O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA NO ÂMBITO DO DIREITO
TRIBUTÁRIO 1
Veríssimo Tarrago da Silva2
"Não há outro meio de atalhar o arbítrio, senão dar
contornos definidos e inequívocos à condição que o
limita." (Rui Barbosa)
RESUMO: Os atos, condutas e procedimentos do Poder Público, muito pela
presunção de legitimidade que têm, criam, muitas vezes, expectativas nos indivíduos. O
princípio da proteção à confiança é um instrumento que visa a tutela destas expectativas.
Tem relação íntima com o princípio da segurança jurídica e o princípio da boa-fé objetiva.
De grande relevo o estudo do princípio à seara do direito tributário, já que é uma garantia
intimamente relacionada à previsibilidade e à segurança do cidadão. Assim, o presente
trabalho tem o escopo de analisar, em primeiro momento, o conteúdo e os fundamentos
jurídicos do princípio da proteção à confiança, através da análise de seu conceito, suas
formas de incidência, a definição de sua espécie normativa, bem como o surgimento e a
evolução da garantia, seja no direito comparado, seja, sobretudo, no ordenamento jurídico
brasileiro. Em momento seguinte, pretende-se estudar a aplicabilidade da garantia
especificamente no âmbito do direito tributário, elencando-se suas formas de operatividade
relativamente a cada um dos poderes do Estado.
Palavras-chaves: Proteção à Confiança. Segurança Jurídica. Boa-fé da Administração
Pública. Previsibilidade. Manutenção dos atos, procedimentos e condutas estatais.
INTRODUÇÃO
Previsibilidade, estabilidade e segurança são conceitos que justificam a existência do
próprio direito. O cidadão necessita saber de antemão a qual direito se submeterá, bem como
quais efeitos decorrerão das ações que ele pratica.
Mais evidente ainda é a necessidade de segurança no âmbito das relações entre
contribuinte e Estado, dado às necessidades ligadas ao planejamento econômico,
fundamentais à saúde financeira do cidadão.
Nesse contexto, consagraram-se diversos mecanismos jurídicos que concretizam o
ideal de segurança jurídica, como, exemplificativamente, a irretroatividade tributária e os
conceitos de ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada.
1
Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso em Ciências Jurídicas e Sociais, apresentado como
requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Estado do Rio
Grande do Sul. Aprovação com grau máximo pela banca examinadora composta pelo orientador, Professor Me.
Atílio Dengo, Professora Me. Márcia Regina L. Cadore Weber e Professor Me. Fernando Smith Fabris, em 10 de
dezembro de 2009.
2
Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Estado do Rio Grande do
Sul. E-mail: [email protected]
2
Ocorre que nem sempre tais instrumentos são suficientes à consecução do ideal a que
se propõem – nem sempre são capazes de satisfazer aos anseios de segurança e de
previsibilidade.
O direito tem indicado que as esperanças que são legitimamente expectadas pelos
indivíduos merecem, sim, tutela jurídica. E o princípio da proteção à confiança surge como
um instrumento de guarnição destas expectativas. Por isso, é mais uma conquista decorrente
do princípio da segurança jurídica e, em sentido mais amplo, do Estado de Direito.
Assim, as condutas estatais, notadamente dotadas de presunção de legitimidade, geram
no indivíduo uma expectativa de que tais serão mantidas e, por isto, muitas vezes, devem ser
preservadas, mesmo quando eivadas de ilegalidades.
E não só pelo prisma do cidadão que é devida a manutenção de tais atos. O Estado não
está liberto do dever de boa-fé, trazido ao mundo jurídico pelo princípio da moralidade que se
impõe à administração pública, conforme o art. 37 da Constituição Federal. Assim, não pode
o Poder Público, a qualquer momento, romper seus comportamentos e promessas que
produziram aos seus administrados um benefício e, portanto, uma expectativa de direito.
Porém, tão maléfica quanto a visão de que todos os atos públicos ilegais devem de
pronto ser revogados, é a posição no sentido da existência de um princípio que torne
perpétuas as condutas estatais, engessando o Poder Público. Por isto, a importância de um
juízo de razoabilidade e proporcionalidade para a concreta aplicação do princípio da proteção
à confiança.
Dessa forma, o presente trabalho tem o itinerário que se encaminha desde a tentativa
de conhecimento do princípio até a sua aplicação concreta, especificamente no ramo do
direito tributário. Nesta tarefa, divide-se em duas partes.
A primeira refere-se ao conteúdo e aos fundamentos do princípio. Assim, estudar-se-á
o conceito da garantia, comparando-se com o princípio da segurança jurídica e o da boa-fé
objetiva. Ato contínuo, será analisada a natureza normativa da proteção à confiança. Após,
segue o momento da definição das formas de instrumentalização do princípio. A partir daí,
será observado o surgimento e a evolução do princípio no direito comparado e, mais adiante,
no ordenamento jurídico nacional.
Já na segunda parte, haverá o tratamento específico da aplicabilidade do princípio no
âmbito do direito tributário. Assim, haverá, após um ensaio sobre a relevância do instituto no
ramo do direito, o estudo específico acerca dos critérios e requisitos de aplicabilidade do
princípio da proteção à confiança. No seguinte momento, será analisada a operatividade da
3
garantia sobre a atuação de cada um dos poderes do Estado – do Legislativo, do Judiciário e
do Executivo.
1
O
PRINCÍPIO
DA
PROTEÇÃO
À
CONFIANÇA
–
CONTEÚDO
E
FUNDAMENTOS
1.1 CONCEITO E DELIMITAÇÃO CONCEITUAL
A proteção à confiança é um valor inerente ao princípio da segurança jurídica que visa
garantir constitucionalmente que o Estado não frustrará as legítimas expectativas que deposita
aos indivíduos – e, neste trabalho, mais especificamente, aos contribuintes.
Soma-se a observação de que certos atos estatais, pela presunção e pela aparência de
legalidade que têm, geram uma confiança no indivíduo de que tais seriam mantidos.3
É neste contexto que surge a necessidade de uma garantia que induza à estabilidade e à
permanência destes atos que, mesmo quando ilegais, produzem, no indivíduo, uma legítima
expectativa frente a um determinado comportamento estatal.
Dessa forma, impõem-se ao Estado, nas palavras de Couto e Silva, “limitações na
liberdade de alterar sua conduta e de modificar atos que produziram vantagens para os
destinatários, mesmo quando ilegais, atribuindo-se conseqüências patrimoniais por essas
alterações, sempre em virtude da crença gerada” nos indivíduos de que aqueles atos seriam
mantidos. 4
Surge de pronto uma necessária delimitação conceitual entre “boa-fé objetiva”,
“segurança jurídica” e “proteção à confiança”, idéias que embora pertençam a uma mesma
constelação de valores, “no curso do tempo, foram se particularizando e ganhando nuances
que de algum modo as diferenciam, sem que, no entanto, umas se afastem completamente das
outras.” 5
3
“A esses dois últimos elementos ou princípios - legalidade da Administração Pública e proteção da confiança
ou da boa fé dos administrados – ligam-se, respectivamente, a presunção ou aparência de legalidade que têm os
atos administrativos e a necessidade de que sejam os particulares defendidos, em determinadas circunstâncias,
contra a fria e mecânica aplicação da lei, com o conseqüente anulamento de providências do Poder Público que
geraram benefícios e vantagens, há muito incorporados ao patrimônio dos administrados.” (COUTO E SILVA,
Almiro do. Princípios da Legalidade da Administração Pública e da Segurança Jurídica no Estado de Direito
Contemporâneo. Revista da Procuradoria-Geral do Estado, Porto Alegre, volume 27, nº 57, 2003, p. 13)
4
COUTO E SILVA, Almiro do. O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança) no Direito Público
Brasileiro e o Direito da Administração Pública de Anular seus Próprios Atos Administrativos: o Prazo
Decadencial do Art. 54. da Lei do Processo Administrativo da União (Lei nº 9.784/99). Revista da
Procuradoria-Geral do Estado, Porto Alegre, volume 27, nº 57, 2003, p. 37.
5
Ibidem, p. 35.
4
1.1.1 A Segurança Jurídica e a Proteção à Confiança
Como referido, a proteção à confiança decorre diretamente do princípio da segurança
jurídica. Por conseguinte, faz-se necessário, em primeiro momento, a compreensão deste
instituto.
Atribui-se à segurança jurídica um valor transcendental6 ao ordenamento jurídico e ao
próprio direito, eis que se trata de um elemento justificador da necessidade de se estabelecer
uma ordem que torne possível que as pessoas dimensionem seus atos e comportamentos de
acordo com um direito certo7 - eis, aqui, a perspectiva que Ávila denomina como a “dimensão
formal-temporal da segurança jurídica”8, que consiste na necessidade que tem o indivíduo de
saber anteriormente o direito a que se submeterá.
Ou seja, a segurança jurídica pode ser considerada um dos elementos justificadores da
existência de um ordenamento jurídico e, não bastasse, do próprio Estado de Direito.9 Como
coloca Maffini, “o Estado e o Direito consistem em instrumentos de consecução de segurança
– num sentido amplo – justamente em razão de serem ambos frutos culturais imanentes à
condição humana.” 10
A condição humana de que trata o autor nada mais é do que a premente necessidade
antropológica à segurança, estabilidade, confiança, previsibilidade e certeza, não só nas
relações entre indivíduos, como nas relações do indivíduo com o Estado. E Canotilho leciona
sobre tais anseios:
O homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e
responsavelmente sua vida. Por isso, desde cedo se consideraram os princípios da
segurança jurídica e da protecção da confiança como elementos constitutivos do
Estado de direto. 11
6
BORGES, José Souto Maior. O Princípio da Segurança Jurídica na Criação e Aplicação do Tributo. Revista
Diálogo Jurídico, Salvador, nº 11, fevereiro de 2002, p. 1. Disponível em: < http://www.direitopublico.com.br >.
Acesso em: 22.10.2009.
7
ARANHA, Márcio Nunes. Segurança Jurídica Stricto Sensu e Legalidade dos Atos Administrativos. Revista de
Informação Legislativa, Brasília, n. 34, abr./jun. 1997, p. 67.
8
ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, São Paulo: Saraiva, 2004, p. 296.
9
“O Direito, como instrumento de organização da vida em sociedade, surge para a afirmação da segurança. A
segurança constitui, assim, traço imanente ao Direito, tanto nas relações entre os indivíduos como nas destes com
o Estado.” (PAULSEN, Leandro. Segurança Jurídica, Certeza do Direito e Tributação: A concretização da
certeza quanto à instituição de tributos através das garantias da legalidade, da irretroatividade e da
anterioridade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 22.)
10
MAFFINI, Princípio da Proteção Substancial da Confiança no Direito Administrativo Brasileiro, op. cit., p.
13.
11
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª Edição, Coimbra –
Portugal: Ed. Almedina, 2000, p. 257.
5
Maffini, por sua vez, atribui uma feição multifacetada à segurança jurídica, porque
mesmo considerada como um subprincípio do Estado de Direito, caracteriza um
sobreprincípio12 em relação a outros princípios ainda mais específicos – e esse fenômeno é o
que o autor denomina de caráter mediatizador da segurança jurídica. 13
E, nesta linha, o princípio da proteção à confiança aparece justamente como um
subprincípio da segurança jurídica. É, pois, mais um instrumento de concreção do princípio da
segurança jurídica, assim como a irretroatividade e a anterioridade tributária.
Por sua vez, Couto e Silva ordena tais instrumentos através do estudo da natureza do
princípio da segurança jurídica. Ensina o autor que o princípio da segurança jurídica possui
duas naturezas: uma objetiva – “aquela que envolve a questão dos limites à retroatividade dos
atos do Estado (...)”; e outra subjetiva, concernente ao instituto da proteção à confiança – à
“proteção à confiança das pessoas no pertinente aos atos, procedimentos e condutas do
Estado, nos mais diferentes aspectos de sua atuação.” 14
Em seu aspecto objetivo, a segurança jurídica, como define Maffini, relaciona-se com
a previsibilidade e a irretroatividade dos atos estatais, revelando-se nos institutos do ato
jurídico perfeito, do direito adquirido e da coisa julgada, previstos no inciso XXXVI do art. 5º
da CF/8815, bem como nos institutos da irretroatividade e da anterioridade tributária16, por
exemplo.17
Porém, não raro estes instrumentos concernentes à natureza objetiva da segurança
jurídica têm-se mostrado insuficientes à efetivação do princípio.
