ÉTICA INTERCULTURAL E PENSAMENTO LATINO-AMERICANO. Problemas e
perspectivas de uma ética intercultural no marco da globalização cultural.
Dr. Ricardo Salas Astrain
Universidade Católica Silva Henríquez-Chile
Na discussão latino-americana atual existe uma notável convergência entre os
estudos socioculturais das ciências sociais (em especial, a Antropologia, a Sociologia e a
História), e os problemas concernentes para uma justificação ética de normas e valores
universais que preocupam a Filosofia.1[1] Esta convergência teórica surge tanto dum
diagnóstico histórico-cultural acerca da consolidação de processos de modernização nas
culturas tradicionais como de uma crescente “desregulação das normas e dos valores”,2[2]
associados aos processos complexos que geram o que se pode “chamar “globalização”
ou “mundialização” da modernidade ocidental. Neste trabalho, que se pode situar no
marco de uma hermenêutica da ação, ensaiamos dar conta deste cruzamento entre as
ciências humanas e a Filosofia esboçando uma Ética Intercultural, que permita
compreender o debate em torno de uma “racionalidade
prática”, de caráter latino-
americano e com manifesta vocação universal. Tal proposta deveria responder teórica e
praticamente aos atuais nódulos normativos e valóricos que afetam os imaginários de
nossas complexas sociedades latino-americanas3[3]. Isto requer explicitar brevemente, ao
menos, seus vínculos com outros debates e aportes recebidos do pensamento norteamericano e europeu.
1[1]
2[2]
Salas Ricardo, “Discurso, acción y contextos conflictivos”, em Concordia 41 (2002), pp. 117-129.
De Munck y Verhoeven, (Eds.), Les mutations du rapport à la norme, ParisBruxelles, De Boeck & Larcier, 1997.
3[3]
Arriarán Samuel, La fábula de la identidad perdida, México, Editorial Itaca, 1999, pp. 17 y 149.
Sabe-se que no debate filosófico, tal como ele se apresenta nas obras anglo
saxônicas e européias, estes problemas valóricos e normativos aparecem claramente na
discussão do multiculturalismo, da diversidade cultural, de sua interpretação pósmoderna, e do debate entre liberais e comunitaristas4[4]. Existem inquestionáveis pontos
de convergência com os intelectuais europeus e norte-americanos, porque, neste plano,
é possível realizar uma leitura multicultural e pós-moderna de nossos países. No plano
dos acordos, existe uma clara dimensão teorética em debate com as ciências humanas e
com a Filosofia européia contemporânea. Em primeiro lugar, ela se refere ao debate
conhecido no mundo anglo-saxão sobre o universalíssimo e o particularismo das normas
e valores, um debate que tende a uma justificação abstrata das normas e valores. Em
segundo lugar, o que se considera inevitavelmente conduzido ao relativismo moral,
porque afirma os valores próprios de cada cultura5[5] .
Neste trabalho, no qual explicitamos uma aproximação hermenêutica a estas
temáticas valóricas e normativas, se enraíza uma discussão maior, presente e recorrente,
no pensamento latino-americano – tanto nas ciências sociais como na Filosofia -. O
marco geral deste debate valórico que nos interessa, provém desde os anos 70, a partir
das pesquisas sobre uma “ética libertadora” que evoluiu para as formas mais atuais que
incorporam a problemática da ética do discurso6[6]. Ressaltemos que não se trata aqui, de
entender os problemas filosóficos gerais da diversidade cultural no planeta, porque eles
nos poriam numa difícil posição de esclarecer pontos de vista e tradições reflexivas que
recém começam a dialogar; neste caso, esgotamos a discussão de uma reflexão no
campo
do
pensamento
latino-americano.
Queremos,
principalmente,
ajudar
a
compreender, de um modo mais abrangente os contextos culturais latino-americanos, os
4[4]
Taylor Charles, Argumentos filosóficos, Barcelona-Buenos Aires, Paidos, 1997,
p. 239.
5[5]
Guariglia Osvaldo, Moralidad. Etica Universalista y sujeto moral, Buenos Aires, FCE, 1996, p. 244ss.
Cf. Dussel Enrique, Ética de la liberación en la edad de la globalización y de la exclusión, Madrid,
Trotta, 1998, pp. 235ss.
6[6]
problemas valóricos e normativos concretos que vivem os sujeitos individuais e
comunitários em nossas sociedades complexas, heterogêneas e violentas.
Estes processos complexos, que afetam o imaginário latino-americano, conduzem
para uma discussão fundamental acerca da “ crise moral”7[7], porém distanciada de uma
visão conservadora; portanto, por “crise moral” concebemos, ao mesmo tempo, a perda
de valores tradicionais e o nascimento de novos valores associados à “cultura midiática e
cosmopolita”, que nos coloca como problema básico a convivência: “como tornar
comensurável e capaz de conviver com aquilo que conta ou com aquilo que não conta
na configuração cultural de cada um”8[8]. Neste sentido, um dos problemas principais
consiste em definir o papel das tradições culturais e a relevância dos denominados
“processos de ‘destradicionalização’”, que requerem uma Sociologia da globalização
cultural9[9].
As transformações culturais efetivamente podem ser compreendidas a partir de
uma perspectiva “essencialista” ou “historicista”. Parece-nos, porém, que o problema se
delineia equivocadamente quando se tenta justificar uma explicação baseada
exclusivamente num dos seus pólos. De acordo com a teoria hermenêutica esboçada
num livro anterior, comprovamos que todos os processos culturais, analisados desde
uma perspectiva semiótica e hermenêutica, são processos dinâmicos que pressupõem
uma resignificação das tradições, pelas quais elas se vão redefinindo de cara aos novos
contextos emergentes. Esta é a importância da categoria de “inovação semântica”,
utilizada em nossos estudos do imaginário religioso e cultural das culturas
tradicionais10[10]. Tratar-se-ia, agora, de estender esta noção ao âmbito da racionalidade
prática. Trata-se então de captar os dinamismos valóricos e normativos em tensão ou
7[7]
Cullen Carlos, Fenomenología de la crisis moral, Buenos Aires, Castañeda, 1978.
García-Canclini Néstor, Lo globalización imaginada, México, Paidos, 2000, p. 223
9[9]
Brunner José Joaquin , Globalización cultural y postmodernidad, Santiago, FCE, 1998.
10[10]
Salas Ricardo, Lo Sagrado y lo Humano, Santiago, San Pablo, 1996, p. 36ss.
8[8]
presentes nas tradições morais que assinalavam critérios do "viver bem", de ser “uma
pessoa digna”, e estudar seu trânsito para outras formas de vida que dão sentido a
processos de maior individualização e integradores de dimensões midiáticas. Neste
plano, nas comunidades tradicionais, a busca do reconhecimento e da plena
autenticidade não se realiza, hoje, pela defesa de bens simbólicos ancilosados, mas que
se articulam no meio de contextos culturais marcados pela diversidade cultural, que
podem ser formas “híbridas” e interculturais, em que se requer permanentemente a
transação e a tolerância.
