Direito, Democracia e Legitimidade Gustavo Silveira Siqueira 1 Legalidade do Ordenamento Jurídico Partindo dos estudos de Kant, Habermas1 liga o conceito de direito à “autorização para o uso da coerção”; uso que só se justifica quando “elimina empecilhos à liberdade”. O ordenamento jurídico concede liberdade ao cidadão, mas também autoriza o uso da coerção. Dessa forma, pode-se entender o ordenamento como coerção necessária para a liberdade. A relação de lei e liberdade é controvertida: alguns vão encontrar na lei a fonte para a liberdade (Bethan, Mill, Berlin), outros vão entender a existência da liberdade apenas na brecha da lei (Hobbes). Desta tensão encontra-se como necessária a intervenção da legitimidade de uma lei para verificar se a mesma é liberdade ou não. Ou seja, aquela lei legítima, da qual o cidadão participou através do princípio democrático, é fonte de liberdade. A distinção se uma lei é afirmação ou negação da liberdade pode estar ligada à legitimidade ou não de um ordenamento. Aqueles que considerarem um ordenamento ilegítimo provavelmente encontrarão liberdade apenas na brecha do mesmo. Mas isto não quer dizer que muitas vezes estes não cumpram as normas de tais ordenamentos. Legalidade então é o apego às formas legais, legal é aquela ação que não contraria disposição da lei, ou aquela ação não prescrita na lei. O cidadão age legalmente quando cumpre as ordens legais, ou quando pratica uma ação que a lei não proíbe, ou quando pratica uma ação sobre a qual a lei nada diz. Quando o cidadão participa da elaboração da lei, quando o cidadão legítima a mesma, pode-se dizer que a lei é fonte da liberdade do cidadão. Dessa forma, pode-se dizer que a lei é liberdade. Quando o cidadão não tem participação na elaboração da lei, e sua vontade é irrelevante para a elaboração da mesma – práticas comuns nos regimes ditatoriais e nas monarquias absolutistas –, a lei não pode ser encarada como fonte de liberdade, porque o cidadão não foi livre para aderir a ela, existindo a liberdade apenas nas brechas da lei. Mestrando na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Geral, especialista em Direito do Estado e em Filosofia Política e Jurídica pela Universidade Estadual de Londrina. 1 HABERMAS, 2003, v. 1, p. 49. A concepção da lei como fonte de liberdade ou como ausência de liberdade indubitavelmente vai depender da participação do cidadão na elaboração dela ou não. Característica fundamental dos Estados de Direito, a legalidade, que ganha força com a queda das monarquias, é a limitadora das ações do Estado e do cidadão, trazendo limites para as condutas de ambos. Foi principalmente com a intenção de pautar as condutas do Estado e defender os direitos naturais do cidadão que o princípio e a idéia de legalidade ganham força. Mello2 vai dizer que “o princípio da legalidade é o antídoto natural do poder monocrático ou oligárquico, pois tem como raiz a idéia de soberania popular, de exaltação da soberania popular, de exaltação da cidadania”. Veja-se que a própria idéia de legalidade vai nascer como fundamentação para a proteção da cidadania, sendo uma forma de proteger o cidadão dos governos “não-democráticos”, reservando direitos e garantias ao mesmo. É de grande importância a valorização da legalidade, pois esta, em diversos momentos históricos, foi o escudo na defesa dos direitos do cidadão. É a legalidade que torna os direitos certos, protegidos e claros. Ocorre que a simples observância dos princípios legais não basta para que a norma possa ser enquadrada como legítima. A legitimidade de uma norma vai estar ligada a aspectos democráticos, à efetiva participação do povo na elaboração e na discussão da lei, sendo esta, no Estado Democrático, uma forma de liberdade. 2 Legitimidade do Ordenamento Jurídico 2.1 A construção da legitimidade através da legalidade – uma visão weberiana Na visão de Habermas3, Weber crê que a legitimidade está assentada na fé da legalidade. Para Weber, o direito, que reflete as normas de dominação social burguesa, é aquele que advém do legislador. Para ele, o fato de a norma atender todos os requisitos legais basta para que seja verificada a sua legitimidade. Acredita Weber que o simples fato de aqueles que exercem o poder legal legislarem é suficiente para dizer que tal legislação seja legítima, sendo legítimos aqueles 2 3 MELLO, 2005, p. 91. HABERMAS, 2003, v. 2, p.193. 