A observação histórica de alguns abusos estatais cometidos ao longo dos tempos tem
demonstrado a fragilidade da proteção auferida pelos instrumentos associados à natureza
objetiva do princípio da segurança jurídica – o ato jurídico perfeito, a coisa julgada, o direito
adquirido e, especificamente no âmbito do direito tributário, a anterioridade e a
irretroatividade.
12
MAFFINI dá a noção do conceito de sobreprincípio: “(...) em certa medida, consiste numa noção peculiar de
alguns princípios, caracterizando-se pela maior amplitude dos fins (estado de coisas almejado) para os quais
existem.” (MAFFINI, Princípio da Proteção Substancial da Confiança no Direito Administrativo Brasileiro, op.
cit., p. 30)
13
Ibidem, p. 39.
14
Ibidem, p. 36.
15
“XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;”
16
“Da necessidade de segurança jurídica elevou-se, no curso da história, uma variada gama de decorrências. Em
termos mais amplos, pode-se afirmar que a separação funcional dos poderes estatais e o princípio da legalidade
administrativa, bem como institutos específicos, tais como os conceitos de direito adquirido, ato jurídico
perfeito, coisa julgada, anterioridade tributária, dentre outros, são exemplos de instrumentos que mediata ou
imediatamente dão concreção à segurança jurídica.” (MAFFINI, Princípio da Proteção Substancial da
Confiança no Direito Administrativo Brasileiro, op. cit., p. 10)
17
MAFFINI, Princípio da Proteção Substancial da Confiança no Direito Administrativo Brasileiro, op. cit., p.
47.
6
É neste contexto que se eleva a necessidade de um princípio associado diretamente aos
valores inerentes à segurança jurídica e aos efeitos que estes produzem no indivíduo.
A proteção à confiança não é um instrumento estático, engessado, de solidificação do
princípio da segurança jurídica – por isso não se enquadra no viés objetivo do princípio.
É, em verdade, a instrumentalização dos ideais de segurança, estabilidade e
previsibilidade – que induz o princípio da segurança jurídica – traduzidos na confiança do
indivíduo de que o Estado não romperá seus atos, procedimentos e condutas, aparente e
presumidamente legais.
Extraem-se, assim, as seguintes conclusões acerca da relação entre o princípio da
proteção à confiança e o princípio da segurança jurídica: a confiança do cidadão é um dos
valores justificadores do princípio da segurança jurídica18; a proteção à confiança associa-se à
natureza subjetiva do princípio da segurança jurídica; a proteção à confiança é um
subprincípio em relação ao princípio da segurança jurídica, que, por sua vez, é um
subprincípio do Estado de Direito; o princípio da proteção à confiança é, em suma, um
instrumento indutor dos ideais de segurança, justificando-se na necessidade de preservação
das pretensões legitimamente expectadas pelos indivíduos em decorrência de certo
comportamentos estatal.
1.1.2 A Proteção à Confiança e a Boa-Fé da Administração Pública
Nesse cenário de preservação dos atos, condutas e procedimentos estatais no mundo
jurídico, o princípio da boa-fé, em seu aspecto objetivo, guarda estreita relação com o
princípio da proteção à confiança.
O conceito de boa-fé desenvolveu-se, sobretudo, no ramo do Direito Privado,
especialmente no tocante ao direito obrigacional e contratual19.
Martins-Costa define a boa-fé objetiva como “uma norma de conduta que impõe aos
participantes da relação obrigacional um agir pautado pela lealdade, pela colaboração
18
PAULSEN coloca a confiança no tráfego jurídico como um dos conteúdos da segurança jurídica:
“Vislumbramos, assim, cinco conteúdos do princípio da segurança jurídica: 1) certeza do direito; 2)
intangibilidade das posições jurídicas; 3) estabilidade das situações jurídicas; 4) confiança no tráfego jurídico; 5)
tutela jurisdicional.” (PAULSEN, Segurança Jurídica, Certeza do Direito e Tributação, op. cit., p 52)
19
MAFFINI, Princípio da Proteção Substancial da Confiança no Direito Administrativo Brasileiro, op. cit., p.
51.
7
intersubjetiva no tráfego negocial, pela consideração dos legítimos interesses da
contraparte.”20
No tocante a imposição à administração pública de uma conduta leal que não frustre as
expectativas que esta deposita aos indivíduos, o instituto da boa-fé objetiva condiz, a ponto de
identidade conceitual, com o que determina a proteção à confiança.
Ocorre que, apesar de ambos serem princípios de uma mesma constelação de valores,
como mencionado por Couto e Silva, não são institutos sinônimos. E a diferenciação destes
princípios não é tarefa fácil.
Por certo, os dois institutos confluem a um mesmo destino, ainda que por diferentes
itinerários. Ou seja, embora ambos visem à preservação de certas condutas estatais que,
mesmo quando ilícitas, produziram uma expectativa no administrado, a proteção à confiança
surge como uma garantia do indivíduo ligada aos ideais da segurança jurídica e do Estado de
Direito, enquanto que a boa-fé objetiva atua como um instrumento de controle da atividade do
Estado.
Ou ainda, como salientado por Maurer, “A proteção à confiança parte da perspectiva
do cidadão. Ela exige a proteção da confiança do cidadão que contou, e dispôs em
conformidade com isso, com a existência de determinadas regulações estatais e outras
medidas estatais.” 21
Enfim, desdobram-se duas situações jurídicas: o direito que tem o indivíduo de que
suas expectativas legitimamente criadas não venham a ser frustradas (proteção à confiança); e
o dever que tem o Estado de não frustrar as expectativas que legitimamente criou nos seus
administrados (boa-fé da administração pública).
Martins-Costa escreve sobre o dever estatal de boa-fé:
[...] a administração deve não apenas resguardar as situações de confiança
traduzidas na boa-fé (crença) dos cidadãos na legitimidade dos atos administrativos
ou na regularidade de certa conduta; deve também agir segundo impõe a boa-fé,
considerada como norma de conduta, produtora de comportamentos ativos e
positivos de proteção.22
20
MARTINS-COSTA. Judith, Almiro do Couto e Silva e a Re-significação do Princípio da Segurança Jurídica
na Relação entre o Estado e os Cidadãos. In: ÁVILA, Humberto (org.). Fundamentos do Estado de Direito:
estudos em homenagem ao Professor Almiro do Couto e Silva. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 136.
21
MAURER, Hartmut. Elementos de Direito Administrativo Alemão. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto
Alegre: Fabris, 2001, p. 68. In: PAULSEN, Segurança Jurídica, Certeza do Direito e Tributação, op. cit., p. 60.
22
MARTINS-COSTA, Judith. Almiro do Couto e Silva e a Re-significação do Princípio da Segurança Jurídica
na Relação entre o Estado e os Cidadãos, op. cit., p. 136.
8
Tal dever encontra-se veiculado no chamado princípio da moralidade administrativa,
previsto no art. 37 da CF/8823. É o que comenta Giacomuzzi:
É fácil notar, dos institutos alienígenas comentados, a paridade com o dever da
correta e clara informação que a Administração Pública possui e que, no meu
entender, é veiculado pelo princípio da moralidade do art. 37 da Constituição
Federal de 1988, uma vez ser ela a norma que, conduzindo, entre nós, a boa-fé
administrativa, exige a proteção da confiança dos administrados nos atos da
Administração. Vai daí que os deveres de lealdade e respeito à ação administrativa
anterior, corolários da confiança, estejam hoje constitucionalmente previstos. As
conseqüências da constitucionalização da moralidade enquanto princípio jurídico
apontam – entendo – para uma direção diversa, conquanto mais rica e
plurissignificativa, que aquelas – perigosa e, muitas vezes, levianamente
subjetivadas – que estão sendo tomadas, entre nós, pelos operadores jurídicos,
teóricos e práticos.
Da moralidade insculpida no art. 37 da Constituição Federal de 1988 se deve – não
só, mas sobretudo – extrair deveres objetivos de conduta administrativa a serem
seguidos, proibindo-se a contradição de informações, a indolência, a leviandade de
propósitos. Com o perigoso risco das simplificações, mas com o cuidado do alerta,
posso dizer que a moralidade administrativa do art. 37 da Constituição Federal de
1988 obriga a um dever de transparência e lealdade por parte da Administração
Pública. 24
Resta claro que o princípio da moralidade insculpido na nossa Constituição Federal
sujeita o Estado ao dever de agir dentro dos limites do princípio da boa-fé objetiva, o que vai
ao encontro da garantia de segurança que o princípio da proteção à confiança produz no
cidadão. Isto se traduz no cânone de que “O Estado tem o dever de agir conforme a boa-fé e a
moralidade para fazer-se confiável” 25.
Assim, tem-se que, enquanto a proteção à confiança surge como garantia do indivíduo
frente ao Estado como derivação direta do princípio da segurança jurídica e indireta da idéia
de Estado de Direito, a boa-fé projetada aos atos e condutas da administração pública é um
dever estatal, imposto pela constituição federal.
Porém, somam-se ambos os princípios no seu objetivo comum de clareza, estabilidade
e segurança das condutas estatais e, mais amplamente, contribuem para a efetivação da
segurança jurídica e, sobretudo, do Estado de Direito.
23
“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência e, também, ao seguinte: (...)”
24
GIACOMUZZI, José Guilherme. A Moralidade Administrativa e a Boa-Fé da Administração Pública: o
conteúdo dogmático da moralidade administrativa, São Paulo: Malheiros, 2002, p. 270.
25
Ibidem, p. 427.
9
1.1.3 A Proteção à Confiança como Princípio
Mais do que uma necessidade meramente metodológica, o estudo da qualidade
normativa do instituto da proteção à confiança tem uma justificativa prática concernente à
aplicabilidade da garantia, o que será analisado em momento oportuno.
Primeiramente, cumpre ressaltar que as espécies normativas não são excludentes entre
si, sendo que “Um ou vários dispositivos, ou mesmo a implicação lógica deles decorrente,
pode experimentar uma ‘dimensão’ imediatamente comportamental (regra), finalística
(princípio) e/ou metodológica (postulado).” 26
Passa-se a tratar dos conceitos dessas espécies normativas referidas por Ávila: os
postulados normativos, as regras e os princípios.
Os postulados normativos são as chamadas metanormas, que se situam em grau
superior aos princípios e às regras e “estabelecem a estrutura de aplicação” destas. São
exemplos os postulados da proporcionalidade e da razoabilidade, os quais somente serão
violados elipticamente – na realidade, os princípios e as regras é que serão ofendidos.27
No entanto, maior relevo se dá à distinção entre regras e princípios. Ávila propõe as
seguintes dissimilitudes:
- enquanto as regras têm como dever imediato a adoção da conduta descrita, os
princípios dirigem-se a promoção de um estado ideal de coisas;28
- o dever mediato das regras é a “manutenção de fidelidade à finalidade subjacente e
aos princípios superiores.” Já os princípios têm como dever mediato a adoção da conduta
necessária a que se propõe.29
Passo seguinte, o autor define o conceito das regras:
As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com
pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação
da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos
princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual
da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos. 30
26
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 4ª Edição, 2ª
Tiragem. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 60.
27
Ibidem, p. 88.
28
Ibidem, p. 70.
29
Ibidem, p. 70.
30
Ibidem, p. 70.
10
E o dos princípios:
Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e
com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se
demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os
efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção. 31
Dessa forma, percebe-se que os princípios são normas que buscam um determinado
resultado finalístico, enquanto as regras têm a pretensão de transportar aos fatos os princípios a
que se submetem. Os primeiros buscam um resultado final, enquanto que os segundos estão
muito mais afeitos aos meios de consecução deste resultado.32
A garantia da proteção à confiança, conforme se observou, revela-se um instrumento
que objetiva a proteção da confiança legitimamente expectada por parte do indivíduo em
decorrência de um determinado comportamento estatal. Busca, assim, um ideal de segurança,
de previsão e de estabilidade. Isto é o que dá sentido a existência do princípio da proteção à
confiança, portanto, seu resultado finalístico.
