O PENSAMENTO MORAL HABERMASIANO ATRAVÉS DE UM MEIO SÓCIO-TÉCNICO DE INTERAÇÃO – A INTERNET ZADOQUE A FONSECA FILHO* ([email protected]) PAULO C CUNHA FILHO** ([email protected]) Resumo Para discutir a aplicação do pensamento habermasiano – no que se refere a uma ética nos relacionamentos – através de um meio sócio-técnico interação como a internet, dividimos nossa análise em três momentos. Num primeiro momento, interessa-nos apresentar as análises do filósofo alemão acerca da moralidade no que diz respeito, especificamente, a utilização das conhecidas pesquisas sobre psicogênese de Piaget e Kolhberg. Em seguida, num segundo momento, fazemos referência ao desenvolvimento da tecnologia no século XX, tomando como parâmetro análises de Martin Heidegger, e as idéia do próprio Jürgen Habermas sobre a inserção de meios técnicos avançados na sociedade. Num terceiro momento, enfim, entramos na questão propriamente dita: a possibilidade de que a internet viabilize contatos sociais de acordo com o que Habermas entende por um estágio avançado de moralidade discursiva. O que nos importa não é mapear a utilização da internet como um todo, tampouco escrever em cima dos inumeráveis estudos já existentes sobre o conceito de uma esfera pública virtual. Interessa-nos, antes, observar a internet em seu processo de naturalização. Palavras-chaves: Internet – Moral Habermasiana – Tecnologia – Sociabilidade – Virtualidade. * Mestrando em comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco; Graduado em Relações Públicas pela Universidade Católica de Pernambuco. ** Doutor em Artes pela Universidade de Paris 1 (Panthéon-Sorbonne); Diplomado em História pela École des Hautes Études en Sciences Sociales; Jornalista pela Universidade Católica de Pernambuco. 2 1. Desenvolvimento Moral Queremos deixar claro que, mais do que verificar conceitos de reciprocidade ou não-coerção, e conjugá-los com o funcionamento dos ambientes de conversação pela internet, afigura-se mais legítimo para nós ir ao ponto em que o Habermas fundamenta, empiricamente, sua credibilidade na ação moral de indivíduos unidos pelo diálogo. Não desmerecemos as pesquisas que tomam os conceitos da ética do Discurso como base, apenas optamos por visualizar aquelas experiências que antecedem a determinação de palavras-chaves. E o fazemos para que não estejamos limitados a oposições do tipo: “uma ética discursiva é ou não é utilizada”; mas, antes, para que seja possível verificar como o senso moral está sendo utilizado. Sendo assim, em linhas gerais, Habermas busca no pensamento de Jean Piaget e Lawrence Kohlberg alguns princípios norteadores (alcançados através do resultado de incansáveis pesquisas realizadas com crianças e adultos) sobre o entrelaçamento do desenvolvimento cognitivo e moral dos indivíduos. A preocupação é clara, trata-se de entender “em que sentido e de que maneira podem ser fundamentados os mandamentos e normas morais”1. Os autores trabalham com a idéia de que a moral se desenvolve através de aprendizagem, o que implica na passagem por estágios: O processo de aprendizagem deve poder se compreender internamente como a passagem de uma interpretação X(1) de um problema para uma interpretação X(2) do mesmo problema, de tal modo que o sujeito que aprende possa explicar, à luz de sua segunda interpretação, por que a primeira é errada.2 Ou, nas palavras de Kohlberg, a moral se desenvolve de modo que cada estágio é uma estrutura que se encontra num equilíbrio mais estável do que a estrutura dos estágios anteriores. Habermas se mostra consciente da delicada e “importante relação de complementaridade entre reconstrução racional e análise empírica”3, quando se volta para a 1 HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p78. 2 Ibid., p. 50. 3 Ibid., op cit. 3 procura por uma convergência entre “a reconstrução filosófica das intuições morais consolidadas com as explicações psicológicas da aquisição desse saber intuitivo”4. Para nós, esse esforço indica um novo momento na obra do autor, talvez consciente das críticas recebidas não só quanto à abstração de seus textos, mas também quanto à pretensa busca de um esquema ideal de sociabilidade. Se nos dois volumes de Direito e Democracia (2003), o autor revê os conceitos de Mudança Estrutural da Esfera Pública (2003), entendendo a existência de várias esferas públicas (dentre as quais a internet poderia estar inserida) como ambientes de discussão não institucionalizados, e chega a trabalhar a madura idéia de uma “negociação” de interesses; em Consciência Moral e Agir Comunicativo (2003) ele cuida de manusear todo um instrumental teórico