A SOBERANIA E O DIREITO INTERNACIONAL: ANÁLISE DO CASO GUERRILHA DO ARAGUAIA E DA ADPF 153. Aderruan Rodrigues Tavares(*)1 RESUMO: Este artigo visa contribuir com a compreensão atual da soberania inserida no direito internacional e, em certa medida, no direito interno. Para tanto, necessita-se rever algumas concepções históricas do conceito da soberania. Nesse estudo, será revista a atuação dos Estados no atual panorama internacional, principalmente quanto ao cumprimento de decisões de cortes internacionais. Assim, traremos a relação entre a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 153 e a da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Guerrilha do Araguaia, buscando uma possível conformação entre essas duas importantes decisões. Palavras-chaves: Soberania, Direito Internacional, ADPF 53/DF, Caso Guerrilha do Araguaia ABSTRACT: This article aims to contribute with the actual comprehension of the sovereignty in the international law and, somehow, in the national law. Thus, it´s necessary review some history conception of sovereignty´s concept. In this study, the performance of States will be review in the actual international panorama, mainly in relation to the fulfillment of International Courts´ decisions. Therefore, we´ll reflect in the relation between the Supremo Tribunal Federal´s decision in the ADPF 153 and the Corte Interamericana de Diretos Humanos´ decision in the case Guerrilha do Araguaia, seeking a possible solution between these decisions. 1 Assessor de Juiz auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça. Graduado em Direito pela UDF. Pós-‐graduando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP. Membro do Conselho Administrativo Editorial da Revista Direito Público. Keywords: Sovereignty, International Law, ADPF 53/DF, Case Guerrilha do Araguaia. 1 – INTRODUÇÃO O conceito de soberania é um dos temas mais tormentosos que a doutrina internacionalista e a constitucionalista têm enfrentado recentemente. A soberania para alguns é ínsita ao Estado, não podendo pensar nele sem ela. O presente trabalho não tem o condão de fazer um buscado dos mais variados entendimentos sobre a soberania. Tem, todavia, o intuito de, partindo de algumas concepções, contribuir para situar a soberania no atual contexto contemporâneo. Nesse sentido, o pensamento vanguardista de HANS KELSEN sobre a relação entre soberania e direito internacional, aliado à síntese doutrinária de DALMO DE ABREU DALLARI sobre o mesmo tema, dá o norte deste estudo. Contudo, as ideias de UMBERTO CAMPAGNOLO, representando a teoria do dualismo na relação entre direito interno e direito internacional, também são de grande valia para o enriquecimento deste trabalho, até para ser fiel ao pensamento contrário da linha seguida por esse estudo. Defender-se-á aqui a tese da relativização da soberania estatal para que os Estados possam conviver harmonicamente uns com os outros, com fim de uma sociedade internacional livre de guerras armadas, o que gera desrespeito com os direitos humanos. Assim, os Estados são partes de um sistema jurídico mais evoluído, que preza a qualificação e intensificação das relações internacionais, com a devida proteção dos direitos humanos. Entretanto, embora tal tese não seja nova no campo do conhecimento jurídico, ainda encontra diversas resistências em algumas instituições internas dos Estados, ainda mais, naquelas que exercem parcelas de poder. Trata-se, pois, de um processo longínquo, e, quiçá, maçante, da realidade de vários países, entre eles, da República Federativa do Brasil. Assim, o recorte exemplificativo utilizado para a denotação de tal processo é a relação entre a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 153, em que o STF considerou válida e recepcionada, nos termos da Constituição de 1988, a Lei de Anistia, e a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Guerrilha do Araguaia ou Caso Gomes Lund e outros, em que essa Corte condenou o Brasil por diversas violações à Convenção Americana de Direitos Humanos e determinando que o Brasil adote bastantes medidas para saná-las. A problemática é saber qual decisão dessas duas vale: se a do Supremo Tribunal Federal, órgão máximo da jurisdição brasileira, ou se a da Corte Interamericana de Direitos Humanos, instância última na proteção dos direitos humanos no continente americano. 2 – DA SOBERANIA No ordenamento jurídico brasileiro, a soberania é tida como um fundamento da República Federativa do Brasil, encartada no inciso I do art. 1º da nossa Constituição Federal de 1988. Constitucionalizada, a soberania passa a vincular todas as ações dos atores internos da sociedade brasileira e dos externos que de alguma forma se sujeitam ao ordenamento jurídico pátrio. Nessa perspectiva, entender o conceito e a natureza jurídica, bem como sua natureza política, da soberania é de fundamental importância na atual conformação moderno-contextual do direito constitucional e do direito internacional. Assim, nessa parte do trabalho, cabe apenas uma simplificada passagem sobre o conceito e as características da soberania, sob pena de desvio do foco do presente estudo. MIGUEL REALE conceitua soberania como “o poder de organizarse juridicamente e de fazer valer dentro de seu território a universalidade de suas decisões nos limites dos fins éticos de convivência.2” Busca-se em DALMO DE ABREU DALLARI as ditas características da soberania3. Vejamos: a) una: a soberania é assim tida pois “não se admite no mesmo Estado a convivência de duas soberanias”. Assim, o poder soberano se manifesta como um poder superior a todos que eventualmente possam existir, não sendo, portanto, possível existir, num mesmo espaço territorial duas forças com tal característica; b) indivisível: é que “além das razões que impõem sua unidade, ela se aplica à universidade dos fatos ocorridos no Estado, sendo inadmissível, por isso mesmo, a existência de várias partes separadas da mesma soberania”. c) Inalienável: “pois aquele que a detém desaparece quando ficar sem ela, seja o povo, a nação, ou o Estado”. d) Imprescritível: “porque jamais seria verdadeiramente superior se tivesse prazo certo de duração. Todo poder soberano aspira a existir permanente e só desaparece quando forçado por uma vontade superior.” 2.1.- A SOBERANIA PARA DALMO DE ABREU DALLARI. Para DALMO DE ABREU DALLARI, a soberania é uma característica fundamental do Estado, sem a qual, não podemos pensá-lo.4 Para o citado autor, o conceito de soberania, que tem despertado a atenção de todos desde o século XVI, é tido como um termo político e um termo jurídico, ao mesmo tempo. Devido a isso, surgiram diversas teorias sobre 2 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 21ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2011, p. 87 3 DALLARI, Dalmo de Abreu, op, cit., p. 82-‐83 4 DALLARI, Dalmo de Abreu, op, cit., p. 82 o conceito, o que, de certa forma, prejudicou o real entendimento do conceito, por torná-lo mais impreciso. A soberania comporta um conteúdo intrinsecamente político, “apesar de todo o esforço, relativamente bemsucedido, para discipliná-lo juridicamente”.5 Nessa relação, entre a percepção jurídica e política sobre o conceito de soberania que DALMO DE ABREU DALLARI desenvolve esse tema. Para DALMO DE ABREU DALLARI a noção de soberania encontra-se “sempre ligada a uma concepção de poder”. Em termos políticos, isso significa que a soberania