PROCEDIMENTALISMO VERSUS SUBSTANCIALISMO: UM “DIÁLOGO HIPOTÉTICO” ENTRE HABERMAS E STRECK (Categoria: Revisão Bibliográfica) Tiago Brene∗ RESUMO: Expõe as principais características das teorias procedimentalista e substancialista do Direito. Apresenta a crítica de Lenio Luiz Streck à teoria procedimentalista, bem como à concepção procedimentalista de democracia de Jürgen Habermas. Foca-se nas justificações e nos argumentos levantados pelos autores, para a fundamentação das teorias em análise. Restringe-se, por fim, a uma breve abordagem sobre os reflexos na forma de conceber a jurisdição constitucional ou sobre as perspectivas para a atuação do Poder Judiciário propriamente dito, sob o olhar de cada corrente filosófica. Conclui que ambas as teorias pretendem alcançar um mesmo fim, a saber, uma sociedade mais equânime e justa, outorgando ao Direito um importante papel na persecução destes fins. Todavia, verifica-se uma divergência no tocante a definição do limite entre o sistema jurídico e o político, bem como sobre o papel que o Judiciário deve desempenhar nem um Estado Democrático, cujo modelo historiográfico revela um déficit de implementação de princípios e valores inerentes aos direitos fundamentais e, que, se encontram positivados em nível constitucional. PALAVRAS-CHAVE: Filosofia do Direito, Procedimentalismo, Substancialismo. SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. PROCEDIMENTALISMO E SUBSTANCIALISMO: CONSIDERAÇÕES GERAIS. 2. A CRÍTICA DE ESTRECK À TEORIA PROCEDIMENTALISTA. 2.1. O PROCEDIMENTALISMO EM FACE DA REALIDADE BRASILEIRA. 3. SUPERAÇÃO DE PARADIGMAS E O PAPEL DO JUDICIÁRIO. 3.1. EVENTUAL RESPOSTA CONTRA-ARGUMENTATIVA DE HABERMAS. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS. INTRODUÇÃO Após a segunda guerra mundial, tratada por muitos autores como segundo pós-guerra, a estrutura normativa e o papel do Direito tornaram-se objetos de investigação das mais variadas áreas do conhecimento. Considerando a grande complexidade e o entrelaçamento de áreas como política, economia, sociologia e o próprio direito, tem-se uma contínua e dinâmica revisão dos fundamentos do sistema jurídico. Muito mais do que um simples debate teórico ou meramente acadêmico, as diversas teorias e revisões econômicas, Aluno do 4º ano de filosofia da Universidade Estadual de Londrina, membro do projeto pesquisa “A Relação entre a Moral e o Direito na Filosofia de Jürgen Habermas”. 2 sociológicas e filosóficas tendem a propiciar eventuais mudanças no itinerário políticojurídico de ordenamentos jurídicos. Em linhas gerais, trata-se de investigações que perscrutam a legitimidade de ordenamentos jurídicos históricos, isto é, quando tais ordenamentos são espelhados em face de suas comunidades. As teorias procedimentalista e substancialista apresentam-se como correntes de tradições filosóficas. Muito embora seja possível identificar traços marcantes em ambas as correntes, não se pode falar em ideologias. As duas teorias pretendem superar o paradigma da filosofia da consciência. Os substancialistas cobram a realização histórica para os estados latinos tal como, supostamente, ocorrera nos países do hemisfério norte, o que faz lembrar, timidamente, uma filosofia da história de cunho hegeliano, e, de certa forma, o materialismo histórico de Marx. Nesta perspectiva, os valores a ser realizados devem ser apreendidos historicamente a partir da sociedade, por assim dizer. Os procedimentalistas, por seu turno, pretendem superar tanto o paradigma do direito liberal quanto o paradigma do direito republicano, voltando-se para captação dos valores que são construídos comunicativamente em situações ideais de fala, nas quais todos os indivíduos, autônomos, podem deliberar. O desdobramento da discussão entre procedimentalismo e substancialismo é enorme. Mormente, no Brasil, bem como em diversos países classificados como países em desenvolvimento, o escopo repousa sobre a atuação do Poder Judiciário, como mandatário para efetivar certos princípios positivados em âmbito constitucional. Disso resulta, ainda, uma discussão muito peculiar no tocante a intervenção do Judiciário no que se refere à realização de políticas públicas. O presente trabalho abre mão desta discussão, para centrarse nos argumentos e fundamentos de cada corrente. Um pequeno passo, porém, vai além da análise dos fundamentos para pontuar questões pertinentes à jurisdição constitucional, isto é, a justiça constitucional enquanto atividade das supremas cortes. Neste contexto, toma-se duas obras como referência para a proposta de confronto teórico: Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Uma nova Crítica do Direito, do professor Lenio Luiz Streck e Direito e Democracia: Entre Facticidade e Validade do filósofo alemão Jürgen Habermas. 