Por isso, correta a graduação do instituto da proteção à confiança como princípio. E
isto traz relevantes consequências à aplicabilidade do instituto.
Entendida a proteção à confiança como princípio, a garantia não tem aplicação
imediata, devendo ser ponderada e arrazoada nas diferentes situações da vida – resgata-se,
aqui, a menção dos postulados normativos na aplicação e na estruturação dos princípios.
Ou seja, para a aplicação do princípio da proteção à confiança “se demanda uma
avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido” – o ambiente tendente à
segurança jurídica – “e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua
promoção”
33
– e, neste ponto, apresentam-se uma série de tensões, como a havida entre a
proteção à confiança e a necessidade de mudança do comportamento estatal em virtude de uma
nova condição fática.
Nesse sentido, vale referir que a proteção à confiança não objetiva a existência de um
ambiente jurídico de imutabilidade das ações, procedimentos e condutas estatais. Há que se ter
em mente que o Estado e as sociedades mudam – e não há como ser diferente – e que tais
31
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 4ª Edição, 2ª
Tiragem. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 70.
32
Nesse sentido: “O elemento nuclear do conceito de princípio jurídico, ao que parece, encontra-se no aspecto
finalístico, isto é, a estipulação de fins a serem buscados – muito mais do que os meios empregados para o
alcance de tais fins, normalmente afetos as regras – com vistas à obtenção de um estado protetivo de valores que,
por razões jurídicas, se fazem merecedores de asseguração.” (MAFFINI, Princípio da Proteção Substancial da
Confiança no Direito Administrativo Brasileiro, op. cit., p. 30)
33
ÁVILA, Teoria dos Princípios, op. cit., p. 70.
11
mudanças, muitas vezes, devem vir acompanhadas de um novo comportamento estatal. O
princípio da proteção à confiança tem a pretensão, justamente, de resguardar o indivíduo (ou as
expectativas deste indivíduo) destes novos comportamentos, mas, nunca, de tornar o Estado
inerte e ocioso.
E assim refere Couto e Silva:
É certo que o futuro não pode ser perpétuo prisioneiro do passado, nem podem a
segurança jurídica e a proteção à confiança se transformar em valores absolutos,
capazes de petrificar a ordem jurídica, imobilizando o Estado e impedindo-o de
realizar as mudanças que o interesse público estaria a reclamar. Mas, de outra parte,
não é igualmente admissível que o Estado seja autorizado, em todas as
circunstâncias, a adotar novas providências em contradição com as que foram por
ele próprio impostas, surpreendendo os que acreditaram nos atos do Poder Público.34
Nesse contexto de tensão é que se torna indispensável a existência de um juízo de
ponderação e de razoabilidade por parte do julgador, do legislador e da administração pública,
para que se procedam as mudanças necessárias sem que isto acarrete em um ambiente de
insegurança e de imprevisão.
1.2 A EVOLUÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA
Neste tópico, faz-se um breve relato da evolução do princípio da proteção à confiança,
eis que necessário a maior compreensão e aclaramento do instituto.
Muito embora o princípio da proteção à confiança tenha surgido na Alemanha da
metade do século XX, a noção de que certas expectativas criadas pelo Estado deveriam ser
protegidas é muito mais antiga.
Ocorre que o argumento jurídico que revestia essa noção não era o da proteção à
confiança do indivíduo, mas sim, simplesmente, o de que certos atos tinham presunção e
aparência de legitimidade e, por isso, mereciam ser mantidos.
Couto e Silva menciona caso registrado na Roma antiga:
O exemplo mais antigo e talvez mais célebre do que acabamos de afirmar está no
fragmento de Ulpiano, constante do Digesto, sob o título ‘de ordo praetorum’
(D.1.14.1), no qual o grande jurista clássico narra o caso do escravo Barbarius
Philippus que foi nomeado pretor em Roma. Indaga Ulpiano: ‘Que diremos do
escravo que, conquanto ocultando essa condição, exerceu a dignidade pretória? O
que editou, o que decretou, terá sido talvez nulo? Ou será válido por utilidade
34
COUTO E SILVA, O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança) no Direito Público Brasileiro
e o Direito da Administração Pública de Anular seus Próprios Atos Administrativos, op. cit., p. 38.
12
daqueles que demandaram perante ele, em virtude de lei ou de outro direito?’. E
responde pela afirmativa. 35
Ainda hoje, este é o argumento justificador da permanência dos atos praticados por
“funcionário de fato”, atos que são considerados válidos em função da aparência e da
presunção de legitimidade que têm, independentemente da incompetência absoluta de quem os
exarou. 36
Porém, há, aparentemente, certa imprecisão conceitual em tal manifestação, pois, na
realidade, essa aparência e presunção de legitimidade que têm os atos estatais é uma das
justificativas da necessidade de um instrumento que proteja a confiança dos indivíduos, mas
não é, por si só, argumento jurídico capaz de induzir à permanência dos atos inválidos. Ou,
como na conclusão de Couto e Silva, “Na verdade, o que o direito protege não é a ‘aparência
de legitimidade’ daqueles atos, mas a confiança gerada nas pessoas em virtude ou por força da
presunção de legalidade e da aparência de legitimidade que têm os atos do Poder Público.” 37
Por isso, relevante a determinação do princípio da proteção à confiança como
instrumento próprio e argumento jurídico individual na busca de “evitar que as pessoas sejam
surpreendidas por modificações do direito positivo ou na conduta do Estado (...).” 38
E, como instrumento próprio, o princípio surgiu pretorianamente na Alemanha da
década de 50. Faça-se um adendo quanto ao contexto histórico do nascimento do princípio – o
fundo político ambientado em um Estado Social favoreceu o nascimento do instituto, eis que
determinante na relação de maior dependência do indivíduo com o Estado. 39
A primeira de uma sequência de decisões veiculando o princípio foi exarada pelo
Superior Tribunal Administrativo de Berlim, em 14 de novembro de 1956, seguida por acórdão
do Tribunal Administrativo Federal, em 15 de outubro de 1957. Nesta decisão, tratou-se da
anulação de vantagem prometida a viúva de funcionário, entendendo-se pela incidência do
princípio da proteção à confiança em detrimento do princípio da legalidade administrativa. 40
35
COUTO E SILVA, O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança) no Direito Público Brasileiro
e o Direito da Administração Pública de Anular seus Próprios Atos Administrativos, op. cit., p. 37.
36
Ibidem, p. 37.
37
Ibidem, p. 37.
38
COUTO E SILVA, O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança) no Direito Público Brasileiro
e o Direito da Administração Pública de Anular seus Próprios Atos Administrativos, op. cit., p. 38.
39
Aqui, baseia-se na referência de COUTO E SILVA à observação de FORSTHOFF, em: FORSTHOFF, Ernest,
‘Lehrbuch des Verwaltungsrecht’, München: C.H.Beck, 1973, p. 370 e segs. In: COUTO E SILVA, O Princípio
da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança) no Direito Público Brasileiro e o Direito da Administração
Pública de Anular seus Próprios Atos Administrativos, op. cit., p. 38.
40
COUTO E SILVA, O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança) no Direito Público Brasileiro
e o Direito da Administração Pública de Anular seus Próprios Atos Administrativos, op. cit., p. 39.
13
A partir desse julgado, seguiram-se diversas decisões e trabalhos científicos sobre a
matéria, a ponto de se mencionar o princípio, à época, como o “tema central do Direito
Administrativo germânico.” 41
Estenderam-se tais estudos ao direito comunitário europeu, onde o instituto ficou
conhecido como “princípio da proteção à confiança legítima”, consagrando-se na Corte de
Justiça das Comunidades Européias como uma “regra superior de Direito” e “princípio
fundamental do direito comunitário”.42 Tal reconhecimento frente a ordem jurídica
comunitária européia foi determinante como meio de dissipação do instituto aos outros países
do continente, dentre os quais se destacam a Espanha e a França.
Além disso, há que se referir que no direito consuetudinário também há essa
preocupação relativa aos danos que as mudanças das atitudes estatais podem causar nos
indivíduos. Embora não haja a mesma denominação e preocupação doutrinária do princípio da
proteção à confiança, os conceitos de legitimate expectations43 e estoppel44 estão presentes no
sistema commom law como veiculadores da boa-fé projetada à administração pública, e da
garantia da proteção à confiança aos cidadãos.
Denota-se, assim, que o instituto da proteção à confiança atingiu um status
diferenciado em alguns países. Ocorre que, no Brasil, ainda é escassa a atenção voltada ao
instituto, seja em trabalhos científicos, seja na vida forense.
Porém, cada vez mais, o princípio da proteção à confiança adentra e produz
significativas contribuições no direito brasileiro.
O itinerário do desenvolvimento do princípio da proteção à confiança no direito
brasileiro não traçou caminho muito diferente do traçado nas experiências estrangeiras. No
Brasil, o instituto teve gênese no labor jurisprudencial, surtindo interesses doutrinários e
culminando com a produção de regras que estabeleceram, direta ou indiretamente, “(...)
mandamentos imediatamente comportamentais que concretizam o estado de coisas que a
proteção da confiança busca alcançar.”45
41
COUTO E SILVA, O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança) no Direito Público Brasileiro
e o Direito da Administração Pública de Anular seus Próprios Atos Administrativos, op. cit.,, p. 80.
42
Ibidem, p. 39.
43
Vide SCHONBERG, Soren. Legitimate Expectations in Administrative Law, Oxford: Oxford Press, 2000.
44
Vide GIACOMUZZI, José Guilherme. Nunca Confie num Burocrata: A doutrina do “estoppel” no sistema da
“commom law” e o princípio da constitucional moralidade administrativa (art. 37 da CF/88). In: ÁVILA,
Humberto (org.), Fundamentos do Estado de Direito: estudos em homenagem ao Professor Almiro do Couto e
Silva. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 378/431.
45
MAFFINI, Princípio da Proteção Substancial da Confiança no Direito Administrativo Brasileiro, op. cit., p.
95.
14
Desse modo, impõe-se o deslinde deste percurso traçado pelo princípio no
ordenamento jurídico nacional.
E não são tão escassas as decisões que veicularam o princípio em nossos Tribunais
Superiores. Couto e Silva destaca três decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal
desbravadoras no tratamento do conteúdo inerente ao princípio: QO 2.90046, MS 24.26847,
22.35748.
49
Ademais, destacam-se os seguintes julgados deste Tribunal: RE 434.222 AgR50 e
MS 28.15051.
O Superior Tribunal de Justiça também vem contribuindo significativamente ao
desenvolvimento do instituto da proteção à confiança. Nesse sentido, importante a referência
dos seguintes precedentes: RMS 40752, RMS 1.69453 e RMS 6.18354.
Destarte, embora as conclusões dos Tribunais superiores rumem para a consagração de
um instrumento de proteção às pretensões legitimamente expectadas, ainda é difícil afirmar
que o princípio da proteção à confiança está consolidado em nosso direito. Este ainda carece
de um adequado tratamento que o coloque no mesmo nível hierárquico que outros princípios.
No itinerário inicialmente traçado, afirmou-se que, após o desenvolvimento pretoriano
que teve o princípio, surgiu grande interesse doutrinário sobre a matéria. Em verdade,
excetuam-se dessa ordem trabalhos de autores como Almiro do Couto e Silva e Miguel Reale,
que já atentavam, pioneiramente, aos efeitos das mudanças do posicionamento estatal.55 Não
será delineado, aqui, todo o percurso que teve o estudo do princípio na doutrina brasileira, haja
vista que as obras e os posicionamentos vêm sendo apresentados no decorrer do presente
trabalho.
Passa-se, assim, a uma breve análise do instituto da proteção à confiança no direito
posto brasileiro.
Inicialmente, cumpre recordar o caráter constitucional que tem o princípio. Isso porque,
imediatamente, deriva da segurança jurídica e, mediatamente, deduz-se do Estado de Direito.