pode ser conceituada como “o poder incontrastável de querer coercitivamente e de fixar as competências”. Com esse vetor, o poder soberano é absoluto, não admitindo qualquer subversão e não se preocupando, pois, em ser legítimo ou de acordo com o ordenamento jurídico. A consequência disso resultou num forte egoísmo entre os Estados, principalmente entre os mais fortes, que invocavam suas soberanias para agirem do modo que lhes conviessem.6 Já com uma percepção jurídica, a soberania é tida como o “poder de decidir em última instância sobre a atributividade das normas, vale dizer, sobre a eficácia do direito”. Ou seja, a soberania “é poder jurídico utilizado para fins jurídicos”, cabendo ao Estado o poder de decidir qual a regra jurídica a ser aplicada em cada caso. Em tal sentido, não há que se falar em Estados “mais fortes ou mais fracos”, vez que a noção de direito é a mesma para todos. “A grande vantagem dessa conceituação jurídica é que mesmo os atos praticados pelos Estados mais fortes podem ser qualificados como antijurídicos, permitindo e favorecendo a reação de todos os demais Estados.”7 Ademais, para DALMO DE ABREU DALLARI a soberania ainda é aceita como independência e poder jurídico mais alto. Naquela concepção, o Estado não aceita ser submisso a qualquer outro, invocando para tanto autoafirmação de seu povo. Para esse, o Estado, dentro de seus limites 5 DALLARI, Dalmo de Abreu, op, cit, p. 81 DALLARI, Dalmo de Abreu, op, cit, p. 86 7 DALLARI, Dalmo de Abreu, op, cit, p. 86 6 territoriais, exercerá a jurisdição, decidindo a sua situação eventualmente guerreada em detrimento de qualquer norma jurídica.8 É óbvio que a afirmação de soberania, no sentido de independência, se apóia no poder de fato que tenha o Estado, de fazer prevalecer sua vontade dentro de seus limites jurisdicionais. A conceituação jurídica de soberania, no entanto, considera irrelevante, em princípio, o potencial de força material, uma vez que se baseia na igualdade jurídica dos Estados e pressupõe o respeito recíproco, como regra de convivência. Neste caso, a prevalência da vontade de um Estado mais forte nos limites da jurisdição de um mais fraco, é sempre um ato irregular, antijurídico, configurando uma violação de soberania, passível de sanções jurídicas. E mesmo que tais sanções não possam ser aplicadas imediatamente, por deficiência de meios materiais, o caráter antijurídico da violação permanece, podendo servir de base a futuras reivindicações bem como à obtenção de solidariedade de outros Estados.9 Com essas premissas, DALMO DE ABREU DALLARI entende que o Estado soberano, dentro de seus limites territoriais, exercerá com exclusividade sua jurisdição, por meio de normas ou produzidas por eles ou aceitas do direito internacional. Em relação à comunidade internacional, o autor pontua a necessidade de independência entre os Estados, de modo que nenhum Estado subverta outro Estado. 2.2. A SOBERANIA E O DIREITO INTERNACIONAL PARA HANS KELSEN HANS KELSEN talvez seja um dos maiores críticos do conceito de soberania, principalmente se considerando o seu viés político apresentado por DALMO DE ABREU DALLARI, em que refuta com certa veemência. Ademais, HANS KELSEN é um dos principais defensores da teoria monista, com prevalência do direito internacional. 8 9 DALLARI, Dalmo de Abreu, op, cit, p. 90 DALLARI, Dalmo de Abreu, op, cit, p. 90 Para o autor austríaco, “o dogma da soberania leva necessariamente a uma negação judicial do direito internacional”10 HANS KELSEN critica principalmente a teoria do reconhecimento do direito internacional pelos Estados nacionais. Ao sustentarem essa tese, os Estados negam que o Direito internacional seja uma norma jurídica superior aos próprios e Estados e suas ordens jurídicas.11 Em sua doutrina, pela teoria do reconhecimento a norma fundamental seria uma norma do ordenamento nacional, sendo que o direito internacional só teria validade caso estivesse em sintonia com essa norma fundamental. Assim, o direito internacional somente fundamentaria e determinaria a esfera do direito nacional, caso fosse aceito pelo Estado nacional.12 Ele vê, na discussão de se afirmar que um Estado é realmente soberano, em que “a ordem jurídica nacional é uma ordem acima da qual não existe nenhuma outra”, não existindo, inclusive ordenamento superior, no caso o direito internacional, o ponto central para definir se o direito internacional é superior ou não ao direito nacional.13 O resultado da nossa análise foi o de que o Direito internacional, através do princípio de eficácia, determina a esfera e o fundamento de validade da ordem do Direito nacional, e, desse modo, a superioridade do Direito internacional sobre o Direito nacional parece ser imposta pelo conteúdo do próprio Direito.14 Nessa linha de raciocínio, HANS KELSEN entende que um Estado não pode ser ou não soberano. No máximo, o que se pode é pressupor que um Estado seja ou não soberano. Essa pressuposição é constatada a partir de qual teoria é aceita pelo Estado. Caso seja aceita a teoria da primazia do direito internacional, então se pressupõe que o Estado não é soberano. 10 KELSEN, Hans, CAMPAGNOLO, Umberto. Direito Internacional e Estado Soberano. Org: Mario Losano. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 131 11 KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. Tradução de Luís Carlos Borges. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 544 12 KELSEN, Hans, op, cit, p. 546 13 KELSEN, Hans, op, cit, p. 545 14 KELSEN, Hans, op, cit, p. 546 Com isso, a “soberania” do Estado seria em termos relativos, sendo que somente o direito internacional seria superior ao ordenamento jurídico nacional, com exclusão de qualquer outro direito nacional. Mas, se por outro lado, houver a validação da teoria do reconhecimento, pressupõe-se que o Estado é, então, soberano.15 HANS KELSEN prega a unidade do direito. Assim, não entende possível que houvesse diversos “direitos estatais”, além do direito internacional. A começar pela tese da soberania do Estado, HANS KELSEN sustenta a sua impossibilidade, sendo apenas o direito internacional “soberano”, absoluto, em que todos os Estados nacionais retiram do direito internacional a sua validade. Dessa forma, os Estados gozariam de uma soberania relativa, preservando cada Estado uma ordem jurídica que, na visão do direito internacional, essas demais ordens jurídicas seriam “válidas exclusivamente para as suas esferas territoriais e pessoais específicas, e podem ser criadas e modificadas em conformidade com as suas próprias constituições”. Para HANS KELSEN, “a soberania de um Estado exclui a soberania de todos os outros Estados”16. Entender que cada Estado equivale a uma ordem jurídica nacional isolada, todas soberanas, com o direito internacional fazendo parte de cada uma, para HANS KELSEN, é conceber que existam “tantas ordens jurídicas internacionais diferentes quanto há Estados ou ordens jurídicas nacionais”. Tendo em vista que cada Estado irá aplicar o direito internacional do modo que suas leis lhe permitirem. Ele não vê problemas quando cada Estado se pressuponha soberano, entendido aqui a primazia do direito nacional, desde que o direito internacional estabeleça “as relações com as ordens jurídicas dos outros Estados e essas ordens jurídicas nacionais como partes da ordem jurídica do seu próprio Estado, concebido como uma ordem jurídica universal”.17 Ou seja, HANS