3 1 PROCEDIMENTALISMO E SUBSTANCIALISMO: CONSIDERAÇÕES GERAIS Um primeiro ponto que deve ser fixado para esse estudo é o fato de que, tanto os procedimentalistas (HABERMAS, 1997) quanto os substancialistas (STRECK, 2004), partem de um mesmo pressuposto: estão tratando de modelos democráticos. O desdobramento constitui-se, portanto, de um lado uma concepção formal ou procedimental de democracia, e, de outro lado, a concepção material ou substancial. Segundo Habermas (1997, vol. 2. p.183) “o paradigma procedimentalista do direito procura proteger, antes de tudo, as condições do procedimento democrático. Este apego, por assim dizer, ao procedimento democrático implica que a qualquer momento um determinado tema poderá ser debatido na esfera pública política. Isto pressupõe, porém, o acatamento da opinião pública, tanto por parte de um parlamento quanto por parte da administração. A partir da referência a D. Grimm, Habermas assevera que: O paradigma procedimental do direito orienta o olhar do legislador para as condições de mobilização do direito. Quando a diferenciação social é grande e há ruptura entre o nível de conhecimento e a consciência de grupos virtualmente ameaçados, impõem-se medidas que podem “capacitar os indivíduos a formar interesses, a tematizá-los na comunidade e a introduzilos no processo de decisão do Estado. (HABERMAS, 1997, vol. 2, p. 185). Para Habermas (1997, vol. 2, p. 186), o núcleo procedimentalista seria a mediação recíproca entre a soberania do povo, institucionalizada juridicamente, e, a nãoinstitucionalizada. Se por um lado Habermas é enfático em privilegiar o procedimento democrático, por outro lado, Streck (2004, p. 149), questiona de forma escancarada, tendo em vista valores e principios constitucionais: qual dimensão do direito que deve ser privilegiada? Embora Streck (loc., cit) mencione timidamente, a discussão está envolta das Concepçõe s de liberdade negativa e liberdade positiva1. É a partir da concepção positiva de liberdade 1 A liberdade segundo o paradigma liberal é denominada liberdade negativa, a qual garante ao indivíduo que o Estado não irá interferir na sua intimidade ou subjetividade, são os chamados direitos de defesa. A liberdade segundo o paradigma republicano é denominada liberdade positiva, a qual está voltada para o bem comum, 4 (embora não diga isso expressamente) somada ao princípio da democracia que Streck vai apresentar o Estado Democrático de Direito como um novo paradigma. Assim, assevera Streck (2004, p. 153) que, “os procedimentos democráticos constituem, por certo, uma parte importante, mas só uma parte, de um regime democrático e têm de ser verdadeiramente democráticos no seu espírito”. Para compreender tais correntes, é preciso ter em mente que, se está tratando, como pano de fundo, de teorias fundacionais do próprio Estado. Streck (2004, p. 148) entende o Estado Democrático de Direito como uma síntese dos momentos historiográficos dos Estados, um avanço, um plus acrescentado ao Estado de Direito. Isto significa, segundo entendimento de Streck (op. cit. p. 147), uma valorização do jurídico. Em síntese, a corrente substancialista entende que, mais do que equilibrar e harmonizar os demais Poderes, o Judiciário deveria assumir o papel de um intérprete que põe em evidência, inclusive a contra maiorias eventuais. A vontade geral implícita no direito positivo [...] é inexorável que, com a positivação dos direitos sociais-fundamentais, o Poder Judiciário (e, em especial, a justiça constitucional) passe a ter um papel de absoluta relevância, mormente no que pertine à jurisdição constitucional. (STRECK, 2004, pp. 147, 148) Na visão de Streck (op. cit. p. 164), Habermas esquece esse novo paradigma que é o Estado Democrático de Direito. Ocorre, entretanto, que Habermas concebe sim, um novo paradigma, todavia o procedimentalista, pautado na ética do discurso. A diferença marcante é que para Streck (2004, p. 165), o Direito no Estado Democrático é um transformador, sendo que para Habermas seria apenas um medium entre a sociedade e o Estado. Habermas, por sua vez, faz uma reconstrução teórica que salvaguarda tanto elementos liberais quanto elementos republicanos. Assim, o procedimentalismo seria uma superação dos modelos liberais e republicanos: [...] o paradigma procedimental do direito resulta de uma controvérsia acerca de paradigmas, partindo da premissa, segundo a qual o modelo jurídico liberal e o do Estado social interpretam a realização do direito de modo para coletividade, sendo que o espaço de subjetividade do indivíduo passa a ser menor. Neste paradigma, o Estado assume compromissos positivos com a coletividade. Para tanto cf. De la liberté des anciens comparée à celle des modernes, Benjamín Constant. Ver, ainda, Dos Conceptos de libertad, Isaiah Berlin. 