46
BRASIL, STF, QO 2.900, Rel. Min. Gilmar Mendes, DATA DE PUBLICAÇÃO DJ 01/08/2003 - ATA Nº
21/2003.
47
BRASIL, STF, MS 24.268, Rel. Min. Gilmar Mendes, DATA DE PUBLICAÇÃO DJ 17/09/2004 - ATA Nº
27/2004.
48
BRASIL, STF, MS 22.357, Rel. Min. Gilmar Mendes, DATA DE PUBLICAÇÃO DJ 05/11/2004 - ATA Nº
34/2004.
49
COUTO E SILVA, O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança) no Direito Público Brasileiro
e o Direito da Administração Pública de Anular seus Próprios Atos Administrativos, op. cit., p. 41.
50
BRASIL, STF, RE 434.222 AgR, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 14.06.2005.
51
BRASIL, STF, MS 28.150, Min. Celso Mello, Decisão de 08/09/2009 - DJE nº 175, divulgado em 16/09/2009.
52
BRASIL, STJ, RMS 407, Rel. Min. Gomes de Barros, j. 07.08.1991.
53
BRASIL, STJ, RMS 1.694, Rel. Gomes de Barros, j. 07.03.1994.
54
BRASIL, STJ, RMS 6.183, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 14.1.1995.
55
Nesse sentido, vide: REALE, Miguel. Revogação e Anulamento do Ato Administrativo, 1ª Edição, Rio de
Janeiro: Forense, 1963.
15
Dessa forma, pode-se dizer que o princípio da proteção à confiança está, indiretamente,
instrumentalizado nos artigos 1º e 5º, caput, da Carta Magma.
Deriva, também, de interpretação indutiva de outros dispositivos constitucionais, como
das regras que concretizam a segurança jurídica: da “(...) proteção do direito adquirido, do ato
jurídico perfeito e da coisa julgada (art. 5º, XXXVI), e das regras da legalidade (art. 5º, II, e
art. 150, I), da irretroatividade (art. 150, III, ‘a’) e da anterioridade (art. 150, III, ‘b’).” 56
Por outro lado, o princípio adquire caráter constitucional por sua estreita relação com o
dever de boa-fé e de moralidade que se impõe à Administração Pública, por força do art. 37,
caput, da CF/88.
No tocante ao tratamento infraconstitucional dado à matéria, importante a referência da
Lei nº 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública
Federal.
Couto e Silva destaca diversos pontos nos quais a referida lei solidificou a proteção à
confiança: no seu art. 2º, caput, a lei estabelece, repetindo preceito constitucional, a
moralidade e a segurança jurídica como princípios da Administração Pública; nesse mesmo
artigo, no parágrafo único, inc. IV, a lei determina a observância de critérios de atuação, nos
processos administrativos, conforme “padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé”; no inc.
XIII deste mesmo parágrafo único, a lei estabelece a vedação de aplicar a fatos pretéritos
novas interpretações de norma jurídica; e, por último, o art. 54 desta lei define o prazo
decadencial, em 5 anos, do direito da Administração em anular os atos administrativos que
decorram efeitos favoráveis para os destinatários. 57
O autor destaca, ainda, outros dois diplomas como indutores do princípio da segurança
jurídica: a Lei nº 9.868/99, que trata do processo de julgamento da ação direta de
inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo
Tribunal Federal, em seu art. 27; e a Lei nº 9.882/99, que disciplina o processo de julgamento
da argüição de descumprimento de preceito fundamental, em seu art. 11º.
Ambos os textos dispõem que “(...) poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de
dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só
tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser
fixado.”
56
ÁVILA, Sistema Constitucional Tributário, op. cit., p. 295.
COUTO E SILVA, O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança) no Direito Público Brasileiro
e o Direito da Administração Pública de Anular seus Próprios Atos Administrativos, op. cit., p. 41.
57
16
O intuito lógico de tal preceito é o de que o cidadão, que agiu em conformidade com lei
e a julgava constitucional, não seja atingido por eventual declaração de inconstitucionalidade.
É mais um instrumento de proteção à confiança do indivíduo.
Outro dispositivo infraconstitucional que age como meio de proteção à confiança é o
art. 146 do Código Tributário Nacional, que diz respeito às modificações nos critérios jurídicos
adotados pela autoridade administrativa. Porém, tal norma será analisada em momento
oportuno no próximo capítulo, que tratará do princípio da proteção à confiança
especificamente no âmbito do direito tributário.
2 O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA NO ÂMBITO DO DIREITO
TRIBUTÁRIO
2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A arrecadação fiscal é a principal fonte de custeio do Estado e, consequentemente, dos
anseios sociais, razão pela qual os impulsos político voltados a alimentar as engrenagens
públicas geram, não raro, condutas estatais desenfreadas, beirando a imoralidade.
O direito, detectando a necessidade de controle das atividades estatais arrecadatórias,
passou a impor diversos limites, tanto ao legislador, quanto à administração. Todos os limites
fixados, bem como as próprias competências determinadas na Constituição Federal, são formas
de segurança tributária. É o que ilustra Souto Maior Borges:
Mas a competência tributária é a soma da autorização e limitação para o exercício de
funções tributárias. Sem autorização, nenhuma limitação, sem limitação, nenhuma
autorização. Logo a segurança tributária é um produto da consorciação entre ambas.
58
A segurança jurídica atua, no âmbito do direito tributário, como um instrumento de
limitação de primeiro grau, “porquanto se encontra no âmbito das normas que serão objeto de
aplicação, devendo enfatizar-se, ainda, que atua sobre outras normas, podendo, por isso
mesmo, ser qualificada como sobreprincípio”. Por outro lado, tem feição de instrumento de
limitação positiva, eis que impõe ao Poder Público a adoção de “condutas necessárias para a
58
BORGES, Revista Diálogo Jurídico, op. cit., p. 4.
17
garantia ou manutenção dos ideais de estabilidade, confiabilidade, previsibilidade e
mensurabilidade normativa”. 59
Aliás, há quem sustente que a segurança jurídica é a própria razão intrínseca à
existência do ramo do direito tributário. Visão que, como argumenta Paulsen, merece críticas:
Hector B. Villegas destaca que a afirmação da segurança jurídica dos contribuintes é
mesmo a finalidade do Direito Tributário: ‘Modernamente, diversos autores,
principalmente alemanes, han sostenido com ênfasis la Idea de que la finalidad del
derecho tributário en definitiva, debe ser la realzar la seguridad jurídica de los
contribuyentes’.
Esta colocação quanto a ser a segurança a própria finalidade do Direito Tributário
merece críticas, atualmente, na medida em que o Estado é instituído pela sociedade
para desempenhar funções do interesse desta mesma sociedade, sendo a tributação o
modo de viabilizar o custeio das atividades necessárias e desejadas. Não se trata,
pois, de um mal necessário que deva ser restringido, mas de um instrumento para a
própria preservação da liberdade e da propriedade, para a promoção de valores
importantes para a sociedade e para a efetivação dos direitos sociais. A visão
simplista de um Direito Tributário sob a perspectiva meramente protetiva não se
coaduna com o papel que assume num Estado de Direito Democrático. 60
É que o direito tributário situa-se exatamente neste ambiente de tensão entre a
necessidade de arrecadação tendente a custear os anseios democráticos e a indispensável
imposição de limites ao exercício desta atividade.
Neste contexto, é clara a essencialidade dos valores de previsibilidade, segurança e
estabilidade das condutas estatais, axiomas nos quais o princípio da proteção da confiança se
funda e que, para os contribuintes, são vitais.
Quando da análise dos quatro cânones que Adam Smith condensou como regras
fundamentais de organização dos impostos (justiça, certeza, comodidade e economia), verificase que o princípio da segurança jurídica é a maior expressão de certeza na tributação. 61
E a segurança jurídica, nesta seara, tem se revelado principalmente nos institutos da
irretroatividade e da anterioridade tributária, do ato jurídico perfeito, da coisa julgada e do
direito adquirido.
Ocorre que todas estas garantias, que, como já analisado, são concernentes à natureza
objetiva do princípio da segurança jurídica, têm uma gama de incidência extremamente
fechada: exigem uma absoluta tipicidade para que possam surtir seus efeitos jurídicos.
Exemplifica-se: o instituto do direito adquirido exige diversos requisitos para que se
faça valer. Pereira os aponta:
59
ÁVILA, Sistema Constitucional Tributário, op. cit., p. 295.
PAULSEN, Segurança Jurídica, Certeza do Direito e Tributação, op. cit., p. 64/65.
61
Ibidem, p. 65.
60
18
Direito adquirido, in genere, abrange os direitos que o seu titular ou alguém por ele
possa exercer, como aqueles cujo começo de exercício tenha termo pré-fixo ou
condição preestabelecida, inalterável ao arbítrio de outrem. São os direitos
definitivamente incorporados ao patrimônio do seu titular, sejam os já realizados,
sejam os que simplesmente dependem de um prazo para seu exercício, sejam ainda
os subordinados a uma condição inalterável ao arbítrio de outrem. A lei nova não
pode atingi-los, sem retroatividade. 62
E o que ocorrerá caso o Estado crie expectativas nos indivíduos, embora tais
expectativas não configurem, precisamente, direitos adquiridos? Reafirma-se passagem de
Maffini:
O brocardo pelo qual ‘protegem-se a direitos adquiridos, não a direitos meramente
expectados’ não pode mais ser vislumbrado como verdade absoluta e inafastável. A
atual ordem constitucional deve se prestar à conclusão de que algumas pretensões
expectadas merecem, sim, proteção jurídica. 63
O Estado de Direito e, em decorrência deste, o princípio da segurança jurídica, impõem
a existência de uma garantia que atue sobre a manutenção das expectativas dos cidadãos.
Reitera-se que o princípio da proteção à confiança é a instrumentalização dos ideais de
segurança, estabilidade e previsibilidade – que induz o princípio da segurança jurídica –
traduzidos na confiança do indivíduo de que o Estado não romperá seus atos, procedimentos e
condutas, aparente e presumidamente legítimos.
Muitas vezes as regras que comumente se associam ao princípio da segurança jurídica
não são suficientes, por sua inflexibilidade, para que se atinja o ideal da previsão das condutas
estatais. E o princípio da proteção à confiança visa, justamente, a consecução deste ideal, que é
particularmente importante ao direito tributário.
Por outro lado, o princípio da proteção à confiança ingressa no âmbito do direito
tributário através do dever estatal de moralidade e de boa-fé. Porém, em contramão ao que se
discorreu sobre a obrigação de lisura por parte da administração, Torres destaca que a
moralidade não pode ser observada da mesma forma quando cotejada nas atividades
financeiras do Estado:
Existe uma diferença fundamental entre a atividade financeira do Estado e a
administrativa. Aquela é simplesmente instrumental, não possui um fim em si
mesma, visa à obtenção de recursos para a consecução dos objetivos políticos,
econômicos e administrativos do Estado, sendo inteiramente vinculada à lei. A
62
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, Rio de Janeiro, Forense: 1961, v. 1, p. 125.
MAFFINI, Princípio da Proteção Substancial da Confiança no Direito Administrativo Brasileiro, op. cit., p.
17/18.
63
19
atividade administrativa, ao contrário, é eminentemente finalista e fundada em
grande dose de discricionariedade. Por isso mesmo o conceito de Fazenda Pública,
no sentido objetivo ou subjetivo, não se identifica com o de Administração Pública.
64
Desse modo, diz o autor que o princípio da moralidade administrativa não tem a mesma
aplicabilidade na área das finanças públicas. Contudo, completa:
Logo, não faz muito sentido a extrapolação do princípio da moralidade
administrativa para o campo das finanças públicas. Claro que um ou outro ponto será
comum às duas atividades, como a questão da responsabilidade do Estado pela
prática do ato ilícito pelo agente fiscal ou pelo agente administrativo. Mas o tema,
em sua globalidade, exige tratamento diferenciado. Se a atividade financeira é
essencialmente vinculada, segue-se que o fundamento da moralidade não é o
controle do desvio do poder, mas o respeito à boa-fé do contribuinte ou a proteção
de sua confiança nos atos do Fisco e a igualdade na aplicação da lei tributária. 65
Assim, o autor eleva a garantia da proteção à confiança do contribuinte e o dever de
respeito à boa-fé ao centro do tratamento da moralidade do Estado na área das finanças
públicas.