em constante diálogo com a empiria. É neste último livro que aponta que a moralidade infantil não é inata, dá-se por processos com o mundo social (seria um fenômeno universal, pelo qual toda criança passa). Se num primeiro momento, para a criança, seu ego e o universo formam uma só e única coisa, no estágio mais desenvolvido o indivíduo aceita ser guiado por princípios éticos universais. Em consonância com o pensamento de Kohlberg, no que se refere a uma teoria psicológica, Habermas explica que os indivíduos preferem o estágio mais alto de reflexão moral que dominam. Uma afirmação que, segundo ele, é apoiada pela pesquisa. Para o autor, ainda, não basta que um indivíduo reflita sozinho se poderia dar seu assentimento a uma norma, e “não basta nem mesmo que todos os indivíduos, cada um por si, levem a cabo essa reflexão, para então registrar os seus votos”5. O que é essencial é, antes de tudo, uma argumentação concreta da qual participem em cooperação todos os envolvidos de uma discussão. Entendemos que a forma de participação, no sentido de quais argumentos foram utilizados e como os indivíduos aquiesceram ao acordo intersubjetivo, determina o estágio moral em que se encontram. 4 5 Ibid., p. 54. HABERMAS, 2003, p.78. 4 2. A questão da tecnologia Sabidamente, Habermas teme a onda de relativismo e ceticismo éticos de que a sociedade moderna se mostra hospedeira. Vale explicar: enquanto o primeiro é fruto da impossibilidade de pensar um senso ético absoluto, uma vez que existem diferentes culturas e povos no planeta, cada um com regras e características particulares; o segundo corresponde à dificuldade de distinção entre juízos morais corretos e errados. Outro ponto que se destaca nas discussões sobre a modernidade é a questão da tecnologia. Martin Heidegger declara que a tecnologia moderna é “muitíssimo mais destruidora do que qualquer anterior”6. Para ele, os meios técnicos não são neutros, uma vez que seu conteúdo substantivo afeta a sociedade independentemente dos objetivos a que sirvam. Para Feenberg (2004), após a II Guerra Mundial, as humanidades e as ciências sociais foram tomadas por uma onda de determinismo tecnológico. Se não fosse louvada por modernizar-nos, cabia-lhe a culpa pela crise da cultura. Segundo o autor, “instrumentos que usamos dão formato à nossa maneira de vida nas sociedades modernas em que a técnica se infiltrou totalmente. Nesse sentido, meios e fins não podem ser separados”7. Em outras palavras, como fazemos as coisas determina quem somos e o que somos. Não se trata, como afirma, de que as máquinas sejam más nem que tenham tomado o poder, mas que, “na constante escolha de usá-las em detrimento de qualquer outra alternativa, acabamos fazendo muitas outras escolhas indesejadas”8. Faz-se necessário referenciar o próprio Habermas, ao indicar uma diferenciação entre meios técnicos e regras técnicas: Con la palabra “técnica” nos referimos, en efecto, en primer lugar a un conjunto de medios que permiten una eficaz realización de fines con un ahorro de trabajo, o sea, a instrumentos, máquinas y autómatas. Pero con esa palabra aludimos también a un sistema de reglas que determinan la acción racionalmente adecuad a fines; aludimos, pues, a estrategias y tecnologías.9 FEENBERG, Andrew. Do essencialismo ao construtivismo a filosofia da tecnologia numa encruzilhada. In: Comunicações : caderno do programa de pós-graduação em educação da unimep. Piracicaba. v. 11, n. 1, p.77 - 111, 2004. 7 Ibidem. 8 Ibidem. 9 HABERMAS, Jürgen. Teoria y praxis: Estudios de filosofia social. 2. ed. Madrid: Tecnos, 1990, p. 315. 6 5 Esse sistema de regras, pois, corresponderiam às escolhas (indesejadas) que fazemos quando da inserção da técnica para facilitar o homem em suas atividades. Para o autor, “la técnica de nuevo estilo puede desplazar al hombre no solo ya em sus operaciones, sino también em sus funciones de control”10. Neste momento a obra habermasiana discute a questão daquilo que entende por meios deslinguistizados de organização social. Dinheiro e poder (exemplos cujos papéis nas sociedades capitalistas ganham destaque jamais visto) induzem as ações dos indivíduos para determinados fins, e fazem com que o entendimento das pessoas se volte apenas para o êxito (racionalidade instrumental). O mercado sobrepõese ao mundo da vida como mecanismo de interação, e a busca por entendimento mútuo sucumbe aos relativismos éticos de um mundo em que diferentes culturas estão em permanente contato. Os sistemas tecnicamente avançados (eletrônicos), para o autor, possuem um caráter instrumental inerente a eles. É justamente neste ponto que a