KELSEN apenas aceita a soberania em termos relativos, com a primazia do direito internacional sobre os ordenamentos jurídicos nacionais, refutando, pois, a teoria do reconhecimento pelo Estado 15 KELSEN, Hans, op, cit, pp. 546-‐547 KELSEN, Hans, op, cit, pp. 547-‐548 17 KELSEN, Hans, op, cit, pp. 548 16 das normas internacionais. Nesse caso, essas normas existem e são válidas juridicamente independente da “aceitabilidade” ou não do Estado. Com efeito, analisando os estudos de UMBERTO CAMPAGNOLO, HANS KELSEN “reconhece o Estado apenas como um ordenamento jurídico ao lado ou acima de outros ordenamentos jurídicos, deixando, assim, aberta a possibilidade de um direito internacional não coincidente com o direito estatal”18. Destarte, para HANS KELSEN, a unidade do direito só seria possível quando todas as normas de direito, advindas de todos os Estados e do direito internacional, estiverem em apenas um sistema normativo, sem contradições, em que o próprio direito internacional seria essa unidade unificadora dos ordenamentos jurídicos, e que os Estados nacionais receberiam uma delegação judicante para atuar por meio de sua constituição, mas de acordo com o sistema jurídico internacional.19 Por fim, por consequência dessas ideias apresentadas, o autor austríaco defende a constituição de um Estado universal, sendo dois meios possíveis para sua concepção, uma por meio do imperialismo, em que um Estado por meio de sua força econômica e/ou militar estende sua soberania sobre os outros Estados, e a outra pelo federalismo, com os Estados se unindo no sentido da formação de uma confederação universal.20 2.3. A SOBERANIA E O DIREITO INTERNACIONAL PARA UMBERTO CAMPAGNOLO UMBERTO CAMPAGNOLO foi um grande crítico da doutrina pura do direito apresentada por HANS KELSEN, especificamente, quando o assunto é relação entre soberania e direito internacional. 18 KELSEN, Hans, CAMPAGNOLO, Umberto, op, cit, p. 121 KELSEN, Hans, CAMPAGNOLO, Umberto, op, cit, p. 132 20 KELSEN, Hans, CAMPAGNOLO, Umberto, op, cit, p. 134 19 O autor italiano, que inclusive foi aluno de HANS KELSEN, defende a teoria do reconhecimento, em que o direito internacional só tem validade caso seja validado pelo direito nacional. Em sua visão, a soberania é inseparável da ideia de Estado, por que aquela é essencial a esse21. Assim, a soberania define a relação de autoridade entre o Estado e os seus nacionais, que são chamados por UMBERTO CAMPAGNOLO de súditos22. Nesse sentido, ele não vê a possibilidade de que um súdito possa estar “contemporaneamente sujeito a dois ordenamentos jurídicos”23, o que de plano refuta o direito internacional como um ordenamento jurídico. Para UMBETO CAMPAGNOLO, o direito internacional não poderia, em hipótese alguma, ser superior aos ordenamentos jurídicos nacionais, visto que o direito representa a reação do Estado contra seus súditos, não podendo haver duas possibilidades reacionárias contemporâneas. “Se Estados fossem incluídos num sistema jurídico mais vasto (direito internacional), o Estado seria esse sistema mesmo e, em relação a esse, os assim chamados Estados seriam apenas províncias”24. Na minha opinião, é indiscutível que a experiência concreta do direito internacional não possa ser definida soberana mais do que aquela do direito interno, como por outro lado a lei dos Estados considerados totalitários não parece aos seus súditos mais soberana do que a Lei dos Estados liberais. Na minha tese, demonstrei não ser possível separar a ideia de soberania da ideia de Estado e de direito demonstrei ainda que Hans Kelsen, tendo-as separado, não consegue oferecer um conceito científico de Estado. De fato, ele mesmo define o seu conceito de Estado como uma norma consuetudinária do direito internacional25. Assim, UMBERTO CAMPAGNOLO entende que “o direito internacional não é o resultado da colaboração dos outros Estados com o 21 KELSEN, Hans, CAMPAGNOLO, Umberto, op, cit, p. 165 KELSEN, Hans, CAMPAGNOLO, Umberto, op, cit, p. 163 23 KELSEN, Hans, CAMPAGNOLO, Umberto, op, cit, p. 161 24 KELSEN, Hans, CAMPAGNOLO, Umberto, op, cit, p. 161 25 KELSEN, Hans, CAMPAGNOLO, Umberto, op, cit, p. 173 22 Estado do qual emana porque a sua validade, ou seja, a sua existência mesma, depende exclusivamente do Estado da qual faz parte”26. 2.4. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A SOBERANIA E O DIREITO INTERNACIONAL. É necessária a reanálise do conceito e dos efeitos da soberania na busca de novos elementos que possam dar-lhe novo sentido, diante do atual panorama das relações internacionais, sob pena de se estar diante de um conceito falacioso e inútil para o desenvolvimento humano e do próprio conceito de Estado pós-moderno. Para FERNANDO DE MAGALHÃES FURLAN, a soberania foi dogmatizada para “justificar a superioridade de um poder, livre de qualquer sujeição”. Dessa forma, “tomava-se a soberania pelo mais alto poder, a supremitas, traço essencial para distinguir o Estado dos demais poderes que com ele disputavam27”. Nesse sentido, também, como se viu acima, é a teoria de UMBERTO CAMPAGNOLO. Tal perspectiva do conceito de soberania parece não encontrar mais guarida na atualidade, em que o “sentimento nacional de soberania” cede lugar às ideologias nas relações entre Estados, ao que podemos chamar de relatividade da soberania. Certamente, no plano internacional, as relações interestatais limitam a força irrestrita da soberania.28 Daí advém a necessidade de perceber a soberania como um conceito relativo na sua relação com o Estado, para que ela não possa, de alguma forma, impedir que a interação do Estado com dos outros, quer em nível regional, quer, internacional29. Com efeito, CELSO DE ALBURQUERQUE DE MELLO aduz que: 26 KELSEN, Hans, CAMPAGNOLO, Umberto, op, cit, p. 180 FURLAN, Fernando de Magalhães. Integração e Soberania – O Brasil e o Mercosul. São Paulo: Ed. Aduaneiras, 2004, p. 21 28 FURLAN, Fernando de Magalhães, op, cit, p. 21 29 FURLAN, Fernando de Magalhães, op, cit, p. 60 27 Esta (a soberania) passa a ser uma noção quase que formal, vez que seu conteúdo é cada vez mais diminuído pela criação e desenvolvimento das organizações internacionais. Muitas vezes, a própria palavra soberania é evitada, como ocorre na Carta da ONU, que prefere usar expressões como ‘jurisdição doméstica’ ou ‘domínio reservado30. Assim, diante da relativização do conceito de soberania, os Estados, sob pena de isolamento, são tidos por unidades jurídicas autônomas, em que são competentes para criar o direito de acordo com suas peculiaridades culturais, econômicas e sociais, mas que não podem desrespeitar o direito internacional, sob pena de sanção econômica, por exemplo. Dessa forma, cada Estado deve estar em consonância com os preceitos do direito internacional, das relações internacionais (no tocante a relações econômicas, diplomáticas, etc.) e da prevalência de proteção aos direitos humanos. Embora proponha-se a autonomia jurídica de cada Estado, ainda subsiste a tese de que nenhum outro Estado poderá adentrar na jurisdição alheia sem o respectivo consentimento. Consequentemente, caso essa invasão aconteça, o próprio direito internacional se encarregará de solucionar a questão. Destarte, a soberania é a atribuição exclusiva que tem o Estado de executar suas decisões ou de órgãos internacionais competentes, com exclusividade dentro do seu próprio território. Ademais, ainda assim, nenhum outro Estado poderá expedir qualquer determinação vinculante para outro Estado, sem o devido consentimento deste, sendo possível ser visualizada a competência de um órgão superior aos Estados em expedição de decisões ou normas vinculantes internacional, como, por exemplo, as decisões da Corte Internacional de Justiça. Ou seja, mesmo que a decisão seja internacional, apenas o Estado em seu próprio território poderá executá-la. 30 FURLAN, Fernando de Magalhães, op, cit, p. 60 Dessa forma, o direito nacional tem a obrigação de estar em sintonia com o direito internacional, sendo este um ordenamento jurídico coordenador e agregador das vontades Estatais, coordenado-as com a finalidade de proteção dos direitos humanos31. 