos, nada de condenações. As divergências políticas deveriam ser ignoradas, os esforços seriam concentrados no objetivo principal do concílio: tornar a Igreja sintonizada com o ritmo do seu tempo, para proclamar o Evangelho de forma compreensível. O concílio foi o momento crucial, o mais importante momento da Igreja no milênio que passou, pois foi o momento do encontro da Igreja consigo mesma e com a História. O papa João XXIII colocou as bases para que o concílio prosseguisse. Em um organismo vivo, os conflitos são normais, as células novas vão tomando o espaço das células antigas, sem ruptura, mas numa linha de continuidade, formando o mesmo organismo. Porém, o legado do papa foi a confiança inabalável em Deus e no futuro da humanidade, amada por Deus. Quando lhe admoestavam para que não se ferisse a Tradição, ele respondia: “A Tradição? Mas vós sabeis que coisa é? É o progresso que foi conseguido ontem, como o progresso que devemos conseguir hoje constituirá a Tradição de amanhã”. Com a direção sábia, prudente e dialogante do novo papa, Paulo VI que substitui João XXIII, morto após a primeira sessão do concílio, o concílio pode prosseguir até o final conseguindo um bom êxito e, deixando-nos a missão de colocar em prática seus ensinamentos e decisões. A grande mudança que o concílio iniciou foi à mudança na mentalidade. A fé é a mesma, nada mudou! Muda a maneira de vivê-la numa realidade que muda constantemente e exige da Igreja adaptação, renovação (cf.: Ecclesia semper reformanda in LG 22; DH 21). A Igreja é sempre necessitada de se adaptar, converter, para que brilhe nela o rosto de seu Senhor, Jesus Cristo. O Vaticano II traçou uma meta, no sentido de imprimir uma face mais humana à Igreja que está peregrinando no mundo. Hoje ao comemorarmos cinquenta anos deste evento histórico, que parece tão distante, podemos perceber sua influência. O concílio tirou o medo da Igreja que estava entrincheirada, lutando com as armas da apologética defensiva, desconfiada de toda novidade. Ela se torna missionária. O Vaticano II muda a postura da Igreja, ele propõe como o apóstolo Paulo: “examinai tudo (diálogo), ficai com o que for bom” (1Ts 5,21). Descobrese a bondade original, ao invés de somente concentrarse na condenação do pecado original... O Papa João Paulo II que foi um dos bispos que fizeram o concílio, escreve em sua carta apostólica programática para o terceiro milênio (Novo millennio ineunte n.57): “Quanta riqueza, amados irmãos e irmãs, estão presentes nas diretrizes que o Concílio Vaticano II nos deu!... sinto ainda mais intensamente o dever de indicar o Concílio como a grande graça de que se beneficiou a Igreja do século XX, nele se encontra uma bússola segura para nos orientar no caminho do século que se inicia”. Se perguntarmos quais os conceitos chaves que o Concílio Vaticano II nos legou poderemos enumera as seguintes: 1) Aggiornamento (renovação), 2) Pastoral, 3) Diálogo, 4) História, 5) Pessoa Humana, 6) Povo de Deus/ Colegialidade e 7) Serviço/Liberdade. Vemos portanto, que a riqueza do Concílio Vaticano II ainda está toda por ser conhecida e praticada. Estamos apenas começando. Talvez tenhamos assimilado menos da metade da substância do Concílio Vaticano II. É sempre necessário retomá-lo e estuda-lo. "O papa João queria um concílio de transição de épocas, um concílio que fizesse passar a Igreja da época pós-tridentina e, de certa forma, da plurissecular fase constantiniana para uma fase de testemunho e anúncio, recuperando os elementos fortes e permanentes da Tradição, estimados capazes de alimentar e garantir a fidelidade evangélica de transição tão árdua." J. ALBERIGO, História do Concílio Vaticano II, V. I, Vozes, Petrópolis, 1996, p. 57 "O