discussão sugerida se torna tão controvertida e empolgante. Lembramos que o próprio Habermas aponta para a necessidade objetiva de desenvolvimento técnico por parte dos homens, e que afirma o sinal de altíssimo grau de eficiência humana quando a técnica se mantém a nosso serviço (e não o contrário). Para tanto ele entende como fundamental a discussão e reflexão contínuas acerca dessa temática, por mais que hoje essa discussão se desenrole “de forma irreflexiva, de acuerdo com interesses cuya justificación pública no se desea ni se permite”11. É sobre essa falta de reflexão que Habermas lança suas maiores críticas, e não simplesmente a instrumentalidade inerente dos meios técnicos. Sobre este último ponto, contudo, uma possível saída também é indicada pelo autor: Los sistemas tecnicamente avanzados, a pesar de la racionalidad instrumental inherente a ellos, parecen sustraerse al control em su conjunto e crecer ordenadamente, a la manera de um processo evolutivo, pero sin uma dirección consciente.12 Uma madura reflexão acerca do uso desse instrumental técnico pode encontrar, nessa falta de direcionamento consciente, um meio de aplicar a técnica realmente como à serviço do homem e facilitadora no estabelecimento de relações à distância. Vê-se que 10 Ibid., p.316. Ibid., p. 334. 12 Ibid., p. 321. 11 6 Habermas não proclama repúdio a tecnologia, mas aos descaminhos seguidos pela modernidade. Não são as máquinas simplesmente as responsáveis pelo agir estratégico dos indivíduos, mas, antes, a crise de toda uma maneira de lidar com o conhecimento (entendendo-se, aí, os efeitos do capitalismo e os caminhos seguidos pelos homens no pósGuerra). A tecnização da vida cotidiana na modernidade, a que o autor se refere, e a analogia com aquilo que poderíamos chamar de estética do êxito, ainda que sejam mais do que uma simples metáfora, são menos do que um repúdio definitivo. Claro, não intentamos subestimar o pensamento de Theodor Adorno de que “a burocratização se manifesta sob a forma da reificação, processo pelo qual as relações entre pessoas são transformadas em relações entre coisas”13. Apenas queremos deixar claro que Habermas rompe com o pensamento daquele que foi seu professor justamente neste ponto. Enquanto Adorno (assim como Max Horkheimer) “desligam o conceito de razão instrumental do particular contexto histórico do nascimento econômico capitalista, [...] e o generalizam, estendendo-o por toda a história da espécie”14, ele, Habermas, acredita na potencialidade de uma racionalidade Comunicativa que consegue emergir mesmo das relações entre os indivíduos, modificando, assim, o fatalismo com que as relações, do homem com o meio, estavam sendo encaradas. 3. A sociabilidade através da Internet O próprio Habermas, no segundo volume de Direito e Democracia, aponta para as esferas públicas episódicas15 (promovidas por encontros em bares ou cafés, encontros na rua, por exemplo), e esfera públicas abstratas (através da mídia) como sinais da porosidade de uma esfera pública geral. Ao contrário daquele processo que aponta no seu livro Mudança Estrutural da Esfera Pública, em que as conversas nos salões franceses e cafés ingleses precisaram se institucionalizar para adquirirem o “status” de uma esfera pública, hoje o autor entende diferenças de graus de profundidade e níveis de participação por parte 13 ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. HABERMAS, Jürgen. Teoria de la accion Comunicativa: Racionalidad de la acción y Racionalización social. Spain: Altea, Taurus, Alfaguara, 1987. 15 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p.106. 14 7 da sociedade civil. Não deslegitima, todavia, participações episódicas, organizadas, abstratas, e etc. Percebe-as, pelo contrário, como nichos de diálogos absolutamente inerentes, e, em seu formato, indispensáveis. Cabe explicar que vemos o uso da internet (cujos ambientes de conversação, particularmente, corresponderiam à esfera pública episódica) como mecanismo que complementa as relações sociais já vivenciadas pelos indivíduos no mundo atual. Não nos interessa, aqui, lançar mão de toda uma extensa bibliografia sobre o surgimento da cibercultura e as implicações daquilo que Lorenzo Vilchez chama de migração digital. Tampouco importa-nos colocar à prova a sensação de ampla liberdade supostamente oferecida pelo espaço virtual (idéia questionada por autores como Slavoj Zizek e sobre a qual também duvidamos). Interessa-nos, sim, verificar de que maneira a técnica (tendo como pressuposto sua utilização por sujeitos inseridos em situação de diálogo) contribui na concretização do pensamento