Em outras palavras, os indivíduos e
as comunidades humanas já não se
encontram diante de bens simbólicos comuns baseados no “sangue e na terra”, mas,
diante de bens que são particularmente encontrados num espaço urbano e midiático,
desde que surjam formas de vidas que se deslocam, é o que fomenta, por exemplo, o
espaço multicultural televisivo e a conexão às redes virtuais com as formas simbólicas
dos mundos de vida. Parece, assim mesmo, que em certos setores da América Latina
tampouco se vive uma temporalidade comum, por exemplo, aquela associada ao
trabalho, do frenético trabalho que caracteriza a forma de vida dos integrados no sistema
econômico, aos modos de vida dos trabalhadores temporários, desempregados e
indígenas. Se considerarmos os estudos dos imaginários e práticas culturais dos que
habitam em cidades como Rio de Janeiro, Santiago do Chile, Buenos Aires ou Cidade do
México, para nomear apenas algumas das nossas grandes cidades na América Latina, se
constata que existe uma efetiva luta dos imaginários, das formas de reconhecimentos e
de práticas. Estas tensões valóricas se expressam, não apenas na vida pública, mas,
muitas vezes na vida cotidiana, elas consolidam um campo crescente de disputa valórica
no qual entram em contato muitos bens plurais divergentes, que põem em questão as
formas de vida conhecidas e fomentam a aparição de outras. Em algumas ocasiões,
estas divergências valóricas podem ser muito conflictivas e violentas, especialmente em
territórios interétnicos como no Altiplano, em Chiapas e no Mato Grosso. Nesses
territórios se expressam, não apenas imaginários baseados no racismo e na xenofobia,
porém, na sua plena justificação pública e midiática. Esta mesma experiência interétnica
se vive, nestes últimos anos, com as etnias, onde se estabelece uma tensão entre
identidade cultural, fundamentalismo e racismo11[11].
Aqui poder-se-ia questionar: Não seria preciso repensar os problemas valóricos e
normativos desde uma perspectiva contextual diferente que questiona a dimensão
conflitiva do imaginário, que integre os contatos, as ações e reações culturais presentes
em nossas sociedades? Não seria, então aqui, que
surge a necessidade de um
posicionamento do tipo intercultural que exige uma dupla interpretação, que mostre o
movimento integrador e desintegrador de nossos imaginários? E por último, não seria
questionável se esta Ética latino-americana, para assumir este duplo movimento, fosse
conduzida para mostrar uma excisão na vida íntima de nossas subjetividades
comunitárias e pessoais?. Consideramos que estas perguntas são cruciais para não
repetir acriticamente estes debates do multiculturalismo e da diversidade cultural de
outras latitudes. Requeremos responder a problemas interculturais que são muito menos
teóricos, por exemplo, quando se discutiu acerca dos aspectos racionais e culturais da
mestiçagem e do sincretismo cultural12[12]. Porém, normalmente, a discussão adquire
freqüentemente sabores amargos em virtude da permanente conflitividade presente no
choque de minorias étnicas, sociedades e culturas dissímeis que foram obrigadas a "viver
em comum", em nossos países, por causa de uma história herdada de 500 anos. A
conflictividade de cinco séculos é um traço inerente de nossos tecidos interculturais que
11[11]
Salas Ricardo, “Religión étnica, Modernización y Procesos identitarios en
América Latina”, en Revista Novamérica N° 93, (2002) pp. 22-28.
12[12]
Morandé Pedro, Modernización y Cultura en América Latina, Santiago de
Chile, Cuadernos de Sociologia de la PUC, 1984, p. 149.
se viram atravessados por uma permanente “dialética da negação” do outro (do negro, do
índio, da mulher) em nossa história latino-americana13[13].
O conflito presente em nossas sociedades não é apenas parte de um momento
particular recente da história política e social latino-americana, mas, que aparece quase
na totalidade dos mundos de vida. Estes conflitos assumem, freqüentemente, um caráter
discursivo que justifica práticas de exclusão e de dominação em diversos níveis da vida
concreta. Há exemplos que surgem por acaso, tais como: o convencimento dos povos e
comunidades indígenas para que reconheçam favoravelmente o projeto da modernidade
neo-liberal; a manipulação das formas produtivas dos agricultores e o discurso sobre sua
necessária emigração; a manipulação da opinião pública a respeito das políticas de meio
ambiente; a retórica que pretende explicar as dificuldades para fazer justiça em todos os
casos de “atropelos” aos Direitos Humanos, etc.
Alguns ideólogos queriam crer que “todos os conflitos e tensões sociais poderiam
processar-se politicamente e dissolver-se pela via do diálogo e do concertamento”14[14].
Porém, os diversos contextos socioculturais nos quais se inscrevem os povos latinoamericanos, mostram-nos que prevalece, muitas vezes, a violência e a dominação e que
elas fazem parte essencial dos mundos de vida de nossos países15[15].
Neste sentido, nos atrevemos a propor um esboço de resposta num programa não
apenas de uma Filosofia intercultural, mas de uma teoria intercultural da ação. Parecenos que as posições teóricas das grandes teorias morais clássicas não dão conta,
suficientemente, da ação contextualizada dos agentes morais e culturais dos processos
13[13]
Calderón , Hopenhayn & Ottone, “Hacia una perspectiva crítica de la
modernidad”, Documento CEPAL Nº 21 (1993), p. 22.
14[14]
Vergara E. Jorge, “La cultura de la violencia en Chile”, em Revista Nueva Sociedad N° 105 (1990) p.
172.
15[15]
Cf. Leonardo Tovar, “Etica discursiva y Conflicto” en Fornet-Betancourt (Ed.,) Diskurs und
Leidenschaft, CRM vol., 20, 1996, pp. 305-316.
culturais complexos, pautas concretas de ação que possam ser reconhecidas,
efetivamente, através dos contextos e que podem universalizar-se para ser parte de um
mundo humano. Como indica Fornet-Betancourt: “…a filosofia intercultural propõe refazer
a história da razão (filosófica) desde a releitura desses processos e dessas práticas
contextuais, porque entende que são o lugar em que se vão cristalizando os modos nos
quais o gênero humano aprende a dar razão de sua situação num universo concreto
(dimensão contextual) e justificar, com as razões dos outros, sobre o que melhor convém
a todos para realizar em todos os contextos a humanidade de todos (dimensão
universalizante)”16[16]. Daqui, postulamos que a questão mais interessante não consiste
apenas em considerar a questão valórico-normativa, desde uma oposição entre a
universalidade ou a particularidade dos valores humanos, mas, a questão consiste em
olhar os conflitos valórico-normativos nas sociedades latino-americanas, desde uma
perspectiva contextualizada da ação humana. Neste sentido, nos atrevemos a postular
que existem em todas as culturas latino-americanas as suficientes práticas, crenças e
valores morais que conformam a experiência do humano dos homens e mulheres. Neste
plano não existe uma ruptura entre tradição e mudança valórica, já que a inovação é
inerente às pautas sapienciais das culturas tradicionais. Portanto, um modo de ser, de
valorar e de fazer humanos que conformam parte do húmus de nossas culturas, requer
assumir-se numa proposta intercultural na busca da necessária universalidade de uma
nova humanidade. Tratar-se-ia de mostrar que esta experiência histórica do “encontrodesencontro” do humano é um dos acervos das culturas de América Latina, e que
requerem que sejam ser refletidas a partir dum saber teórico moral, como esse que exige
a Filosofia.
a) a) Uma proposta de ética intercultural.