2 que exercitam o poder legalmente. Na visão weberiana, a legitimidade funda-se a partir do momento em que a legalidade é estabelecida. Gòmez4, na sua análise da obra de Weber, vai dizer que este definiu a legitimidade como a crença na validade da ordem social por uma parte relevante dos membros da sociedade. Pode-se verificar que ordenamento jurídico legítimo, nessa posição, é aquele em que uma parte “relevante” da população o cumpre, ou seja, quando ele é, em parte, eficaz: O uso do conceito ‘legitimação’ remete a um processo onde aqueles que detenham o poder político buscam obter um consenso que assegure a ‘obediência habitual’, tanto dos indivíduos que fazem parte do seu quadro administrativo, como em geral de todos os que se encontram vinculados a este poder.5 Acredita também Gòmez6 que a legalidade pressupõe que os indivíduos encarem as normas que constituem o ordenamento como obrigatórias, sendo a legitimidade um instrumento importante para manter a estabilidade de uma ordem. Fazendo uma leitura de Weber, ele diz que a legitimidade é uma legenda, uma ideologia do grupo dominante, com a qual o mesmo busca justificar a sua posição, reduzindo este a legitimidade à auto-justificação dos seus atos.7 Veja-se que o conceito de legitimidade ora é ligado ao apego às formas legais, ora é ligado à eficácia do ordenamento jurídico, onde a obediência às normas é o termômetro para a verificação da legitimidade. Em um primeiro momento, Weber liga a legitimidade ao respeito aos aspectos legais. Quando Weber relaciona a legalidade também a uma eficácia, ele está inserindo um aspecto social da norma na sua legitimação, como se as pessoas cumprissem as normas legais, e este cumprimento gerasse uma legitimidade. Partindo da visão weberiana, o fato de um cidadão cumprir uma norma quer dizer que ele legitimou a mesma. Caso ele não cumpra a norma, na visão de Weber, ele não a legitimou. 2.2 Legitimação pelo procedimento – Lhumann 4 GÒMEZ, 1994, p. 7. GÒMEZ, 1994, p. 11. Versão original: “El uso del concepto ‘legítimación’ remite a un proceso donde aquellos que detentan el poder político buscan obtener un consenso que asegure la ‘obediencia habitual’, tanto de los individuos que forman parte de su cuadro administrativo, como en general de todos los que se encuentran vinculados a ese poder”. 6 GÒMEZ, 1994, p. 12. 7 GÒMEZ, 1994, p. 21. 5 3 É no procedimento que está a legitimidade das normas jurídicas, na visão de Lhumann. Na sua concepção, legítimas são as decisões (legislativas, judiciárias ou executivas) tomadas de acordo com a observância procedimental, desenvolvendo Lhumann uma teoria da legitimidade que é obtida através de processos.8 Lhumann9 define a legitimidade como “uma disposição generalizada para aceitar decisões de conteúdo ainda não definido, dentro de certos limites de tolerância”, ou seja, legítimas são aquelas decisões cujos destinatários, antes de elas serem promulgadas, já tinham uma disposição para aceitá-las. Para ele, legítima é aquela decisão que os destinatários poderiam “prever” como aceitável, é aquela decisão previsível. Em uma sociedade complexa, segundo Lhumann10, é legítimo “um poder que aceita ou até que institui o próprio processo de legitimação”, sendo a legitimação pelo procedimento ou pela igualdade da probabilidade de obter decisões satisfatórias as substitutas dos métodos de estabelecimento do consenso. Para Lhumann, não é necessário um consenso entre a sociedade ou entre os cidadãos para estabelecer a legitimidade: basta que a norma advenha do procedimento legal previamente estabelecido e, da mesma forma, que a norma seja previsível por aqueles que seriam afetados por ela. De certa forma, Lhumann acredita que os afetados pela norma previamente já tenham consciência de qual o passo que o legislador vai seguir. Como os procedimentos encontram “reconhecimento generalizado”, segundo a sua opinião, Lhumann11 desvincula a idéia da legitimidade da idéia de consenso. Para ele, a legitimidade consiste no procedimento adotado para a tomada de decisão e não no consenso para a tomada desta. As decisões (nas quais podem-se enquadras as leis, os atos administrativos e as sentenças) são legítimas quando e enquanto houver o reconhecimento de que são obrigatoriamente válidas e devem fundamentar o seu próprio comportamento. Nesta posição, Lhumann vincula a legitimidade das decisões ao respeito à sua força, sendo legítima aquela decisão que é reconhecida como obrigatória. Na visão de Ferraz Júnior, Lhumann reduz a legitimidade a uma série de decisões que reduziriam à aquela a legalidade: ...LHUMANN reduz, que reduz a legitimidade a procedimentos decisórios, pois, para este autor, bastam as regras de procedimento legal para como premissas legítimadoras; 8 HABERMAS, 2003, v. 2, p. 224. LHUMANN, 1980, p. 30. 