E não haveria de ser diferente, conquanto a necessidade de planejamento financeiro, de
previsibilidade e de segurança são alguns dos maiores anseios do indivíduo frente ao Estado.
2.2 A APLICABILIDADE DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA
Por vezes, mencionou-se que o princípio da proteção à confiança, quando em
comparação às outras regras e subprincípios derivados do princípio da segurança jurídica, tem
um espectro de incidência menos delineado.
Seu grau de abrangência é diferenciado, vez que não encontra requisitos e critérios de
aplicação absolutamente objetivos, sendo aplicado no caso específico e acompanhado de um
juízo de ponderação e de razoabilidade, levando-se em conta seu resultado finalístico – a
proteção dos direitos legitimamente expectados. Neste primeiro momento, pois, haverá que se
sopesar o estado de coisas a ser promovido pelo princípio da proteção à confiança com os
efeitos desta promoção.
Não se pode olvidar a lembrança de Maffini no sentido de que a regra é a “(...) de que a
Administração Pública tenha o dever-poder de invalidar seus próprios atos administrativos
quando tenham sido praticados de forma contrária não só à lei aplicável, mas também a
64
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário: valores e princípios
constitucionais tributários, volume II, Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 20.
65
Ibidem, p. 20/21.
20
qualquer dos princípios norteadores do Direito Administrativo.”
66
Nesse contexto, tem-se o
princípio da proteção à confiança como uma exceção a esta regra, amparada no princípio da
segurança jurídica e no dever de moralidade do Estado.
Portanto, sendo medida excepcional, evidentemente que a proteção à confiança exige
certos requisitos para que se aplique, o que, contudo, e como já explanado, deve ser encontrado
e sopesado em cada caso. Assim, há um limitador a esta regra geral de que a administração tem
o poder de revogar seus atos, que consiste na proteção à confiança, mas que, para que se
aplique, deverá obedecer alguns requisitos.
Alguns autores já encontraram certos critérios que comumente vem sendo associados à
aplicabilidade do princípio da proteção à confiança. É o caso de Castillo Blanco, que, após
apurada análise da jurisprudência do Tribunal Supremo da Espanha, elencou diversas
condições de aplicação do princípio, que serão a seguir esposadas.
Primeiramente, refere o autor que a situação de confiança “(...) no puede quedar
justificada en motivos superiores a los que se protegen.” É que não basta a simples
inobservância da legalidade: o ato que se pretende manter e os interesses públicos devem ser
convenientemente valorados, em contraposição com os atos do particular, para que se
determine se efetivamente houve situação de confiança passível de proteção ou não.67 Neste
ponto, há, novamente, a referência à necessidade de um juízo de ponderação e de razoabilidade
na aplicação do princípio.
Outro requisito é o de que a situação fática a ser protegida seja legítima. Ou seja, não
basta a possível negligência, ignorância ou a mera tolerância da administração, “(...) es preciso
que concurra la necesaria ‘racionalidad de los factores en que se apoye ésta’ para que la misma
tenga base objetiva.” Assim, não cabe entender como expectativa legítima as simples
esperanças acumuladas pelos indivíduos, mas carentes de uma “transcendência jurídica”. 68
Até por isso, diz-se que a administração pública deve ter gerado os chamados signos
externos, “(...) que aun no siendo jurídicamente vinculantes, si sean lo suficientemente
concluyentes para generar en el ciudadano un estado de confianza. Es decir, no basta que se
produzca cualquier tipo de convicción psicológica o impacto emocional o una mera actitud de
tolerancia”. Exige-se que a crença do cidadão esteja fundada em signos ou atos externos que a
66
MAFFINI, Princípio da Proteção Substancial da Confiança no Direito Administrativo Brasileiro, op. cit., p.
132/133.
67
BLANCO, Federico A. Castillo. El Principio Europeo de Confianza Legitima y su Incorporación al
Ordenamiento Juridico Español. Noticias de la Unión Europea, 2002, p. 30. Disponível em: <
http://www.uimunicipalistas.org/centrodoc/php/verDocumento.php?Parametro=331&Opcion=4>. Acesso em:
22.10.2009.
68
Ibidem, p. 29/30.
21
administração manifestamente realize, e que esta crença esteja deduzida razoavelmente e que
tenha o condão de levá-lo a realizar, ou a omitir, uma conduta ou atividade que, direta ou
indiretamente, repercuta em sua esfera patrimonial. 69
Elenca-se, também, outro critério consistente na necessidade de que a situação de
confiança seja fruto do órgão da administração responsável pela matéria.
70
Deve, então, ser
competente o órgão para que produza a situação de confiança passível de proteção. Aqui
também é possível de se mencionar que os atos, condutas e comportamentos estatais, para que
se possam afigurar como passíveis de criar uma situação de confiança, devem estar dotados da
chamada “presunção de legitimidade”.
Por outro lado, deve haver uma situação de quebra de previsibilidade e boa-fé. Mais
que isto, exige-se uma antijuridicidade da ruptura da confiança – o que não é sinônimo de uma
conduta ilegal, mas, sim, remete ao fato de que o sujeito que sofre os danos e prejuízos por
causa da administração pública não tem o dever de suportá-los. 71
Afigura-se, além disso, como requisito de aplicação do princípio da proteção à
confiança a averiguação de uma conduta reta e lisa por parte do cidadão. Faz-se a devida
ressalva da não exigência da boa-fé do administrado nos casos em que os atos administrativos
tenham incidência geral e abstrata, como, exemplificativamente, quando dos atos de índole
normativa e dos precedentes administrativos, que, como atentado por Maffini, prescindem “de
qualquer manifestação explícita de boa-fé dos destinatários do ato, restando essa exigência
substituída, em grande medida, pela presunção de validade de tal ato administrativo.”
72
Porém, em regra, necessária a boa-fé do contribuinte para que a confiança se adjetive como
legítima.
Desse modo, a atuação do indivíduo não pode ter induzido e nem provocado
fraudulentamente a atuação administrativa que gerou a situação de confiança. 73
Ademais, o sujeito deve ter atuado cumprindo o conjunto de requisitos que lhe são
exigidos na relação. Ou seja, o indivíduo deve agir de acordo com seus deveres de informação,
diligência e demais prestações que lhe possam ser exigidas. Exemplificativamente, “(...) no
69
BLANCO, Federico A. Castillo. El Principio Europeo de Confianza Legitima y su Incorporación al
Ordenamiento Juridico Español. Noticias de la Unión Europea, 2002, p. 30/31.
70
Ibidem, p. 30.
71
Ibidem, p. 32.
72
MAFFINI, Princípio da Proteção Substancial da Confiança no Direito Administrativo Brasileiro, op. cit., p.
55/ 56.
73
BLANCO, Noticias de la Unión Europea, op. cit., p. 32.
22
cabe invocar la vulneración de dicha confianza para subsanar el no haver recurrido em el plazo
pertinente.” 74
E, por fim, o destinatário da situação de confiança deve realizar o que a doutrina alemã
denomina de “manifestação de confiança”. O que, para Castillo Blanco, corresponde à
existência de “(...) una conducta del sujeto ya sea la asunción de una obligación o la
realización de gastos o cualquier outra conducta que amerite que el sujeto ha confiado en la
misma (...)”. Assim, o princípio da proteção da confiança exige que a situação seja qualificada
mediante atos de onde se possa deduzir razoavelmente que efetivamente o indivíduo confiou
na conduta da administração, e que se haja produzido danos e prejuízos efetivos que este não
tenha como suportar. 75
Ocorre que é perigosa a tarefa de se estabelecer requisitos objetivos à aplicação do
princípio da proteção à confiança. Este, como já observado, não tem um âmbito de incidência
tão delineado, baseando-se muito em cada caso concreto.
Verifica-se uma linha de raciocínio comum em todos os critérios apontados, que passa
por três condições gerais que devem, de algum modo, coexistir para que incida o princípio da
proteção à confiança. São elas: a existência de uma expectativa de direito gerada no cidadão
(a), em função da atuação do Poder Público (b); que seja seguida da frustração de tal direito
expectado (c).
Comprovadas tais premissas, há que se utilizar dos postulados normativos da
razoabilidade e ponderação para que se aplique o princípio, atendo-se às particularidades de
cada caso concreto.
Há de se ter em mente a noção de que os atos estatais produzem uma esperança de
direito no cidadão e, por isso, por vezes, devem ser preservados. E não são somente os atos
praticados no exercício do Poder Executivo que são capazes de criar uma relação de
confiança. O Estado, em todas as funções que lhe são incumbidas, pode criar expectativas no
indivíduo.
Desse modo, no próximo momento, analisar-se-á a operatividade do princípio da
proteção à confiança, especificamente no âmbito do direito tributário e, mais especificamente
ainda, em cada um dos Poderes do Estado.
74
75
BLANCO, Noticias de la Unión Europea, op. cit., p. 32.
Ibidem, p. 32.
23
2.3 A OPERATIVIDADE FRENTE AOS ATOS DO PODER LEGISLATIVO
Maffini refere que “Há repercussões do princípio da proteção da confiança – e talvez
estas ocorram em maior número – na atividade legislativa do Estado (...)”. 76
Em primeiro momento, pertinente a contextualização do ambiente onde se colocam as
relações entre cidadão e Poder Legislativo. Medauar menciona que o país é assolado por um
ambiente de insegurança jurídica, por questões como a inflação legislativa, a indeterminação
dos termos da lei, a obscuridade na redação dos dispositivos e as alterações legais
repentinas.77
Neste contexto, torna-se evidente a necessidade de instrumentos jurídicos que
concretizem os princípios da segurança jurídica e da proteção à confiança. E no âmbito do
direito tributário, destacam-se como instrumentos de solidificação do princípio da segurança
jurídica as garantias da anterioridade, da irretroatividade da lei tributária e da reserva legal
absoluta.
A garantia da irretroatividade, prevista no art. 150, inciso III, alínea “a”, da
Constituição Federal, veda aos entes federativos a cobrança de tributos “em relação a fatos
geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado.”
Já a vedação correspondente à anterioridade, disciplinada no art. 150, inciso III,
alíneas “b” e “c” da Constituição Federal, impede a cobrança de tributos “no mesmo exercício
financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou” e “antes de
decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou
aumentou”.
O princípio da reserva legal absoluta, ou da legalidade, encontra apoio constitucional
no art. 5º, inciso II, que estabelece: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma
coisa senão em virtude da lei”. Especificamente ao ramo tributário, a Constituição ratificou,
no art. 150, inciso I, a lógica do dispositivo antes referido, estabelecendo que é vedado aos
entes federativos “exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça.”
Contudo, dado aos tantos problemas ocasionados pelo ambiente de insegurança
provocado pelos atos do Poder Legislativo, estes instrumentos nem sempre são suficientes
para que se atinja o ideal proposto pelo princípio da segurança jurídica.
76
MAFFINI, Princípio da Proteção Substancial da Confiança no Direito Administrativo Brasileiro, op. cit., p.
21.
77
MEDAUAR, Odete. Segurança Jurídica e Confiança Legítima. In: ÁVILA, Humberto (org.). Fundamentos do
Estado de Direito: estudos em homenagem ao Professor Almiro do Couto e Silva. São Paulo: Malheiros, 2005,
p. 118/119.
24
Recorda-se que os mecanismos anteriormente postos, conforme classificação de Couto
e Silva, têm natureza objetiva. Por isso, seu âmbito de incidência, como já referido, limita-se
objetivamente ao que a regra se propõe.
Ocorre que há casos em que há a frustração de uma relação de confiança entre cidadão
e Estado, embora o rompimento da conduta estatal não tipifique, tecnicamente, uma dessas
regras de concreção da segurança jurídica. Há recente caso emblemático que ilustra o que se
pretende referir.
Trata-se do julgamento do Recurso Extraordinário de nº 566.032-0, pelo STF78. No
caso, apreciou-se a constitucionalidade da Emenda Constitucional de nº 42 de 2003, no que
tange à inserção do art. 90 ao ADCT, que manteve, a despeito de expressa disposição legal
anterior em sentido contrário, a alíquota do CPMF em 0,38 % no exercício do ano de 2004.