tema do Vaticano II era: unidade na pluralidade" Card. F. Köning "O Vaticano II foi um concílio da Igreja sobre a Igreja" K. Rahner "O Vaticano II redescobriu a história" Lonergan "O Vaticano II quis mostrar que o comunitário vem primeiro que a organização. A verdade e o carisma vem primeiro que o direito" anunciado em 25/01/1959, convocado em 25/12/1961 inaugurado em 11/10/1962. Os quatro períodos das sessões conciliares: 1962 (11/10 a 08/12) -1963 (19/09 a 04/12) - 1964 (15/09 a 21/11) -1965 (14/09 a 08/12) O CONCÍLIO PERMITE UMA DUPLA LEITURA: A DA CONTINUIDADE (NOVIDADE OU HERMENÊUTICA DA NOVIDADE NA CONTINUIDADE) SEM RUPTURA. Continuidade: acentua a unidade entre os concílios anteriores, ressaltando o que é permanente e valorizando a Tradição. Esta leitura agrada mais os governantes, a hierarquia que se identificam com a instituição. Há um bloqueamento das mudanças: “nada de novo sob o sol”(Ecl 1,10). Novidade: acentua a novidade, as modificações, ressaltando os pontos de ruptura. Valoriza o lado profético do concílio, a ação do Espírito e os sinais dos tempos.Provoca a dimensão criativa das pessoas. Corre o risco de subjetivismo, secularização das pessoas e funções sagradas. Porém foi esta interpretação que favoreceu os avanços pós-conciliares. MUDANÇA DO SUJEITO ECLESIAL Foi a mudança do sujeito eclesial (dimensão de consciência, ação e auto-identidade)a pedra de toque das mudanças do Vaticano II. Os padres conciliares se reuniram para falar ao sujeito social rural com uma visão pré-moderna (obediente, a-crítico e pacífico) – alienação). Começou o concílio com o sujeito tradicional rural e terminou falando ao sujeito moderno ( homem da cidade, crítico e perguntador: sabe quem é, o que quer e para onde vai – participação). MOVIMENTOS A porta de entrada do sujeito moderno na Igreja foram os diversos movimentos que vinham surgindo em seu interior (J. B. Libânio). Estes movimentos carregavam no bojo os traços do sujeito eclesial moderno. • Movimento bíblico, cresce o interesse pela leitura e estudo da Bíblia • Movimento Litúrgico faz com que a liturgia se liberte do canonicismo • Movimento Ecumênico que deseja acabar com o “escândalo” da divisão cristã MOVIMENTOS • Movimento Missionário: o centralismo cede espaço á participação • Movimento Leigo promove a participação do leigo na liturgia e missão • Movimento Teológico que tem como eixo a “História da Salvação” • Movimento Social derruba as bases do absolutismo eclesial e político, a Igreja se abre á questão social (Formulase uma Doutrina Social da Igreja) 1 – ANTECEDENTES REMOTOS 1.1 – A SEPARAÇÃO DA IGREJA GREGA DA LATINA A separação da Igreja grega da latina no início do segundo milênio(1054) não implicava nenhuma rejeição dos modelos eclesiológicos tradicionais, não havendo heresias. Foi um cisma (separação). 1.2 – A REFORMA DE LUTERO EM 1517 A Reforma de Lutero em 1517,com a separação de Roma, pelo contrário, vai nascer de uma nova concepção de salvação que exigirá uma nova concepção de Igreja: A salvação é obra de Deus somente (só a graça/sola gratia: exclusão da natureza). A única coisa que o homem pecador pode fazer para se salvar é ter fé (só a fé/sola fides: exclusão das obras). Assim a Igreja não é decisiva para a salvação, o decisivo é a Palavra da Escritura (só a escritura/ sola scriptura: exclusão da Tradição). Entre a humanidade salva e seu mediador Jesus Cristo não pode interpor-se nenhum mediador ou mediação (só um mediador/solus mediator: exclusão dos sacramentos). 