10 LHUMANN, 1980, p. 31. 11 LHUMANN, 1980, p. 32. 9 4 sendo a função da decisão absorver insegurança, para fundar uma decisão, basta que se contorne a incerteza de qual decisão (materialmente falando) ocorrerá pela certeza de que uma decisão (formalmente falando) ocorrerá; legitimidade estaria, assim, para este autor, baseada numa certa crença na legalidade, mas propor fundamentos para esta crença não teria, então, funcionalmente, nenhum sentido, pois um dos constituintes da legitimidade estaria justamente na ficção que esta possibilidade exista, mas não seja realizada.12 Ferraz Júnior acredita que a análise de Lhumann reduz o direito a um instrumento de controle e manipulação, pois ilude o endereçado da norma, que obedece às normas enganado, sem conhecer as reais condições da sua fundamentação.13 Sendo assim, o endereçado da norma não participada da sua elaboração, não discute a constituição da mesma, conhecendo e esperando apenas o produto final da elaboração legislativa. 2.3 A construção da legitimidade a partir do princípio democrático Segundo Arroyo14, o conceito atual de legitimidade do ordenamento jurídico vem das teorias políticas contrárias ao absolutismo. Foi no início do Estado moderno, com a ascensão da burguesia contra o Estado absolutista, que essas teorias começaram a desenvolver-se. Teorias estas que transferem a legitimidade do rei para o povo, iniciando assim um princípio democrático para a justificação da legitimidade do ordenamento jurídico. A legitimidade que justifica todo o poder coercitivo do Estado sobre seus membros ocorre através do ordenamento jurídico.15 Tais teorias valorizam a importância da legalidade, expurgando sua acepção divina e real, afirmando sua ligação com a democracia, com o povo. Passa-se a não mais admitir a legalidade advinda do rei ou de deus, mas sim de processos racionais dos quais o povo tem condições de participar. Para Habermas16, é o princípio da democracia que deve estabelecer um processo legítimo de normalização. Ou seja, apenas através do princípio da democracia é que as normas positivas serão legítimas, devendo esse princípio da democracia servir também como um medium do direito. No seu pensamento, apenas o ordenamento jurídico que provém dos princípios democráticos é legítimo. 12 FERRAZ JÚNIOR, 2005, p. 173-174. FERRAZ JÚNIOR, 2005, p. 174. 14 ARROYO, 2000, p. 143. 15 ARROYO, 2000, p. 144. 16 HABERMAS, 2003, p. 146. 13 5 A legalidade é necessária até mesmo para se buscar a legitimidade. É através dos princípios democráticos legais que vão se estabelecer as regras de consulta popular (direta ou indireta) para a busca do consenso sobre uma norma. Mas o que se pretende fazer é demonstrar que o fato de uma norma ser legal não necessariamente implica que ela seja legítima. A legitimidade não brota da legalidade e sim de um processo democrático, que, claro, deve ser pautado por normas. Habermas17 crê que a legitimidade das regras “se mede pela resgatabilidade discursiva de sua pretensão de validade normativa”, em que se deve observar se as mesmas vieram de um processo legislativo racional. É da discussão na sociedade que se extraem os valores para positivação das normas, sendo legítimas aquelas que assim são elaboradas. O processo legislativo é o lugar da integração social, devendo, entretanto, tal processo legislativo estar ligado aos princípios da democracia.18 Cumpre então ressaltar inicialmente que a legitimidade das regras ou de um ordenamento jurídico não se mede por sua aplicabilidade, pela sua efetividade ou pela sua obrigatoriedade ou imperatividade19, mas sim quando aquelas observam um processo legislativo racional, que obedeça aos princípios democráticos.20 2.3.1 Eficácia do ordenamento jurídico e legitimidade Torna-se