A Contribuição Provisória sobre a Movimentação ou Transmissão de Valores e de
Créditos e Direitos de Natureza Financeira foi instituída através da EC nº 12/96, que incluiu o
art. 74 do ADCT. Conforme o último parágrafo do referido artigo, a contribuição tinha termo
máximo de dois anos. Seguiram-se, então, diversas prorrogações do prazo de cobrança da
contribuição, dente elas a EC nº 21/99, que acrescentou o art. 75 do ADCT, a EC nº 31/00 e a
EC nº 37/02.
Este último diploma incluiu ao ADCT o art. 84, que prorrogava a cobrança da
contribuição e dispunha a diminuição, no exercício financeiro do ano de 2004, da alíquota do
tributo para 0,08 %, nos seguintes termos:
Art. 84. A contribuição provisória sobre movimentação ou transmissão de valores e
de créditos e direitos de natureza financeira, prevista nos arts. 74, 75 e 80, I, deste
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, será cobrada até 31 de dezembro
de 2004.
[...]
§ 3º A alíquota da contribuição de que trata este artigo será de:
I - trinta e oito centésimos por cento, nos exercícios financeiros de 2002 e 2003;
II - oito centésimos por cento, no exercício financeiro de 2004, quando será
integralmente destinada ao Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, de que
tratam os arts. 80 e 81 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Porém, às vésperas da referida diminuição da alíquota, em dezembro de 2003, foi
promulgada a EC nº 42, que, através da inclusão do art. 90 ao ADCT, prorrogou a CPMF até
31.12.2007, e manteve a alíquota no patamar de 0,38% no exercício seguinte, revogando o art.
84, § 3º, inciso II, do ADCT.
78
BRASIL, STF, RE 566032, Rel. Min. Gilmar Mendes, DATA DE PUBLICAÇÃO DJE 23/10/2009 - ATA Nº
33/2009. DJE nº 200, divulgado em 22/10/2009.
25
Surgiu, então, entendimento de que tal alteração violentara a garantia da anterioridade
nonagesimal, de que trata o art. 150, inciso III, aliena “c”, da CF. É o que se debateu no
referido julgado.
No acórdão exarado, decidiu-se, por maioria, que “A revogação do artigo que
estipulava diminuição de alíquota da CPMF, mantendo-se o mesmo índice que vinha sendo
pago pelo contribuinte, não pode ser equiparada à majoração de tributo”, e, por isto,
inaplicável ao caso o princípio da anterioridade nonagesimal.
À apreciação do caso, relevante a transcrição de trecho do voto do Min. Gilmar
Mendes, que deu origem ao referido acórdão:
Todavia, a meu ver, não constato majoração de alíquota de modo a atrair o disposto
no art. 195, § 6º, da CF.
Primeiro porque os contribuintes, durante o exercício financeiro de 2002 e 2003,
vinham pagando a contribuição de 0,38% e não de 0,08%. Como visto, a EC nº
42/2003 manteve a alíquota de 0,38% para 2004 sem, portanto, instituir ou
modificar alíquota diferente da que o contribuinte vinha pagando. Poder-se-ia dizer
que existiria uma expectativa de diminuição de alíquota para 0,08%, porém, o
dispositivo que previa esse percentual para 2004 foi revogado antes de efetivamente
ser exigível, ou seja, antes do início do exercício financeiro de 2004. Cabe lembrar
que esta Corte, reiteradamente, afasta a tese de direito adquirido a regime jurídico,
hipótese que se aproxima a este caso.
Segundo porque não constato violação a segurança jurídica, princípio sustentador
do art. 195, § 6º, da CF, na medida em que o contribuinte, há muito tempo, já
experimentava a incidência da alíquota de 0,38% e, pois, não sofreu ruptura com a
manutenção da alíquota de 0,38% durante o ano de 2004.
Desta forma, entendeu que a previsão insculpida na ADCT de que a alíquota, no
exercício de 2004, diminuiria ao patamar de 0,08% configurava mera expectativa de direito
do contribuinte, não configurando nem direito adquirido, e nem majoração de tributo, e,
assim, inviabilizando a incidência da garantia da anterioridade nonagesimal.
Porém, tal entendimento, embora vencedor, encontrou resistência, como a expressa
nas razões do voto divergente do Min. Carlos Britto:
Da redação da Emenda Constitucional nº 37, que era de 12 de junho de 2002, a
alíquota, para o ano de 2004, seria de 0,08 % - artigo 84, § 3º, II, do ADCT.
No último dia do ano de 2003, ou seja, no dia 31 de dezembro, sobreveio a Emenda
nº 42 e prorrogou semanticamente o prazo de vigência da alíquota de 0,38 até 31 de
dezembro de 2007. Em outras palavras, impediu que no dia subseqüente a alíquota
fosse – tal como prevista na Emenda nº 37 – de 0,08%.
[...]
A meu ver, não importa se todos já pagavam 0,38% no dia anterior. O certo é que
no dia seguinte já se sabia que a alíquota cairia para 0,08 porque havia regra
jurídica determinando essa redução.
Então, em verdade, a CPMF foi prorrogada, mas a alíquota foi majorada. Isso
causou surpresa aos contribuintes; feriu, portanto, o princípio da não surpresa; o
princípio da anterioridade nonagesimal resultou também violado. [...]
26
Vê-se que ambos os argumentos divergem frontalmente em um ponto: acerca da
configuração, ou não, do verbo “majorar”. Entendida como majorada a alíquota da CPMF,
aplicar-se-ia a garantia da anterioridade tributária. Não entendida, como foi a solução que se
deu, não se aplicaria.
Porém, e eis o que interessa ao presente tópico, e cujo mérito não foi enfrentado na
referida decisão, a expectativa de direito (ou, como definiu o Min. rel. Gilmar Mendes, a
“mera expectativa”) que estabeleceu a ADCT, quando da promessa de diminuição da alíquota
no exercício de 2004, não mereceria proteção jurídica?
A existência da relação de confiança havida entre o contribuinte em função da
promessa criada pelo poder público é evidente.
A ruptura de tal relação também se configura, já que, como esposado no voto
divergente do Min. Marco Aurélio, a revogação do benefício expectado ocorreu “No apagar
das luzes de 2003, ou seja, exatamente no dia 31 de dezembro desse ano, veio à baila a
publicação da Emenda Constitucional nº 42.”
Embora possa estar correto o posicionamento do Tribunal Supremo, no sentido da
inaplicabilidade ao caso da garantia da anterioridade nonagesimal, há que se ter em mente que
os ideais de previsibilidade e de segurança, tão importantes ao direito tributário, fazem com
que certas expectativas legítimas mereçam proteção.
Não é razoável, dentro de um Estado de Direito, que o Poder Público faça uma
“promessa”, através de uma Emenda Constitucional, e que, um dia antes da efetivação desta, a
revogue. Aliás, tal medida atenta contra a moralidade e os padrões de boa-fé objetiva, que
devem reger, também, as relações entre cidadão e Estado.
Reforça-se, mais uma vez, a lição de Maffini no sentido de que “A atual ordem
constitucional deve se prestar à conclusão de que algumas pretensões expectadas merecem,
sim, proteção jurídica.” 79
2.4 A OPERATIVIDADE FRENTE AOS ATOS DO PODER JUDICIÁRIO
Embora em um âmbito de incidência um pouco mais restrito, os atos do Poder
Judiciário também estão sujeitos ao princípio da proteção à confiança.
79
MAFFINI, Princípio da Proteção Substancial da Confiança no Direito Administrativo Brasileiro, op. cit., p.
17/18.
27
A influência da segurança jurídica no que toca aos atos exarados pelo Judiciário,
aparentemente, centra-se no instituto da coisa julgada. Porém, o princípio da proteção à
confiança não deixa de alcançar esta área.
E, aqui, essencial é a referência da modulação dos efeitos da sentença declaratória de
inconstitucionalidade, que, excepcionalmente, deverá revestir-se de efeitos ex nunc para que
possa garantir a não lesão à confiança e a segurança dos atos anteriormente praticados pelos
cidadãos, em razão de uma norma que julgavam constitucional.
Cabe, assim, a análise mais atenta deste fenômeno jurídico.
Couto e Silva ensinou que “O Direito Constitucional brasileiro sempre reconheceu à
sentença declaratória de inconstitucionalidade eficácia ex tunc.” Tal entendimento, afirma,
apóia-se em clássicos pronunciamentos da Suprema Corte dos Estados Unidos da América
que consagraram o princípio da supremacia da Constituição. 80
Nesta linha de raciocínio, “A lei, quando é editada, já nasce em conformidade ou em
desconformidade com a Constituição.” Por isto, não poderia, desde a origem, produzir
quaisquer efeitos no mundo jurídico, sob pena de que ocorra uma inversão na hierarquia das
normas. 81
Ocorre que o cidadão não tem como saber de antemão quais as leis e dispositivos que
serão posteriormente considerados inconstitucionais. Baseia, quase sempre, suas condutas nas
leis que passam a vigorar, presumindo sua constitucionalidade. Como afirma Couto e Silva,
embora tais normas não produzam efeitos no mundo jurídico, produzem, pelo menos, no
mundo dos fatos, criando expectativas nas pessoas, que presumem a constitucionalidade da
lei.82 83
Assim, importante a referência de Couto e Silva ao julgamento do STJ onde o Min.
Leitão de Abreu, em seu voto vencido, concluiu:
A tutela da boa fé exige que, em determinadas circunstâncias, notadamente quando,
sob a lei ainda não declarada inconstitucional, se estabeleceram relações entre o
particular e o poder público, se apure, prudencialmente, até que ponto a
80
COUTO E SILVA, O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança) no Direito Público Brasileiro
e o Direito da Administração Pública de Anular seus Próprios Atos Administrativos, op. cit., p. 43.
81
Ibidem, p. 42.
82
COUTO E SILVA, O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança) no Direito Público Brasileiro
e o Direito da Administração Pública de Anular seus Próprios Atos Administrativos, op. cit., p. 43.
83
Transcreve-se a lição de Maffini: “a prática demonstrou que a lei inconstitucional, antes de declarada sua
inconciliabilidade com a Constituição, produz efeitos, se não no mundo jurídico, pelo menos no mundo dos
fatos, gerando legítimas’ expectativas nas pessoas, em virtude, sobretudo, da presunção de constitucional idade
de que as leis se revestem.” (COUTO E SILVA, O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança) no
Direito Público Brasileiro e o Direito da Administração Pública de Anular seus Próprios Atos Administrativos,
op. cit., p. 43.)
28
retroatividade da decisão, que decreta a inconstitucionalidade, pode atingir,
prejudicando-o, o agente que teve por legítimo o ato e, fundado nele, operou na
presunção de que estava procedendo sob o amparo do direito objetivo. 84
É importante esta lição de que o Poder Público, através dos julgadores, deve atentar
que as situações fáticas, muitas vezes, produzem esperanças nos cidadãos e, por isso, há que
se atentar aos efeitos que sua exclusão do mundo jurídico pode provocar.
Aliás, o STF já enfrentou tema que é de relevo ao ora estudado. Trata-se da modulação
dos efeitos de decisão que tratou da constitucionalidade da cobrança de COFINS nas
sociedades civis de prestação de serviços profissionais. É o que se analisa.
Ocorre que a lei complementar nº 70/91 isentava as sociedades civis de prestação de
serviços profissionais da cobrança da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social
(COFINS). Porém, a lei ordinária de nº 9.430/96, em seu artigo 56, passou a onerar as
referidas sociedades. Eis o texto do diploma:
Art. 56. As sociedades civis de prestação de serviços de profissão legalmente
regulamentada passam a contribuir para a seguridade social com base na receita
bruta da prestação de serviços, observadas as normas da Lei Complementar nº 70,
de 30 de dezembro de 1991.