2.5. O CONSTITUCIONALISMO E O DIREITO INTERNACIONAL NA ANÁLISE DA SOBERANIA A maioria dos Estados se regula por meio de uma Constituição, ou uma norma fundamental que faça as vias daquela. Além da relação da soberania, que, em muitos Estados, é quista pela Constituição32. Com o direito internacional, interessante estudo também é a relação entre o constitucionalismo e o direito internacional sob a ótica do estudo sobre a soberania. Para CELSO DE ALBURQUERQUE DE MELLO, não há Constituição, ou mesmo entendimento de tribunal constitucional, que permita a “alienação” da soberania estatal, “porque fazê-lo seria consagrar o fim do Estado”33. Com efeito, não é, para as Cortes Constitucionais, das mais confortáveis teses afirmar que o direito internacional tem prevalência a suas decisões. Para tanto, é necessário um pensamento institucionalizado vanguardista dessas Cortes, mas, faticamente, parecem ainda não estar preparadas para lidar com as decisões e/ou jurisprudências dos órgãos internacionais. 31 “Na interconexão do direito interno com o direito internacional, a limitação das competências do Estado, pela atribuição conferida aos órgãos que produzem as normas supranacionais, constitui, iniludivelmente, uma limitação à própria soberania do Estado, considerada esta em sua concepção mais vinculada à ideia de capacidade suprema de produzir, por si e internamente, uma ordem jurídica”. FURLAN, Fernando de Magalhães, op, cit, p. 59 32 “Se de um lado o conceito tradicional e hermético de soberania já não mais prevalece, até mesmo porque desatende aos reclamos da sociedade contemporânea, é certo que ele ainda é proclamado, inclusive nas Constituições, por resguardar o direito de cada povo de decidir a sua forma política de ser e de fazer-‐se construir em sua história de maneira a não se subordinar aos comandos de potências estrangeiras” FURLAN, Fernando de Magalhães, op, cit, p. 59 33 FURLAN, Fernando de Magalhães, op, cit, p. 60 Todavia, o constitucionalismo, apoiando-se na soberania estatal, não pode estar alheio ao processo de internacionalização do direito, bem como afastado das decisões internacionais. Não pode, pois, servir de barreira para a efetivação dos direitos humanos decorrente dos institutos do Direito Internacional. Os direitos fundamentais e os direitos humanos não podem ser duas esferas isoladas e ciumentas entre si; mas devem atentar que a finalidade do direito é a proteção do indivíduo em todas as suas esferas, pois os Estados existem para somente isso. Conceber duas esferas protetivas distantes e sem diálogo é conceber dois direitos que não protegem ninguém ao cabo, tendo em vista que uma via sempre vai querer a prevalência de sua decisão, e não havendo uma confirmação ao final desse processo. A decisão a ser cumprida no caso concreto é sempre a mais benéfica para os indivíduos, seja ela de cunho constitucional ou de cunho internacional, não podendo de forma alguma o Estado se utilizar de uma pretenciosa soberania para descumprir decisões internacionais. 3. A DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA ADPF 153. A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153/DF – ADPF 153 foi proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – CFOAB contra a Lei n. 6.683, de 19 de dezembro de 1979 – Lei de Anistia com o intuito de que o Supremo Tribunal Federal – STF considerasse tal lei não recepcionada pela Constituição Federal de 1988. Segundo essa lei acatada, todos aqueles que cometeram crimes políticos ou conexos com estes, no período de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, foram anistiados. Para o CFOAB não é possível, consoante o texto da Constituição do Brasil, considerar válida a interpretação segundo a qual a Lei n. 6.683 anistiaria vários agentes públicos responsáveis, entre outras violências, pela prática de homicídios, desaparecimentos forçados, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro e atentado violento ao pudor, Sustenta que essa interpretação violaria frontalmente diversos preceitos fundamentais.34 Diante disso, O STF afirmou, em suma, que: (a) a lei de anistia se deu por solução consensual das partes (em plena época da ditadura)35; (b) que não era aplicável a jurisprudência internacional, porque não seria hipótese de anistia ‘unilateral’, mas sim recíproca, sem questionar, contudo, quem foi que se autoconcedeu a anistia; e (c) que o cidadão tinha direito à verdade, mas fez questão de frisar que eventual ‘Comissão de Verdade’ não teria nem poderia ter qualquer finalidade de persecução penal”36. Os Ministros EROS GRAU, CÁRMEM LÚCIA, GILMAR MENDES, ELLEN GRACIE, MARCO AURÉLIO, CELSO DE MELLO e o presidente do Supremo CÉSAR PELUSO votaram pela recepção da Lei de Anistia. Ficaram vencidos o Ministro RICARDO LEWANDOWSKI e o Ministro CARLOS AYRES BRITTO. O Ministro JOAQUIM BARBOSA, quando do julgamento, estava licenciado e o Ministro DIAS TÓFFOLI estava impedido de julgar, vez que tinha atuado no caso na função de Advogado Geral da União. A partir de agora, destacam-se as principais fundamentações dos ministros do STF levadas a efeito para o desfecho do caso posto, que têm alguma relevância para o estudo do presente artigo, qual seja, a soberania e o direito internacional. O relator da ADPF 153, Ministro EROS GRAU, voto condutor do julgamento, pautou seu voto pela posição restritiva do Supremo (self restraint), vez que afirma que não é o caso do Poder Judiciário proceder à modificação da 34 Trecho do relatório do Ministro EROS ROBERTO GRAU, relator da ADPF 153. CF. PIOVESAN, Flávia. Lei de Anistia, Sistema Interamericano e o caso brasileiro. In: Crimes da Ditadura Militar: Uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Diretos Humanos. GOMES, Luiz Flávio, MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (Coords). São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, pp. 73-‐86, p. 81 36 BALDI, César Augusto. Guerrilha do Araguaia e direitos humanos: considerações sobre a decisão da Corte Interamericana. In: Crimes da Ditadura Militar: Uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Diretos Humanos. GOMES, Luiz Flávio, MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (Coords). São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, pp 154-‐173, p. 154 35 situação fático-jurídica dos anistiados, cabendo isso, tão somente, ao Poder Legislativo.37 A Ministra CÁRMEM LÚCIA, embora tenha votado pela recepção da Lei de Anistia, nos termos do voto do relator, reconheceu a injustiça do art 1º da Lei de Anistia, mesmo tisnando os direitos humanos, mas que a esfera judicial não é a própria para revisão desse ato.38 O Ministro CELSO DE MELLO também votou de acordo com o relator, mas teve o cuidado de