importante diferenciar também a eficácia da legitimidade do ordenamento jurídico. Eficaz é o ordenamento, é a norma que efetivamente são cumpridos ou respeitados por aqueles a quem são dirigidos. Habermas lembra que a obediência fática de uma norma depende da fé dos membros da comunidade na legitimidade das normas, o que demonstra claramente a diferença entre os dois institutos. Legitimidade existe quando uma norma tem o respaldo na sociedade, quando a mesma respeita os princípios democráticos. Eficaz é a norma que é obedecida, cumprida pela sociedade, mas percebendo-se que essa eficácia pode estar ligada à legitimidade da norma, que influi em sua aceitação pela sociedade. Os atores aceitam com maior facilidade as normas legítimas (aquelas de que eles mesmos 17 HABERMAS, 2003, p. 50. HABERMAS, 2003, p. 52. 19 FERRAZ JÚNIOR, 2005, p. 61. 20 HABERMAS, 2003, p. 50. 18 6 participaram) do que as ilegítimas (vindas de um poder absoluto ou não democrático). Perceba-se então que as normas legítimas hão de vir do princípio democrático, sendo este a sustentação delas. Sendo assim, é importante ressaltar que a eficácia de uma norma independe da legitimidade dela. Por mais que existam fatores de influência entre elas, os institutos são totalmente diferentes. Dessa forma, uma norma ilegítima pode ser eficaz e uma norma legítima pode ser ineficaz. A existência de uma ou de outra é independente. Kant21 exemplifica casos em que o cidadão, mesmo não concordando com certos atos do seu governo, cumpre as ordens e depois, da maneira correta, questiona as mesmas. Existem alguns momentos em que o questionamento pode ser prejudicial. O mesmo deve ser feito em momento oportuno, mas o importante é que a pessoa não deixe de raciocinar e busque sempre conhecer as coisas que acontecem ao seu redor. Da mesma forma funciona a legitimidade. Em muitos momentos o cidadão vai deparar-se com uma norma ilegítima, mas vai se ver compelido a cumpri-la, muitas vezes até mesmo para questionar a sua legitimidade. E outras vezes, pode o cidadão deparar-se com normas legítimas, mas pode recusar-se a cumpri-las, mesmo sabendo que são legítimas, quando, por exemplo, pratica um crime. O fato de um cidadão não cumprir uma norma que proíbe o roubo ou o assassinato não quer dizer que ele a encare como ilegítima. Nessas fundamentações, a doutrina tenta afastar a questão da legitimidade da questão da legalidade, respeitando a importância de ambos os institutos, mas declarando fortemente a independência e a diferenciação entre os mesmos. 2.3.2 O princípio democrático como fonte de legitimidade ... a força legítimadora que habita na racionalidade dos processos jurídicos comunica-se ao poder legal, não somente através das normas de procedimento da decisão judicial, mas também, em primeira linha, através do processo de legislação democrática.22 A legitimidade do ordenamento jurídico nasce a partir do exercício do princípio democrático, princípio segundo o qual todos os cidadãos podem participar da discussão e da criação das normas. É do direito de participação política que as formas de captação da opinião e vontade pública devem surgir. Para Habermas, é através da forma comunicativa que essa opinião 21 22 KANT, 1985, p. 104. HABERMAS, 2003, v. 2,. p. 219. 7 deve ser resgatada.23 É no princípio do discurso, ocorrido na sociedade, que vão surgir as normas legítimas; é do discurso que nasce o consenso para legítimar as normas. Através das discussões na sociedade, as quais devem respeitar a ética do discurso, é que as pessoas devem dialogar o que é melhor para o grupo e, através da escolha do melhor argumento, tomarem as decisões. A idéia habermasiana relembra um pouco a democracia grega, onde o cidadão discutia as leis a e ação da cidade-estado. A força legítimadora do princípio democrático faz com que o cidadão discuta e aprove a lei que ele mesmo vai ser obrigado a cumprir. É da discussão na sociedade que deve nascer a legitimação de uma norma legal. A criação ou alteração de uma norma legal que vá trazer modificações para os cidadãos deve, em uma visão democrática do direito, ser discutida e legitimada por eles. As decisões devem sempre ser tomadas respeitando os anseios do povo. A democracia exige a participação do povo nas decisões e, mais que isso, exige que ele participe do processo