A constitucionalidade do referido texto, por ferir, ou não, o princípio da legalidade, foi
palco de grandes debates nos Tribunais Superiores. O STJ passou a proferir, reiteradamente,
decisões no sentido da impropriedade da cobrança da COFINS a estas sociedades. Inclusive,
reforçou tal entendimento jurisprudencial na Súmula 276, que dispunha: “As sociedades civis
de prestação de serviços profissionais são isentas da COFINS, irrelevante o regime tributário
adotado.”
Porém, o STF teve entendimento divergente, no sentido de que a lei foi formalmente
inscrita como lei complementar, mas dispunha sobre temas estranhos ao âmbito de incidência
material dessa espécie normativa (CF, 69). Assim, qualifica-se como regra legal meramente
ordinária, subsumindo-se ao regime constitucional próprio das leis ordinárias.
No RE 587.60485, o Rel. Min. Celso de Mello proferiu voto nestes exatos termos.
Contudo, divergiu quanto aos efeitos do decisório. Colaciona-se trecho do voto exarado, onde
o julgador justifica a necessidade da outorga de eficácia prospectiva:
84
BRASIL, STJ, RE 79.343, Rei. Leitão de Abreu, RTJ 82/792. In: COUTO E SILVA, O Princípio da
Segurança Jurídica (Proteção à Confiança) no Direito Público Brasileiro e o Direito da Administração Pública
de Anular seus Próprios Atos Administrativos, op. cit., p. 44.
85
BRASIL, STF, RE 587.604-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, DATA DE PUBLICAÇÃO DJE 17/04/2009 ATA Nº 10/2009. DJE nº 71, divulgado em 16/04/2009.
29
A minha compreensão em torno desse tema apóia-se em razões de segurança
jurídica, a justificar a adoção dessa medida excepcional.
Como se sabe, o E. Superior Tribunal de Justiça, após reiteradas decisões que
proferiu sobre a matéria objeto do presente litígio, veio a sumular, em 2003, o
entendimento jurisprudencial daquela alta Corte judiciária, fazendo-o nos termos
constantes da Súmula 276/STJ, nesta reconhecendo que ‘As sociedades civis de
prestação de serviços profissionais são isentas da COFINS, irrelevante o regime
tributário adotado’.
Essa diretriz jurisprudencial, consolidada na Súmula 276/STJ, veio a prevalecer no
âmbito do Superior Tribunal de Justiça após ampla discussão sobre a controvérsia
jurídica em questão.
Esse dado, a meu juízo, assume extrema importância, pois coloca em pauta a
questão relevantíssima da segurança jurídica, que há de prevalecer nas relações
entre o Estado e o contribuinte, em ordem a que as justas expectativas deste não
sejam frustradas por atuação inesperada do Poder Público, como sucederia em
situações, como a ora em exame, em que se registra clara ruptura de paradigmas,
com a prolação de decisão que evidentemente onera a esfera jurídica do sujeito
passivo da obrigação tributária.
Não se desconhece que, na cláusula constitucional que contempla o direito à
segurança, inclui-se a positivação do direito à segurança jurídica, sob pena de se
ignorar, com grave lesão aos cidadãos, o atributo da previsibilidade das ações
estatais, que norteia e estimula a adoção de padrões de comportamento por parte
das pessoas em geral (e dos contribuintes em particular).
Os cidadãos não podem ser vítimas da instabilidade das decisões proferidas pelas
instâncias judiciárias ou das deliberações emanadas dos corpos legislativos.
Assume relevo, desse modo, a asserção segundo a qual ‘o princípio da segurança
jurídica supõe que o direito seja previsível e que as situações jurídicas permaneçam
relativamente estáveis’.
A instabilidade das decisões estatais, motivada pela ruptura abrupta de critérios
jurisprudenciais, que, até então, pautavam o comportamento dos contribuintes –
cujo planejamento fiscal na matéria em causa traduzia expressão direta do que se
continha na Súmula 276/STJ -, não pode nem deve afetar ou comprometer a esfera
jurídica daqueles que, confiando em diretriz firmada pelos Tribunais e agindo de
acordo com esse entendimento, ajustaram, de boa-fé, a sua conduta aos
pronunciamentos reiterados do Superior Tribunal de Justiça a propósito da
subsistência, no caso, da isenção da Cofins.
Brilhante o entendimento do ilustre Ministro que reconheceu a existência de uma
situação fática – a súmula 276 do STJ – que produziu uma expectativa no contribuinte, que,
por sua vez, passou a pautar suas ações no sentido do verbete jurisprudencial.
Assim, defendeu a eficácia ex nunc dos efeitos da decisão, para evitar que as justas
expectativas do cidadão não fossem frustradas pela atuação inesperada do Poder Público.
Importante, também, a conclusão de que o cidadão não pode ser vítima “(...) da
instabilidade das decisões proferidas pelas instâncias judiciárias ou das deliberações
emanadas dos corpos legislativos.”
E o Min. relator foi mais adiante, referindo-se, novamente, ao princípio da proteção à
confiança:
30
O postulado da segurança jurídica e o princípio da confiança do cidadão nas ações
do Estado representam diretrizes constitucionais a que o Supremo Tribunal Federal,
em contexto como o que ora se apresenta, não pode permanecer indiferente.
Na realidade, os postulados da segurança jurídica e da proteção da confiança,
enquanto expressões do Estado Democrático de Direito, mostram-se impregnados
de elevado conteúdo ético, social e jurídico, projetando-se sobre as relações
jurídicas, inclusive as de direito público, sempre que se registre alteração
substancial de diretrizes hermenêuticas, impondo-se à observância de qualquer dos
Poderes do Estado e, desse modo, permitindo preservar situações já consolidadas
no passado e anteriores aos marcos temporais definidos pelo próprio Tribunal.
A ruptura de paradigma resultante de substancial revisão de padrões
jurisprudenciais, por tal razão, impõe, em respeito à exigência de segurança jurídica
e ao princípio da proteção da confiança dos cidadãos, que se defina o momento a
partir do qual terá aplicabilidade a nova diretriz hermenêutica.
Porém, apesar do crucial acréscimo científico ao embasamento teórico do princípio da
proteção à confiança, não prosperou, no caso, o entendimento pela concessão da referida
eficácia prospectiva.
2.5 A OPERATIVIDADE FRENTE AOS ATOS DO PODER EXECUTIVO
Certamente, este é o ponto onde a tutela da confiança encontra maior relevo, eis que se
situa em ambiente em que, muitas vezes, há tensão entre os interesses político-administrativos
e os interesses da esfera privada do contribuinte.
Aqui, a Administração Pública recebe os reflexos do dever de moralidade imposto
pelo art. 37 da Constituição Federal. Assim, deverá agir com transparência e coerência,
atentando aos efeitos que podem ser causados pela revogação de qualquer ato que possa ter
estabelecido um benefício ao contribuinte.
Em primeiro momento, há que se dar relevo ao fato de que, caso o Poder Público
incline-se à revogação de um ato, deverá fazê-lo através de procedimento próprio.
Feita esta ressalva, importante também a referência de que existem alguns critérios de
aplicabilidade do princípio da proteção à confiança que são mais particulares ao presente
tópico.
Conforme Ávila, o benefício fiscal, para que seja anulado, deve trazer prejuízo (em
sentido amplo, não apenas financeiro) ao Estado. Desse modo, é vedado ao Poder Público
anular ou revogar “(...) o ato administrativo apenas em razão de uma irregularidade formal,
quando outras tantas razões apontam em sentido contrário.” 86
86
ÁVILA, Humberto. Benefícios Fiscais Inválidos e a Legítima Expectativa dos Contribuintes. Op. cit. p. 7.
31
Além disso, quando o benefício se dá em causa de uma finalidade que interessa
também ao Poder Público, é defeso a este que proceda a sua anulação ou revogação.87 Há
julgado que se vale deste preceito:
[...] se o beneficiário foi outorgado como incentivo a determinado projeto
empresarial, é defeso revogá-la, enquanto se mantiver em execução o projeto. Do
contrário, haveria reprovável deslealdade, que não se deve permitir ao Estado.
Alcance do art. 178 do CTN. 88
Desta forma, conclui-se que, quando da análise da anulação ou revogação do ato
administrativo, devem-se levar em conta os interesses afetados. Como refere Ávila, deverá ser
mantido o benefício quando este “(...) afetar valores que integram o próprio conceito de
interesse público, já que abrangidos pelos fins cuja realização é atribuída ao Poder Público
pela Constituição Federal – como desenvolvimento industrial e tecnológico ou criação de
empregos (...)” 89
Não se excluem, ressalte-se, os outros critérios de aplicabilidade do princípio
anteriormente referidos, destacando-se a necessidade de ponderação de cada caso.
Passa-se à análise de casos onde se observa a proteção à confiança nesta seara do
direito, relativamente aos atos praticados pelo Poder Executivo. 90 Evidentemente que se trata
de um rol meramente exemplificativo. O princípio é passível de aplicação em qualquer caso
que gerar um benefício no contribuinte, respeitados os critérios de aplicabilidade descritos ao
longo do trabalho.
Assim, tratar-se-á da análise da proteção à confiança relativamente às promessas
firmes feitas pelos agentes do Estado, à irrevisibilidade do lançamento por erro de direito e
por erro de valoração de fato, à inalterabilidade dos critérios jurídicos do lançamento, à
inalterabilidade da resposta à consulta, à irrevogabilidade das isenções onerosas e, por fim, à
exclusão de penalidades.
2.5.1 Das Promessas Firmes dos Agentes do Estado
Conforme Couto e Silva, a responsabilidade do Estado pelas promessas firmes feitas
por seus agentes, em atos relacionados com o planejamento econômico, está entre os temas
87
ÁVILA, Humberto. Benefícios Fiscais Inválidos e a Legítima Expectativa dos Contribuintes. Op. cit, p. 11.
BRASIL, STJ, Recurso Especial nº 1.073, Rel. Min. Gomes de Barros, DJ 12.06.92, p. 9723.
89
ÁVILA, Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, op. cit.,, 12.
90
Utiliza-se o roteiro traçado por TORRES, em: TORRES, Tratado de Direito Constitucional Financeiro e
Tributário, op. Cit.
88
32
dominantes relativamente ao princípio da proteção à confiança e à segurança jurídica no
direito brasileiro e comparado. 91
É que a palavra do agente, quando revestida de uma formalidade, em cotejo com os
postulados da proporcionalidade e da razoabilidade, tem o condão de criar uma esperança nos
contribuintes de que o Estado tomará certos rumos, criando-lhe benefícios.
Evidentemente que não se trata, aqui, de um discurso político de agente administrativo
fora do exercício da atividade estatal, ou de uma palavra que não revestida da necessária
formalidade.
Há julgado do STJ que trata de caso em que o Banco do Brasil, o Banco Central, os
Ministérios da Fazenda e da Agricultura, além da Comissão de Agricultura e Política Rural da
Câmara dos Deputados, firmaram “memorando de entendimento”, onde o Banco do Brasil
assumiu, publicamente, o compromisso de suspender os processos de execução e de cobrança
nos quais houvesse “ânimo do devedor de acertar as contas.” Após o ingresso em juízo de
cliente do Banco do Brasil que se enquadrava em tais condições, almejando a referida
suspensão, o Min. Ruy Rosado de Aguiar “assentou que ‘o que vale para a autonomia privada,
vale ainda mais para a administração pública e para a direção das empresas cuja capital é
predominante público, nas suas relações com os cidadãos.” 92 93
Assim, as promessa firmes dos agentes do Estado, quando criarem um benefício ao
contribuinte, deverão ser respeitadas, em virtude dos princípios da proteção à confiança, da
segurança jurídica e da moralidade administrativa.
2.5.2 Da Irrevisibilidade do Lançamento por Erro de Direito e por Erro de Valoração de
Fato
O lançamento é impassível de alteração quando por erro de direito. Da leitura do art.
149 do CTN94, depreende-se que a legislação autoriza a revisão do ato em alguns casos,
dentre os quais não está inserido o referido.
91
COUTO E SILVA, O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança) no Direito Público Brasileiro
e o Direito da Administração Pública de Anular seus Próprios Atos Administrativos, op. cit., p. 39/40.
92
BRASIL, STJ, RMS 6.183, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 14.1.1995.