1.2 – A REFORMA DE LUTERO EM 1517 Lutero (que era monge agostiniano) vai propor a Igreja como : "Ecclesia invisibilis et abscondita" Igreja invisível só conhecida pela fé, ela está onde se prega a Palavra e se vive a Fé (Batismo, Ceia e Pregação). Não há necessidade de sucessão apostólica diante do sacerdócio dos fiéis. Negativo: Pessimismo radical sobre o homem Negação das mediações inclusive Igreja Individualismo existencial sem senso comunitário 1.3 – A CONTRA REFORMA TRIDENTINA (TRENTO (1545-1563) (PAULO III, JÚLIO III, PIO IV) Houve um embate entre a Igreja a Reforma e o mundo moderno que surgia, reforçou suas posições,se organizou melhor para leva-las avante. Usa-se a arma da apologética. A Hierarquia é proposta como a legítima guardiã da verdadeira fé, somente nela está viva a tradição apostólica dos Apóstolos, ela é a legítima dispensadora dos sacramentos. Os leigos são sujeitos passivos. Predomina a noção da Igreja como SOCIETAS Sociedade, deixando de lado a dimensão sacramental e espiritual da Igreja para centrar-se na dimensão organizativa: eclesiologia militante: 1.3 – A CONTRA REFORMA TRIDENTINA (TRENTO (1545-1563) (PAULO III, JÚLIO III, PIO IV) "Todos os que militais Sob esta bandeira Já não durmais Pois na Terra não há paz" O bispo jesuíta e depois Cardeal Roberto Belarmino (1542-1621) será eclesiólogo deste período em que a Igreja se definia como "Societas Perfecta inaequalis". "A Igreja é vista e definida não como organismo animado pelo Espírito Santo, mas como uma Sociedade ou melhor uma organização na qual Cristo intervém na origem, como fundamento e o Espírito Santo como garantia da autoridade"(Y. CONGAR) (hierarcologia) (Cf. citação de R. Belarmino in pp. 11 e 12 in B., de FORTE, A Igreja ícone da Trindade) . 1.3 – A CONTRA REFORMA TRIDENTINA (TRENTO (1545-1563) (PAULO III, JÚLIO III, PIO IV) Alguns dos pontos Positivo de Trento: • Disciplina do clero (espiritualização do papado e obrigação de pastoreio dos bispos) • Ordens religiosas, reforço na instituição paroquial, seminários, missões, etc. • Identidade católica (catecismo) 1.4 – O CONCÍLIO VATICANO I O que Lutero iniciou como revolução da consciência e da pessoa, chega às últimas conseqüências na trilha da Revolução Francesa: Rebelião aos Reis e caos social (Manifesto do Partido Comunista - 1847) - Pio IX perde os Estados Pontifícios em 1870 Em 1824 o papa Leão XII lamenta a rebelião das colônias da América Latina contra as metrópoles no documento pontifício : Etsi iam diu (Ha muito tempo) Somente em 1831 o papa Gregório XVI reconhece as novas repúblicas e volta a nomear bispos para as dioceses. 1.4 – O CONCÍLIO VATICANO I Pio IX (Giovanni Mastai-Ferretti) papa de 1846 a 1878 Era um papa piedoso, zeloso e pastoral porém sofria de epilepsia, muito impressionável e de poucos conhecimentos teológicos. Acreditava que Deus o havia incumbido de salvar a Igreja do racionalismo moderno. a) Declara o Dogma da Imaculada Conceição em 1854 b) Syllabus (contra o racionalismo,panteísmo, naturalismo, indiferentismo, socialismo, comunismo e falsas idéias a respeito da moral (1864) c) Convoca o Vaticano I (ano de 1870) d) Dogma da Infalibilidade 18/06/1870 (o que devia ser opcional converteu-se em rotina) 55 contra 535 a favor. 1.4 – O CONCÍLIO VATICANO I Não se conseguiu levar em consideração as questões sociais da época. A Igreja se firma como uma realidade européia (romanização) apesar do surgimento de várias congregações missionárias. "Os europeus pensam que só o que a Europa inventa é bom para o universo mundo e que tudo o que seja diferente é execrável" G.GARCIA MARQUES, El general en su labirinto, B. Aires, 1989, p.30. 