habermasiano, e torna possível a verificação da maturidade dialógica em que indivíduos se encontram. Com o olhar voltado para o âmbito organizacional, *** Tenório trabalha a relação do Agir Comunicativo como fomentador de otimização nas relações empresariais. Baseiase na “possibilidade de democratização do sistema empresarial via incorporação de tecnologia de base microeletrônica”16, apontando para a utilização da racionalização autoprogramada, que ocorre em situações cuja decisão pode ser transferida para sistemas mecânicos ou retroativamente regulados. Evidentemente, não corresponde aos nossos interesses essa visão organizacional, mas é uma idéia que pode ser verificada pela lembrança que faz ao pensamento weberiano de que o sistema capitalista não prescinde de ética (ainda que seja uma ética própria). Discute-se o interesse capitalista em conduzir a uma redução do controle sobre os funcionários (operários) nos dias atuais: “a racionalidade capitalista de produção chegou hoje a um ponto a partir do qual a gerência só pode aumentar sua eficiência através de um relaxamento da divisão do trabalho”17. Afigura-se ora pertinente fazer a direta referência ao texto do sociólogo alemão Max Weber no tocante a ética. Para o autor, o capitalismo não 16 TENÓRIO, Fernando Guilherme. Flexibilização organizacional: mito ou realidade? Rio de Janeiro: FGV, 2002. 17 Ibidem. 8 pode empregar aquele homem de negócios cujo comportamento externo for simplesmente sem escrúpulos: A disseminada preponderância da absoluta falta de escrúpulos na afirmação do interesse pessoal no ganho pecuniário foi justamente uma característica específica daqueles países cujo deslanche capitalista-burguês – mensurado segundo a escala do desenvolvimento ocidental – se mantivera em atraso18. Se já dissemos que a utilização de palavras-chaves oriundas do estabelecimento da ética do Discurso, aplicada ao imaginário do mundo virtual, não é suficiente para responder aos nossos anseios de pesquisa, é preciso dizer também que a idéia de um relaxamento do controle capitalista como possibilidade de criação de espaços para ações mais éticas também não nos é satisfatória. Pelo contrário, essa segunda utilização do pensamento habermasiano também não dá conta da subjetivação dos sujeitos inseridos no presente momento histórico em que a busca por êxito não corresponde unicamente às macroestruturas (máquina governamental e empresas), mas está arraigada também nas microestruturas (mundo particular de cada indivíduo). Para Habermas, é justamente a patologia individual que não se desvencilha de um agir voltado simplesmente para o êxito que inviabiliza o entendimento mútuo. Entendemos também como impensável que máquinas pudessem regular esse desequilíbrio. Vislumbrar a utilização de meios técnicos no contexto que aqui intentamos apresentar, salientamos, está longe de representar um desejo de transferir a responsabilidade humana de agir de acordo com princípios morais para qualquer espécie de máquina, em cujas mãos repousasse alguma espécie de controle de boas ações. Em quê, então, precisamente, meios técnicos, como a internet, podem contribuir para a aplicação do pensamento habermasiano? Sem temer a obviedade, respondemos: uma vez que não é mais possível reunir simultaneamente um número relevante de pessoas, num único espaço público, com possibilidade de distribuição equânime de poder de voz, para discutirem questões comuns e deliberarem sobre discernimentos, a consolidação da internet como espaço público se configura (ao menos teoricamente) como alternativa. 18 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 50. 9 Contudo, para além disso, os posicionamentos individuais e as discussões mediadas pela internet, através de um caráter fundamentalmente textual, forçam os sujeitos a definirem, ou negociarem, uma identidade19 que os defina, ainda que não conclusivamente, entre os mundos virtual e extra-virtual; bem como a responderem certas questões sobre seu papel numa sociedade dialógica20. Não se trata de uma regulação ética promovida e garantida pela máquina. Trata-se de que a participação na internet funciona em cima de modelos de apresentação de comunicação e personalidade e que além de indicar a subjetividade da sociedade contemporânea, promove um desenvolvimento da mesma. Desenvolvimento na medida em que fornece ambiente de relativo fácil acesso à construção de nichos de interação das mais diversas, com toda a efemeridade do mundo fora da rede e fragilidade dos laços humanos gerados através dela21. 