16[16]
Fornet-Betancourt Raúl, “Supuestos, límites y alcances de la filosofía Intercultural” em Diálogo
Filosófico 51 (2001), p. 418
Os termos “intercultural” e “interculturalidade” são de uso recente nas pesquisas
no campo das ciências humanas e na Filosofia, num marco latino-americano. Pode-se
assinalar que no final dos anos 80 começa a difundir-se seu emprego na Antropologia,
Pedagogia, Sociologia, História e Filosofia17[17]. Pode-se assinalar que seu uso surge no
campo da discussão sobre os problemas associados ao multiculturalismo, à diversidade
cultural, à ampliação de uma postura pós-moderna nas ciências humanas e sociais.
Os estudos atuais nas Ciências Sociais e Filosofia mostram que os sistemas
culturais são essencialmente dinâmicos no que implica dar conta de novos problemas
relativos à mudança cultural, à interpenetração de tradições, a resistências e à
emergência de novas propostas. É assim que surgem novas categorias, tais como:
retnificação, sincretismo, hibridismo. O aprofundamento destas noções dinâmicas tem
levado a elaborar uma noção de interculturalidade que permite descrever, precisar,
explicar e compreender que nas sociedades modernas na América Latina, nos
encontramos com uma crescente heterogenização da vida humana nas grandes cidades
e num renascimento de formas comunitárias, em relação a grupos generacionais,
sexuais, religiosos, entre outros.
Às vezes, em alguns usos mais gerais, se associa à noção de interculturalidade a
multiculturalidade. Entre ambas existem claras relações, porém, consideramos que a
interculturalidade admite certos sentidos que lhe são específicos. Interculturalidade
significa, entre seus sentidos mais importantes, que nas sociedades complexas, as
classes e os grupos humanos, participando da estrutura econômico-social da sociedade,
gerem processos identitários específicos que possuem linguagens, símbolos, códigos,
práticas e ritos que levam a seus membros a identificarem-se entre si. Interculturalidade
17[17]
413.
Fornet-Betancourt Raúl, “Supuestos, límites y alcances de la filosofía intercultural”, in artículo citado, p.
não são simplesmente duas culturas em contato que se mesclam e se integram, porém, é
o
que tem a ver com múltiplos processos culturais que tendem à hibridação como
sustentam García-Canclini ou Gruzinsky18[18], em outras palavras, que as classes e os
grupos humanos possam participar em vários sistemas ou códigos culturais porém
tendem a identificar-se diferenciadamente.
Em síntese, nos parece que a interculturalidade alude a um tipo de sociedade
emergente, em que as comunidades étnicas, os grupos e classes sociais se reconhecem
em suas diferenças e buscam sua mútua compreensão e valorização do outro. O prefixo
“inter” expressa, antes de tudo, uma interação positiva que concretamente se expressa
numa busca de suprimir as barreiras entre os povos, as comunidades étnicas e os grupos
humanos, quaisquer que sejam seus traços identitários. Supõe-se, assim, que a busca de
instâncias dialogais esteja enfocada na aceitação mútua e na colaboração entre culturas
que se entrecruzam. Este modo de caracterizar a interculturalidade permite-nos propor
que uma visão intercultural não está, necessariamente, dirigida para os grupos étnicos,
agricultores, ou outros setores que aparecem como “folclóricos”, mas, que também é
dirigida para os habitantes da Grande Cidade. Poder-se-ia dizer que esta proposta
intercultural responde aos diversos problemas que afetam os grupos étnicos,
comunidades humanas, grupos etários e sexuais, etc., que coexistem nas grandes
cidades e que conformam nossas culturas diversas. Deve ser, portanto, uma proposta
teórica destinada a responder aos desafios de uma sociedade pluricultural, que,
sobretudo seja válida para sentar as bases de uma forma de convivência humana.
Seguindo uma linha esboçada num outro livro, a tese central deste trabalho
consiste em mostrar a permanente dinâmica dos valores culturais inseridos nas texturas
simbólico-rituais e práxicas das complexas sociedades latino-americanas, de forma que
18[18]
Cf. Gruzinsky Serge, El Pensamiento mestizo, Buenos Aires, Paidós, 2000, p. 17.
toda compreensão ética do humano supõe encarregar-se dessa empresa vital de propor,
para diversos contextos e vicissitudes, a necessidade dum “viver humano”. A reelaboração por parte da Filosofia suporia a articulação dum saber moral. O pressuposto
indicado permite descobrir o nexo entre as temáticas do sagrado e do humano, de forma
que a ética e a Filosofia da Religião se recobrem de certa forma, porque ambas remetem
para uma racionalidade prática19[19]. Esta recuperação da "racionalidade prática" é o que
subjaz como pano-de-fundo filosófico de uma proposta da “ética intercultural”.
Porém, esta perspectiva de uma “ética” não é apenas filosófica, mas, é a que, em
boa parte, corresponde também ao que se tem chamado, às vezes, com o nome de “ética
social e política”, ou “ética econômica” e, ultimamente, é tratada como algum capítulo da
“ética aplicada”. Todavia, a diferença maior com as temáticas estudadas, consiste no
fato de que na Ética Intercultural teria que ser levado em consideração, sobretudo, o
desafio para refletir sobre a complexa problemática ético-valórica, inerente aos
imaginários culturais comuns de nossos países latino-americanos, com vistas para
explicitar o tipo específico do “saber moral”, que caracteriza estas experiências de vida.
Trata-se, assim, de assumir uma reflexão profunda sobre o “saber viver”, sobre o “ saber
conviver”, o “saber de nossa comunidade”; neste plano busca-se os valores identitários,
em diversos tons e matizes de "um ‘nosotros’ latino", "um ‘nosotros’ nacional" ou um
‘nosotros’ "comunitário" que enfrentam a crescente fragmentação e a diversidade cultural
que irrompe na quase totalidade do planeta.
O saber que busca esclarecer a ética intercultural não só responde aos diversos
contextos da experiência moral, mas aspira discernir as conflictividades tradicionais e
novas.