2 - ANTECEDENTES IMEDIATOS 2.1 – ANTECEDENTES SOCIOPOLITICOS a) Revolução Russa 1917 b) Guerras Européias (1914-1918 e 1939-1945) c) Década de 1960 : momento de tranquilidade e otimismo no Ocidente d) Fim da cristandade e) Avanço do secularismo (secularização) f) Agravamento da situação do Terceiro Mundo (pobreza) 2.2 – ANTECEDENTES TEOLÓGICOS • Tentativas de renovar a eclesiologia: Adan MÖHLER (1796-1838) eclesiologia pneumática; Antonio ROSMINI (1797-1855) eclesiologia da caridade e pobreza; John NEWMAN (1801-1890) eclesiologia evangélica. • Florescimento eclesial e teológico: Movimentos: Litúrgico, Bíblico, Patrístico, Ecumênico e Pastoral • Sensibilização sobre a pobreza no mundo:Cardjin (JOC), Abbé Pierre, Loew, Gauthier, Helder Câmara, Dupont, Gelin, episcopado franco-belga 2.2 – ANTECEDENTES TEOLÓGICOS • Mystici Corporis (1943) Pio XII, superação inicial dos esquemas meramente jurídicos • Mudança no "método teológico" (Escolástica: caráter polêmico, gueto ideológico, isolamento, acento dedutivo e à-histórico) • Nova Teologia: volta às origens bíblicas e patrísticas, valorização da liturgia e das realidades terrenas (Daniélou, De Lubac, Congar, Chenu...) Pio XII em 1950 condena esta teologia cf. in Humani generis 2.3 – A FIGURA DE JOÃO XXIII Angelo Giuseppe Roncali (1881-1963) Nascido em uma numerosa família camponesa. Entrou para o seminário da diocese de Bergamo e foi mandado estudar em Roma onde concluiu o doutorado em 1904 sendo ordenado padre em seguida. Secretário do Bispo de Bérgamo e professor de Hist. da Igreja e Patrística. Capelão militar durante a primeira guerra. Suspeito como modernista. Foi trabalhar na Congregação de Propagação da Fé em 1921 2.3 – A FIGURA DE JOÃO XXIII Professor de patrística no Seminário Romano. Em 1925 - Bispo, mandado como núncio na Bulgária onde ficou nove anos. Nomeado núncio da Turquia e Grécia de 1937-1944 Núncio na França no pós-guerra em 1945 e Cardeal de Veneza em 1953. Eleito Papa em 1958 com 77 anos. Passou à história como "O Papa Bom“ Convocou o Concílio para colocar a Igreja em dia com o mundo moderno. 3 - LINHAS GERAIS DA ECLESIOLOGIA DO VATICANO II Existe consenso em que o tema central do Concílio foi a Igreja. Consegue-se organizar todos os seus documentos em torno do eixo IGREJA: Na sua dimensão interna (ad intra): A Igreja se pensa na sua auto-realidade(LG) na clarificação de sua mensagem (DV), na sua relação cultiva (SC), nos seus ministérios episcopal e presbiteral (CD e PO), na vida e formação dos religiosos (PC) dos seminaristas (PO) leigos(AA) e na questão da educação(GE) Na sua dimensão externa (ad extra): relacionamento com o mundo de hoje (GS) as demais denominações cristãs(UR), com as Igrejas Orientais católicas e ortodoxas(OE) sua vocação missionária(AG) com religiões não cristãs(NA) com o direito à liberdade religiosa(DH) com os meios de comunicação social(IM). No discurso de abertura da II sessão do Vat. II o Papa Paulo VI sublinhou: "É coisa fora de dúvida que é um desejo, uma necessidade e um dever, para a Igreja, o dar finalmente de si mesma uma definição mais profunda. Por isso é que o tema principal desta segunda sessão do Concílio será a Igreja..."Deixando de lado a Eclesiologia com base na hierarquia e a concepção de Igreja primordialmente como Igreja Universal, o Vaticano II vai fazer uma reviravolta eclesiológica que tem suas bases nas seguintes concepções: a) Trata-se de desenvolver uma eclesiologia "integral" do Povo de Deus no mundo de hoje, assim, vai haver a busca de fundamentar uma eclesiologia que tenha como ponto de partida a eclesialidade batismal. Não será uma teoria teológica derivada de uma teoria sobra a hierarquia, mas deve ser compreendida a partir do ato primeiro de Deus em Cristo, constituindo um povo para que o conheça e sirva (LG 9). O BATISMO: consagra ao sacerdócio comum LG 10; é porta pela qual se entra na Igreja LG 14; PO 5. b) A eclesiologia saída do Concílio Vaticano II vai levar em conta certas chaves de leitura do Vaticano II, quais sejam: Revalorização das realidades terrenas graças à qual pode reiniciar um diálogo com o mundo moderno. Redescoberta da comunidade, tema onipresente e que rompe com a visão individualista do homem e da fé. Volta à Palavra, fonte da Revelação. Ressurgimento do Espírito Santo com a consequente possibilidade do ecumenismo. Valorização dos "Sinais dos Tempos" e da História. c) O Vaticano II pede que tratemos a Igreja a partir de sua realização em um lugar, isto é a partir da Igreja Particular. Na Igreja Particular se realiza plenamente a Igreja Universal : "nas quais e pelas quais subsiste a Igreja católica una e única"(cf. LG 23) .Esta concepção do Vaticano II põe por terra a concepção Tridentina de Societas Perfecta que firmava no ESTADO a sua analogia. O Estado (republica de Veneza ou Reino de França - cf. Belarmino) na sua organização e governo é modelo da Igreja, assim há a exigência de : centralização de governo, divisão de poderes segundo a lei de competência de poderes (concepção jurídica) os que governam e os que obedecem), primazia da visibilidade e do universal. Acentua-se a realização orgânica da Igreja, sua autonomia e autossuficiência diante do mundo. Em consequência,as particularidades humanas e culturais dos espaços nos quais a Igreja toma corpo não podem se considerar como elementos principais, são acidentes favoráveis ou não à missão. Quando o Vat. II parte da Igreja Local, tudo isto muda. No Vat. II se embatem dois paradigmas: o da prémodernidade e o da modernidade. A intenção do concílio foi privilegiar o paradigma da modernidade. Substitui a preocupação pré-moderna de substituir os elementos externos pela preocupação quanto ao mistério da presença de Deus para além deles. Vai romper a centralização romana para valorizar a riqueza da unidade na pluralidade e na corresponsabilidade e a comunhão das Igrejas Particulares. O Vaticano II quer fazer a passagem da consciência de uma Igreja ocidental-romana-etnocêntrica, PARA uma Igreja realmente universal através da inculturação, na teologia, na liturgia, na disciplina, nas estruturas. No Vaticano. II esteve presente a busca de fazer a Igreja responder ao paradigma da modernidade. 4 - MUDANÇA TEOLÓGICA NA CONCEPÇÃO DE IGREJA Em síntese, o Vaticano II abre as portas para uma eclesiologia significativa: • eclesiologia pneumática e trinitária-TRINDADE A Igreja vem da Trindade, estrutura-se à imagem da Trindade e dirige-se para o acabamento trinitário da história. A Trindade é origem e pátria para a qual se encaminha o povo peregrino(LG 4) • eclesiologia comunitária --------COMUNIDADE A Igreja celebra a Eucaristia e dela nasce como Corpo histórico de Cristo (Pão e Vinho são matéria)A missão histórica do Filho culmina com o envio do Espírito que agindo na história torna possível o acesso ao Pai por meio do Filho (LG 1). • O Pai através do Filho veio ao homem no Espírito • chegar ao Pai e pelo Filho pode no Espírito o Homem O movimento de descida, possibilita o de subida num circuito de unidade que gera comunhão e cuja face eterna é a TRINDADE e cuja face temporã é a Igreja (ícone da Trindade a melhor comunidade) • eclesiologia histórica da salvação integral-------HISTÓRIA A Igreja é na história, não sendo, porém, redutível às coordenadas da história, do visível e do disponível. O Filho inaugurou no seio da História o Reino de Deus, do qual a Igreja é a presença em germe (LG 8). O Pai é o horizonte último da história. O Filho encarnado, nos torna irmãos e o Espírito continua gerando seguidores de Jesus na História. O Vat. II vai abandonar uma concepção essencialista da Igreja em prol de uma compreensão sacramental histórico-salvífica. "A Igreja se oferece como lugar do encontro entre a iniciativa divina e a obra