analisar decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre leis de anistia, embora tenha chegado a um entendimento diverso da Corte: Reconheço que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em diversos julgamentos – como aqueles proferidos, p. ex., nos casos contra o Peru (‘Barrios Altos’, em 2001, e ‘Loyaza Tamayo’, em 1998) e contra o Chile (‘Almonacid Arellano e outros’, em 2006) -, proclamou a absoluta incompatibilidade, com os princípios consagrados na Convenção Americana de Direitos Humanos, das leis nacionais que concederam anistia, unicamente, a agentes estatais, as denominadas ‘leis de autoanistia’. A razão dos diversos precedentes firmados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos apóia-se no reconhecimento de que o Pacto de São José da Costa Rica não tolera o esquecimento pela de violações aos direitos fundamentais da pessoa humana nem legitima leis nacionais que amparam e protegem criminosos que ultrajaram, de modo sistemático, valores essenciais protegidos pela Convenção Americana de Direitos Humanos e que perpetraram, covardemente, à sombra do Poder e nos porões da ditadura e que serviram, os mais ominosos e cruéis delitos, como o homicídio, o sequestro, o desaparecimento forçado das vítimas, o estupro, a tortura e outros atentados às pessoas daqueles que se opuserem aos regimes de exceção que vigoraram, em determinados momentos históricos, em inúmeros países da América Latina. É preciso ressaltar, no entanto, como já referido, que a lei de anistia brasileira, exatamente por seu caráter bilateral, não pode ser qualificada como uma lei de auto-anistia, o que torna 37 RAMOS, André de Carvalho. Crimes da ditadura militar: A ADPF e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. In: Crimes da Ditadura Militar: Uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Diretos Humanos. GOMES, Luiz Flávio, MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (Coords). São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, pp. 174-‐226, p. 186 38 RAMOS, André de Carvalho, op, cit, p. 186 inconsistente, para os fins deste julgamento, a inovação dos mencionados precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Destaca-se, de igual forma uma passagem do voto do Ministro GILMAR MENDES entendendo que a Lei de Anistia não deve ser modificada tendo em vista à época da entrada da sua vigência: Devemos refletir, então, sobre a própria legitimidade constitucional de qualquer ato tendente a revisar ou restringir a anistia incorporada à EC 26/1985. Parece certo que estamos, dessa forma, diante de uma hipótese na qual estão em jogo os próprios fundamentos de nossa ordem constitucional. Enfim, a EC 26/1985 incorporou a anistia como um dos fundamentos da nova ordem constitucional que se construía à época, fato que torna praticamente impensável qualquer modificação de seus contornos originais que não repercuta nas próprias bases de nossa Constituição e, portanto, de toda a vida políticoinstitucional pós-1988. O Ministro RICARDO LEWANDOWSKI foi o primeiro a se manifestar contrariamente ao voto do relator. Para ele, aqueles que cometeram crimes comuns não poderiam ser anistiados, somente os que por ventura cometeram crimes políticos. Para o Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, a Lei de Anistia impede que as partes envolvidas busquem a tutela jurisdicional, em claro desrespeito ao inc. XXXV do art. 5º da Constituição. Ademais, aduz que: A Corte Interamericana de Direitos Humanos afirmou que os Estados Partes da Convenção Americana sobre Direitos Humanos - também internalizada pelo Brasil - têm o dever de investigar, ajuizar e punir as violações graves aos direitos humanos, obrigação que nasce a partir do momento da retificação de seu texto, conforme estabelece o seu art. 1.1. A Corte Interamericana acrescentou, ainda, que o descumprimento dessa obrigação configura uma violação à Convenção, gerando a responsabilidade internacional do Estado, em face da ação ou omissão de qualquer de seus poderes ou órgãos O Ministro CARLOS AYRES BRITTO, foi o outro vencido nesse julgamento, na esteira do pensamento do Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, não entende cabível conceder anistia àqueles que cometeram crimes comuns, dando parcial provimento à ADPF, seguindo o entendimento da Corte Interamericana de Direito Humanos, embora, em nenhum momento, a ela faça referência. 4 – A DECISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS NO CASO GUERRILHA DO ARAGUAIA 4.1 – DO DEVER DE INVESTIGAR OS CRIMES OCORRIDOS NA GUERRILHA DO ARAGUAIA No Caso Guerrilha do Araguaia, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil por violação a direitos humanos, em virtude de crimes cometidos contra o desaparecimento de 62 pessoas na Guerrilha do Araguaia, não se tendo informações sobre o paradeiro de 60 deles até a data da decisão no caso, que é datada de 24.11.2010, quase 7 (sete) meses após a decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 153, que foi no dia 29.04.2010. O caso foi levado à esta Corte, após a denúncia de que em virtude da Lei de Anistia, o Estado não realizou uma investigação penal com a finalidade de julgar e punir as pessoas responsáveis pelo desaparecimento forçado de 70 vítimas e a execução extrajudicial de outra pessoa.39 Diante disso, a Corte enfatizou que os Estados signatários do Pacto de San José da Costa Rica têm: “(...) a obrigação, conforme o Direito Internacional, de processar e, caso de determine sua responsabilidade penal, punir os autores de violações de direitos humanos, decorre da obrigação de garantia, consagrada no artigo 1.1 da Convenção Americana. Essa obrigação implica o dever dos Estados-Partes de organizar todo o aparato governamental e, em geral, todas 39 Parágrafo 2 do Caso Guerrilha do Araguaia, Corte Interamericana de Direitos Humanos. as estruturas por meio das quais se manifesta o exercício do poder público, de maneira tal que sejam capazes de assegurar juridicamente o livre e pleno exercício dos direitos humanos. Como conseqüência dessa obrigação, os Estados devem prevenir, investigar e punir toda violação dos direitos humanos reconhecidos pela Convenção e procurar, ademais, o restabelecimento, caso seja possível, do direito violado e, se for o caso, a reparação dos danos provocados pela violação dos direitos humanos. Se o aparato estatal age de modo que essa violação fique impune e não se reestabelece, na medida das possibilidades, à vítima a plenitude de seus direitos, podese afirmar que se descumpriu o dever de garantir às pessoas sujeitas a sua jurisdição o livre e pleno exercícios de seus direitos. Assim, gera-se a obrigação de investigar e punir aqueles que deram causa ao desaparecimento forçado de pessoas, bem como daqueles que cometeram crimes de torturas e homicídios. Em relação ao crime de desaparecimento forçado, a Corte Interamericana de Direitos Humanos entende que este crime tem um caráter permanente, não cessando até que se tenham notícias sobre o paradeiro do indivíduo: No Direito Internacional, a jurisprudência deste Tribunal foi precursora da consolidação de uma perspectiva abrangente da gravidade e do caráter continuado ou permanente da figura do desaparecimento forçado de pessoas, na qual o ato de desaparecimento e sua execução se iniciam com a privação da liberdade da pessoa e a subsequente falta de informação sobre seu destino, e permanece