discursivo de criação das decisões. Esses são os parâmetros de um Estado Democrático de Direito, em que a ação do povo e dos governantes rege-se por leis, criadas pelo povo. 2.3.3 O princípio do discurso ...a teoria do direito, fundado no discurso, depende de um processo democrático de direito como a institucionalização de processos e pressupostos comunicativos necessários para a formação discursiva da opinião e da vontade, a qual possibilita, por seu turno, o exercício da autonomia política e a criação legítima do direito.24 O ordenamento jurídico é legitimado pelo princípio democrático, que se realiza na discussão feita pela sociedade. Através de regras de discussão (ou processos de discussão) e dos pressupostos comunicativos, nasce a discussão que irá legítimar a norma. A norma então nasce do consenso, da discussão, nasce da opinião e da vontade dos cidadãos. A importância dessas regras de discussão e desses pressupostos comunicativos é proporcionar o exercício da autonomia política do cidadão, permitindo que todos ajam e discutam igualmente, segundo regras estabelecidas por uma ética do discurso. O procedimento, as regras de discussão visam “proteger, antes de tudo, as condições do procedimento democrático”25. 23 HABERMAS, 2003, p. 190-191. HABERMAS, 2003, v. 2, p. 181. 25 HABERMAS, 2003, v. 2, p. 183. 24 8 É através do princípio do discurso, ocorrido dentro da sociedade, que democraticamente se obtém a legitimidade das normas jurídicas. O discurso, baseado na comunicação feita através de argumentos racionais, advém então de uma racionalidade, que é o processo de legitimação do ordenamento. Com a participação de todos os cidadãos ativos na definição da norma, exercendo estes uma ação discursiva, ou seja, baseados nos princípios da ética do discurso, a legitimidade encontra caminho para brotar. A justiça “é obrigada a tomar decisões nas zonas cinzentas que surgem entre a legislação e a aplicação do direito, os discurso acerca da aplicação do direito têm que ser complementados, de modo claro, por elementos dos discursos de fundamentação. Esses elementos de uma formação quase-legisladora da opinião e da vontade necessitam certamente de um outro tipo de legitimação. O fardo desta legitimação suplementar poderia ser assumido pela obrigação de apresentar justificações perante um fórum judiciário crítico. Isso seria capaz através da institucionalização de uma esfera pública capaz de ultrapassar a atual cultura de especialistas e suficientemente sensível para transformar as decisões problemáticas em foco de controvérsias públicas”26. É do discurso ético realizado dentro da sociedade que vai brotar a legitimidade do ordenamento jurídico. É discutindo dentro das regras da ética do discurso que os cidadãos, igualmente livres, através da força do melhor argumento, concederão legitimidade ou não as normas. Lembrando-se que, na formação consensual do discurso, na posição de Apel27 este deve ser isento de coação, a liberdade é elemento essencial para sua validade. Ou seja, aqueles que participam do discurso democrático devem agir sem sofrer coações nas suas idéias e proposições, que hão de ser livres e independentes. Buscar no discurso e na democracia a conseqüente legitimidade do ordenamento jurídico é tornar esse ordenamento dinâmico, compatível com as esperanças e com os anseios da sociedade para a qual ele foi criado. É tornar o ordenamento eficaz por uma legislação interna do cidadão, por um dever a cumprir aquilo que se legitima, podendo o ordenamento legitimado pelo princípio democrático ser alterado de acordo com as necessidades e vontades da sociedade, quebrando dogmas e barreiras que impendem a evolução desta. Para Ferraz Júnior “a legitimidade do discurso normativo repousa, pois, não em premissas incontestáveis e absolutas, 26 27 HABERMAS, 2003, v. 2, p. 183-184. APEL, 2004, p. 98. 9 mas na garantia da posição de outras possibilidades, em confronto com as quais o dogma se sustenta”28. 