humana. O concilio da Igreja restitui à eclesiologia católica ao mesmo tempo, o frescor e a profundidade da relação com a Trindade e a consciência de um ser na história que não é mero ser da história" B. FORTE , Igreja ícone da Trindade, p. 18 A Igreja é mistério (faz parte do plano de salvação do mundo em Cristo). Este mistério está presente na história como Povo de Deus. Quem é o mistério? O Povo de Deus Quem é o Povo de Deus? Um mistério. A Igreja é mistério enquanto com toda a sua realidade humana e divina, temporal e espiritual, se ordena ao Plano de Deus sobre toda a humanidade...A Igreja é mistério porque nela se realiza de forma pública e oficial o plano de comunhão que Deus quer para toda a humanidade... A Igreja é ademais mistério na medida em que nela se celebram os mistérios de nossa salvação...Por fim, a Igreja é particularmente mistério pela união que nela se verifica entre o histórico-social (sempre sujeito às degenerações) com o espiritual divino. A Igreja não é a totalidade da salvação mas seu SINAL/SACRAMENTO eficaz e vivificador. O horizonte último da Igreja não é ela mesma mas o REINO do PAI. • Deus salva o mundo, dá sua graça, age na história • na Igreja isto se torna visível na história e se percebe na • Comunidade • por isso a Igreja é sinal sacramento/mediação de salvação O Vat.. II vai abrir o horizonte teológico do projeto salvífico de Deus, confinado aos limites visíveis da Igreja, até as margens infindas do Reino de Deus. 5 – MUDANÇA DE MODELO ECLESIAL Esta mudança de modelo eclesial provocada pelo Vat.. II reflete as coordenadas gerais do concílio: enfoque pastoral/ revalorização das realidades terrenas/ diálogo com o mundo/ ruptura com a visão individualista da fé/ volta à Palavra de Deus/ Redescoberta do Espírito Santo e do Ecumenismo e da concepção de Igreja Local/ Sacramentalidade vem antes do jurídico/ Distinção entre Reino e Igreja/ Relacionamento com o mundo/política: atenção aos problemas da humanidade: missão de salvação integral (GS). De uma eclesiologia juridicista a uma Igreja mistério de comunhão (LG 1) De uma eclesiologia triunfalista para uma Igreja servidora do Reino na história (LG 8) De uma eclesiologia clerical a uma Igreja Povo de Deus (LG 12) Colegialidade.(LG22) A Igreja não é a comunidade dos únicos que se salvam, mas o sinal/sacramento da salvação, inclusive para aqueles que não pertencem a ela. É a quarta dimensão da fé: a dimensão eclesial. Os que caminham somente na dimensão humana, teologal e cristológica ainda não chegaram à dimensão eclesial, não perceberam ainda como a fé cristológica conduz à fé eclesial: "Pertence, portanto, à estrutura salvífica ser sacramental - realidade visível que realiza a salvação-graça (invisível). Pela morte, ressurreição e glorificação definitiva - ascensão -, a humanidade visível de Jesus foi-nos subtraída. Ele deixou-nos sua "humanidade continuada", a IGREJA, que em íntima união com ele, é constituída por ele, como sacramento fundamental de salvação. Visível em suas estruturas, significa e realiza a invisibilidade do amor salvador de Deus.Viver a dimensão eclesial da fé é saber-se salvo na e pela sacramentalidade da Igreja. É ser Igreja para ser sinal salvífico para a humanidade" J.B. LIBÂNIO, Deus e os homens: seus caminhos, p. 209 A opção eclesiológica fundamental do Vaticano II expressa-se na colegialidade expressão da comunhão, a todos os nível, na precedência do Povo de Deus em relação à hierarquia que existe em função dele, na Igreja universal como comunhão de Igrejas particulares, na relevância da Igreja Particular que realiza a totalidade da Igreja em comunhão com as outras Igrejas e com Roma, no papel do leigo, na dimensão sacramental salvífica, na condição