enquanto não se conheça o paradeiro da pessoa desaparecida e se determine com certeza sua identidade. Em conformidade com todo o exposto, a Corte reiterou que o desaparecimento forçado constitui uma violação múltipla de vários direitos protegidos pela Convenção Americana, que coloca a vítima em um estado de completa desproteção e acarreta outras violações conexas, sendo especialmente grave quando faz parte de um padrão sistemático ou prática aplicada ou tolerada pelo Estado.40 Com isso, mesmo que se entenda que o Brasil não estava obrigado a investigar fatos ocorridos antes de 10 de dezembro de 1998, quando foi reconhecida a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos 40 Parágrafo 103 da caso Guerrilha do Araguaia, Corte Interamericana de Direitos Humanos. Humanos, a obrigação subsiste após essa data, tendo em vista o caráter permanente do crime de desaparecimento forçado de pessoas. Assim, o Brasil está sendo obrigado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos a investigar e, se for o caso, punir os violadores de direitos humanos, com intuito de informar os familiares sobre o paradeiro dos desaparecidos na região do Araguaia, quando da Guerrilha: Desde sua primeira sentença, esta Corte destacou a importância do dever estatal de investigar e punir as violações de direitos humanos. A obrigação de investigar e, se for o caso, julgar e punir, adquire particular importância ante a gravidade dos crimes cometidos e a natureza dos direitos ofendidos, especialmente em vista de que a proibição do desaparecimento forçado de pessoas e o correspondente dever de investigar e punir aos responsáveis há muito alcançaram o caráter de jus cogens.41 4.2. AS LEIS DE ANISTIAS E A CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS Para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, as leis de anistias, relativas a graves violações de direitos humanos, são incompatíveis com o direito internacional e as obrigações internacionais dos Estados,42 tendo em vista que elas contribuem para a perpetuação da impunidade: (...) são inadmissíveis as disposições de anistia, as disposições de prescrição e o estabelecimento de excludentes de responsabilidade, que pretendam impedir a investigação e punição dos responsáveis por graves violações dos direitos humanos, como a tortura, as execuções sumárias, extrajudiciais ou arbitrárias, e os desaparecimentos forçados, todas elas proibidas, por violar direitos inderrogáveis 41 Parágrafo 137, Caso Guerrilha do Araguaia, Corte Interamericana de Direitos Humanos. Parágrafo 147, Caso Guerrilha do Araguaia, Corte Interamericana de Direitos Humanos. 42 reconhecidos Humanos.43 pelo Direito Internacional dos Direitos Nessa esteira, para a Corte Interamericana de Direitos Humanos não só as leis de autoanistias são consideradas contrárias ao Direito Internacional, mas igualmente, a lei de anistia, nos moldes que foi aprovada pelo Brasil. Para a Corte, o mais importante não está na forma como fora concebida a norma de anistia, se por acordo político, ou se tratando de lei de autoanistia, mas sim no aspecto material da lei, em que essa é obstáculo para investigação e punição de graves violações de direitos humanos.44 4.3 – DA OBRIGAÇÃO DO BRASIL EM CUMPRIR A DECISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS A Corte Interamericana de Direitos Humanos é a ultima instância, quando o assunto é direitos humanos no continente americano45. Assim, suas decisões devem ser atendidas por todos aqueles Estados que reconhecem sua jurisdição, como é o caso do Brasil, sob pena de transgressão do art. 68, §1º, da Convenção de Americana de Direitos Humanos46 e do artigo 2747 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. Dessa forma, a República Federativa do Brasil, conforme a decisão da Corte no caso Guerrilha do Araguaia está obrigado a: a) investigar os fatos, julgar e, se for o caso, punir os responsáveis, em que a Lei de Anistia não sirva de obstáculo a essa determinação48; b) determinar do paradeiro das vítimas49; 43 Parágrafo 171, Caso Guerrilha do Araguaia, Corte Interamericana de Direitos Humanos Parágrafo 175, Caso Guerrilha do Araguaia, Corte Interamericana de Direitos Humanos 45 Parágrafo 176, Caso Guerrilha do Araguaia, Corte Interamericana de Direitos Humanos 46 “Artigo 68 -‐ 1. Os Estados-‐partes na Convenção comprometem-‐se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes”. 47 “Artigo 27 -‐ Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado” 48 Parágrafo 253 e ss, Caso Guerrilha do Araguaia, Corte Interamericana de Direitos Humanos 44 c) publicar da sentença da Corte50, que aliás, já foi cumprida, quando a Secretaria Especial de Direitos Humanos, vinculada à Presidência da República, disponibilizou a sentença em seu sítio eletrônico; d) editar ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional, em que a Corte determina que o Brasil reconheça sua responsabilidade internacional, bem como celebre atos de importância simbólica, que assegurem a não repetição das violações ocorridas no presente caso51; e) tipificar do delito de desaparecimento forçado, em que a Corte determinou que o Brasil continue com as proposições legislativas para essa tipificação (PL 4038/08 e PL 301/07)52; f) instituir a Comissão da Verdade, com o intuito de vasculhar o passado referente às pessoas desaparecidas, em busca de elementos que possam determinar seu paradeiro. Todavia, a Corte ressalva que a instituição dessa Comissão, não exclui a obrigatoriedade do Brasil de investigar e punir os violadores de direitos humanos da época em questão5354. Diante de tais mandamentos, para VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI e LUIZ FLAVIO GOMES, o Brasil tem a obrigação de cumprir a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, não tendo qualquer “valor jurídico a Lei de Anistia brasileira”55. 5. A RELAÇÃO ENTRE A DECISÃO DA CORTE E A DO STF 49 Parágrafo 258 e ss, Caso Guerrilha do Araguaia, Corte Interamericana de Direitos Humanos Parágrafo 270 e ss, Caso Guerrilha do Araguaia, Corte Interamericana de Direitos Humanos 51 Parágrafo 274 e ss, Caso Guerrilha do Araguaia, Corte Interamericana de Direitos Humanos 52 Parágrafo 284 e ss, Caso Guerrilha do Araguaia, Corte Interamericana de Direitos Humanos 53 Parágrafo 297 e ss, Caso Guerrilha do Araguaia, Corte Interamericana de Direitos Humanos 54 Cumprindo essa decisão, o Brasil editou a Lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011, que cria a Comissão Nacional da Verdade no âmbito da Casa Civil da Presidência da República. 