4. Considerações e expectativas Habermas segue a idéia freudiana de que é na subjetividade que o indivíduo processa a internalização dos valores sociais circundantes e, mais do que isso, cuida entrelaçar as características que confere a subjetividade moderna a uma racionalidade que se cruza nas estruturas da intersubjetividade mediatizada pela linguagem. Baseamo-nos, oras, justamente nisso para entender como o aprendizado moral se processa. Se por um lado, a credibilidade do pensamento habermasiano numa suposta bondade humana inerente a cada indivíduo, que encontra forte aliado no ideal de aprendizagem descrito por Piaget e Kolhberg, e que serve de justificação para o resgate de uma razão Iluminista (conforme pretendida por Habermas) cujos esforços não teriam ainda esgotado seu potencial; por outro lado, outros dirão, os discernimentos morais da contemporaneidade não dizem mais respeito àqueles embates do século XVIII. Curioso, todavia, perceber que por mais que a possibilidade de uma regulamentação normativa universal soe totalitária e pouco condizente com as reais necessidades do 19 Ainda que uma identidade voltada para o consumo. “Eu” sou aquilo que meus gostos consumistas indicam. Gosto de um determinado tipo de filme, música, roupa, comida... logo, “sou”. 20 Dialógica no sentido de que, através de ambientes de interação pela internet, essas identidades entram em contato direto com as identidades das outras pessoas. 21 BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido. Rio de Janeiro, Zahar Editora 2004. 10 fragmentado mundo contemporâneo, em sua cotidianidade os indivíduos ainda baseiam suas expectativas de entendimento mútuo em acordos que esperam, em certo sentido, universalidade. Seja em grêmios estudantis, em reuniões de pais e mestres, em rodas de dança (em shows de rock) onde os jovens se agridem ludicamente, em discussões de sala de aula entre alunos e professores. Reagimos com repúdio ao totalitarismo, mas a opção não tem sido abandonar os acordos. Isso porque as questões morais (do que é justo e do que não é justo), em consonância com o pensamento habermasiano, são as questões que mais mexem com o ideário humano. Sobre os ambientes de discussão em rede serem contagiados, de saída, por uma inerente instrumentalidade, buscamos nas palavras do próprio Habermas a idéia de que, todavia, os sistemas tecnicamente avançados se desenvolvem sem uma direção consciente. Sendo assim, uma possível analogia com a idéia marxista de apreensão dos meios de produção pelo proletariado torna-se pertinente. Nas brechas (repetimos: brechas; não em seu todo) que nascem do sistema residiria a expectativa de que as redes de interação via internet possam desempenhar, ao menos em alguns nichos, o papel de promotoras de uma sociabilidade garantida através de acordos racionais. Temos, claro, em vista as considerações de Dominique Wolton, sobre “a política [da Rede ser] dominada pelos modelos de escolha consumistas e do livre mercado e não por procedimentos democráticos de discussão e deliberação”22. Mas entendemos que a questão é ainda mais complexa. Tendo em vista o texto de Barbero, “las nuevas tecnologias de la información y la comunicación estan reconfigurando los modos de estar juntos”23, entendemos que os ambientes de interação via internet cada vez mais estão se tornando algo indissociáveis da contemporaneidade (e que, como o cinema, o rádio, ou a televisão, também causaram discussões controvertidas enquanto passavam por um processo de naturalização). 22 23 ESTEVES, João Pissarra. Espaço Público e democracia. Rio grande do sul: Unissinos, 2003. BARBERO, Jesus-Martin. Transformaciones comunicativas y tecnológicas de lo público. 2002 11 Bibliografia BARBERO, Jesus-Martin. Transformaciones comunicativas y tecnológicas de lo público. 2002 BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido. Rio de Janeiro, Zahar Editora 2004 ESTEVES, João Pissarra. Espaço Público e democracia. Rio grande do sul: Unissinos, 2003 FEENBERG, Andrew. Do essencialismo ao construtivismo a filosofia da tecnologia numa encruzilhada. In: Comunicações : caderno do programa de pós-graduação em educação da unimep. Piracicaba. v. 11, n. 1, p.77 - 111, 2004. HABERMAS, Jürgen. Teoria de la accion Comunicativa: Racionalidad de la acción y Racionalización social. Spain: Altea, Taurus, Alfaguara, 1987. _____. Teoria y praxis: Estudios de filosofia social. 2. ed. Madrid: Tecnos, 1990. _____. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003 _____. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. TENÓRIO, Fernando Guilherme. Flexibilização organizacional: mito ou realidade? Rio de Janeiro: FGV, 2002. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.