da Igreja de discípula da Palavra e servidora do Reino de Deus. Esta é a eclesiologia nova, original do Vaticano II. 6 – MUDANÇA DO SUJEITO ECLESIAL O sujeito eclesial é o dialogante principal da Igreja, aquele que a Igreja tem presente prioritariamente em sua ação. A Igreja vai deixar o sujeito pré-moderno (rural) para voltar-se para o sujeito moderno (da cidade). Porém o Vat. II não assumiu o sujeito social/popular (terceiro mundo, da pobreza) O sujeito pré-moderno: caracterização: falta de participação política, falta de projeto coletivo, submissão à ordem estabelecida, regido por normas fixas e autoritárias, tradicionalismo, etc. Base: ordem, direito e tradição O sujeito moderno: caracterização; mundo industrializado e capitalista, valorização da experiência histórica, sentido crítico, valorização da ciência e da antropologia.( O homem do 1º iluminismo) 7 – CHAVES DE LEITURA DA LÚMEN GENTIUM (LG) Para uma leitura proveitosa da LG precisamos ter acesso às chaves de leitura da mesma. A Igreja é um acontecimento dinâmico que não pode ser compreendido sem a fé: credo eclesial. Ela é sacramento/mediação, por isso: "a claridade de Cristo resplandece na face da Igreja"(LG 1). As categorias fundamentais da LG são: MISTÉRIO: o ponto de partida da revelação é a Trindade. A Igreja pertence à "economia" (administração histórica dessa auto-comunicação salvífico-libertadora de Deus na comunidade humana). Na Igreja se revela este mistério, pois ela é: "o povo reunido na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo" (LG 4 ). Projeto do Pai, construção do Filho e templo do E. Santo. POVO DE DEUS: Esta categoria é anterior a qualquer distinção ou função dentro da Igreja, nela primordialmente, todos são Povo de Deus. A categoria bíblica "povo" expressa a historicidade da Igreja. O novo Povo de Deus é um “ povo messiânico” (LG) SOCIEDADE: é a forma pública que a Igreja adquire na história e é consequência da encarnação do Verbo e da convocação de todos para formar um Povo (Povo e Polis dizem respeito à cidade humana), assim a própria encarnação e o assumir de uma cidadania humana para redimir a humanidade. A encarnação é um ato político e a Igreja ao encarnar-se na sociedade adquire caráter político, esta encarnação não é neutra como não o foi a de Jesus. (LG 2 e 3). 8 - CHAVES DE LEITURA DA GAUDIUM ET SPES (GS) A Igreja por ser sacramento, não existe para si mesmo, mas para o mundo, com a finalidade de transformar o mundo na direção do Reino de Deus. "A Igreja é aquela parte do mundo que, na força do Espírito, acolheu o Reino de maneira explícita na pessoa de Jesus Cristo... Não é o Reino mas seu sinal e instrumento(mediação) de implantação no mundo" L. BOFF, Igreja,carisma e poder, p. 15. REINO é realidade primeira e utopia em realização MUNDO como espaço de historização do Reino e realização da Igreja IGREJA como realização sacr amental do Reino no mundo e mediação para que eleesteja no mundo de forma mais densa. 9 – CONSEQUÊNCIAS QUE MERECEM DESTAQUE: DESCENTRALIZAÇÃO DA IGREJA E VALORIZAÇÃO DAS IGREJAS PARTICULARES Descentralização da Igreja da hierarquia, deixando de lado o triunfalismo para centrá-la em CRISTO (a quem a hierarquia sinaliza), aprendendo o caminho da peregrinação de Belém ao Calvário. Descentralização de um governo centralizado para um governo colegial e co-responsável (existência de sínodos, conferências episcopais, etc) Descentralização da auto-preservação ou institucionalização para viver a dimensão de Povo de Deus Peregrino comunhão/comunidade Descentralização de si mesma para ir ao encontro das outras Igrejas cristãs (ecumenismo) e caminhar em direção do mundo para servir: Igreja servidora da causa do Reino. Pela primeira vez caminhamos