Trata-se de analisar as ameaças e as possibilidades de vida em comum
questionadas todos os dias nas grandes cidades em que habitamos. Por isso,
19[19]
Cortina & Martínez E., Etica, Madrid, Akal, 1996, p. 13
consideramos - igualmente com Subercaseaux- "que o latino-americano não é algo feito
ou acabado, mas algo que estaria constantemente se fazendo. Desde esta perspectiva, o
conceito de identidade se dessubstancializa e perde seu lastro ontológico, apontando
para uma dialética contínua da tradição e da novidade, da coerência e da dispersão, do
próprio e do alheio, do que se tem sido e daquilo que se pode ser"20[20]. Esta problemática
das identidades coloca a formulação de uma categoria de contexto que permite
esclarecer os valores e normas em culturas, nas quais as identidades estão em
movimento.
Esta tensão da conflictividade, própria do campo da ação nas culturas latinoamericanas diversas, é a que nos leva a considerar a relevância de uma noção de
contexto para desentranhar os sentidos das ações. Um contexto se poderia considerar
como uma estruturação dentro da qual se vão configurando vínculos entre identidades.
Gruzinsky, desde uma análise do caso mexicano, assinala: “Cada ser está dotado de
uma série de identidades ou provido de pontos de referência, mais ou menos estáveis, os
quais ativa sucessiva ou simultaneamente segundo os contextos”21[21].
Em outras palavras, a ação humana gerada por atores mestiços sem o contexto
cultural do qual brotam normas e valores, resultaria ininteligível. Sabe-se que a noção de
contexto provém da análise do discurso da ação. Esta noção provém, em parte, dos
trabalhos dos lingüistas que se ocuparam da pragmática e se tonou usual o distinguir
entre contextos lingüísticos e extralingüísticos. Para avançar em seu esclarecimento, ela
remete a uma dinâmica do discurso e a uma dinâmica da realidade sociocultural, não se
pode precisar as normas e valores afirmando-se apenas num desses. Serrano assinala a
20[20]
Subercaseaux Bernardo, "Elite ilustrada, intelectuales y espacio cultural", em
Garretón (Ed.), América Latina: un espacio cultural en un mundo globalizado,
Bogotá, Convenio Andrés Bello, 1999, p. 187.
21[21]
Gruzinsky Serge, El pensamiento mestizo, op. cit, p. 53.
respeito da legitimidade política que: “Gera-se, assim, uma nova esquizofrenia por causa
da fratura e separação dos universos: o universo da prática e o universo do discurso.
Cria-se, assim, uma espécie de regra implícita, uma sorte de ‘ética’ política tácita, na
qual o discurso não serve para expressar, a não ser para encobrir”22[22].
Os dois
principais contextos que afetam a ação moral têm a ver com os sentidos humanos
próprios que definem as constelações discursivas e culturais. Proporia definir o contexto,
neste trabalho, como aquele
determinado grupo de pautas semântico-culturais que
permitem que as ações cobrem sentido para uma determinada comunidade humana.
Com toda a madureza do problema teórico dos contextos, esse determinado grupo de
pautas, conduziu para estabelecer mediações mais finas que permitam incorporar, no
marco da ética do discurso, as diversas buscas históricas e culturais, incorporando os
diversos conflitos em jogo. Nesta ética, há uma evolução para um nexo muito mais tênue
entre a pretensão universalista e a necessidade de incorporar os contextos culturais para
compreender o sentido da ação humana.
Nesse sentido, queria advertir para um certo mal-entendido, que poderia provir da
Sociologia da mudança, no sentido que a Ética Intercultural reduziria as transformações
valóricas às mudanças sociais. Isso seria preconizar um certo ‘sociologismo’ dos valores,
que está longe de uma concepção filosófica dos valores e das normas, porque, pensar a
ação desde seu contexto, requer um tratamento das formas da mutação social, porém
não se reduz, de nenhuma maneira, a isso. Os valores e as normas que põem em jogo a
ação humana, todavia, não são apenas sociais, mas são também históricos e culturais,
porém, mais fundamentalmente, elas são parte de uma dinâmica do ser humano. A ação
de um indivíduo e de uma comunidade, interpretada desde a Ética Intercultural, diz
relação direta com a reconfiguração de um determinado "mundo de vida" que, em termos
cognoscitivos, exige mediação do conjunto das Ciências Humanas que se ocupam das
22[22]
Serrano Alejandro, “Política” em Boletín de Filosofía-UCSH N° 9, vol. 2 (1997-8), p. 51
normas e dos valores sociais tais como a Antropologia, a Sociologia, a Economia, o
Direito, a Política e a História. Neste artigo mostraremos que uma parte importante dos
problemas de uma ética intercultural já foi visualizada, ao menos em parte, pelos teóricos
das Ciências Humanas, que se esforçaram para compreender a ação humana, e são,
precisamente, alguns destes aportes das ciências humanas que não logramos fazer
frutificar num tipo de ética no meio das mutações normativas e valóricas.
2. As transformações culturais e sua interpretação pós-moderna.
O ponto de partida de uma ética intercultural refere-se sempre, desde a
perspectiva proposta, a uma forma particular de conectar-se com os contextos que estão
em jogo num modo de vida de um sujeito, de comunidades e povos submetidos desde
sua origem a diversas tradições. Neste sentido, parece-nos que o ser humano se
encontra, desde suas origens, enfrentando as perguntas relevantes do sentido da
existência em comum. Por isso não se pode exagerar nos desafios vitais de nossos
ancestrais e de nossos contemporâneos. O modo de vida dos sujeitos e das
comunidades sofre modos de re-adequação, de entrecruzamento das formas tradicionais
e formas modernas que, porém, não logra superar, de um modo definitivo, as diversas
tensões valóricas entre os mesmos cidadãos e entre as diversas comunidades de vida. A
Ética Intercultural buscaria mostrar o “sentido profundo” da re-articulação das mudanças
dos diversos imaginários e sua vinculação com as complexas formas de “vida” que
surgiram nas grandes cidades. Neste sentido, desperta interesse o estudo dos novos
imaginários que operam na vida cotidiana dos sujeitos e das comunidades nas quais se
integram as formas tradicionais e as midiáticas que reproduzem a vida de "outros
mundos" pelos grandes Meios de Comunicação Social. Vamos explicitar três aspectos
da atual transformação cultural neste marco intercultural: em primeiro lugar, precisamos
da forma do olhar e do encarar estas novas formas de vida; em segundo lugar a reflexão
do sentido da crise valórica presente; e por último, suas repercussões sobre ethos de
uma comunidade determinada e sua eventual vinculação com outros ethos.