5 demasiado concretista, ocultando a relação interna que existe entre autonomia privada e pública, e que deve ser interpretada caso a caso.(HABERMAS, vol. 2. p. 185). Dessa forma, fica claro que o autor alemão não vê com bons olhos a “instrumentalização do direito para fins da regulação política, a qual sobrecarrega a estrutura do médium jurídico, dissolvendo a ligação que existe entre política e a realização de direitos dos quais não se pode dispor” (HABERMAS, 1997, vol. 2, p. 182). 2 A CRÍTICA DE STRECK À TEORIA PROCEDIMENTALISTA DE HABERMAS A primeira crítica de Streck, praticamente já foi mencionada nas considerações gerais. Lenio L. Streck (2004, p. 165) é enfático ao afirmar que Habermas não reconhece o verdadeiro sentido, por assim dizer, do modelo de Estado Democrático. Na verdade, essa concepção implica admitir obrigações positivas por parte do Estado. Parece, no entanto, que tal caráter não passa desapercebido na obra de Habermas, mesmo que este não utilize necessariamente a expressão Estado Democrático com o mesmo sentido apresentado por Streck (para Streck a superação de paradigmas é Estado Democrático de Direito, para Habermas, é o procedimentalismo). Ao invés disso, Habermas parece não ser muito simpático ou favorável à sobrecarga de determinadas funções como atribuições do Estado: [...] num Estado sobrecarregado com tarefas qualitativamente novas e quantitativamente maiores, resume-se a dois pontos: a lei parlamentar perde cada vez mais seu efeito impositivo e o principio da separação dos poderes corre perigo. (HABERMAS, 1997, vol. 2, p.173). Em seguida, a crítica reside no fato de que Streck (2004, p. 165) entende que o Direito nesse novo paradigma (Estado Democrático de Direito –E.D.D.) possui uma nova legitimidade. A legitimidade viria, então, segundo Streck, da própria constituição. Isto porque, para Streck, a constituição é a representação de um contrato social, diga-se de passagem, de um contrato que encerra no seu interior valores históricos em contínua referência ao momento de sua formação. É possível depreender uma eventual resposta de Habermas a esta crítica, a 6 partir da análise da “perda de ‘validade da constituição’ na interpretação do paradigma procedimentalista” (HABERMAS, 1997, vol. 2, p. 181). Para o autor alemão, a carta constitucional não basta por si só, como portadora de legitimidade do ordenamento. Ao contrário, a legitimidade é um simulacro da comunicação entre o ordenamento institucionalizado e a opinião pública que advém da esfera pública política (op. cit., pp. 185, 186). Assim, em momentos de crises no âmbito interno da lógica da divisão dos poderes, desde diretrizes aos problemas administrativos, deve voltar-se à facticidade social com o fim de filtrar legitimações de temas sintetizados em forma de uma opinião pública, que, se formam na intersecção das diversas esferas públicas. A diferença em relação à proposta de Streck2, reside no fato de que Habermas não se aceita que um dos poderes se auto-atribua como responsável para uma interpretação final da legitimidade constitucional, mesmo que tal interpretação tenha em mente a gênese democrática do direito. Ainda sobre a compreensão epistemológica e ontológica (Streck aborda as duas questões), o autor brasileiro critica a forma como o procedimentalismo habermasiano desvincula os valores do texto constitucional de sua ação/concretitazação (STRECK, 2004, p. 172). Antes de apresentar um argumento de Habermas para esta assertiva de Streck, cabe ressaltar que, no entendimento do autor brasileiro, seguindo a orientação de Vital Moreira, “nenhum preceito constitucional pode ser privado de função normativa” (STRECK, 2004, p. 168). Pois bem, dito isso, cabe observar, agora, compreensão e a distinção que Habermas faz entre normas3 e valores: Princípios ou normas mais elevadas, em cuja luz outras normas podem ser justificadas, possuem um