para uma Igreja mundial. A Igreja está em todos os continentes e todos eles estão em estado de missão. Encontramo-nos na primeira fase da Igreja-mundial na qual o cristianismo se deslocou da Europa para a AL (Terceiro mundo). É inevitável para o futuro: o incremento da teologia da Igreja Local, inculturalção, a legítima pluriformidade na teologia, liturgia e disciplina. Ha a exigência de novas estruturas para que o Vaticano II seja continuamente atualizado. "O sucesso do Concílio não se medirá simplesmente de um ponto de vista interno da Igreja, a partir do aumento ou diminuição das presenças das pessoas na instituição, e sim a partir do serviço dos cristãos em favor do mundo, que realmente foi incrementado depois do concílio e graças ao concílio" W. BUHLMANN, A Igreja no limiar do terceiro milênio, p. 39 "Os decretos conciliares, antes de serem um ponto de chegada, são um ponto de partida para novos objetivos. É necessário ainda que o Espírito e o sopro renovador do Concílio penetrem nas profundezas de vida da Igreja. É necessário que os germes de vida depositados pelo Concílio no solo da Igreja cheguem a sua plena maturidade" PAULO VI, Carta de 21 de setembro de 1966, in Oss.Rom. 26/-27/10/1966. "Por conseguinte, a melhor preparação para a passagem bimilenária não poderá exprimir-se senão pelo renovado empenho na aplicação, fiel quanto possível, do ensinamento do Vaticano II à vida de cada um e da Igreja inteira. Com o Concílio, como que se inaugurou a preparação imediata para o Grande Jubileu do 2000, no sentido mais amplo da palavra" JOÃO PAULO II, Tertio millennio adveniente n. 20. CONCLUSÃO O Vat. II colocou as bases para a desclericalização da Igreja dando aos leigos o seu devido lugar e abrindo-lhes a possibilidade de participação na vida da Igreja. Corrigiu o excesso de sacramentalismo herdado de Trento e deu à Palavra de Deus seu lugar proeminente. O Vaticano II tira o foco do “ DEUS JUIZ” para colocá-lo no “DEUS AMOR”. O Vaticano II lançou idéias renovadoras (aceitas por todos) mas na hora de operacionalizar estas idéias, havia oposição, e então deviam fazer compromisso. Daí a necessidade de se ler, estudar e interpretar o Concílio levando em conta a Tradição da Igreja e também os “sinais dos tempos”. Três tendências na implementação do concílio: a) Estrita fidelidade que lê de modo míope os documentos conciliares e tenta frear seus impulsos renovadores: renovar conforme o Vat. II, mas seguindo a planta de Trento. b) Tentativa de aplicar estritamente o Vat. II preocupados em não avançar sinal. c) Tentativa de avançar a partir do Vaticano II buscando ler os "sinais dos tempos" em um mundo em ebulição. "É certo que ainda passará muito tempo até que a Igreja, que foi agraciada por Deus com um concílio Vaticano II, seja a Igreja do concílio Vaticano II“ K. RAHNER, El concilio, nuevo comienzo, Ed. Herder, 1966, p. 18-24. A eclesiologia do Vaticano II não encerra o debate, mas o abre. Os textos conciliares, com todas as suas soluções de compromisso e suas ambiguidades, não devem ser para nós declarações finais e definitivas. O que eles fazem é assinalar uma nova perspectiva que, no entanto não está de todo clara nas consequências que implica.” L . WOSTYN, Iglesia y mision hoy, p. 91 O Concílio Vaticano II : "Trata-se, na verdade, de por em contato com as energias vivificadoras e perenes do evangelho com o mundo moderno" João XXIII , Bula de convocação do Concílio Vat. II. O papa Bento XVI nos garante que o Concílio Vaticano II não é uma ruptura com o passado, mas brota da verdadeira Tradição da Igreja e é “bússola segura” para a mesma, se retamente compreendido naquilo que ele realmente quis ensinar. # Dom Pedro Carlos Cipollini Bispo de Amparo - SP