a) a) O “lugar” em que habitamos e do qual olhamos
A Ética que propomos responde à pergunta teórica de um “saber” que surge de
um “saber viver ou não viver”, que é próprio do homem. A ética em questão pretende a
explicitação deste saber cotidiano. Por isso, uma das primeiras questões tem que ver
com as questões que permitam ascender à compreensão das formas de vida. É
freqüente que as éticas contextuais, que respondem às mudanças socioculturais, tendam
a definir um olhar da ação humana desde as grandes concepções prevalecentes e
hegemônicas que não põem em questão as formas de segregação do corporal e do
urbano. Por exemplo, para entender a Grande Cidade, poderse-ia insistir numa visão
antropológica de "cima", desde os grupos acomodados, dos que "vivem bem", dos que
levam "vida boa, linda", mas sabemos, e as ciências sociais nos ensinaram que, no
pensamento popular e indígena, existem tensões e jogos polivalentes entre as tradições
em contato, tal como o mostra García-Canclini; outro exemplo que provém da história,
apresentado por Gruzinsky nos ensina que não podemos considerar a história das formas
artísticas indígenas a partir das formas "civilizadas" dos conquistadores. A ética
intercultural não pressupõe que um sujeito ou um grupo esteja vivendo uma “vida boa”,
porém, requer uma olhada que postula a ‘problematicidade’ deste viver bem. No primeiro
exemplo, trata-se de entender a Grande Cidade a partir dos outros “mundos de vida” dos
que não têm voz, dos que não aparecem nos grandes meios de comunicação, de outros
mundos que são marginais. No segundo exemplo, trata-se de ver que existem pontos de
vinculação entre as tradições.
Não se trata de partir de uma ingênua “convivência urbana”, segundo o conceito
defendido pelas elites liberais, mas de reconhecer que todos os espaços estão
impregnados de uma história de quebras, de dominações e de memórias que foram
caladas, e que sobrevivem de certo modo nos herdeiros. Não se trata tanto de refletir a
convivência num marco espacial comum, porém, de reconhecer que, desde as origens de
nossa história, estamos enfrentados por um processo de delimitação de territórios e
espaços próprios, que são defendidos contra dos “outros”, ou ao menos separados.
Porém, não se trata apenas de discutir os olhares prevalecentes para compreender a
apropriação da Urbe, e de precisar as diversas formas de ocupar e demarcar o grande
território urbano, mas, de repensar as contraditórias e mescladas figuras do mundo no
qual vivemos. A discussão dos imaginários do território e da espacialidade é relevante
enquanto ilustra, empiricamente, as formas nas quais os habitantes se sentem parte ou
se sentem segregados ou distanciados.
Mas o tema é mais profundo, a questão do território e do espaço urbano nos leva
a uma discussão de uma “comunidade de corpos”, em que o sentido de viver juntos em
coordenadas, que não são empíricas ou naturais; porém, são político-morais. Essas
coordenadas possibilitam falar de localização e de regionalização, quando os grandes
meios, que a globalização traz consigo, nos seduzem, ideologicamente, a viver
virtualmente em outros espaços?. Tanto no espaço urbano como nos espaços nacionais,
como nos espaços imaginados, os indivíduos e as comunidades, enraizadas em culturas
diferentes, estão obrigados a distinguir-se, a reconhecer-se ou não, umas ao lado das
outras, a coexistir em conjunto, a tolerar-se, a repelir-se ou a eliminar-se. Este olhar
contextualizado das normas e valores é indubitável para que se acelere, hoje, uma maior
conflitividade sobre as formas espaciais de reconhecimento da cidadania, como
demonstra Kymlicka.
Todas as formas de território e de espacialização das culturas tradicionais como
as culturas urbano-modernas experimentam uma crescente “perplexidade” a respeito
das diversas formas de encontrar-se e desencontrar-se em meio à perda de valores e
nascimento de outros, da anomalia juvenil, da insegurança crescente dos que habitam a
vida urbana da impossibilidade de estarem seguros em “sua própria casa”, da presença
ameaçadora da mulher numa cultura ‘machista’ e no marco de uma vida social cada vez
mais competitiva. A perplexidade e o desencanto é parte do que alguns concebem como
decadência e outros, como “crise moral”, e isso nos remete a uma discussão sobre o
tema do sentido da mudança e, portanto, nos leva ao problema da temporalidade.
b) b) O sentido histórico da crise moral.
Alguns autores conservadores latino-americanos reivindicaram da mesma forma
como seus homólogos europeus, que esta problemática tem que a ver com um mal-estar
profundo pela perda das antigas formas valóricas que asseguravam a tradição; para eles,
o que se tem levantado é uma catástrofe. Por outro lado, os pós-modernistas
tematizaram essa situação de perda como uma “crise de certezas”, “perda de sentidos”
da vida em comum, festejando a perda dos grandes relatos. Entre a catástrofe e o
pessimismo, e a festa do capitalismo internacional, consideramos que há outras
alternativas. Serrano nos indica que: “A crise de nosso tempo é, essencialmente, uma
crise ética e cultural. Depois e como conseqüência é una crise política, econômica e
social. Padecemos a adulteração dos fins mediante a suplantação de uma consciência
moral pelo consumismo e a inautenticidade”23[23].
Poderíamos partir de um acordo inicial com os pós-modernos, enquanto que um
olhar não universalista, contextualizado da ação em culturas latino-americanas, em que
23[23]
Serrano Alejandro, “Política”, em Boletín de Filosofía-UCSH ya citado, p. 54.
primou historicamente uma “dialética da negação do outro”, faz surgir sérias dúvidas de
existiram "tempos melhores" em nosso passado próximo e remoto como sustenta o
conservadorismo, e que a afirmação de que todo tempo passado foi melhor, teria que ser
interpretada como parte de um mecanismo ideológico que termina estreitando as
tradições morais, nas quais se esvazia a tradição de sua dinâmica inerente, da qual
havíamos falado acima. O olhar instalado pela Ética Intercultural assume a perda de
valores e normas numa tensão com o surgimento de outros valores e normas. Nunca o
ser humano se encontra desprovido de valores e normas, porque é neles que se
desenrola e encontra sentido, ou não, para sua existência. O que ocorre é que devemos
referir os valores a uma existência aos que se têm estendidos e consolidados. É no
tempo humano das culturas, em que aprendemos a valorar e viver no mundo. Portanto,
“o humano” sempre está definido e situado a partir de tradições dinâmicas. Essa
indicação torna difícil e complicada uma noção como a de "destradicionalização" dos
valores e das normas que propõe Brunner. Se não for correto afirmar de que o tempo
humano possa ser excluído, isso levaria a aceitar que os valores e normas se definem de
modo temporal, isso nos faria a aceitar parte da tese dos conservadores sobre o papel
insubstituível das tradições na vida em comum, no conviver juntos que é cultural e
portanto sempre ético.