sentido deontológico, ao passo que os valores têm um sentido teleológico. [...] Normas válidas obrigam seus destinatários sem exceção [...] valores expressam preferência tidas como dignas. [...] À luz das 2 3 Embora o presente trabalho não se aprofunde sobre a concepção de constituição para Streck, cumpre ressaltar que o autor, no capítulo V da obra aqui trabalhada, apresenta uma concepção ontológica da constituição, que, de antemão, já fica visível quando se verifica a afirma de que a constituição deve ser entendida como valores a serem realizados, uma vez que surge a partir de um contrato social. Não se trata, porém, de uma compreensão metafísica, embora seja uma confusão que freqüentemente se verifica no meio acadêmico. Uma compreensão metafísica implicaria atemporalidade e uma essência desvinculada da historicidade de uma comunidade e um ordenamento, em outras palavras, da própria formação da constituição. O caráter de ente de uma constituição se dá justamente, quando se apresenta inserida em um tempo histórico, isto é, mesmo que de uma história do presente. Normas no sentido que Habermas expõe, pode, em casos limitados, ser compreendidas como princípios, desde que apresente eficácia vinculadora. 7 normas é possível decidir o que deve ser feito, ao passo que, no horizonte dos valores, é possível saber qual comportamento é recomendável. (HABERMAS, 1997, Vol. 1, pp. 316, 317). 2.1 O PROCEDIMENTALISMO EM FACE DA REALIDADE BRASILEIRA Em linhas bem genéricas, tentou-se pontuar a crítica de Streck ao procedimentalismo e, sempre em seguida, apresentar pretensos ou possíveis argumentos de Habermas, como uma hipótese contra-argumentativa. Agora, porém, pretende-se tão-somente ressaltar certos questionamentos, os quais se mostram pertinentes, levantados pelo autor brasileiro. Ademais, de tempos em tempos, o pensamento jurídico-filosófico brasileiro fica em xeque pelos próprios acadêmicos brasileiros. Curiosamente, quando surge uma transgressão do pensamento comum e dogmatizado da cultura jurídica brasileira, tem-se um torcer de narizes, por assim dizer, por parte dos estudiosos patrícios. É muito salutar um diálogo com tantas tradições filosóficas complexas sem perder o foco da realidade histórica brasileira. Tal postura, por si só, já é digna de grande apreço. As correções normativas que podem e devem ser apresentadas, pressupõem o acolhimento de uma teoria para o interior da discussão. O que não se pode, porém, é expurgar preliminarmente uma nova proposta crítica. Pois bem. Lenio Luiz Streck questiona a proposta procedimentalista de Habermas em face de peculiaridades brasileiras. A proposta de Habermas visa não a apenas a institucionalização legítima do direito – em seu âmbito interno – mas uma legitimidade com justificação moral. Esta, por sua vez, só pode ser alcançada por meio de um agir comunicativo (HABERMAS, 1989) que pressupõe condições ideais de fala e sujeitas autônomos. Aliás, a própria autonomia privada, isto é, de sujeitos singulares, constitui uma preocupação para Habermas. Em face disso Streck questiona: Como ter cidadãos plenamente autônomos, como Habermas propugna, se o problema da exclusão sócia não foi resolvido? Como ter cidadãos plenamente autônomos se suas relações estão colonizadas pela tradição que lhes conforma o mundo da vida? (grifos do autor) (2004, p.p. 174, 175). 8 Ainda sobre as peculiaridades brasileiras questiona Streck: Pode uma eleição ser justa, se uma grande parte do eleitorado carece de instrução necessária para compreender as principais linhas do debate políticos? (loc. cit.) O próprio autor brasileiro responde negativamente a tais perguntas. Como não há na obra de Habermas reflexões sobre o modelo brasileiro ou mesmo considerações sobre se a sua teoria pode ou não ter perspectivas em outros modelos, deixa-se de expor um contra-argumento. Por outro lado, nada obsta que tais questionamentos, pertinentes por sinal, sejam explorados por estudiosos do direito brasileiro. Assim, quiçá, se encontrem caminhos para uma formação de uma opinião pública brasileira que seja autônoma, tal como exposta na ética do discurso e, ao mesmo tempo, transformadora, como advoga Lenio L. Streck. 