93
MAFFINI, Princípio da Proteção Substancial da Confiança no Direito Administrativo Brasileiro, op. cit., p.
110/111.
94
“Art. 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes casos:
I - quando a lei assim o determine;
II - quando a declaração não seja prestada, por quem de direito, no prazo e na forma da legislação tributária;
33
Oportuno observar que se trata, aqui, da revisão ex officio. Torres disciplina que “o
processo administrativo, iniciado pela impugnação do sujeito passivo ao lançamento, é a sede
por excelência da revisão por erro de direito.” 95
Esta regra é claramente indutora do princípio da proteção à confiança. Não pode a
Administração, após ter criado uma confiança no contribuinte, que acreditou em sua palavra,
alterá-la, independentemente das razões de direito que sobrevenham, por mais fortes que
sejam.
Do contrário, prevaleceria a insegurança.
Diz-se, ainda, da irrevisibilidade por erro de interpretação quanto aos lançamentos por
homologação. Torres afirma que “Se o contribuinte praticou os atos necessários à apuração do
débito fiscal e se recolheu aos cofres públicos, com a ciência e a autorização do fisco, não
pode ficar sujeito a novas exigências por alteração dos critérios jurídicos da Administração.”96
Do mesmo modo, irreversível o lançamento quando por erro de valoração de fato por
parte da Administração.
Admite o CTN, no art. 149, que o Poder Público reveja o lançamento quando houver
erro de fato ou vícios como simulação, fraude e falta funcional. Isso porque a Administração
não conhecia o fato na totalidade na ocasião do lançamento. 97
Agora, quando a autoridade, à data do lançamento, conhecia os fatos em sua
totalidade, “o erro será de direito, ou de valoração jurídica de fato, e, portanto, imutável.” Não
se pode punir o contribuinte que forneceu todos os elementos e que prestou as devidas
declarações, acreditando na atuação da Administração. 98
III - quando a pessoa legalmente obrigada, embora tenha prestado declaração nos termos do inciso anterior,
deixe de atender, no prazo e na forma da legislação tributária, a pedido de esclarecimento formulado pela
autoridade administrativa, recuse-se a prestá-lo ou não o preste satisfatoriamente, a juízo daquela autoridade;
IV - quando se comprove falsidade, erro ou omissão quanto a qualquer elemento definido na legislação tributária
como sendo de declaração obrigatória;
V - quando se comprove omissão ou inexatidão, por parte da pessoa legalmente obrigada, no exercício da
atividade a que se refere o artigo seguinte;
VI - quando se comprove ação ou omissão do sujeito passivo, ou de terceiro legalmente obrigado, que dê lugar à
aplicação de penalidade pecuniária;
VII - quando se comprove que o sujeito passivo, ou terceiro em benefício daquele, agiu com dolo, fraude ou
simulação;
VIII - quando deva ser apreciado fato não conhecido ou não provado por ocasião do lançamento anterior;
IX - quando se comprove que, no lançamento anterior, ocorreu fraude ou falta funcional da autoridade que o
efetuou, ou omissão, pela mesma autoridade, de ato ou formalidade especial.”
95
TORRES, Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário, op. cit., p. 571.
96
Ibidem, p. 574.
97
Ibidem, p. 575.
98
Ibidem, p. 575.
34
2.5.3 Da Inalterabilidade dos Critérios Jurídicos do Lançamento
Trata-se, neste ponto, da regra trazida pelo art. 146 do CTN, que dispõe:
Art. 146. A modificação introduzida, de ofício ou em conseqüência de decisão
administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade
administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a
um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua
introdução.
Tal norma complementa a irrevisibilidade por erro de direito, regulada nos arts. 145 e
149 do CTN. Tem o condão de proibir “(...) a alteração do critério jurídico geral da
Administração aplicável ao mesmo sujeito passivo com eficácia para os fatos pretéritos.” 99
Assim, induz a proteção à confiança do cidadão, ao tornar mais previsível o efetivo
cumprimento do ato de lançamento, sem que hajam surpresas motivadas pela mudança de
critérios jurídicos adotados pela autoridade.
Desse modo, qualquer alteração no entendimento do Poder Público só produzirá
efeitos para frente, nunca para fatos pretéritos. Nesse sentido, decisão do E. TRF da 4ª Região
estabelece que “Do princípio da proteção à confiança, consagrado no art. 146 do CTN,
decorre que é lícito à Administração alterar seu entendimento acerca de determinado fato,
todavia o efeito desta nova interpretação é prospectivo (ex nunc).” 100
2.5.4 Da Inalterabilidade da Resposta à Consulta
Não poderá a resposta à consulta ser alterada projetando-se efeitos ao passado.
Adotando o contribuinte a interpretação jurídica fixada pela Administração, este tem sua
expectativa protegida, não podendo o Poder Público, ulteriormente, modificar a situação
consolidada.101
99
TORRES, Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário, op., p. 578.
BRASIL, TRF da 4ª Região, Primeira Turma, AMS 2005.71.00.039806-0/RS, Rel. Des. Álvaro Eduardo
Junqueira, D.E. 26/02/2008.
101
TORRES, Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário, op. cit., p. 579.
100
35
2.5.5 Da Irrevogabilidade das Isenções Onerosas
Torres explica que “As isenções fiscais condicionadas a encargos do beneficiário,
tanto que concedidas pela Administração, ingressam no patrimônio jurídico do contribuinte e
não podem ser revogadas.”102
A referência apóia-se no texto do art. 178 do CTN, que estabelece que “A isenção,
salvo se concedida por prazo certo e em função de determinadas condições, pode ser revogada
ou modificada por lei, a qualquer tempo (...)”.
Assim, expressa a regra de que a isenção concedida em função de determinadas
condições não pode ser revogada ou modificada por lei.
2.5.6 Da Exclusão de Penalidades
Caso as circunstâncias de aplicabilidade do princípio da proteção à confiança não
sejam suficientes à manutenção de um ato que produza benefício ao cidadão, não poderá, este,
ser punido por ter seguido as diretrizes traçadas pelo comportamento estatal anteriormente
fixado.
Ou seja, o contribuinte não deverá sofrer penalidade quando tiver um comportamento
baseado em uma conduta estatal que, mais tarde, venha a ser anulada. 103
É que as penalidades imputam a conduta do indivíduo. Porém, quando este acreditou
no comportamento estatal, não há conduta punível. Aliás, o parágrafo único do art. 100 do
CTN104 prevê tal proteção.
Nesse sentido, convém a menção da lição de Ávila:
Inexistentes os limites substanciais para a anulação ou revogação do benefício
fiscal, e sendo permitida a cobrança do tributo que deixou de ser pago, surge a
questão de saber se podem ser impostas penalidades ao contribuinte faltoso. A
resposta é negativa.
102
TORRES, Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário, op., p. 579.
ÁVILA, Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, op. cit., p. 15
104
“Art. 100. São normas complementares das leis, dos tratados e das convenções internacionais e dos decretos:
I - os atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas;
II - as decisões dos órgãos singulares ou coletivos de jurisdição administrativa, a que a lei atribua eficácia
normativa;
III - as práticas reiteradamente observadas pelas autoridades administrativas;
IV - os convênios que entre si celebrem a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.
Parágrafo único. A observância das normas referidas neste artigo exclui a imposição de penalidades, a cobrança
de juros de mora e a atualização do valor monetário da base de cálculo do tributo.”
103
36
Com efeito, existindo um ato ou contrato administrativo em função do qual o
contribuinte agiu, não se lhe pode ser imposta multa, porque não há comportamento
a ser punido. 105
Esta é uma regra que induz à proteção à confiança do contribuinte, eis que enseja a não
lesão às expectativas criadas pelo fisco, seja pelos atos normativos expedidos pelas
autoridades administrativas, seja pelas práticas reiteradas do Poder Público, que criam uma
situação no mundo dos fatos digna de proteção jurídica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Inicialmente, cumpre referir que os limites da presente abordagem não são próprios
para que se faça o tratamento de determinados temas com a necessária profundidade que estes
requerem, seja pelas peculiaridades que lhes são próprias, seja pela complexidade e pela vasta
abrangência envolvida por estes.
Oportuna a ressalva de que o trabalho não teve a pretensão de esgotar o estudo da
aplicabilidade do princípio da proteção à confiança no âmbito do direito tributário, eis que,
como anteriormente referido, o princípio tem um espectro de incidência que não é taxativo,
sendo que diversos casos de aplicabilidade escaparam ao alcance do presente estudo.
Porém, em linhas gerais, tencionou-se o estudo da solidificação do conceito de
proteção à confiança e a contextualização da importância do princípio da segurança jurídica
ao direito, para que se estabelecesse a influência do princípio e sua operatividade no ramo do
direito tributário.
Assim, estabeleceu-se um paralelo entre os conceitos de proteção à confiança,
segurança jurídica e boa-fé objetiva, conceitos que estão interligados e que confluem a um
mesmo caminho, o da consolidação e da preservação dos ideais inerentes ao Estado de
Direito.
Partiu-se, assim, da importância da previsibilidade, da estabilidade e da segurança,
conceitos que justificam a existência do direito e do próprio Estado, e, por isto, merecem a
devida tutela jurídica.
Neste contexto, diversos instrumentos atribuem-se à segurança jurídica – dentre eles,
destacam-se, no ramo do direito tributário, as garantias da irretroatividade e da anterioridade.
Tais conquistas têm objetivo comum: buscam um resultado finalístico consistente na
105
ÁVILA, Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, op. cit., p. 13.
37
consecução de segurança, através da previsibilidade e de que as condutas do cidadão, quando
pautadas em certo direito, sejam preservadas.
Porém, a observação histórica transmite o sentimento de que nem sempre tais
instrumentos de efetivação do princípio da segurança jurídica atingem seu ideal proposto.
Há que se atentar que os atos praticados pelo Estado, muito pela presunção de
legitimidade de que são dotados, criam uma expectativa nos cidadãos. Assim, tem-se
percebido que tais expectativas, muitas vezes, merecem a tutela jurídica, sob o viés do
princípio da segurança jurídica e, indiretamente, do próprio Estado de Direito.
Não bastasse, o Estado tem o dever, imposto pelo princípio da moralidade
administrativa, de praticar seus atos e condutas no sentido de que não sejam frustradas as
expectativas que os indivíduos lhe depositam. Aqui, notadamente, está o dever de boa-fé que
é imposto ao Estado.
Dessa forma, surgem duas importantes conclusões: a de que há uma garantia do
cidadão de que as condutas estatais que lhe produziram uma confiança merecem, sim, tutela
jurídica; e a de que o Estado tem o dever de manter um padrão de conduta que não rompa com
as esperanças legítimas que deposita aos indivíduos. A conjunção destes dois mandamentos
forma a essência do princípio da proteção à confiança.
Porém, o resultado que pretende o princípio da proteção à confiança não é absoluto. É
relevante a observação de que as mudanças são inerentes às atividades estatais e que não há,
necessariamente, quebra do dever de boa-fé quando um rompimento de uma conduta estatal
atingir um cidadão.
Por isto, relevante que se aplique o princípio da proteção à confiança através de um
juízo de razoabilidade e de ponderação, atentando-se aos efeitos que a mudança do
comportamento estatal produziu no indivíduo e, por outro lado, a necessidade e a justificativa
de tal rompimento de conduta.
Por outro lado, é de se referir a importância de uma garantia, no ramo do direito
tributário, que traduza os anseios de previsibilidade e de confiança nos atos praticados pelo
Estado. Notadamente, a seara do direito tributário centra-se muito no conceito de
planejamento, sendo essencial à saúde financeira do indivíduo (e à saúde econômica do país)
que haja um ambiente no qual se possa confiar nas promessas estabelecidas pelo Poder
Público.
Importantíssima a observação de que é obsoleto o entendimento de que só mereceriam
tutela jurídica os direitos adquiridos, e não os direitos expectados – ou, como reiteradamente
refere-se em nossos tribunais, “meramente expectados”.
38
Condenável a manutenção de um ambiente onde o cidadão não saiba em qual direito
confiar, qual ato estatal será mantido, e qual lei será julgada inconstitucional. Há que se
blindar certas expectativas, para que se crie um ambiente saudável e confiável.
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