Neste sentido nos encontramos com um certo acordo no “diagnóstico cultural” das
sociedades latino-americanas,
o que, desde diferentes perspectivas, autores muito
diversos e instituições dissímeis (Estado, Igreja, Universidade, ONG) denominariam uma
“crise” social, cultural, em nossa opinião, “ética”. Todavia, seria inadequado considerá-la,
como já havíamos argumentado, como algo apenas pertinente às culturas de hoje; uma
afirmação dessa natureza esconde uma filosofia da história discutível. Em termos
filosóficos é discutível uma inflação da crise como um fenômeno exclusivo de nossa
cultura latino-americana. As “crises” são sempre variadas, por exemplo, a via de
fundamentação das ciências ou o fracasso de formas sociopolíticas universais para reger
as diversas civilizações do Planeta. Talvez nossa dificuldade cultural maior é
compreender hoje esta falta de certezas depois de um processo histórico que absolutizou
as crenças no progresso da certeza propugnada pelo racionalismo e pelo positivismo.
Tratar-se-ia de eliminar a metáfora ilustrada da “maioridade” do Iluminismo, por uma
metáfora mais humilde da época pós-iluminista: de ir aceitando lentamente que “a atual
crise de certezas” corresponde a um estado de ruptura de uma crença que nos impede
avançar para atingir a vida adulta, e apenas superando as crenças infantis, como diria
Ricoeur. Poderíamos,assim, suscitar uma crença pós-crítica.
Nesse plano a ética intercultural se situa de fato num terreno em que se requer
afirmar, no meio de uma inevitável crise do sentido histórico da civilização, que formou a
modernidade,
a do "mundo ocidental", para abrir-nos para riqueza de um mundo
multipolar. Esta crise conduz para a abertura e o reconhecimento de outros mundos de
vida. A Ética Intercultural considera que a forma de assimetria atual não é apenas parte
de uma globalização econômica dos conglomerados mundiais que se distribuem hoje no
mundo; mas, é parte também, como nos ensina a história da dominação dos Estados
nacionais e das diversas etnias poderosas que impuseram, muitas vezes, com formas
abusivas e aberrantes, a construção de um mundo de vida assimétrico, em que se
autoconcebem e buscam reproduzir olhares e modalidades de vida autodefinidas, desde
uma humanidade abstrata, como as mais apropriadas de um “único” mundo humano.
Os problemas de uma ética intercultural têm que ver com os conflitos valóricos
das sociedades latino-americanas que têm interagido, desde suas origens e de uma
lógica do poder, da assimetria, em quer não existiu, em forma permanente, entre seus
intelectuais, um verdadeiro debate dos valores e normas aceitáveis para instaurar
sociedades autenticamente humanas. Poder-se-ia citar um texto de Carlos Fuentes em
Valiente Mundo Nuevo: “algum dia, talvez, saberemos ver nossa história como um
conflito de valores no qual ninguém é destruído por seu contrário, a não ser,
tragicamente, cada um se revolvendo no outro. A tragédia, será assim, praticamente,
uma definição de nossa mestiçagem”24[24]. A ética intercultural surge do diagnóstico de
um mundo ferido pela guerra, pela violência e pelo poder, mostrando que a crise cultural
que afeta a totalidade de culturas tradicionais e modernas, é parte de uma crise da
humanidade como não-idêntica a uma sociedade moderna que impôs uma lógica comum,
nos últimos séculos, das “verdades” dos “bens públicos”, em que se tentou “civilizar” os
outros, “os bárbaros”, os que não têm o saber nem o atuar corretos.
Dito desse modo, o grande problema que se situa nesse tipo de ética é a
reinterpretação da memória das vítimas, dos que sofreram e dos que já não estão mais
para narrar sua própria experiência de horror. Como indica Dussel, “A Ética é crítica,
desde as vítimas, desde a alteridade. É o ‘ético’ enquanto tal, ou o face a face como
encontro de sujeitos práticos”25[25]. A Ética, neste sentido, não é apenas a discussão de
um saber viver válido para o presente ou um projeto de convivência; mas é aquilo que
exige a recuperação, ao menos parcial, dos acontecimentos trágicos que se utilizaram
para fazer calar ou esquecer por razões de conveniência ou de utilidade. A voz das
vítimas não é possível calar, já que sem elas cairíamos numa conversação truncada.
c) c) A dinâmica do ethos, chave de uma discussão da globalização cultural.
Parece-nos que, a partir deste ponto de vista da memória, se poderia interpretar
por uma chave valórica uma parte importante do debate identitário, que se deu no
pensamento latino-americano, a respeito do caráter imposto pela modernização e pela
modernidade durante os 20 últimos anos na América Latina. Os autores latino24[24]
25[25]
Fontes: citado por Serrano, em Artigo “Política”, p. 54.
Dussel Enrique, Etica de la Liberación, livro citado, p. 619.
americanos
mais
relevantes
desde
nossa
perspectiva
(Morandé,
Scannone,
Hinkelammert, Dussel, Brunner, García-Canclini)26[26], apesar das múltiplas e dissímeis
questões que eles propõem em seus textos, discutindo um grande problema valórico de
fundo: as transformações culturais próprias de sociedades que se modernizam na
periferia. Essa discussão tem uma vinculação fundamental com o problema que nos
ocupa aqui: qual é o papel dos valores na vida social, ou, se quisermos, numa linguagem
mais hermenêutica, qual é o peso das tradições morais na conformação de uma ordem
moral que permita superar a des-regulação econômica, erótica e pedagógica das
comunidades que a globalização comporta?
Nessa perspectiva da globalização cultural, sabemos que os valores culturais
tradicionais não são incorporados, mas são
apresentados numa forma tangencial e
utilitária: consideram-se na medida em que elas possam dar origem a novos "produtos
culturais" elaborados pelas indústrias culturais. "Por indústrias culturais entendemos todo
o setor de bens e serviços culturais que são produzidos, reproduzidos, conservados ou
difundidos, em série, aplicando-se uma estratégia do tipo econômico"27[27]. O relevante é
que estas indústrias têm uma influência decisiva em propor valores e pautas de
comportamento no imaginário das populações que consomem valores de outros, na qual
a TV, por exemplo, permite ver a riqueza e a pobreza dos outros. O que importa é que
esse tipo de empresas tem uma dupla lógica na qual com, freqüência, se encontram
tensões que devem resolver-se, apelando ao contexto: o tema da violência e do sexo que
se torna obsessivo a educadores e moralistas.
A Ética Intercultural não estabelece o tema da dinâmica dos valores desde a
perspectiva religioso-moral ou de um olhar conservador do passado, porém tenta mostrar
26[26]
Salas Ricardo, “Hermenéutica y Modernidad en América Latina”, em Teología y Vida 1-2 (1997), pp.
39-56.
27[27]
Subercaseaux Bernardo, Artigo citado, p. 185.
como a crise tolera convergências e divergências valóricas que dependem dos contextos
culturais nos quais se localizam os indivíduos e as comunidades. A tese implícita é que
não somos atentos ao tipo valórico de aceitação ou refutação das comunidades.