55 GOMES, Luiz Flávio, MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Crimes da ditadura militar e o “Caso Araguaia”: aplicação do direito internacional dos direitos humanos pelos juízes e tribunais brasileiros. In: Crimes da Ditadura Militar: Uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Diretos Humanos. GOMES, Luiz Flávio, MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (Coords). São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, pp. 49-‐72, p. 72 50 Assim, como pensam VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI e LUIZ FLÁVIO GOMES, também entendemos que a República Federativa do Brasil deverá acatar e cumprir a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Veja-se, que a obrigação de cumprir a decisão da Corte Interamericana recai sobre todas as funções (ou poder) do Estado brasileiro, não somente, sobre o Poder Executivo. Assim, é bom repisar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos não revogou a decisão do Supremo Tribunal Federal e nem retirou do ordenamento jurídico brasileiro a Lei de Anistia, até porque sua função não é essa, apenas atuou dentro de seu âmbito de competência56. A Corte, em relação ao STF, apenas conclui que órgão brasileiro não levou em consideração os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, não analisando a Lei de Anistia sob o controle de convencionalidade57: Este Tribunal estabeleceu em sua jurisprudência que é consciente de que as autoridades internas estão sujeitas ao império da lei e, por esse motivo, estão obrigadas a aplicar as disposições vigentes no ordenamento jurídico. No entanto, quando um Estado é Parte de tratado internacional, como a Convenção Americana, todos os seus órgãos, inclusive juízes, também estão submetidos àquele, o que os obriga a zelar para que os efeitos das disposições da Convenção não se vejam enfraquecidos pela aplicação de normas contrárias a seu objeto e finalidade, e que desde o início carecem de efeitos jurídicos. O Poder Judiciário, nesse sentido, está internacionalmente obrigado a exercer um “controle de convencionalidade” ex officio entre as normas internas e a Convenção Americana, evidentemente no marco de suas respectivas competências e das regulamentações processuais correspondentes. Nessa tarefa, o Poder Judiciário deve levar em conta não somente o tratado, mas também a interpretação que a ele conferiu a Corte Interamericana, intérprete última da Convenção Americana.58 56 “Primeiro: que a punição do Brasil “não revoga, não anula, não caça a decisão do Supremo”. Correto, realmente. Cada qual analisou no seu âmbito de competência. E, no plano do direito internacional, a lei “carece de efeitos jurídicos”. E como a própria já decidiu, tampouco impediria que a Constituição tivesse que ser alterada para se conformar aos parâmetros do direito internacional”. BALDI, César Augusto. Op, cit, p. 171 57 GOMES, Luiz Flávio, MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op, cit, pp. 52-‐53 58 Parágrafo 176, Caso Guerrilha do Araguaia, Corte Interamericana de Direitos Humanos Ainda no juízo da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a proteção dos direitos humanos exercida pelos órgãos internacionais tem um viés subsidiário, cabendo aos órgãos judiciais internos a imediatividade dessa proteção. Assim, os órgãos internacionais, segundo a Corte, nos quais ela se inclui, não têm o condão de revisar ou cassar as decisões internas dos Estados que julguem casos práticos sobre direitos humanos, mas apenas verificar se tais decisões estão de acordo ou não com as normas internacionais de proteção aos direitos humanos59. Para ANDRÉ DE CARVALHO RAMOS, o direito internacional considera todos os atos internos (leis, atos administrativos, decisões judiciais, etc.) expressões da vontade de um Estado, “que devem ser compatíveis com seus engajamentos internacionais anteriores, sob pena de ser o Estado responsabilizado internacionalmente”. Dessa forma, na esteira do visto acima, o Estado não poderá se utilizar de nenhum ato interno para descumprir obrigação internacional assumida, podendo, caso descumpra, ser coagido a reparar os eventuais danos causados. Assim, mesmo a norma constitucional de um Estado é vista não como “norma suprema”, mas como mero fato, que, caso venha a violar norma jurídica internacional, acarretará a responsabilização internacional do Estado infrator”60. Com efeito, outra não seria a conclusão diante de tal assunto, tendo em vista que a própria Constituição Federal, por meio do art. 7º61, dos Atos de Disposições Transitórias Constitucionais, determina a subordinação jurídica brasileira a um tribunal internacional de direitos humanos, ou seja, a jurisdição internacional da Corte Interamericana de Direitos Humanos é um ditame constitucional. Após sabedores da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, alguns ministros do Supremo Tribunal Federal deram declarações a respeito dos efeitos jurídicos (ou não) dessa decisão internacional. 59 Parágrafo 32, Caso Guerrilha do Araguaia, Corte Interamericana de Direitos Humanos RAMOS, André de Carvalho, op, cit, pp. 209-‐210 61 “Art. 7º. O Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos” 60 Para o Ministro CÉSAR PELUSO, a decisão da Corte Interamericana apenas gera efeitos na seara da Convenção Americana de Direitos Humanos, não gerando qualquer efeito para os anistiados pela lei brasileira. Se, porventura, a decisão internacional gerar algum efeito a essas pessoas, essas poderão recorrer com pedido de habeas corpus, que "O Supremo vai conceder na hora."62 Essas declarações do atual Ministro Presidente do STF, ao que parece, vão de encontro com a passagem de seu voto na Ext. 1085, mais conhecido como caso Battisti, em que invocando o art. 2663 da Convenção de Viena afirmou categoricamente que um Estado não pode descumprir tratado ao qual se vinculou, “este é principal capital da teoria e da prática dos tratados, pois não tem nexo nem senso conceber que sejam celebrados para não ser cumpridos por nenhum dos Estados contratantes”. Ademais, tais declarações não se alinham ao entendimento do próprio Ministro no julgamento do HC 87585, que tratava de um dos julgamentos que o STF se debruçou sobre a questão da prisão civil do depositário infiel: Eu estava até recentemente algo hesitante à taxonomia dos tratados em face da nossa Constituição, mas estou seguramente convencido, hoje, de que o que a globalização faz e opera em termos de economia, no mundo, a temática dos direitos humanos deve operar no campo jurídico. Os direitos humanos já não são propriedade de alguns países, mas constituem valor fundante de interesse de toda a humanidade. Por isso, adiro à posição do grande publicista Paulo Borba Casella, o qual sustenta que a temática dos direitos humanos, por dizer respeito aos direitos fundamentais, que têm primazia na Constituição, é sempre ipso facto material constitucional. E é possível extrair da conjugação dos §§2º e 3º do art. 5º que o que temos aí é, pura e simplesmente, uma distinção entre os tratados sem status de emenda constitucional, que são materialmente constitucionais, e os do §3º, que são material e formalmente constitucionais. Qual a substância da distinção? A de regimes jurídicos. Com qual consequência? Com uma única conseqüência: saber os efeitos ou os requisitos do ato de denúncia pelo qual o Estado pode desligar-se dos seus compromissos internacionais. Esta é a única relevância na distinção entre as hipóteses do §2º e do §3º. E acho que o Tribunal não deve, com o devido respeito, ter receio de 62 Jornal Estadão, dia 16.12.2010. “Artigo 26. Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé”. 