3 Democracia e legitimidade A participação do povo na discussão do ordenamento jurídico é base fundamental para sua legitimidade. Ocorre que nem sempre o povo participa diretamente da elaboração legal. Em determinados Estados, ou talvez na maioria dos Estados, a participação do povo nas democracias é indireta, ou seja, ocorre através de representantes. Nas sociedades complexas, muitas vezes torna-se, de fato, impossível uma participação direta do povo, impondo-se, assim, a democracia indireta para que a vida em sociedade possa existir. A democracia indireta é compatível com a legitimidade do ordenamento jurídico na visão habermasiana, como foi analisado anteriormente. O fato de um Estado adotar a democracia indireta para a criação das leis, por exemplo, não indica que seja ilegítimo o ordenamento jurídico desse Estado. Para que tal ordenamento seja considerado jurídico, inicialmente é necessário que o princípio democrático e as possibilidades de discussão das normas existam dentro das comunidades. É importante que o representante seja escolhido legitimamente e que suas decisões estejam de acordo com os anseios e desejos daqueles que o legitimaram. É necessário que o representante do povo promova as discussões na sua base, para legitimar a sua decisão perante os demais representantes. A discussão não deve acontecer apenas nas casas legislativas, entre os legisladores eleitos, mas também e principalmente dentro da sociedade, de forma que a decisão de um representante só será legítima se respeitar as decisões da sua base. Isso posto, toda e qualquer decisão tomada por um representante do povo deve ser clara e pública, pois cabe àqueles que o elegeram verificar se ele respeitou as decisões daqueles que lhe outorgaram o mandato. Qualquer decisão de um representante que não seja discutida na sociedade ou que não seja pública aos membros da sociedade é ilegítima. Da mesma forma, é preciso que o povo seja esclarecido (exatamente na acepção do Aufklarung kantiano), para que possa discutir claramente as normas e suas implicações. É necessário que o povo tenha pleno 28 FERRAZ JÚNIOR, 2005, p. 180. 10 conhecimento da realidade e formação básica para entender os reflexos de suas decisões para que tenha condições de julgar utilizando sempre o critério do melhor argumento quando for tomar as suas decisões. A educação e o esclarecimento do povo são fundamentais para a existência de uma democracia; um sistema de governo onde o povo não tem educação e participa do mesmo sem pleno conhecimento das suas ações, sem conhecimento do sistema e sem educação básica para sobreviver não passa de um sistema demagogo. 11 Referências bibliográficas APEL, Karl-Otto; OLIVEIRA, Manfredo de; MOREIRA, Luiz. Com Habermas, contra Habermas: direito, discurso e democracia. São Paulo: Landy, 2004. ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Trad. André Duarte. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. ARROYO, Juan Carlos Velasco. La teoría discursiva del derecho: sistema jurídico y democracia en Habermas. Madri: Boletín oficial del Estado y Centro de Estudos Políticos y Constitucionales, 2000. BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. 4. ed. Trad. Alfredo Fait. Brasília: UNB, 1997. BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 9. ed. Trad. Carmen C. 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São Paulo: Martins Fontes, 2004. 13 RESUMO Neste artigo, o autor pretende fazer uma relação entre a legitimidade do direito, a eficácia da norma jurídica e a democracia no Estado de Direito, procurando distinguir a legalidade da legitimidade do direito, assim como a legitimidade da eficácia do direito, tendo como marco teórico a teoria do direito de Jürgen Habermas. Após, constrói-se uma relação entre a legitimidade do direito e a democracia, sendo legítimo o direito que advém de um processo legislativo democrático no qual a discussão é travada no seio da sociedade e com a participação esclarecida dos cidadãos. Palavras-chave: direito, democracia, legitimidade, habermas. ABSTRACT In this article, the author wants to make a relation between the legítimacy, the effectiveness of the law's rule and the democracy in the Constitutional Democracy, trying to distinguish the legality of the law, just like the legítimacy of the effectiveness, having as a theoretical landmark the theory of law of Jürgen Habermas. Then,L a relation between the legítimacy and democracy is made, being legítimate the law that comes from a democratic legislative process, in which the quarrel is made within the society and with the participation of the citizens. Keywords: law, democracy, legítimacy, habermas. 14