Podemos ver-nos confrontados com condutas cada vez mais de rupturas com a "ordem
econômica mundial" dos conglomerados poderosos. A Ética Intercultural é justamente
uma forma reflexiva que expõe o despenhadeiro de violência e o fundamentalismo no
qual cai uma cultura que se nega a assumir esse jogo de “intercâmbios”, para o qual nos
empurra a globalização. Porém os intercâmbios remetem, de acordo com os dados que
nos proporcionam as teorias sociológicas, antropológicas e econômicas, não apenas aos
bens simbólicos, mas para a conformação de um processo de produção e distribuição
dos bens materiais que asseguram a vida humana28[28].
Na medida em que os valores das culturas e suas formas de apreciação do que é
necessário para suas vidas não são consideradas, alguns autores afirmam que a ordem
neoliberal é o espelhismo de uma ordem que, na verdade, é uma desordem econômica
superlativa, irracional e profundamente excludente (Hinkelammert)29[29]. Se esse
diagnóstico ético for correto, dever-se-ia indagar o modo como as pessoas e as
comunidades asseguram a sobrevivência de sua vida através da satisfação das
necessidades que permitam a vida em comum. A Ética Intercultural é um saber da vida
limitada e precária, da dor e da força dos sobreviventes que devem pensar nas novas
condições básicas para reproduzir a vida humana comunitária e pessoal: isso é válido
para as gerações precedentes que sobreviveram num país devastado pelas guerras e
será, provavelmente, válido para as gerações futuras que “viverão” num planeta que se
degrada cada vez mais. Não, é então, uma ética “ressentida” nem uma opção de
derrotados, mas é uma ética portadora de esperança para as vítimas que sobrevivem às
28[28]
29[29]
Dussel Enrique, La Etica de la liberación, livro citado, p. 618.
Hinkelammert Franz, El nihilismo al desnudo. Los tiempos de la globalización, Santiago, LOM, 2001.
limitações e à tragédia do humano, como qual nos mostram as vítimas dos Horrores do
século XX.
Nesse sentido o primeiro problema que se delineia é como "conviver bem" na
interação com a hegemonia das formas culturais dominantes de fato, que hoje são as
mercantilistas que preconizam o consumismo desenfreado e a concorrência desigual,
mas que podem chegar a ser diferentes, e outras mais complexas começam a surgir
lentamente nas sociedades opulentas, a saber: a xenofobia, a senefobia, a ecofobia. O
barbarismo dessas formas não é apenas produto de um poder exterior, mas tem sua
irrupção posssibilitada em sociedades como as nossas - que não viveram todas as
etapas como nos grandes conglomerados- pelos dinamismos internos de nossas
comunidades e subjetividades
que conduzem a situações éticas, cada vez mais
complexas30[30], porque questionam a bondade natural do ethos popular (Volk) e de um
homem naturalmente são.
O debate valórico sobre a modernização e a modernidade resume, em parte, o
problema econômico e cultural que foi vivido pelas sociedades latino-americanas nas
duas últimas décadas. A reflexão se desenvolveu num âmbito teórico que conduzia à
primazia da racionalidade instrumental acima da racionalidade prática. Não se detectou a
cruel conseqüência cultural do modelo econômico neo-liberal na América Latina, a não
ser nos trabalhos pioneiros de Morandé, Hinkelammert, Brunner e García-Canclini dos
anos 80, para mencionar alguns dos teóricos que nos parecem mais agudos. São eles os
que nos puseram na pista de que o problema central de uma Ética Intercultural consiste
nas inter-relações do Ethos da Identidade cultural no marco da globalização cultural.
30[30]
Holenstein Elmar “L’herméneutique interculturelle”, em Revue de Théologie et de Philosophie, N° 126
(1994), p. 33
A discussão sobre o ethos na América Latina gerou diversas polêmicas: uma
delas é a que foi levantada na Argentina por uma hermenêutica das tradições (Kusch) e
uma teoria crítica (Roig), que pode ser analisada também em outros países. No Chile, é o
debate que foi suscitado por Morandé e Brunner. Porém o relevante da questão, hoje,
consiste em assumir o tema do ethos como o fenômeno da moralidade efetiva do
indivíduo e da comunidade. Por isso assumimos
a indicação de R. Maliandi que
considera que “Ethos se refere, em primeiro lugar, ao conjunto de atitudes, convicções,
crenças morais e formas de conduta, seja de uma pessoa individual ou de um grupo
social ou étnico”31[31]. A noção de ethos não leva implícita e necessariamente para uma
postura essencialista, como crítica à razão32[32], mas simplesmente alude à facticidade
normativa que acompanha inevitavelmente a vida humana; porém, é nas culturas, como
nas nossas, que assumem o marco da modernidade
de onde irromperam diversos
processos modernizadores no seio das culturas tradicionais, que remetem para uma
pluralidade de códigos ou sistemas de valores. Portanto, o ethos deve ser dessubstancializado e analisado sob uma idéia plural ou multiforme seguindo a noção
dinâmica da identidade citada no início.
A tematização do ethos próprio e dos ethos alheios permite, em princípio, que
todo ser humano e que toda comunidade possa ajustar seu obrar a determinadas
normas, e poder assim mesmo, julgar os atos humanos, próprios ou alheios, de acordo
com a adequação de tais atos àquelas normas e com valores aceitos. Isto significa que
existe um saber moral de caráter pré-filosófico que se pode tematizar33[33]. A Ética
Intercultural não se reduz, todavia, a esse saber pré-teórico, já que a ética remete a uma
reconstrução de um saber sapiente. Entre ambos saberes existe uma permanente
interrelação. Poder-se-ia dizer que existe uma circularidade entre a reflexão filosófica do
31[31]
Maliandi Ricardo, Etica, conceptos y problemas, Buenos Aires: Biblos, 1991, p. 14.
Larrain, Razón y Modernidad en América Latina, Santiago, Ed. Andrés Bello, 1996, p. 176
33[33]
Maliandi Ricardo, Etica, livro citado, p. 23
32[32]
ethos de uma comunidade e a experiência moral concreta. Maliandi afirma que a ética
tem que interpretar a experiência moral, mas precisa por, sua vez, ser interpretada
porque ela mesma faz parte do ethos34[34]. Essa indicação ajuda-se a refletir sobre o
problema de Gadamer, leitor de Aristóteles, ao considerar que este havia aceito quando
mostra que o esclarecimento dos fenômenos permite à consciência moral de que ela
possa esclarecer-se a si mesma..
Isso conduz para que consideremos que o problema próprio de uma ética
hermenêutica é o da mediação histórica do normativo/valorativo com a respectiva
situação prática e o saber moral. Deve-se procurar uma mediação entre estes fatos e as
exigências morais gerais. O agente tem que chegar a compreender que sua ação é um
fato do qual ele é por, sua vez, produtor e produto, porque se "efetua num horizonte de
sentido" que ele não pôs. A razão é insuficiente para uma pretensão de justificação
universal sob a qual possamos "subsumir" no particular35[35].