63 perquirir qual a extensão dos direitos fundamentais, até porque eles são históricos. Ou seja, é que preciso que a Corte, no curso da história, diante de fatos concretos, vá descobrindo e revelando os direitos humanos que estejam previstos nos tratados internacionais, enquanto objeto da nossa interpretação, e lhes dispense a necessária tutela jurídicoconstitucional" (negritos no original, sublinhado pelo autor) De igual forma, O Ministro MARCO AURÉLIO aduziu que o executivo brasileiro está submetido ao julgamento do STF, não podendo afrontá-lo para seguir a Corte Interamericana de Direitos Humanos. "É uma decisão que pode surtir efeito ao leigo no campo moral, mas não implica cassação da decisão do STF", disse. "Quando não prevalecer a decisão do Supremo, estaremos muito mal."64 Mais preocupado com os efeitos internacionais sobre um eventual descumprimento da decisão internacional, o Ministro CARLOS AYRES BRITTO acentuou que prevalece a decisão do Supremo, mas entendeu a situação ímpar em que se encontra o Brasil: "é uma saia-justa, um constrangimento para o País, criado pelo poder que é o menos sujeito a esse tipo de vulnerabilidade (o Judiciário)"65. Para ANDRÉ DE CARVALHO RAMOS, caso o Supremo Tribunal Federal mantenha esse “posicionamento negacionista”, o art. 68, I, da Convenção Americana de Direitos Humanos, que trata da força vinculante das decisões da Corte Interamericana, está fadado a ser considerado inconstitucional ou sofrer uma interpretação conforme a Constituição de 198866. 6 – UMA CONCLUSÃO NECESSÁRIA: O CUMPRIMENTO DA DECISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS FERE A SOBERANIA BRASILEIRA? Com a teoria da relativização da soberania, o Brasil, ao atender as determinações da Corte Interamericana de Direitos Humanos, cumpre com 64 Jornal Estadão, dia 16.12.2010. Jornal Estadão, dia 16.12.2010. 66 RAMOS, André de Carvalho, op, cit, p. 214 65 seu papel internacional, e em nada menoscaba a sua parcela de soberania, que, como visto, restará intocável, no sentido de preservação do seu território e de cumprimento de decisões internas ou internacionais. A soberania não poderá servir de escudo para o não cumprimento de decisões internacionais por qualquer que seja a entidade ou órgão do Estado. Ainda mais quando essas decisões vêm de uma Corte que a própria Constituição Federal pugnou pela sua criação, e que o Brasil aceitou sua jurisdição. Aceitar a jurisdição de um Tribunal implica necessariamente obedecer as suas decisões. Como defendido neste trabalho, cada Estado representa no direito internacional uma unidade jurídica autônoma, em que a soberania de cada Estado seria relativizada para reconhecer a primazia dos direitos humanos em toda a comunidade internacional. Assim, os Estados seriam competentes para disciplinar quaisquer matérias, inclusive sobre direitos humanos, que restaria qualificados como direitos fundamentais, mas que não poderiam estar em contraste com as normas de direito internacional, nem com as decisões das Cortes responsáveis pela defesa dos direitos humanos. Nessa esteira, entende-se serem infelizes as passagens acima transcritas pelos Ministros do Supremo, não reconhecendo a jurisdição e vinculação jurídico-operacional da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, não contribuindo em nada para o desenvolvimento do diálogo entre o STF e a CIDH. Ademais, frise-se que a Corte não vê nenhuma diferença entre decisão do Supremo, ou decreto legislativo, por exemplo, ou qualquer ato administrativo no âmbito do Poder Executivo. São todos esses exemplos de atos internos da República Federativa do Brasil. Buscando uma aparente conciliação entre essas duas decisões, pode-se supor que a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos apenas limitou a eficácia da decisão do Supremo Tribunal Federal ao que tange ao espaço da região do Araguaia, ao período de 1972 a 1975 aos crimes de tortura, homicídios, estupros e outros crimes graves, bem como o desaparecimento forçado de pessoas, durante esse período observado nesse espaço. Assim, em tese, a Lei de Anistia, considerada recepcionada pela Constituição Federal de 1988, conforme decisão do Supremo, valeria para todos os outros casos que não foram atacados na Corte de Direitos Humanos. Com efeito, essa ainda não é a melhor das soluções, pois a Corte Interamericana de Direitos Humanos foi enfática ao decidir que as leis de anistias são contrárias à Convenção Americana de Direitos Humanos. O que não se entende é como o STF considerou a Lei de Anistia válida diante do nível de proteção que a Constituição Federal de 1988 dispensa aos direitos fundamentais. Todavia, pode ser uma aparente solução para o problema a proposta no parágrafo anterior. Assim, cumprir a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Guerrilha do Araguaia, é o mínimo que se espera por parte da República Federativa do Brasil. Aliás, também se espera que o Supremo cumpra seu papel como protetor máximo, no território brasileiro, dos direitos e garantias individuais de toda a sociedade brasileira, ainda mais, nesse caso, dos direitos e garantias dos familiares dos mortos e desaparecidos em virtude da Guerrilha do Araguaia. Não podemos conceber que um Estado vanguardista na proteção dos direitos fundamentais ponha a salvo a responsabilização de criminosos. Realmente isso não se coaduna com a sinceridade do Estado brasileiro para com seus nacionais, e o STF parece estar na contramão da história. Por fim, cumpre ressaltar que o STF, cumprindo a decisão da Corte, não estaria de forma alguma caindo em descrédito perante a sociedade brasileira. Muito pelo contrário. Ao consentir na investigação dos responsáveis pelos violadores de direitos humanos, estaria o Supremo a reconhecer a primazia dos direitos humanos em solo brasileiro, sinalizando para um futuro em que os direitos fundamentais estarão mais efetivados. 7 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BALDI, César Augusto. Guerrilha do Araguaia e direitos humanos: considerações sobre a decisão da Corte Interamericana. In: Crimes da Ditadura Militar: Uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Diretos Humanos. GOMES, Luiz Flávio, MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (Coords). São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, pp 154-173 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 21ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2011 FURLAN, Fernando de Magalhães. Integração e Soberania – O Brasil e o Mercosul. São Paulo: Ed. Aduaneiras, 2004, GOMES, Luiz Flávio, MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Crimes da ditadura militar e o “Caso Araguaia”: aplicação do direito internacional dos direitos humanos pelos juízes e tribunais brasileiros. In: Crimes da Ditadura Militar: Uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Diretos Humanos. GOMES, Luiz Flávio, MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (Coords). São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, pp. 49-72 KELSEN, Hans, CAMPAGNOLO, Umberto. Direito Internacional e Estado Soberano. Org: Mario Losano. São Paulo: Martins Fontes, 2002 KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. Tradução de Luís Carlos Borges. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005 PIOVESAN, Flávia. Lei de Anistia, Sistema Interamericano e o caso brasileiro. In: Crimes da Ditadura Militar: Uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Diretos Humanos. GOMES, Luiz Flávio, MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (Coords). São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, pp. 73-86, RAMOS, André de Carvalho. Crimes da ditadura militar: A ADPF e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. In: Crimes da Ditadura Militar: Uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Diretos Humanos. GOMES, Luiz Flávio, MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (Coords). São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, pp. 174-226.