3 SUPERAÇÃO DE PARADIGMAS E O PAPEL DO JUDICIÁRIO A posição substancialista defendida por Streck (2004, p. 179) é expressa e enfática ao dizer que “[...] o judiciário não pode assumir uma postura passiva diante da sociedade”. Como os desdobramentos4 desta perspectiva são enormes, deve-se ter em mente a justiça constitucional propriamente dita. Essa compreensão é fundamentada a partir da teoria das normas programáticas e, em certo ponto, no dirigismo5 constitucional. Existe uma virada paradigmática significativa na forma substancialista de compreender as atribuições para o Judiciário. Ressalte-se, entretanto, que não se trata apenas de eleger novas atribuições, até porque, não se apresenta uma lista exaustiva de atribuições, mas é o cenário histórico que irá nortear racionalmente qual a atribuição que deve ser assumida, bem como os parâmetros hermenêuticos. O fundamento consiste em que, se por um lado as normas estruturais garantem os aspectos formais da democracia, por outro lado, os direitos fundamentais são princípios que garantem a realização da dimensão matérial da 4 5 Reitera-se, aqui, que a análise é conceitual, isto é, investiga os fundamentos e as justificações de cada teoria. Assim, o trabalho não aborda a influência da concepção substancialista no tocante a ação (intervenção) do judiciário no âmbito das políticas públicas. O próprio Streck cita o primeiro momento do constitucionalista português J.J. Gomes Canotilho, como referencial teórico para inferior que os valores constitucionais programáticos que se dirigem ao legislativo, podem ser auto-atribuído ao Judiciário, quando aquele poder mantém-se inerte ou mora legislativa. 9 democracia substancial (STRECK, 2004, p. 182). Um Estado que cumpre apenas a parte formal estaria, nesta linha de pensamento, incompleto, e não contemplaria o plus que o Estado Democrático representa. O “corte” apresentado por Streck, no tocante ao intervencionismo substancialista, alberga o cumprimento dos preceitos e princípios ínsitos aos Direitos Fundamentais sociais e ao referencial de Estado Social (previsto especificamente na Constituição da República Federativa do Brasil –CF/88). Embora cite as críticas que os procedimentalistas fazem, no sentido de que falta aos tribunais a legitimidade política e os instrumentos básicos necessários para a implementação das políticas do bem-estar social, Streck vale-se das exposições de Díaz Revorio e Gilberto Bercovici: [...] nenhuma fundamentação de valores pode ignorar o texto constitucional buscando elementos sem qualquer ligação com a constituição. Por outro lado, a abertura dos valores constitucionais não significa que não tenham significa jurídico, passíveis de ser ignorados pelo legislador ou pelo intérprete. (STRECK, 2004, p. 194-196). Assim, o que se propõe é um redimensionamento na relação entre os Poderes. Os conteúdos materiais das constituições devem ser implementados por meio da realização (efetivação) de seus valores substantivos. Caso o Poder originariamente incumbido desta realização mantenha-se interte, quer seja por questões políticas partidárias, quer seja por incompetência, deve-se o judiciário interar-se para o cumprimento de das chamadas promessas da modernidade6 . 3.1 EVENTUAL RESPOSTA CONTRA-ARGUMENTATIVA DE HABERMAS7 6 7 Trata por Streck no âmbito dos direitos humanos fundamentais, isto é, direito básico e no paradigma da dignidade da pessoa humana. A obra aponta dois referenciais para tais promessas: a revolução francesa e o chamado segundo pós-guerra. Doravante, a exposição contra-argumentativa de Habermas equivale ao VI capítulo da obra Direito e Democracia, entre facticidade e validade volume 1, intitulado Justiça e Legislação. Sobre o papel e a legitimidade da jurisdição constitucional (pp. 297-330). A exposição do texto é fruto de um trabalho anterior, sendo que reflete uma condensação de uma analise quase exaustiva do capítulo citado, bem como das discussões realizadas nas reuniões do projeto de pesquisa “A relação entre a Moral e o Direito na filosofia de Jürgen Habermas”. Por isso, as citações não seguem a métrica até então apresentada. 10 Tendo em vista que a jurisprudência constitucional diz respeito à atuação dos Tribunais tanto na aplicação do Direito, isto é, nos casos em que um Tribunal decide um caso concreto, quanto no parecer final sobre a validade ou invalidade das normas, nos casos de controle abstrato, uma orientação axiológica por parte dos tribunais daria ensejo, segundo Habermas, ao surgimento de uma legislação concorrente por parte dos Tribunais, o que coloca em risco a lógica da divisão dos poderes. O primeiro passo para entender a crítica de Habermas consiste em visualizar as diferenças que o filósofo entende existir entre normas e valores. Normas, no contexto tratado por Habermas, são