Todas essas indicações gerais ajudam a esclarecer a relação existente entre o
ethos e a problemática da identidade cultural. Os textos
consagraram a temática da
latino-americanos que
"identidade latino-americana" retomam um denominador
comum: encarregar-se do imaginário dos anos 60, que segundo a postura de
Subercaseaux "teve como eixo uma vocação para a construção histórica da utopia,
vocação que teve como porta-vozes privilegiados os intelectuais e criadores"36[36]. Nos
encontros sobre identidade latino-americana, dos quais temos participado, poder-se-ia
indicar que um dos problemas importantes é o que tem a ver com o reconhecimento e o
desconhecimento que nós, intelectuais temos da efetividade, da eticidade, dos nossos
34[34]
Maliandi Ricardo, ibid. p. 83.
Maliandi Ricardo, ibid., p. 84.
36[36]
Subercaseaux Bernardo, Artigo citado, p. 183
35[35]
povos. Não me refiro apenas a uma dimensão histórica, mas, eminentemente cultural dos
ethos dos que constituem os sujeitos e as comunidades históricas na América Latina.
A crise moral que afeta nossos países é uma crise de sujeitos, individuais e
comunitários, porém, é também uma crise dos intelectuais que não conseguem plasmar
um discurso que exceda à experiência dos sujeitos individuais. Dito dessa maneira, o
problema da identidade tem a ver com o que nos
constituiu e nos constitui como
comunidades (=a identidade cultural dos nossos países), porém o problema é como
articulá-lo com os processos identitários (identidade pessoal). Parecia, segundo o juízo
de alguns intelectuais, perseverar numa vocação de mudança e de protagonismo cultural
- impossível na atual situação da crise. Esses intelectuais enfatizam uma imagem do
apocalipse que esconde
uma concepção do saber moral de nossos povos e que
repercute também nos outros valores culturais que lhe são associados: respeito,
autenticidade, justiça, solidariedade, que tem relevância na conformação de um ethos.
Valores que ao serem desconhecidos ou minguados impedem esclarecer os níveis de
consciência e protagonismo que ainda podemos alcançar na vida comunitária e pessoal.
A discussão de uma Ética Intercultural não consiste em advogar pela recuperação
de um novo papel dos intelectuais na vida social, porém consiste em argumentar sobre a
necessidade e pertinência de elaborar um saber reflexivo sobre a dita experiência moral.
O "nosotros" não pode separar-se de uma forma concreta de valorar, ser um si mesmo é
decidir o que é o próprio e não valorar as coisas através das “lentes” dos outros. Nesse
exercício, constatamos uma ausência dos intelectuais que têm decidido empreender a
discussão intelectual, não apenas na academia, mas na Àgora. Parece-nos que um novo
discurso original e vigoroso na, América Latina, deveria assumir estas contradições
culturais em que vivem os sujeitos e as comunidades e exercer uma
perspectiva
interdisciplinar que, em vez de ceder ao derrotismo e ao desânimo, possa gerar um
esforço reflexivo mais animador, tal qual esboçamos numa ética como proposta.
3. Projeções de uma Ética Intercultural no pensamento latino-americano.
As projeções de uma Ética, como já descrevemos, são de grande atualidade e
pertinência para interpretar os tipos de ação que geram as comunidades humanas e os
sujeitos no interior dos contextos culturais específicos. Este tipo de ética sintetiza-se na
frase de Jean Ladriére: “o momento propriamente ético, no qual se revela a eticidade da
situação, se apóia num momento interpretativo no qual se revela o constitutivo próprio da
situação, uma essência concreta, tal como pode ser compreendida dentro do contexto
cultural no qual o mesmo se encontra”37[37].
Tentando uma primeira aproximação unitária ao tema e contextualizando-o a partir
dos desafios atuais, parece-nos que a interculturalidade refere-se a um tipo de sociedade
na qual as comunidades étnicas, os grupos, as classes sociais e os povos, possam
reconhecer-se em suas diferenças e buscar sua mútua compreensão e valorização, ao
menos, naquilo que for possível numa história humana. O prefixo “inter” significa, antes
de tudo, uma interação positiva que concretamente se expressa numa busca para
suprimir as barreiras entre os humanos, quaisquer que sejam seus traços identitários e
reconhecendo, inclusive, a possibilidade de zonas obscuras ou abismos38[38]. Isso
pressupõe, de per si, a busca de instâncias dialogais que estejam enfocadas para
alcançar o máximo de aceitação mútua e de
colaboração entre culturas que se
entrecruzam.
37[37]
38[38]
Ladriere Jean, L’Éthique dans l’univers de la rationalité, Namur, Artel, 1997, p. 51.
López Sirio, Etica de la liberación, Rio Grande, 2000, tomo III, p. 106
A idéia chave aqui é avançar para uma noção de interculturalidade como uma
forma reflexiva de dar conta da ação/reação no meio de situações culturais conflitivas.
Trata-se de responder à questão central de uma teoria da decisão e do protagonismo
moral e cultural dos sujeitos. Num marco de um certo desalento cultural e imobilismo de
sujeitos e movimentos sociais, que tendem contagiar a todos os âmbitos da vida
cotidiana, estas idéias podem parecer estranhas numa época do pensamento único, mas
parecem que são os que podem resolver, em forma teórica, o imobilismo, o laissez-faire
e "a moral do camaleão" deste pensar economicista que a tudo impregna. Sabemos que
a noção ética de interculturalidade está em processo de gestação e sabemos que são
muitas as perguntas que se abrem a uma filosofia que assume com franqueza a ação no
contexto. Porém já visualizamos que esta contextualização exige necessariamente a
mediação histórica dos valores em cada cultura concreta.
Todavia, não se trata de defender qualquer forma de utopismo ou decissionismo
voluntarista, como já conhecemos na história política recente da América Latina, porém,
trata-se de uma hermenêutica pragmática que tente dar conta do sentido da ação para os
sujeitos concernidos em decisões morais que, por sua vez, são sempre decisões
culturais. Nesse sentido, poder-se-ia afirmar que, não apenas na América Latina, nos
encontramos frente à necessidade de elaborar uma ética que abranja toda eticidade da
situação, mas, também, é fundamental elaborá-la para o conjunto de outros húmus
culturais, em especial para a África e em, grande parte, para a região da Ásia. Aparecem
frente a esse pensar hegemônico como “modos de vida” não viáveis. Portanto,
paradoxalmente, pode-se ponderar que, justamente nessas culturas, surgiu a
humanidade biológica e algumas das formas de espiritualidade de maior ressonância
humana.
Frente aos defensores de um pensar ideológico que enfatiza excludentemente o
predomínio do "Mundo Global", reivindicamos para as comunidades humanas e sujeitos o
projeto de articular tipos de ação no protagonismo e no conflito com vistas para a
formação, não só, por pequenas partes ou retalhos da humanidade, ou sistemas culturais
híbridos, porém reivindicamos "mundos interculturais de vida", em que se possa
manifestar, com maior plenitude, “o humano”.
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ética intercultural e pensamento latino-americano