princípios normativos ou “normas mais elevadas”. As normas, portanto, possuem uma pretensão de validade universal ao passo que os valores são preferências direcionadas a determinados fins. Entre as normas não existe hierarquia. Os valores, porém, comportam uma flexibilidade na hierarquia de suas proposições. As proposições normativas, em que pese serem principiológicas, são absolutas, isto é, obrigatórias, já os valores, são relativos e sua aplicação ou ausência de aplicação se dá de forma arbitrária. Da análise da atuação dos Tribunais no âmbito privado a crítica reside na arbitrariedade na escolha da aplicação de um valor em detrimentos de outros, uma vez que não existem medidas racionais que possam direcionar qual valor deverá ser aplicado em cada caso, o que torna a atuação judicial irracional e funcionalista. No âmbito do controle constitucional das normas a crítica consiste em três pontos: (1) Habermas defende com veemência um autocontrole da validade constitucional das normas por parte do Legislativo; (2) o controle da constitucionalidade das normas orientado por valores tende a compreender a constituição como uma categoria ontológica, do que resulta prescrição a priori da ordem jurídica e, ainda, compreendendo esta como global e concreta; (3) os discursos jurídicos se autocompreendem com uma racionalidade superior nas decisões. No entanto, Habermas dirá que a suplantação do discurso político pelo discurso jurídico, ainda que este seja mais especializado, colocará em risco: (i) a lógica da separação dos poderes (ii) a legitimação democrática do Estado de Direito, uma vez que esta legitimação advém do próprio processo político de formação dos parlamentos. Dessa forma, Habermas entende que um Tribunal Constitucional só manter- 11 se imparcial, se resistir à tentação de preencher seu espaço de atuação e interpretação com juízos morais. A interpretação de princípios normativos, ainda que o sistema normativo comporte uma estrutura relacional razoavelmente flexível, consegue manter uma reserva de coerência para que o sistema de regras permaneça íntegro. CONCLUSÃO Para este estudo, duas obras foram utilizadas de forma especial, as quais serviram como eixo-base do trabalho. São elas: “Direito e Democracia: Entre facticidade e validade” do filósofo alemão Jürgen Habermas e “Jurisdição constitucional e Hermenêutica. Uma Nova Crítica do Direito”de Lenio Luiz Streck. Outras obras dos mesmos autores, bem como de outros autores serviram para a orientação e acompanhamento do tema. Apresenta os argumentos substancialista do direito, o qual atribui um papel intervencionista e atuante para o Poder Judiciário a partir de dois pontos: o Estado Democrático de Direito como um novo paradigma de Estado; valores e princípios inerentes aos direitos humanos fundamentais positivados em nível constitucional. Descreve, também, fundamentos da teoria procedimentalista, para qual a preocupação primeira é proteger, antes de tudo, as condições do procedimento democrático, bem como a lógica da divisão dos Poderes. Assim, não aceita uma atuação do Judiciário que possa extrapolar suas atribuições clássicas, e, ainda, em termos de um controle de constitucionalidade das normas. Mais do que um resultado prático ou funcionalista, a provocação teve o fito de instigar a uma reflexão jusfilosófica com pertinência à realidade brasileira. As duas teorias contra-postas neste trabalho possuem um mesmo motivo, a saber, uma sociedade mais equânime. A lógica da divisão dos Poderes recebe uma nova leitura pelos autores. Para Streck, o cenário de um ordenamento pode deslocar para o Poder Judiciário a função mandatária de realizar valores e princípios positivados em âmbito constitucional. Para Habermas, o filtro de legitimação de ser realizado pelo Poder Legislativo, o que implica devolver e submeter a uma nova análise parlamente um tema cuja opinião pública esteja 12 deliberando. Deve-se considerar, por fim, que, no âmbito da filosofia, não se pode dirigir para determinadas teorias com o fito de posicionar-se como certo ou errado. As construções sistêmicas possuem ou não validade no seu interior. O confronto de sistemas serve, quando muito, para proporcionar uma reflexão ou impulsionar novos horizontes teóricos. REFERÊNCIAS: APPIO, Eduardo. Controle de Constitucionalidade no Brasil. Curitiba: Juruá Editora, 2005. 222 p. BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 1996. 230 p. In:______. 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